Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
75/15.8YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO DO CONTENCIOSO
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: DEVER DE RESERVA
JUIZ
DIREITO À INFORMAÇÃO
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
INFRAÇÃO DISCIPLINAR
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
RECURSO CONTENCIOSO
DELIBERAÇÃO DO PLENÁRIO
CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
ERRO NOS PRESSUPOSTOS DE FACTO
DEVERES FUNCIONAIS
Data do Acordão: 10/26/2016
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO CONTENCIOSO
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE O RECURSO
Área Temática:
DIREITO CONSTITUCIONAL – ORGANIZAÇÃO DO PODER POLITICO / TRIBUNAIS / ESTATUTO DOS JUÍZES.
Doutrina:
- Consiglio Superiore della Magistratura, Quaderni del Consiglio Superiore della Magistratura, n.º 152, p. 233.
Legislação Nacional:
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 202.º, 203.º, 205.º, N.º 1 E 216.º, N.º 1.
ESTATUTO DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS (EMJ): - ARTIGO 12.º, N.º 1 E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 02-03-2011, PROCESSO N.º 110/10.6YFLSB.S1.
Sumário :

I - O dever de reserva (n.º 1 do art. 12.º do EMJ) constitui uma restrição à liberdade de expressão do juiz que tem como fundamentos a independência, a imparcialidade do julgador e a confiança social na administração da justiça.
II - O dever de reserva obsta a que um juiz emita juízos valorativos sobre quaisquer processos e, em particular, sobre aqueles que estejam a seu cargo, impondo-lhe que se abstenha de tecer comentários ou considerações que possam ser razoavelmente interpretados como pré-juízos relativamente à matéria a decidir, impedindo-se assim que se crie nos destinatários da decisão e no público em geral a desconfiança sobre a sua decisão e se afecte a confiança da comunidade na administração da justiça.
III - Do dever de reserva e com o propósito de o conciliar com o direito e o acesso à informação, acha-se excluída a prestação de informações exigida pelo respeito por interesses e direitos legítimos (n.º 2 do art. 12.º do EMJ). O conceito de informação aí vertido deve, porém, ser entendido num sentido factual estrito, o que exclui comentários valorativos sobre a orientação dada pelas partes ao desenrolar da lide e à sua influência no desfecho da causa.
IV - Tendo a recorrente, após o fim da audiência de julgamento, tecido comentários sobre a oportunidade da acção proposta, as vias que, a seu ver, teriam sido mais adequadas para alcançar os fins visados pelas autoras e os inconvenientes da intervenção do sindicato que em juízo as representava, é de considerar que a deliberação recorrida não está viciada por erro nos pressupostos de facto ao obtemperar que, ao agir dessa forma, a impetrante permitiu que quem ouviu essas declarações perspectivasse as suas concepções sobre a causa e o sentido da decisão.
V - Posto que foi a recorrente que se dirigiu às autoras, que a conversa em que foram tecidos os comentários mencionados em IV foi mantida perante pessoas que não estavam envolvidas no litígio e que os mesmos não se restringem a um esclarecimento dirigido àquelas (constituindo antes uma posição subjectiva, despojada de qualquer conteúdo informativo útil e que é susceptível de ser entendida como uma antecipação do sentido da decisão), é inviável concluir que os factos em causa são desprovidos de relevância disciplinar por se inserirem no direito das autoras à informação.
VI - O facto de os comentários referidos em IV terem sido proferidos na sala de audiências não descaracteriza o comprometimento da imagem de imparcialidade e isenção na administração da Justiça que deles resulta (por deixarem antever o sentido da decisão), o que a recorrente deveria ter prevenido.


Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I
1. AA, juíza de direito, a exercer funções no Tribunal Judicial da Comarca de ..., Grande Instância ..., ... Secção do ..., Juiz ..., arguida no processo disciplinar n.º 2014/DQJI/IN/406, notificada da decisão proferida, a 5 de Maio de 2015, pelo plenário do Conselho Superior da Magistratura[1], que a condenou, pela prática de uma infracção ao dever disciplinar de reserva consagrado no artigo 12.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais[2] e punida pelas disposições conjugadas dos artigos 82.º, 85.º, n.º 1, alínea b), 86.º e 91.º do mesmo diploma, na pena de advertência, com dispensa da respectiva inscrição no registo, nos termos do artigo 85.º, n.º 4, parte final, também do mesmo diploma, não se conformando com a mesma, veio, em 09/06/2015, ao abrigo do disposto no artigo 168.º do EMJ, apresentar recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, no qual formulou as seguintes conclusões:
«A. Os factos em que assenta a imputação da prática do ilícito disciplinar – a violação do dever de reserva – não têm qualquer relevância disciplinar, o que aliás resulta cristalino do voto de vencido do Exmo. Senhor Juiz Desembargador BB
.
«B. Em primeiro lugar, o dever de reserva tem como âmbito de aplicação as declarações ou comentários proferidos publicamente, para o exterior e/ou perante terceiros estranhos ao caso e não os diálogos informais entre o juiz e as partes e/ou os seus mandatários realizados no tribunal.
«C. Depõem a favor desta conclusão a letra e o espírito da norma. Se com a redacção do artigo 12.º do EMJ o legislador tivesse pretendido abranger pelo dever de reserva quaisquer trocas de impressões entre o juiz e as partes e /ou os respectivos mandatários, jamais se teria referido a “declarações” ou “comentários”.
«D. Também seria desprovido de sentido sujeitar essas “declarações” ou “comentários” a autorização prévia do CSM, na medida em que não só seria inexequível, como não teria qualquer cabimento que o CSM se pronunciasse sobre esclarecimentos ou informações que o magistrado titular do processo entende prestar às partes e/ou aos seus mandatários.
«E. Acresce que as finalidades – defesa da honra e interesses legítimos – a que o CSM possa atender para autorizar um magistrado a fazer declarações ou comentários sobre determinado processo em nada se relacionam com informações ou esclarecimentos que o magistrado titular do processo entenda prestar informalmente às partes e/ou aos seus mandatários, na medida em que estas não justificam uma tomada de posição pública, quer para defender a sua honra, quer para gerir as repercussões sociais que certa decisão judicial possa causar.
«F. O carácter público das declarações ou comentários proferidos por magistrados judiciais sobre processos retira-se igualmente das disposições paralelas sobre a matéria, a saber, o artigo 84.º dos Estatutos dos Magistrados do Ministério Público e do artigo 88.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
«G. Em segundo lugar, a prestação de informações sobre um caso concreto está expressamente autorizada pelo artigo 12.º, n.º 2, do EMJ, quando vise assegurar a realização de interesses legítimos.
«H. Ora, tendo sido a Recorrente directamente abordada pelas Autoras na acção judicial, após o encerramento da audiência de discussão e julgamento, mas ainda dentro da sala, a mesma mais não fez do que esclarecer as dúvidas por aquelas manifestadas, em clara realização do exercício do direito de acesso à informação por parte dos visados.
«I. Aliás, se o magistrado está autorizado pelo artigo 12.º do EMJ a prestar esclarecimentos ao público, então por maioria de razão está autorizado a prestar informações às partes.
«J. Ou seja, caso se entenda que os factos em apreço podem consubstanciar (e não podem) uma (possível) violação do dever de reserva – o que não se concede – sempre estariam incluídos no n.º 2 do artigo 12.º do EMJ, que exclui do âmbito de aplicação do n.º 1 do mesmo artigo a informação que seja prestada naquelas circunstâncias.
«K. Em terceiro lugar, a Decisão de que ora se recorre não encontra assento em nenhuma outra deliberação do CSM.
«L. Aliás, segundo a Deliberação do CSM, de 11 de Março de 2008, que veio conformar o âmbito de aplicação do artigo 12.º do EMJ, os magistrados titulares ou não do processo devem abster-se de comentar publicamente ou perante terceiros, casos em que tenham intervenção ou em que tenham intervindo, estando, no entanto, autorizados a dar informações sobre as suas decisões e sobre os seus fundamentos.
«M. Ora, se os Senhores Juízes estão autorizados a realizar esclarecimentos públicos, por maioria de razão, podem, no local próprio, explicar, elucidar, esclarecer e dar opiniões às partes num determinado processo e/ou aos seus mandatários.
«N. Foi justamente o que aconteceu in casu: pelo motivo fortuito de no fim da audiência ter de sair da sala pela porta que serve o público, e porque foi cumprimentada e questionada pelas Autoras, a Recorrente entendeu ser adequado prestar um esclarecimento, ainda que limitado perante as dúvidas manifestadas pelas mesmas.
«O. Assim sendo, à luz da Deliberação do CSM, de 11 de Março de 2008 – e de outras decisões publicadas sobre o dever de reserva – as condutas consideradas provadas não poderão integrar o elemento objectivo da infracção disciplinar imputada à Recorrente, que legitimamente confiou e adequou a sua conduta a tais entendimentos.
«P. Em quarto lugar, não se vislumbra de que maneira um esclarecimento prestado por um juiz, mediante solicitação de uma das partes, possa comprometer a imparcialidade como fundamento do dever de reserva. Tanto quanto mais, esses esclarecimentos foram realizados depois da produção de prova e não versaram sobre quaisquer decisões ou sobre o sentido de futuras decisões.
«Q. Ao invés, o comportamento da Recorrente é revelador de transparência, educação e pedagogia, já que possibilitou uma aproximação entre os cidadãos e a justiça e, consequentemente, uma melhor conformação com a decisão final (o que resulta, aliás, do dever de fundamentação das decisões judiciais, previsto no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
«R. O que a Recorrente pretendeu foi justamente esclarecer as Autoras das razões pelas quais estas não alcançaram um acordo com o Réu, o que em nada implica uma violação do dever de reserva.
