Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
97/12.0TBPV.L2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHA
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
DEPOIMENTO INDIRECTO
DEPOIMENTO INDIRETO
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
NULIDADE PROCESSUAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
APENSAÇÃO DE PROCESSOS
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
ARGUIÇÃO
TEMPESTIVIDADE
QUESTÃO NOVA
Data do Acordão: 07/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS PROCESSUAIS / EFEITOS SOBRE AS ACÇÕES PENDENTES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL /INSTRUÇÃO DO PROCESSO / PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO / PROVA TESTEMUNHAL / INABILIDADES PARA DEPOR / INQUIRIÇÃO POR INICIATIVA DO TRIBUNAL.
Doutrina:
-Alberto dos Reis, Código de Processo Civil de 1939;
-Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, Almedina, p. 307;
-Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora 2001, p.600;
-Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p. 375;
-Santos Cabral, comentário ao artigo 129º, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição revista, Almedina, p. 449.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 85.º, N.º 1;
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 411.º E 526.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

-DE 11-01-2011, PROCESSO N.º 152/09.4TBPDL.L1-7;
-DE 22-05-2014, PROCESSO N.º 3069/06.0TBALM.L2-2.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

-DE 26-01-2012, PROCESSO N.º 373/11.0TCGMR-C.G1.
Sumário :
I - Não tendo o administrador da insolvência da recorrida exercido a faculdade a que se refere a segunda parte do n.º 1 do art. 85.º do CIRE, inexiste qualquer óbice ao prosseguimento da causa no tribunal cível.

II - Da conjugação entre o disposto no art. 411.º e no n.º 1 do art. 526.º, ambos do CPC, emerge que o poder/dever de inquirição oficiosa de uma testemunha só deve ser exercido quando o tribunal não se considere suficientemente esclarecido acerca de factos relevantes e existam elementos que levem crer que a audição da pessoa em causa contribuirá para esclarecer as dúvidas que se suscitam em face da prova já produzida.

III - A conclusão, tirada pela Relação no âmbito da apreciação da impugnação da matéria de facto, relativamente à desnecessidade de chamar a depor determinada pessoa para complementar a prova produzida, é insusceptível de ser sindicada pelo STJ por respeitar ao plano estritamente fáctico, não se descortinando qualquer ostensiva desconformidade entre o decidido e o disposto no art. 526.º do CPC.

IV - Em processo civil, não é proibida a valoração do depoimento indirecto e as particulares razões que enformam o art. 129.º do CPP não têm paralelismo neste domínio (no qual impera o princípio dispositivo), sendo certo, em todo o caso, que a falta de convocação daquele a quem se ouviu dizer consubstanciaria mera nulidade processual a arguir em devido tempo pelo interessado.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório:


AA - Sociedade de Construções, Lda, intentou, em 17.02.2012, no Tribunal Judicial de .. acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra BB e CC, pedindo que:

- fosse reconhecido que o acordo celebrado entre a autora e a ré BB constituiu um negócio simulado com o intuito de esta ré poder pedir o pagamento antecipado de fundos comunitários à DD, devendo ser declarado nulo e de nenhum efeito quanto à emissão das facturas e pagamento do seu valor;

- fosse a ré BB condenada a pagar à autora o montante de € 112.283,36 pelos trabalhos efectuados no âmbito da execução do aludido contrato de empreitada e os trabalhos a mais solicitados por aquela;

- fosse reconhecido que a ré BB desistiu da empreitada, sendo, em consequência,  condenada a pagar à autora o montante de €: 45.896,00 a titulo de indemnização pelo proveito que esta deixou de ter pelo facto da ré ter desistido da conclusão da obra;

- fosse condenada no pagamento de juros legais sobre os montantes reclamados calculados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que no âmbito de um contrato de empreitada que celebrara com a ré BB, a autora emitiu facturas, no total de € 135 000,00, simulando ter recebido da 1.ª ré pagamentos por conta dessa empreitada, com o intuito de que a ré obtivesse fundos comunitários, sem que a autora tivesse ficado, efectivamente, com o dinheiro alegadamente pago por aquela, uma vez que a autora, após o levantamento dos cheques emitidos a seu favor pela ré, transferiu as quantias recebidas para uma conta bancária do 2.º réu, que para esse efeito lhe fora indicada pela 1.ª ré. Mais alegou que a ré desistiu da empreitada, não tendo pago à autora o valor dos trabalhos que esta executou, no valor de € 112 283,36, sendo certo que a autora auferiria um proveito de € 45 896,00, caso a empreitada fosse totalmente executada.


Apenas a ré BB contestou, impugnando a quase totalidade dos factos alegados pela autora e imputando defeitos aos trabalhos realizados por esta, concluindo pela improcedência da acção e sua consequente absolvição do pedido.


Na audiência prévia foi proferido saneador tabelar e identificado o objecto do litígio, tendo sido enunciados os temas da prova.

Realizou-se audiência final e, em 19.10.2016, foi proferida sentença, que julgou a acção totalmente procedente e, consequentemente, condenou a ré BB como peticionado e ambos os réus nas custas da acção.


Desta sentença apelou a ré.