«S. Em quinto lugar, a decisão recorrida interfere com a independência, liberdade, consciência e convicção com que a Recorrente exerce a magistratura, atentando contra os princípios fundamentais constantes dos artigos 202.º, n.º 1, 203.º e 216.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
«T. Por último, o Conselho Plenário do CSM decidiu no sentido de o (suposto) ilícito disciplinar ter sido praticado apenas com negligência, sem demonstrar, contudo, se era exigível à Recorrente que agisse de outro modo, no caso concreto.
«U. Ora, perante uma conversa entre a Recorrente e uma das partes no processo, em clima de total informalidade, mas na sala de audiências, perante dúvidas específicas daquela e na presença dos mandatários, não era exigível que a Recorrente se comportasse de modo diferente.
«V. Tanto mais que, a Recorrente actuou em conformidade com a interpretação que tem vindo a ser seguida para o dever de reserva, confiando que a sua conduta não violava o artigo 12.º do EMJ.
«W. Assim, os elementos objectivo e subjectivo da infracção não estão verificados, pelo que nenhuma responsabilidade disciplinar pode ser imputada à Recorrente, devendo a decisão recorrida ser revogada com a consequente absolvição da Recorrente.
«X. Decorre das conclusões antecedentes, que a decisão recorrida enferma dos vícios de violação de lei (violação das disposições legais que, de acordo com a posição que aqui se sustenta, foram erradamente interpretadas e aplicadas pelo CSM) e de vícios de erro manifesto nos pressupostos de facto, na medida em que procede a errada valoração dos factos integrantes da previsão das disposições legais acima citadas.»
2. Cumprido o disposto no artigo 174.º do EMJ, o CSM apresentou resposta, na qual concluiu:
«I. O dever de reserva obsta a que os magistrados judiciais profiram, em público, declarações ou comentários sobre quaisquer processos;
«II. Com isso pretende-se garantir a imagem de imparcialidade que é exigível aos magistrados judiciais;
«III. É indiferente que tais declarações ou comentários tenham como destinatários as partes no processo ou terceiros;
«Iv. A Recorrente produziu, em público, juízos valorativos sobre o objeto de um processo que estava a julgar e sobre a atuação das partes no litígio que dele era objeto, deixando assim que as destinatárias percebem (sic) o sentido em que iria decidir;
«V. Atuou desse modo por não ter suficientemente interiorizado o conteúdo do dever de reserva;
«VI. Tudo isso conforma, portanto, a prática da infração disciplinar por que foi condenada, a título de negligência.
«VII. E assim sendo, a deliberação recorrida não enferma dos vícios que lhe foram imputados no requerimento de interposição de recurso.»
3. Cumprido o disposto no artigo 176.º do EMJ, alegaram:
3.1. O CSM, concluindo como na resposta.
3.2. O Ministério Público, depois de desenvolvida apreciação sobre o conteúdo do dever de reserva, no sentido de que a deliberação recorrida devia ser mantida por ter feito correcta interpretação e aplicação da lei.
4. Colhidos os vistos, cumpre decidir.  
II
1. A deliberação impugnada
1.1. Procedimento prévio
Na sequência de participação subscrita pelo Exmo. Sr. Dr. CC, ..., por si e na qualidade de mandatário do Sindicato dos Médicos da ..., foi determinada, na sessão permanente de 16 de Setembro de 2014, a abertura de inquérito relativamente a factos praticados pela Exma. Sra. Juíza de Direito AA, ao tempo em exercício de funções no ....º Juízo, ....ª Secção, do Tribunal do ..., alegadamente configuradores de infracção ao deveres funcionais de reserva e correcção.
Realizadas as diligências tidas por necessárias, a Exma. Sra. Inspectora Judicial designada para o efeito apresentou o relatório previsto no artigo 134.º do EMJ no qual considerou haver indícios da prática da referida infracção disciplinar e, consequentemente, propôs a conversão do inquérito em procedimento disciplinar.
Apreciado o relatório, na sessão permanente de 18/11/2014, foi entendido que os factos deviam ser sancionados com a pena de advertência não registada, sem necessidade de procedimento disciplinar, pelo que foi determinada a notificação da Exma. Sra. Juíza para se pronunciar sobre eles.
Na sequência, a Exma. Sra. Juíza de Direito pronunciou-se dizendo que os factos não ocorreram conforme foram descritos na participação e no relatório final e a refutar a respectiva relevância disciplinar, pelo que foi determinada, na sessão permanente de 23/01/2015, a distribuição dos autos para a elaboração de projecto de deliberação.
1.2. Os factos
Na deliberação consideraram-se assentes os seguintes factos:   
«III. Estão demonstrados os seguintes factos:
«1. A Dra. AA nasceu em ..., em ....
«2. Frequentou o ....° Curso de Formação do Centro de Estudos Judiciários, tendo sido nomeada como Juíza Estagiária em ... e colocada no Tribunal da Comarca de ....
«3. Findo o estágio, desempenhou funções em: Tribunal de Instrução Criminal de..., ... Juízo, Auxiliar (decisão de 10.5.97), Tribunal da Comarca de ... (decisão 15.07.1997), Tribunal da Comarca da ..., ...° Juízo (decisão de 14.07.1998), Varas Cíveis de ..., ....a Vara, Auxiliar (decisão 14.07.1999), Tribunal Cível de ..., ....° Juízo (decisão de 11.07.2000), Varas Cíveis de ..., ...a Vara, Auxiliar (afectação de 15.09.2004), Varas Cíveis de ..., ....a Vara, Auxiliar (afectação de 21.09.2004), Varas Cíveis de ..., ....° Vara, Auxiliar (afectação de 4.09.2006), Tribunal de Família e Menores de ..., Auxiliar (decisão de 14.07.2009), Juízos Cíveis de ..., ...° Juízo, Auxiliar (decisão de 13.07.2009), Bolsa de Juízes de ..., (decisão de 21.12.2011), Tribunal do Trabalho de ....° Juízo, (decisão de 10.07.2010).
«4. No concerne às avaliações de mérito, foi notada com as seguintes classificações de serviço: Bom (29.06.1999), Bom (23.01.2001), Bom (06.02.2007), Bom com Distinção (13.09.2011).
«5. Em termos de pretérito disciplinar, nada consta.
«6. Em 30.05.2012, o Sindicato dos Médicos da ..., em representação das médicas, suas associadas, Dras. DD e EE, veio interpor acção declarativa de condenação com processo comum, emergente de contratos individuais de trabalho, contra Centro Hospitalar ..., EPE, processo n.º 2261/12.3TTLSB, pedindo que o R. fosse condenado a reconhecer que existiram, entre ele e as duas associadas do Sindicato, contratos de trabalho por tempo indeterminado, por cada uma delas, entre 1 de Outubro de 1997 e 15 de Outubro de 2011, fosse declarada a ilicitude da cessação daqueles contratos de trabalho, promovida pelo R., com efeitos a 15 de Outubro de 2011, sendo o mesmo condenado a pagar, a cada uma das associadas do Sindicato, a retribuição que deixaram de auferir, subsídios de férias, subsídios de Natal, bem como a reintegrar cada uma das mencionadas associadas do Sindicato, ou em alternativa satisfazer-lhes o montante correspondente à indemnização por antiguidade.
«7. Em sede de petição inicial foi alegado que às duas associadas do Sindicato tinha sido apresentada uma proposta contratual, na modalidade de "contrato individual de trabalho por tempo indeterminado", formalizada por escrito, tendo o Sindicato, em nome das suas associadas, respondido, culminando: "Não obstante o exposto, e porque as médicas associadas do SMZS pretendem preservar, acima de tudo os seus atuais postos de trabalho no CHLC, vêm informar pela presente, da sua disponibilidade para a celebração dos contratos de trabalho nos termos propostos, sem que tal implique a renúncia ao eventual exercício dos seus direitos e garantias legais, designadamente de ordem remuneratória, derivados das respectivas relações pré-existentes" (art.° 13 da petição e inicial, e documento com a mesma junto), não tendo, porém, o Réu dado seguimento, não concretizando as propostas de celebração de contratos individuais de trabalho por tempo indeterminado.
«8. O Dr. CC subscreveu a petição inicial e acompanhou o demais processado, enquanto mandatário constituído, em procuração forense, pelo Sindicato dos Médicos da ....
«9. No dia 17 de Outubro de 2013, pelas 9h.30m, teve início a audiência de julgamento, presidida pela Mma. Juíza, sendo produzida prova testemunhal e documental, proferidas alegações, designado dia 31 de Outubro de 2013, pelas 14 horas, para continuação, com vista a ser proferida decisão sobre a matéria de facto, e encerrada a audiência, pelas 13h30.
«10. Os trabalhos decorreram com normalidade e de forma cordial.
«11. Finalizada a audiência, começando os presentes na sala a sair, permanecendo pelo menos, ainda, as duas Senhoras Médicas, associadas do Sindicato, o Dr. CC, algumas das testemunhas ouvidas, entre elas a Dra. FF, e o Dr. GG, a Mma. Juíza dirigiu-se àquelas duas Senhores Médicas, tendo sido encetada uma conversa.
«12. No âmbito de tal conversa a Mma. Juíza disse às Senhoras Médicas que deviam ter aceitado a proposta formulado pelo Hospital, réu no processo, aquando das negociações havidas antes da propositura da acção.
«13. A Dra. EE, uma das médicas associadas do Sindicato, respondeu que tinham aceitado.
«14. A Mma. Juíza disse então, que não tinham aceitado, pois a carta remetida pelo Sindicato em representação não era clara relativamente à intenção das Senhoras Médicas, explicando que a ressalva efectuada quanto à remuneração traduzia uma discordância, bem como a possibilidade de recurso aos meios judiciais, pelo que nenhuma entidade patronal aceitava celebrar contratos de trabalho nessas circunstâncias.
«15. A Dra. EE questionou a Mma. Juíza se achava que iria colocar em Tribunal o Hospital, uma vez que era a fonte da sua subsistência, e se achava justo ir auferir muito menos do que tinha vindo a receber.
«16. A Mma. Juíza disse então que "não se pode ter o melhor de dois mundos ".
«17. Na mesma sequência referiu que o processo negocial fora mal orientado.
«18. Bem como que quando os Sindicatos se metiam, as coisas corriam mal, tendo sido mal aconselhadas.
«19. O Dr. CC, que tinha presenciado todo o diálogo, interveio então, pondo fim à conversa, dizendo que fora ele que aconselhara as Senhoras Dras. DD e EE, conduzindo todo o processo negocial
«20. As Dras. DD e EE, Médicas associadas do Sindicato e o Senhor Advogado, Dr. CC ficaram a olhar uns para os outros, muito admirados.
«21. As Senhoras Médicas ficaram perturbadas, sentindo que as coisas iriam correr mal, perdendo a acção.
«22. O Senhor Advogado, Dr. CC, ficou muito perturbado, sentindo-se humilhado, até porque havia várias pessoas a ouvir, nomeadamente as Senhoras Médicas.
«23. O Senhor Advogado, Dr. CC, contactou as Dras. DD e EE, perguntando se queriam ou não continuar a ser representadas por ele, pensando que pudessem ter perdido a confiança no seu desempenho.
«24. Na decisão sobre a matéria de facto proferida em despacho de 6.11.2013, a Mma. Juíza consignou no ponto n.º 15: “No decurso do ano de 2011 decorreram negociações entre as AA e o Réu com vista à celebração de um eventual acordo de trabalho para a prestação da actividade de patologia clínica, não tendo as mesmas celebrado qualquer acordo por as AA, não terem aceitado a retribuição proposta pelo Réu de 715,10€ equivalente à remuneração dos médicos integrados na Administração Pública, com a categoria de assistente hospitalar, escalão 3, índice 135.”
«25. Mais considerou, na fundamentação, que a factualidade dada por provada resultava de prova documental e testemunhal, esclarecendo o depoente (sic) sobre as propostas ponderadas e o motivo pelo qual não foi alcançado o entendimento (recusa das AA em aceitarem o valor do vencimento pago pelo R. aos demais médicos da respectiva especialidades que prestam trabalho ao Hospital).
«26. A acção foi julgada improcedente, por sentença de 30.12.2013, pendente de recurso no Tribunal da Relação de Lisboa.
«27. A Mma. Juíza agiu livre e conscientemente.»
Tendo sido dado como não provado que:
«1. Ao dirigir-se às Doutoras DD e EE, nos termos em que o fez, na presença do Senhor Advogado que as representava, Dr. CC, estando ainda presentes outras pessoas na sala que tal ouviram, sabia que não procedia com a reserva e a correcção que lhe eram exigíveis.»
2. O objecto do recurso
Como emerge do recurso, a recorrente pretende que seja anulada a deliberação impugnada em função de “vícios de violação de lei e de erro manifesto nos pressupostos de facto” por errada valoração dos factos imputados à recorrente como consubstanciadores de violação do dever de reserva.
3. Passando-se a apreciar o objecto do recurso
O que está em causa é saber se, perante os factos constantes da deliberação, a recorrente cometeu uma infracção ao dever especial de reserva que recai sobre os magistrados judiciais.