O Tribunal da Relação, por acórdão de 6 de Julho de 2017, proferiu a seguinte decisão:

«1.º - Julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a sentença recorrida;

2.º - Nos termos dos artigos 443.º n.º 1 do CPC e 27.º n.ºs 1 e 4 do RCP, ordena-se o desentranhamento do documento junto com a alegação da apelante e condena-se a apelante em 1 UC de multa».


Ainda inconformada, interpôs a mesma ré recurso de revista, finalizando a sua alegação recursiva com as seguintes conclusões (sic):

«1. No decurso dos presentes autos de processo comum a A., ora recorrida, apresentou-se à insolvência nos termos melhor esclarecidos no processo n° 478/12.0TYLSB do 3o juízo de Lisboa do tribunal de comércio de ….

2. Sendo certo que no referido processo foi publicado o "anúncio" nos termos da lei contendo as menções mais específicas dos ditos autos.

3. E tal sorte que a insolvência foi decretada em data anterior à da prolação da sentença em 1a Instância. Contudo,

4. E a despeito do teor da lei, nem a A. nem a R. ou sequer o tribunal Tiveram conhecimento oficial da pendência de tal processo. Todavia,

5. O ClRE que já estava em vigor, manteve-se nessa situação sendo certo que como já decorre do anteriormente referido não foi dada qualquer atenção a diversas normas desse acervo jurídico designadamente os arts. 17-E, 59°, 85°,161°-2 entre outros;

6. E designadamente o processo dos autos que nos termos da lei - art. 85°-1 CIRE não foi apensado a este último pela simples e elementar razão de que, a despeito da ora recorrida ter enviado para o processo, sobre a forma de uma procuração informação ou aviso este respeitante aos pontos que a lei refere, o que sucedeu em momento anterior ao da elaboração da sentença;

7. A mesma decisão judicial, por e simplesmente desconsiderou-a na totalidade, o que se admite que tenha ficado a dever-se ao facto desta informação ter sido transmitida de forma atípica e, nessa medida desusada;

8. Seguiu-se-lhe a sentença de 1ª instância, o recurso para o TRL e o demais processualmente côngruo, sendo ainda certo que o processo de insolvência se manteve relativamente ao dos autos, como res inter aliaos acta, isto é os presentes autos continuaram a cursar à inteira revelia daqueles outros aos quais deviam ter sido apensados.

9. Acrescente-se ainda que a administradora da insolvência - por fas ou por nefas - não deu cumprimento aos ónus legais cujo cumprimento cabe às pessoas encarregadas das referidas funções. Logo,

10. Estes autos sempre correram como ainda correm à inteira revelia daqueles outros pendentes no tribunal de comércio de …. Por isso,

11. A actuação processual que se tem verificado nestes mesmos autos, desde a sentença de 1a instância inclusive, embora, aparentemente da competência genérica, a verdade é que os mesmos deviam ter sido praticados por magistrados judiciais dos tribunais do comércio, o que não sucedeu

12. Sendo esses actos inexistentes, por eivados de abuso de poder, isto é, por juízes funcional e materialmente incompetentes pelo que cabe a V.as Exas., salvo melhor opinião, ordenar que todo o processado que teve lugar perante juiz materialmente incompetente deve ser declarado inválido, com as legais consequências. Porém e por cautela,

13. Sempre se referirá ainda que as normas do processo penal referentes ao testemunho indirecto também conhecido por testemunho de ouvir dizer - hear say rule, como se lhe chama no direito anglo-saxónico -materializam verdadeiros princípios gerais respeitantes a toda a ordem adjectiva nacional e, por conseguinte, também pelo código de processo civil

14. Nessa medida a razão assistindo totalmente, salvo o devido respeito, à recorrente e à pretensão da mesma relativamente às testemunhas cujos depoimentos a Relação de … fez fé, pelo que os mesmos testemunhos devem considerar-se inválidos em tudo o mais, nos termos anteriormente preconizados pelo recorrente.

15. Aliás, a consideração de que a testemunha indicada por certo sujeito processual, não é mais, ao contrário do entendimento vetusto, do que um equívoco, pois o art. 32° n° 5, 1a parte CRP, aplicável directamente ex vi art 18°-1 do mesmo diploma aplica-se também, segundo entendimento generalizado, ao processo civil, ao querer que prevaleça a verdade judiciária, tal como foi possível determiná-la. Por isso,

16. Dando-se provimento ao presente recurso, devem V.as Ex.as ordenar o desentranhamento de todas as peças processuais espúrias, anulando e, na consequência disso fazer remeter os autos ao Tribunal competente, que é o do Comércio, de Lisboa, ou

17. Não se entendendo assim, julgarem que o TRL julgou erroneamente quanto às chamadas testemunhas de ouvir dizer, nessa medida considerando inválidos os respectivos depoimentos.

18. As normas que se consideram violadas são, além do mais, as dos artigos 32°-5 e 18° da CRP e as dos artigos 17°E, 36°, 59°, 154° e 161° do CIRE, e as dos artigos 7° e 411° do código de processo civil».

Juntou um documento para prova da alegada declaração de insolvência da autora.


A autora não contra-alegou.

A ré, ora recorrente, litiga com o benefício do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos, bem como de nomeação de patrono e de pagamento da compensação de patrono (fls. 600).