3.1. Na verdade, não resulta do recurso que a recorrente questione os factos que constam da deliberação mas apenas a sua valoração, isto é, a respectiva relevância disciplinar.
Sendo de destacar, a exemplo do que consta da resposta do CSM, que à recorrente foi dada a possibilidade de contrariar esses mesmos factos pois, embora tenha sido dispensado o processo disciplinar comum, nos termos permitidos pelo artigo 85.º, n.º 4, do EMJ, a recorrente foi notificada do relatório final do inquérito e da possibilidade de, perante os factos nele elencados, ser entendido que havia cometido uma infracção ao dever de reserva, punível com pena de advertência, tendo a recorrente respondido a essa notificação.
3.2. O dever de reserva está contido no n.º 1 do artigo 12.º do EMJ, nos seguintes termos: «Os magistrados judiciais não podem fazer declarações ou comentários sobre processos, salvo quando autorizados pelo Conselho Superior da Magistratura, para defesa da honra ou para realização de outro interesse legítimo».
Só não sendo abrangidas pelo dever de reserva, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, «as informações que, em matéria não coberta pelo segredo de justiça ou pelo sigilo profissional, visem a realização de direitos ou interesses legítimos, nomeadamente o acesso à informação».
Como se disse, v. g., no acórdão desta secção, de 02-03-2011 (Processo n.º 110/10.6YFLSB.S1), o fundamento do dever de reserva, imposto pelo n.º 1 do artigo 12.º do EMJ, em limitação do direito de expressão legal e constitucionalmente reconhecido a todos os cidadãos, reside na independência e imparcialidade dos juízes, valores também constitucionalmente garantidos e, naturalmente, na credibilidade e na confiança social na administração da justiça, que por essa via são protegidas – cf. Deliberação do CSM n.º 9/2008, de 11-03-2008.
Com o objectivo de conciliar o dever de reserva dos juízes com o direito à informação – cf. debate parlamentar respectivo in, Diário da AR, I, VII Legislatura, 4.ª sessão legislativa, n.º 94, págs. 40 e ss. –, a Lei n.º 143/99, de 31 de Agosto, veio excluir da reserva a prestação de informações exigida pelo respeito de direitos e interesses legítimos, assim concretizando a concordância prática entre o direito de liberdade de expressão, o dever de reserva e o acesso à informação, acrescentando ao citado artigo 12.º, o actual n.º 2.
Não se considerando, agora, as hipóteses de segredo de justiça e de sigilo profissional, interessa reter que só podem ter-se como fora da reserva as declarações que se traduzam na prestação de informações e que visem realizar direitos ou interesses legítimos, nomeadamente, o direito de acesso à informação.
3.3. Visando proteger os valores da independência e da imparcialidade na administração da justiça, o dever de reserva obsta, pois, a que os juízes emitam opiniões ou juízos valorativos sobre quaisquer processos.
Sob pena de comprometer esses valores de independência e imparcialidade e de pôr em causa a confiança dos cidadãos na administração da justiça, o juiz deve abster-se de fazer qualquer declaração ou comentário que projecte a sua opinião valorativa sobre o objecto do processo, antecipando o sentido da decisão.
Tratando-se de processo a seu cargo, o juiz deve ser especialmente cuidadoso na emissão de declarações ou comentários, abstendo-se de juízos valorativos que possam ser interpretados como pré-juízos relativamente à matéria a decidir sob pena de criar nos destinatários da decisão e no público em geral a desconfiança sobre a sua imparcialidade e, desse modo, afectar a confiança da comunidade na administração da justiça.
Deve, pois, o juiz evitar a revelação de qualquer opinião pessoal sobre o objecto do litígio que possa razoavelmente ser interpretada como uma antecipação do seu juízo final. A significar, como se tem dito, a adopção de descrição e prudência na exteriorização de opiniões.   
3.4. No caso, terminada a audiência de julgamento, ainda na sala de audiências e perante várias pessoas, a recorrente permitiu-se tecer comentários sobre a oportunidade da propositura da acção, as vias que, no caso, teriam sido mais adequadas à finalidade visada pelas autoras e os inconvenientes da intervenção do sindicato na orientação da solução da causa.
Por ser assim, a conclusão que se alcançou na deliberação não se apresenta em erro (erro sobre os pressupostos de facto) quando se ponderou: «Na verdade, a Exma. Sra. Juíza de Direito, depois de encerrada a audiência de discussão e julgamento, mas antes de decidida a causa, permitiu-se uma conversa com as Autoras em que teceu considerações valorativas quanto às opções por elas feitas ao longo do processo que antecedeu o litígio – e que, justamente, constituía o objecto deste –, referindo-se aos direitos subjectivos que, no seu entender, lhes assistiam. Permitiu, dessa forma, que as partes – e quem assistiu à inoportuna conversa – se apercebessem, à margem de qualquer acto processual, designadamente daquele onde, de forma mais vincada, se exerce a função judicante – a sentença –, das suas concepções acerca da matéria e, em função delas, perspectivassem o que seria o sentido da decisão. Ao assim proceder, a Exma. Sra. Juíza de Direito, por não ter agido com a prudência e cuidados que se impunham, permitiu que se criasse uma imagem de desconfiança sobre a sua actuação e, porque um juiz corporiza todo o poder judicial, sobre o sistema de justiça em geral.»
Anotando-se que: «Diferente poderia ser se, numa tentativa de conciliação, com a presença de todas as partes ou dos seus representantes, a Exma. Sra. Juíza, colocando-se numa perspectiva estritamente técnica e despida de considerações valorativas, fizesse menção ao direito aplicável à situação decidenda e às perspectivas que, em funções das várias soluções plausíveis, se delineavam para cada uma delas. Nessa hipótese, então sim, poderia ser entendido que a intervenção tinha escopo – a solução consensual do litígio – e se inseria numa perspectiva de colaboração com as partes e seus representantes. A propósito, vide a Sentenza de 24.11.2005/14.3.2006, n.º 146/2005, do Consiglio Superiore della Magistratura, disponível em Quaderni del Consiglio Superiore della Magistratura, n.º 152, p. 233.»

Não tem razão a Exm.ª juíza recorrente quando pretende que os factos em causa não têm qualquer relevância disciplinar.

As opiniões que divulgou e os comentários que teceu não podem ser valorados na perspectiva de um qualquer direito das autoras à informação, tanto mais quanto foi a recorrente quem teve a iniciativa de se dirigir às autoras, encetando com elas a conversa no decorrer da qual produziu as declarações e fez os comentários em causa, os quais não se restringem a um esclarecimento das autoras mas, pelo contrário, transmitem uma posição crítica relativamente à condução de todo o assunto, sendo adequados a fazê-las recear pelo insucesso da acção.
Por outro lado, essa conversa decorreu diante de várias pessoas – por exemplo, testemunhas no processo e, por isso, não pessoalmente envolvidas no litígio –, assumindo um carácter de publicidade incompatível com o cumprimento de um qualquer dever de informação das autoras.
Por fim, o facto de a conversa ter ocorrido na própria sala de audiências não é de molde a que a mesma seja tida por insusceptível de comprometer o dever de reserva porque o que, nesse âmbito, releva é o conteúdo da mesma e não o lugar onde ocorre. A produção de declarações ou a emissão de juízos susceptíveis de conformarem uma antecipação do sentido da decisão não deixam de ter essa natureza por serem produzidos durante o julgamento ou no final deste.
No caso, os comentários da Exm.ª juíza recorrente revelam uma posição subjectiva, essencialmente valorativa, desprovida de rigor e relevância técnica, sendo, por isso, desprovidos de qualquer conteúdo útil, em termos informativos, das autoras. Sendo, por outro lado, de molde a deixar antever o sentido da decisão comprometeram a imagem de imparcialidade e isenção na administração da justiça, facto que a Exm.ª juíza, num prudente critério, deveria ter previsto.
Em suma, para os efeitos do n.º 2 do artigo 12.º do EMJ, o conceito de informação deve ser entendido no seu sentido factual mais estrito, com exclusão de quaisquer comentários valorativos em relação à orientação dada pelas partes ao desenrolar da lide e à influência que essa orientação possa vir a ter no desfecho da acção.
O dever de reserva impõe que os magistrados judiciais se abstenham de apreciações susceptíveis de antecipar o sentido das suas decisões.
«As decisões judiciais devem ser proferidas e justificadas no seu tempo e espaço próprios, dentro do processo e de acordo com as regras respectivas, no contexto de um debate contraditório em que o magistrado não é parte, mas árbitro e decisor por força de uma especial autoridade conferida por lei», como se extrai do sumário do já referido acórdão desta secção de 02-03-2011 (Processo n.º 110/10.6YFLSB.S1).