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II. Fundamentos:

De facto:

1.º A A. tem por objecto a execução de empreitadas de construção civil e obras públicas.

2.º A R. BB tem um projecto de construção civil aprovado pela Câmara Municipal de … para a construção de diversos equipamentos na sua propriedade, sita em S….

3.º Para a construção de todos os equipamentos integrantes do referido projecto a R. BB acordou com a A. um contrato de empreitada.

4.º O preço da empreitada, de €.526.682,38, foi acordado entre as partes no dia 4 de Março de 2011 e corresponde ao somatório de valores das empreitadas parcelares de:

1 - Montagem do estaleiro no valor de €:12.000,00

2 - Estabelecimento Comercial no valor de €:243.464,14

3 - Espaço Recreativo no valor de €:82.126,29

4 - Clínica no valor de €:99.877,13

5 - Animais no valor de €:20.361,96

6 - Box no valor de €: 68.852,86.

5.º O prazo para a realização da empreitada foi de 240 dias a contar do início dos trabalhos.

6.º A R. BB acordou com a A. efectuar o pagamento dos trabalhos executados 60 após a elaboração dos autos de medição mensais dos trabalhos executados.

7.º Com o acordo da R. BB a A. iniciou a execução da obra a 21 de Março de 2011.

8.º Quando a A. deu início à execução da empreitada foi abordada pela R. BB no sentido daquela emitir facturação para esta apresentar na DD – Associação de Desenvolvimento Regional com vista a conseguir a obtenção de fundos comunitários a que se tinha candidatado.

9.º A R. BB disse à A. que precisava de demonstrar junto da referida Associação que já tinha pago a facturação emitida e convenceu a A. a colaborar num plano, por si idealizado, com vista a convencer o organismo que disponibilizava os apoios comunitários.

10.º A R. BB elaborou um plano de facturação que devia ser emitida pela A. e convenceu-a a emitir essa facturação e, em simultâneo, dar essa facturação como recebida.

11.º Para tanto, logo após a emissão de cada factura, a R. BB enviava um cheque à ordem da A. que esta levantava e, de imediato, o montante recebido era devolvido à R. BB, através de depósitos para a conta 45…8 no Banco EE titulada por pessoa de sua confiança, de nome CC, 2.ºR., e indicado por ela.

12.º A A. consentiu e acordou no plano que lhe foi apresentado pela R. BB.

13.º Assim e não tendo por base os trabalhos efectivamente executados, mas obedecendo ao plano apresentado pela R. BB, a A. emitiu as seguintes facturas:

1- Factura n.º 1..9, com data de 31/03/2011, auto de medição n.º1, referente ao projecto “casa …” no valor de €:15.000,00

2- Factura n.º 1…8, com data de 04/04/2011, auto de medição n.º 2

- finalização das Fundações e levantamento das paredes principais, referente ao projecto “casa …”, no valor de €:20.000,00

3 - Factura n.º 1…9, com data de 07/04/2011, auto de medição n.º3

- colocação de placa, referente ao projecto “casa …”, no valor de €:20.000,00

4- Factura n.º 1…0, com data de 12/04/2011, auto de mediação n.º4

– acabamentos finais, referente ao projecto “casa …” no valor de €:20.000,00

5 - Factura n.º 1…1, com data de 15/04/2011, auto de mediação n.º5

- inicio de obra, referente ao projecto “Quinta …”, no valor de €:15.000,00

6 - Factura n.º 1…2, com data de 18/04/2011, auto de medição n.º6

- finalização do 1.º grupo de casotas “R….”, “Projecto Quinta …, no valor de €:15.000,00

7 - Factura n.º1…3, com data de 21/04/2011, auto de medição n.º7

- finalização do 2.º grupo de casotas “ro….”, “Projecto Quinta …” no valor de €:15.000,00

8 - Factura n.º1…4, com data de 26/04/2011 auto de medição n.º8

- finalização 3.º grupo de casotas, “s…”, “Quinta …”, no valor de €:15.000,00.

14.º Para dar a aparência de que as facturas emitidas pela A. tinham sido pagas pela R. BB, esta emitiu a favor da A. os seguintes cheques:

1. Com data de 31/03/2011, cheque n.º46…1, no valor de €:15.000,00

2. Com data de 05/04/2011, cheque n.º 46…4, no valor de €:20.000,00

3. Com data de 08/04/2011, cheque n.º 46…7, no valor de €:20.000,00

4. Com data de 13/04/2011, cheque n.º 46…40, no valor de €:20.000,00

5. Com data de 18/04/2011, cheque n.º 46…43, no valor de €:15.000,00

6. Com data de 21/04/2011, cheque n.º 46…25, no valor de €:15.000,00

7. Com data de 26/04/2011, cheque n.º 46…22, no valor de €:15.000,00

8. Com data de 27/04/2011, cheque n.º 46…19, no valor de €:15.000,00.

15.º A A., no cumprimento do acordado com a R. BB, transferiu para a conta n.º 45…78, do Banco EE titulada, por CC, os seguintes montantes:

1 - A 04/04/2011 €:12.000,00

2 - A 05/04/2011 €:3.000,00

3 - A 06/04/2011 €:12.000,00

4 - A 07/04/2011 €:9.000,00

5 - A 11/04/2011 €:12.000,00

6 - A 12/04/2011 €:8.000,00

7 - A 14/04/2011 €:8.000,00

8 - A 18/04/2011 €:11.000,00

9 - A 20/04/2011 €:9.000,00

10 - A 21/04/2011 €:6.000,00

11 - A 26/04/2011 €:9.500,00

12 - A 26/04/2011 €:5.500,00

13 - A 27/04/2011 €:11.000,00

14 - A 27/04/2011 €: 4.000,00

15 - A 28/04/2011 €:10.000,00

16 - A 28/04/2010 €: 5.000,00.

16.º Com a emissão das facturas por parte da A., com a respectiva emissão dos cheques por parte da R. BB e a devolução do dinheiro à R. BB por parte da A., através do depósito dos valores na conta do R. CC, todos sabiam que esta operação não se destinava a cumprir o contrato de empreitada celebrado entre a A. e a R. BB.

17.º Com a utilização de um intermediário na movimentação do dinheiro permitia à R. BB demonstrar junto da DD-Associação de Desenvolvimento Regional e entidade gestora do FF (Programa para o Desenvolvimento Rural da ….) que já tinha gasto na execução da empreitada o montante de €.135.000,00.

18.º.º A A. 30 de Junho de 2011 elaborou o auto de medição n.º1 dos trabalhos efectivamente executados em obra até aquela data, cujo valor ascendia a €:55.753,88, sem IVA, não incluído as alterações solicitadas pela R.

19.º O auto foi entregue à R. naquela data com vista à sua aceitação.

20.º A R. BB foi diversas vezes interpelada pela A. para se pronunciar sobre o conteúdo do auto de medição n.º1, durante o mês de Julho, mas esta furtou-se sempre a pronunciar-se sobre o mesmo.

21.º A A. a 30 de Julho de 2011 elaborou o auto de medição n.º2 dos trabalhos efectivamente executados em obra durante o mês de Julho, no valor de €:11.965,36, sem IVA, não incluindo as alterações solicitadas pela R.

22.º O auto foi entregue à R. BB, naquela data com vista à sua aceitação.

23.º A R. BB, no início de Agosto de 2011 foi diversas vezes interpelada para se pronunciar sobre o conteúdo do auto de medição n.º2, mas esta furtou-se sempre a pronunciar-se sobre o mesmo.

24.º Todos os trabalhos executados em obra, incluindo a execução de alterações ao projecto inicial foram executados no cumprimento de instruções dadas pela R. BB e sob a sua supervisão.

25.º Tendo sido acordado que todas as alterações seriam contabilizadas posteriormente.

26.º Face ao volume de trabalho já executado a A. questionou a R. BB no sentido desta proceder ao pagamento, ainda que parcial, da obra já realizada.

27.º A R. BB no dia 16 de Agosto de 2011 ordenou a paragem dos trabalhos e informou que já não queria continuar a obra.

28.º A R. BB informou que a A. deveria tratar com o seu Advogado, Dr. GG, de todas as questões emergentes da sua decisão em não continuar a empreitada.

29.º No final de Setembro de 2011 o Dr. GG e o Eng.º HH, representando a A., realizaram uma reunião no escritório do primeiro, na qual o Dr. GG informou que a A. deveria fechar a obra, desmontar o estaleiro e que fizesse o levantamento de todos os trabalhos efectivamente feitos.

30.º A A., em cumprimento da ordem recebida, levantou o estaleiro e procedeu ao levantamento total dos trabalhos executados, através do “auto de medição final” elaborado a 27 de Outubro de 2011, que foi entregue à R.

31.º No dia 2 de Novembro de 2011 o Eng.º HH, em representação da A. reuniu com o Eng. II, representante técnico da BB e com a própria com vista a aferir os autos de medição elaborados pelas duas partes.

32.º A R. BB e o seu técnico não apresentaram nenhum auto de medição e informaram o Eng. HH que o apresentariam até ao final de Novembro de 2011.

33.º O que nunca chegou a acontecer.

34.º O remanescente da dívida reflectida no auto de medição final deve-se à execução de trabalhos não previstos no projecto inicial mas mandados executar pela R. BB.

35.º A A., em cumprimento do contrato de empreitada inicial e das alterações solicitadas pela R. BB executou os seguintes trabalhos:

1 - Estaleiro €: 9.600,00

2 - Estabelecimento Comercial

Movimentos de terras

2.1 - Desmatação, desenraizamento e escavação de camada vegetal existente, incluindo transporte a vazadouro dos produtos sobrantes, com todos os meios necessários €: 352,00

2.2 - Escavação em terra, na zona de intervenção para ficar à cota de trabalho, incluindo regularização final, com todos os meios necessários €: 660,00

2.3 - Escavação em abertura de fundações, em terra, incluindo compactação e regularização do fundo da mesma, entivação quando necessária, com todos os meios necessários €: 529,32

2.4 - Transporte e vazadouro das terras provenientes das escavações, incluindo carga e descarga das mesmas, com todos os meios necessários €: 181,97 Betões

2.5 - Fornecimento a assentamento de betão de limpeza com 150Kg cimento/m3, em elementos de fundação, incluindo regularização final, com todos os meios necessários €:732,18

2.6 - Fornecimento e assentamento de betão C16/20 armado com aço A400NR, incluindo cofragem, descofragem, escoramento, vibração mecânica, regulação final e regra, com todos os meios necessários.