III

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem a secção de contencioso do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto por AA.

Custas pela recorrente, com 6 UC de taxa de justiça (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e artigo 7.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais, e respectiva Tabela I-A anexa).

Valor da causa: € 30.000,01 (artigo 34.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).

 Supremo Tribunal de Justiça, 26 de Outubro de 2016

Isabel Pais Martins (Relatora)

Gabriel Catarino

Santos Cabral

Ana Luísa Geraldes

Ana Paula Boularot

Silva Gonçalves

Sebastião Póvoas (Presidente, com Voto de Vencido)*

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[1] Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CSM.
[2] Aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho e alterado pelo Decreto-Lei n.º 342/88, de 28 de Setembro, e pelas Leis n.os 2/1990, de 20 de Janeiro, 10/94, de 5 de Maio, 44/96, de 3 de Setembro, 81/98, de 3 de Dezembro, 143/99, de 31 de Agosto, 3-B/2000, de 4 de Abril, 42/2005, de 29 de Agosto, 26/2008, de 27 de Junho, 52/2008, de 28 de Agosto, 63/2008, de 18 de Novembro, 37/2009, de 20 de Julho, 55-A/2010, de 31 de Dezembro, e 9/2011, de 12 de Abril, daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais EMJ.  

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* Declaração de voto

1- Não acompanho o Acórdão ora votado já que, dando provimento ao recurso, anularia a deliberação em crise.

A recorrente foi punida pela violação do dever de reserva constante do artigo 12.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais.

Dispõe este preceito que “1- Os magistrados judiciais não podem fazer declarações ou comentários sobre processos, salvo quando autorizados pelo Conselho Superior da Magistratura, para defesa da honra ou para a realização de outro interesse legítimo. 2- Não são abrangidas pelo dever de reserva as informações que, em matéria não coberta pelo segredo de justiça ou pelo sigilo profissional, visem a realização de direitos ou interesses legítimos, nomeadamente o de acesso à informação”.

1-1- Note-se que a norma não inclui o segredo de Estado, que surge conceptualizado no artigo 316.º do Código Penal, e cuja violação constitui crime e é constitutivo de dever de escusa de depor (cfr. os artigos 497.º n.º 3 do Código de Processo Civil e 137.º do Código de Processo Penal).

Mas o dever de reserva delimita-se por estreita linha, do dever de cumprimento do sigilo profissional, e, em sede de processo criminal, do segredo de justiça (artigo 86.º CPP).

Abandonando esta última figura, por irrelevar “in casu” (atendendo, além do mais, que “a regra geral é a publicidade do processo “(…) A publicidade do processo constitui mesmo um princípio essencial …” — Cons. Henriques Gaspar, apud “Código de Processo Penal – Comentado” 2014, p. 295; cfr. ainda o Dr. Fernando Gama Lobo, in “Código de Processo Penal Anotado” – notas ao artigo 86.º - afirmando que o segredo de justiça é “uma excepção à regra publicista” ou “à regra da publicidade do processo [art.ºs 20-3 e 206 da CRP]”, veja-se que o sigilo profissional tem a ver com o prevenir que transite para a “praça pública” o que ocorreu “intra muros”, ou seja, o que só foi conhecido pelos intervenientes processuais, na sua veste de julgadores, e determinou as tomadas de posição.

Mas é, outrossim, certo que aí não se insere o debate estritamente técnico-jurídico (v.g. divergências quanto à demonstração de factos e (ou) respectiva substanciação quando podiam constar de declarações de voto, não só por adesão a diversa corrente doutrinária e jurisprudencial que logrou vencimento como, no acervo expositivo, o julgador singular deixar expressas as suas dúvidas no percurso decisório.

Afinal, o sigilo profissional está limitado pela negativa, ou seja, a tudo o que não é público nem se destina a ser publicitado nos termos dos diplomas adjectivos.

1-2- Porém, o dever de fundamentação – que deve ser clara, coerente e congruente – impõe que, com transparência, se explique às partes a razão do decidir.

Ademais, quando se julga, pela primeira vez, ou em sede de reapreciação, o decisor opta por credibilizar este (ou aquele) meio de prova e as mais das vezes afirma que a sua convicção se formou por, v.g., determinado depoimento o ter convencido e outro (ou até mesmo a postura do depoente) não ter surgido em moldes de o motivar, sem que esse juízo (estribado na livre apreciação da prova) artigo 607.º n.º 5 CPC) contenda com o dever de reserva ou com o sigilo.

2- Mas afinal onde se situa o dever de reserva, no cotejo com os acima elencados?

No âmbito do processo o juiz acede a informação, tantas vezes por ele colhida, que se destina unicamente a habilitá-lo a decidir com justiça, isenção e equidistância.

E para tal dispõe de poderes inquisitórios e conformadores, que sobretudo nas áreas civis (“maxime” no direito da família) e laboral tem uma componente mais marcadamente conciliatória e, na última, uma inegável função social.

2-1- Em relatório junto a outro recurso escreveu o Cons. Pereira Madeira, a propósito do dever que vimos analizando:

“Ao dever de reserva subjaz um conjunto de valores como a protecção da imparcialidade (e também da aparência de imparcialidade), da independência dos Juízes, da dignidade institucional dos tribunais, bem como a salvaguarda da confiança dos cidadãos no sistema de justiça.

Subjacente ao dever de reserva não está apenas a salvaguarda da independência e imparcialidade de cada juiz, mas valores colectivos que transcendem a esfera de cada juiz, como a dignidade institucional dos tribunais e a salvaguarda da imagem de credibilidade e da confiança dos cidadãos no poder judicial.

O Supremo Tribunal de Justiça, quando chamado a pronunciar-se sobre dever de reserva, assumiu que este dever tem implícitos a independência e a imparcialidade dos juízes, e naturalmente, a credibilidade e a confiança social na administração da justiça, que por essa via são protegidas, conforme resulta, entre outros, do acórdão de 2011 relatado por Maria dos Prazeres Beleza”.