2.6.1 - em execução de sapatas €: 15.374,50

2.6.2 - em execução de viga de fundação €: 3.860,24

2.6.3 - em execução de pilares €: 2.505,98

2.6.4 - em execução de vigas €: 2.168,70

2.6.5 - em execução de lajes maciças €: 652,22

2.6.6 - em execução de lajes de escadas €: 114,29

Lajes

2.7 - Fornecimento e assentamento de lajes aligeiradas compostas por vigotas em betão pré-fabricado, abobadilhas de betão, armadura de distribuição e lâmina de compressão €: 3.662,01

Alvenaria

2.8 - Fornecimento e execução de alvenaria em blocos de betão pré-fabricado, assente com argamassa de cimento e areia ao traço 1:4, em elevação de paredes duplas

2.8.1 - Blocos de 50x20x27, com 0,30ml de espessura no limpo €: 958,72

3 - ANIMAIS

Movimentos de terras

3.1 - Desmatação, desenraizamento e escavação de camada vegetal existente, incluindo transporte e vazadouro dos produtos sobrantes, com todos os meios necessários €: 352,00

3.2 - Escavação em terra, na zona de intervenção para ficar à cota de trabalho, incluindo regularização final, com todos os meios necessários €: 660,00

3.3 - Escavação em abertura de fundações, em terra, incluindo compactação e regularização do fundo da mesma, entivação quando necessária, com todos os meios necessários €: 114,84

3.4 - Transporte a vazadouro das terras provenientes das escavações, incluindo carga e descarga das mesmas, com todos os meios necessários €: 39,49

Betões

3.5 - Fornecimento e assentamento de betão de limpeza com 150Kg cimento/m3, incluindo regularização final, com todos os meios necessários €: 144,60

3.6 - Fornecimento e assentamento de betão C16/20 armado com aço A400NR, incluindo cofragem, descofragem, escoramento, vibração mecânica, regularização final e regra, com todos os meios necessários.

3.6.1 -Em execução de Sapatas €: 1.808,76

3.6.2 -Em execução de viga de fundação €: 1.280,00

3.6.3 - Em execução de pilares €: 738,29

3.6.4 - Em execução de vigas €: 1.720,52

Cobertura

3.7 - Fornecimento e execução de cobertura do tipo ERFI 4-241-45 ou equivalente com 0,6mm de espessura, incluindo todos os remates de série, acessórios e todos os demais trabalhos necessários ao seu bom Acabamento €: 2.785,48

Alvenarias

3.8 - Fornecimento e execução de alvenaria em blocos de betão pré-fabricado, assente com argamassa de cimento e areia ao traço 1:4, em elevação de paredes simples

3.8.1 - Blocos de 50x20x27, com 0,30m de espessura no Limpo €: 2.765,96

3.8.2 - Blocos de 50x20x10, com 0,13m de espessura no limpo €: 515,63

Revestimentos em paredes

3.9 - Salpico, emboço e reboco com argamassa de cimento e areia com aditivo hidrófugo, em alvenaria exterior, com acabamento areado fino, pronto a receber

Pintura €: 1.887,58

Pavimentos

3.10 - Fornecimento e assentamento de camada de betão armado com malhasol CQ30, incluindo regularização Final €: 2.889,98

3.11 - Fornecimento e assentamento de betonilha de regularização incluindo regularização final €: 1.387,19

4 - Arranjos exteriores

4.1 - Execução de muro em pedra seca com altura até 1,20m (sem fornecimento de pedra) €: 18.425,00

4.2 - Muro de suporte em alvenaria de pedra seca argamassada (sem fornecimento de pedra) €: 6.363,50

4.3 - Forra de pedra em paredes e chafariz (sem fornecimento de pedra) €: 506,00

4.4 - Execução de pavimento em calçada existente €: 440,00

4.5 - Colocação de lancil existente €: 352,11

4.6 - Escavação geral para implantação de novos muros €: 6.077,50

4.7 - Execução de vala para infra-estrutura de electricidade desde a entrada da obra até cada edifício €: 1.808,40

4.8 - Coroamento de muros em betão €: 9.900,00

5 - Outros trabalhos

REDE DE ÁGUA

5.1 - Execução de vala para infra-estrutura de abastecimento de água desde a entrada da obra até cada edifício €: 1.518,00

5.2 - Execução de tanque em alvenaria de blocos de betão rebocados, incluindo instalação de tela pitonada para impermeabilização do mesmo €: 1.350,00

REDE DE ESGOTOS

5.3 - Execução de sumidouros em manilhas de betão furadas, incluindo filtro em bagacina e tampas metálicas €: 3.400,00

5.4 - Execução de fossa séptica €: 750,00

5.5 - Execução de caixas de visita quadradas 0,5*0,5 em alvenaria de blocos de betão incluindo tampa

Metálica €: 220,00

5.6 - Execução de passeio em betão C16/20 em frente a Coelheira €: 158,40

5.7 - Fornecimento de telha regional cerâmica €: 572,00

36.º A A., na execução da empreitada, iria obter um proveito de 10% do valor da empreitada.

37.º A A. interpelou, por carta registada com aviso de recepção, a R. BB a 13/01/2012 para esta pagar a factura dos trabalhos realizados e a indemnização, mas esta não pagou.

De direito:

Salvo questão de conhecimento oficioso, são as conclusões do recorrente que definem e delimitam o objecto do recurso (artigos 635º n.º 4 e 639º n.º 1 do Código de Processo Civil).

No presente recurso são duas as questões nucleares colocadas pela recorrente, a saber:

- incompetência material do tribunal;

- violação do princípio do inquisitório no âmbito da produção de prova testemunhal.


   Uma nota prévia para salientar que, apesar da manifesta e inequívoca existência de dupla conformidade das decisões proferidas pelas instâncias, sem voto de vencido na Relação, não nos encontramos perante dupla conforme impeditiva da revista, porquanto a recorrente suscita questão relativa à incompetência material do tribunal, caso em que este recurso é sempre admissível, e questão adjectiva relativa à impugnação da decisão fáctica, matéria pela primeira vez apreciada pela Relação e sobre a qual não pode incidir, naturalmente, dupla conforme (artigos 671º nº 3 e 629º nº 2 al. a) do Código de Processo Civil, ao qual se referirão todos os preceitos de futuro citados sem outra menção expressa).


1. Da incompetência material do tribunal.

Invocando o disposto nos artigos 17º-C, 17º-E nº 2, 161º nº 2, 59º nºs 1 e 5 e 85º nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), alega a recorrente que, tendo sido decretada na pendência desta acção a insolvência da autora, ora recorrida, «o Julgador deveria ter sobrestado no conhecimento dos pedidos e remetido os autos ao Tribunal de Comércio por, como visto, ter perdido jurisdição. Logo, um acto praticado por entidade sem jurisdição, ainda que um juiz, não passa judicialmente de um acto putativo. Logo, esse Supremo Tribunal, declarando-o, terá que daí sacar as legais consequências, anulando todo o processado desde a sentença da 1ª instância e remetendo o processo para o lugar onde deveria estar: O Tribunal de Comércio da Lisboa, para aí ser apensado ao processo no qual fora definida, ainda que indirectamente a vera situação jurídica da autora, deixando assim de valer as exigências do artº 611°,1 CPCivil».

     No domínio da competência interna a competência em razão da matéria pode colocar-se em dois planos. Entre as várias categorias de tribunais definidas no artigo 209º da Constituição, concretamente, tribunais judiciais, por um lado, e tribunais especiais, por outro, e entre tribunais judiciais de competência não discriminada (genérica) e tribunais de competência especializada, como tal definidos na Lei de Organização do Sistema Judiciário aprovado pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (artigo 79º e seguintes).

     A violação das regras de competência material dos tribunais traduz-se numa incompetência absoluta, excepção dilatória nominada de conhecimento oficioso (artigos 576º, 577º al. a) e 578º) com regime de arguição e/ou de apreciação oficiosa diverso, consoante a incompetência envolva categorias de tribunais diferentes ou apenas tribunais judiciais, como determina o artigo 97º (anterior artigo 102º).

Na verdade, no primeiro caso, pode ser arguida ou suscitada oficiosamente pelo tribunal até ser proferida sentença com trânsito em julgado sobre o mérito da causa (nº 1), enquanto, no segundo caso, só pode ser arguida, ou oficiosamente conhecida, até ao início da audiência final (nº 2).

A alegada incompetência material agora arguida pela recorrente envolve apenas tribunais judiciais, dado a recorrente entender que, após a declaração de insolvência da autora/recorrida, a presente acção não podia prosseguir no tribunal judicial onde corria termos, passando, a partir de então, a competência para o tribunal de comércio.

Compulsados os autos verificamos que se trata de questão nova, não suscitada anteriormente no processo por qualquer das partes, em particular pela recorrente, sendo que o tempo próprio para tal acontecer ou para a sua apreciação oficiosa seria até ao início da audiência final.

A sua arguição em sede de recurso de revista é, em consequência, manifestamente extemporânea e obsta ao conhecimento da excepção.

Sempre se dirá, contudo, que não assistiria razão à recorrente neste particular, porquanto o artigo 85º do CIRE, preceito que regula os efeitos processuais da declaração de insolvência sobre as acções pendentes, determina que as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo insolvente, como sucede no caso, sejam apensadas ao processo de insolvência, «desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo» (nº 1, 2ª parte). 

Resulta dos autos que a administradora da insolvência, a quem – independentemente da apensação ao processo de insolvência e do acordo da parte contrária – cabia substituir a (autora) insolvente nesta acção, por força do disposto no nº 3 do citado artigo 85º do CIRE, fez juntar aos autos, nessa qualidade, procuração forense com data de 1 de Abril de 2016 (fls. 735), ratificando «tudo o já praticado pelos mandatários», sanando dessa forma a eventual irregularidade de representação da autora/insolvente em juízo.

Porém, não requereu a apensação da presente acção ao processo de insolvência, pelo que nenhum obstáculo existia ao seu prosseguimento no tribunal onde fora intentada.