(…)

“Dado que, sob a égide do dever de reserva do juiz, se tutelam valores constitucionalmente garantidos - como a imparcialidade e independência do Juiz e a confiança dos cidadãos na boa administração da justiça art.° 202.° e 203.° da CRP - há que compatibilizar estes com o direito (também constitucionalmente garantido) à liberdade de expressão.

Temos como certo que qualquer cidadão (nos quais se incluem, naturalmente, os juízes) tem direito à liberdade de expressão.

Prevê o artigo 37.°, n.° l da Constituição da República Portuguesa que "Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, imagem, ou por qualquer meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações."

Prevê também o art.° 10.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) que "1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia. "

Mas também é certo que ambos os artigos prevêem restrições a este direito, (artigos, 37.° n.° 3 da CRP e art.° 10. n° 2 da CEDH).

O n.° 3 do artigo 37.° da Constituição prevê a possibilidade de infracções cometidas no exercício do direito à liberdade de expressão, o que significa que admite restrições ao direito.

O mesmo se verifica no artigo 10.°, n.° 2 da CEDH, que expressamente prevê limites e restrições àquele direito, nomeadamente para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.

Ou seja, tanto o legislador nacional como o legislador europeu assumem claramente que o direito à liberdade de expressão não é um direito absoluto e irrestrito. Existem outros direitos também constitucionalmente reconhecidos que podem legitimamente limitar/comprimir este direito de liberdade de expressão.

Conforme refere Jorge Miranda, in Manual de Direito Constitucional, IV, Coimbra Editora, pág. 157 "O direito à liberdade de expressão trata-se de um direito extraordinariamente amplo e que, por isso mesmo, impõe algum cuidado no seu exercício, por não ser um direito absoluto: é que não há direitos absolutos ou ilimitadamente elásticos ".

Na mesma linha defende Vieira de Andrade, in Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, Almedina, pág. 220 "Segundo o critério de ponderação de bens, estando em causa a colisão do exercício de dois direitos constitucionais, a solução de tal litígio deve resultar de um juízo de ponderação em que se procure (em face da situação concreta), encontrar e justificar a solução mais conforme ao conjunto de valores constitucionais, só existindo - porém, verdadeiro conflito de direitos quando os mesmos são exercidos dentro dos seu limites."

Sobre a chamada obrigação de reserva, veja-se Cunha Rodrigues in Dicionário Jurídico da Administração Pública, Vol. V, pág. 551. "É uma restrição de conteúdo genérico e com relevância profissional e disciplinar.

(...) tem por finalidade proteger a independência dos tribunais e a isenção e a imagem dos magistrados, evitando, que deste modo, se fomentem estados de opinião prejudiciais para o bom funcionamento da administração da justiça e até para a credibilidade desta."

No sentido da conformação constitucional do dever de reserva do Juiz com os demais direitos fundamentais, veja-se, entre outros, o acórdão do STJ de 10-04-2014, Processo n.° 37/13.0YFLSB, relatado por Orlando Afonso "XII - O dever de reserva visa a protecção da imparcialidade (e da sua aparência) e da independência da cada magistrado e não tem cariz absoluto (pode ser levantado pelo CSM para a defesa do direito à honra quando esteja em causa interesses ou direitos legítimos)”.

No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 12-12-2002, Proc n.°4269/01”.

(…)

“ É, pois, de assumir que tanto o legislador (no art.°.12.° do EMJ) como o CSM estabeleceram um compromisso equilibrado e justo entre, por um lado, o direito à liberdade de expressão do cidadão/juiz e o direito ao acesso à informação e, por outro lado, a protecção da imparcialidade (e a aparência da mesma) e independência dos Juízes, e a confiança dos cidadãos no sistema de justiça. Nesta mesma linha de entendimento veja-se acórdão do STJ de 27-10-2009, Proc n.° 21/09.8YELSB”.

(…)

“Toda a caracterização do dever de reserva vertida, quer no art.º 12.° do EMJ, quer na deliberação n.° 9/2008 é consentânea com a Constituição e com o disposto no art.º10.° da CEDH.”

2-2- Veja-se, ainda, e a propósito, “Do dever de reserva dos juízes – Breves Considerações” – Drs P. P. Moreira das Neves e Rui Silva Pias.

3- Do que expus, resulta que a recorrente não violou o dever de reserva tendo-se, antes, limitado a algumas considerações sobre o julgamento acabado de realizar, numa jurisdição onde, como acima se referiu, se busca essencialmente a conciliação das partes, e num tempo em que ainda era possível lograr esse consenso.

Tratou-se de uma afirmação didáctica a não interferir nos deveres de isenção e de equidistância.

3-1- O único ponto que se poderia questionar é se o discurso poderia ser ofensivo para o mandatário da parte.

Porém, a ter sido, no limite, mera violação de outro dever (de correcção) a recorrente não foi punida por aí, sendo que tal apreciação transcenderia o âmbito deste recurso que é de mera anulação.

3-2- Note-se sempre, contudo, e ademais, ser lícito ao julgador, embora noutras sedes e tempo, proceder a chamadas de atenção e sancionar os representantes das partes, (artigos 602.º, n.º 2, d), 604.º, n.º 6 e 545.º CPC) inclusivamente com retirada da palavra, sem prejuízo do disposto no artigo 9.º CPCivil.

No eventualmente omisso acolho os doutos votos de vencido dos três Ilustres membros do CSM.

Daria, assim, provimento ao recurso.

Sebastião Póvoas (Presidente da Secção)