      2. Da violação do princípio do inquisitório.

    A recorrente insurge-se contra o decidido no âmbito da apreciação da decisão sobre a matéria de facto, sustentando que, «tendo o julgador conhecimento da conveniência do depoimento de determinada pessoa, para escurar o de outra ou outras, deve tudo fazer para que um faltoso compareça em tribunal».

Sobre esta questão observou o acórdão sob recurso o seguinte:

«Contrariamente ao alegado pela apelante, o depoimento das duas referidas testemunhas não é um depoimento indirecto ou de ouvir dizer, pois assenta, no essencial, em factos do seu conhecimento pessoal, o que bem se compreende, face às funções que exerciam na empresa A. à data dos factos. É certo que o depoimento do Eng. HH, que interveio directamente na contratação e execução da empreitada, conforme foi afirmado no decurso da audiência, teria interesse. Mas, contrariamente ao alegado pela apelante, não foi arrolado pela A. como sua testemunha e depois prescindido: essa pessoa não foi arrolada como testemunha por nenhuma das partes, sendo certo que a ilustre mandatária da A., nas alegações orais proferidas a final da audiência de julgamento, afirmou que tal se deveu ao facto de se ter mostrado impossível identificar o seu paradeiro. (…).

Quanto aos pagamentos efectuados pela R. à A., a própria R., na apelação, os admite, estando documentados também nos autos (documentos 11 a 18 juntos com a p.i.). Só que também está documentado nos autos que a totalidade do valor desses pagamentos foi, em datas logo subsequentes, transferida para a conta do segundo R. (vide documentos 19 a 26 juntos com a p.i.). E essas transferências foram efectuadas pela testemunha JJ, sob instruções de KK, conforme ele confirmou na audiência, assim como KK. Tendo a testemunha KK relatado que tal se deveu a pedido da 1.ª R., transmitido por HH, pessoa de quem a testemunha não tinha nem teve razões para duvidar. Acresce, a tudo isto, a circunstância de o 2.º R., citado para a acção, não ter contestado a simulação e a recepção de depósitos em que foi implicado».

Consagrado por Alberto dos Reis no Código de Processo Civil de 1939, o princípio do inquisitório, que antes da Reforma de 2013 estava afirmado, em termos gerais, no artigo 265.º (n.º 3), figura, com redacção idêntica, no actual artigo 411ºnos seguintes termos: «incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer».

O princípio do inquisitório ou da oficiosidade no âmbito do direito processual civil não é absoluto. Este princípio é, como refere Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 375), o «contrapólo» do princípio dispositivo, que atribui às partes, em exclusivo, a iniciativa de introduzir o processo em juízo e a alegação dos factos essenciais que fundamentam o pedido (causa de pedir) ou em que baseiam as excepções (actuais artigos 3º nº 1 e 5º nº 1).

   Se bem compreendemos a alegação da recorrente, a invocada violação do princípio do inquisitório assentaria no facto de o tribunal ter considerado um depoimento indirecto, podendo chamar a depor a pessoa com conhecimento directo dos factos de harmonia com o disposto no artigo 526 nº 1.

O poder/dever conferido ao tribunal para proceder à inquirição oficiosa de determinada pessoa não oferecida como testemunha deve ser exercido sempre que, no decurso da acção, haja razões para presumir que tem conhecimento de factos cujo esclarecimento se imponha com vista ao apuramento da verdade material e à boa decisão da causa.

Tal poder só deve ser exercido quando o tribunal não se considere suficientemente esclarecido acerca de factos controvertidos relevantes para a justa composição do litígio e existam elementos que permitam fazer crer que é possível ultrapassar dúvidas sobre tais factos através da audição de pessoa não indicada como testemunha ou mediante outros meios de prova, uma vez que a previsão do artigo 411º não se confina à prova testemunhal.

Na verdade, podemos destacar outros afloramentos do princípio do inquisitório no disposto nos artigos 436.º (requisição de documento), 452.º (depoimento de parte), 490.º n.º 1 (inspecção judicial), 511.º n.º 4, e 601.º n.º 1 (requisição ou designação de técnico).

Só faz, porém, sentido o recurso à aquisição oficiosa de meios de prova não indicados pelas partes se subsistirem dúvidas no espírito do julgador quanto ao sentido decisório da matéria de facto em face da prova já produzida.

Ora, o Tribunal da Relação formou livremente a sua convicção, como determinam os artigos 607º, nºs 4 e 5, e 662º, concluindo pela improcedência da impugnação fáctica deduzida pela recorrente na apelação com base na apreciação crítica da globalidade da prova produzida – documental e testemunhal –, sem dúvidas que, razoavelmente, suscitassem a necessidade de produção de outras provas, em particular, a audição do engenheiro HH, o mesmo tendo sucedido na 1ª instância.

Por tal razão, não acolheu a pretensão da ré no sentido de ser ouvido tal depoimento, afirmando expressamente que «o depoimento das duas referidas testemunhas [JJ e Eng. KK] não é um depoimento indirecto ou de ouvir dizer, pois assenta, no essencial, em factos do seu conhecimento pessoal».

  Sem embago de reconhecer que o depoimento do engenheiro HH «poderia revelar algum interesse» por ter sido referido em audiência que terá tido intervenção directa na celebração e na execução do contrato objecto do litígio, o acórdão sob censura não o considerou necessário ao esclarecimento mais completo e aprofundado da materialidade controvertida.

O que significa que a Relação, tudo ponderando, considerou, com base no juízo fáctico fundado no conjunto da prova produzida, não ser necessário complementá-la e chamar, oficiosamente, a depor a pessoa em questão para qualquer esclarecimento adicional relevante da facticidade controvertida.

E ao Tribunal da Relação cabia, na fixação da facticidade relevante para a resolução do litígio, exercer os poderes conferidos pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 662.º, por lhe estar atribuída, neste particular, a última palavra.

O Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, define e aplica o regime ou enquadramento jurídico adequado aos factos definitivamente fixados pelas instâncias, ou seja, apenas conhece de direito (artigo 682º nº 1). Está-lhe vedado conhecer do eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, apenas lhe sendo permitido sindicar a actuação da Relação nos casos da designada prova vinculada ou tarifada (artigos 674º nº 3 e 682º nº 2).

No campo da matéria de facto só a ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova se integra no âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal, o que significa que pode escrutinar a actuação do Tribunal da Relação se tiver sido aceite um facto sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto ou se tiverem sido incumpridos os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova e, no limite, pode mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto (cfr. artigo 682º n.º 3 do Código de Processo Civil).

A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no apuramento da facticidade relevante é, assim, residual, restringindo-se, afinal, a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma, posto que tal envolve o conhecimento de matéria de direito, logo da sua competência.

Não pode, por conseguinte, sindicar o juízo fáctico formulado pelo Tribunal da Relação, acerca da pertinência ou não da audição de pessoa não indicada pelas partes como testemunha, a não ser que ocorra patente desconformidade entre o decidido e os requisitos estabelecidos no artigo 526º nº 1, o que não se verifica.

E não cabe aqui chamar à colação o regime processual penal, nem os princípios constitucionais, nomeadamente o disposto nos artigos 32° n° 5, 1a parte, e 18° da Constituição da República, que não se mostram violados.

Como observou, acertadamente, o acórdão recorrido:

«(…), contrariamente ao processo penal, em que o depoimento indirecto é admitido em circunstâncias restritas (cfr. art.º 129.º do CPP: 1 - Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas. 2 - O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha. 3 - Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos.), em processo civil não existem limitações à admissão de depoimentos indirectos, cuja força probatória será apreciada livremente pelo tribunal (art.º 396.º do Código Civil [CPC] – vide, v.g., acórdãos da Relação de Guimarães, de 26.01.2012, processo 373/11.0TCGMR-C.G1; da Relação de Lisboa, de 11.01.2011, processo 152/09.4TBPDL.L1-7 e da Relação de Lisboa, de 22.5.2014, processo 3069/06.0TBALM.L2-2, citados pela apelada).

   Ao contrário do que sucede em processo penal, não existe, entre nós, norma que proíba em processo civil o testemunho de «ouvir dizer».

Em processo civil são admissíveis tanto as provas directas, também chamadas de «primeira mão», entre as quais se inclui o depoimento de testemunha presencial ou com conhecimento pessoal e directo dos factos, como as provas indirectas ou provas de «segunda mão» (cfr. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, pág. 307).


E não cabe fazer apelo ao regime consagrado no artigo 129º do Código de Processo Penal para o depoimento indirecto, aqui admissível apenas «se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas».

A razão de ser desta norma especial não tem lugar no âmbito do processo civil, ramo do direito público colocado ao serviço do direito civil e que é, aliás, subsidiário daqueloutro, já que, nos termos do disposto no artigo 4º do Código de Processo Penal, os casos ali omissos (lacunas) são integrados através das normas de processo civil se harmonizáveis com as previstas naquele código.

As particulares razões que levaram o legislador a condicionar a admissibilidade do depoimento indirecto em processo penal, dominado pelo princípio do acusatório e em que a presunção de inocência do arguido constitui valor inarredável, não justificam qualquer paralelismo no campo do processo civil, no qual impera o princípio do dispositivo, embora temperado por outros, como o inquisitório, de que agora falamos, da igualdade das partes, do contraditório e da cooperação.

Questão distinta é a da valoração concreta da prova produzida através de depoimento indirecto.

De todo o modo, a entender-se, como defende a recorrente, que a validade do depoimento alegadamente prestado por testemunho de «ouvir dizer» estaria condicionada à possibilidade de ser chamado a depor o referenciado engenheiro HH, a omissão, sem justificação, do dever de o convocar para depor consubstanciaria nulidade processual a arguir pela parte nos termos gerais do artigo 195º (anterior artigo 201º), o que a recorrente não fez.

Neste sentido se pronunciaram Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora 2001, pág.600, e Santos Cabral em comentário ao artigo 129º (Código de Processo Penal Comentado, 2016- 2ª ed. revista, Almedina, pág. 449).

Improcedem, assim, na totalidade as conclusões da alegação da ré, recorrente.


  III. Decisão:

Pelo exposto, acorda-se no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.


Lisboa, 5 de Julho de 2018

Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Maria do Rosário Morgado