Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P3202
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RODRIGUES DA COSTA
Descritores: OFENSAS CORPORAIS AGRAVADAS
OMISSÃO DE AUXÍLIO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: SJ200402120032025
Data do Acordão: 02/12/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1 V M V N GAIA
Processo no Tribunal Recurso: 1829/02
Data: 05/14/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Sumário : 1 - Se qualquer cidadão está onerado com o dever geral de assistência em relação a qualquer pessoa que se encontre em grave necessidade que ponha em perigo a sua vida, integridade física ou liberdade, mesmo que esse cidadão não tenha contribuído minimamente para tal situação, e se sobre aquele que tiver criado ou contribuído para criar, sem culpa, a situação geradora de perigo para bens pessoais, recai um dever qualificado de auxílio, em virtude do qual a omissão da conduta é mais gravemente punida do que no primeiro caso, em relação ao agente de um ilícito típico, que dolosamente tenha criado a situação, configura-se o especial dever jurídico de evitar a produção do resultado, nos termos do nº. 2 do artº. 10º do Código Penal.
2 - Como tal, responde pela realização do crime a que a omissão da sua conduta deu lugar, eventualmente em concurso real com o crime que colocou o ofendido em grave necessidade.
3 - Tendo o arguido atropelado voluntariamente o ofendido com o seu carro, que propositadamente desviou para a berma, produzindo-lhe ofensas graves na sua integridade física e tendo-o abandonado à sua sorte, sabendo que a vida do ofendido corria perigo, o facto é susceptível de integrar a alínea d) do artº. 144º do CP, para além das alíneas b) e c) por que já tinha sido condenado o arguido.
4 - A pena de 4 anos e 6 meses de prisão fixada pelo colectivo para uma tal conduta não é desproporcionada, não podendo por isso ser atenuada e suspensa na sua execução.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. RELATÓRIO
1. No processo comum colectivo nº. 1829/02.0TAVNG da 1ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial da comarca de Vila Nova de Gaia, por acórdão de 14.05.2003, foi para além do mais, decidido:
Condenar o arguido A, id. nos autos, pela prática, em autoria material e em concurso real de :
a) - um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143º, 144º, alíneas b) e c) e 146º, todos do C. Penal, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;
b) - um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo artº. 200º, nºs. 1 e 2, do mesmo diploma legal, na pena de cinco meses de prisão;
c) Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de quatro anos e oito meses de prisão.

2. Inconformado recorreu o arguido para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo [transcrição]:
«1) Tendo o Arguido sido condenado pela prática de crime doloso, ofensa à integridade física qualificada, não se justificaria a sua condenação pela prática do crime de omissão de auxílio, porquanto este se consumou naquele, dada a preterintencionalidade do agente na produção do crime doloso, não lhe sendo exigível cumprir com o dever de solidariedade social, uma vez que o resultado pretendido alcançar era, de facto, o de atentar contra a integridade física do Ofendido.
2) Verificou-se, ainda, exagero na condenação do arguido, o que constitui uma errónea aplicação das normas constantes dos artigos 70º e 71º do C. Penal.
3) A qual se reflecte no que diz respeito à medida da pena (4 anos e 6 meses), atendendo ao facto de o Arguido ser primário, não lhe sendo conhecidos antecedentes criminais, a sua idade e situação sócio-económica.

Em consequência, deveria ser revogada a sentença, substituindo-se a mesma por uma outra que absolvesse o arguido da prática do crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo artigo 200º, nº. 2 do C. Penal e que reduzisse a pena concretamente aplicada à pena de 3 anos de prisão, suspensa por três anos, satisfazendo-se, desta forma, as necessidades de prevenção geral, especial e de ressocialização.

3. Respondeu o Ministério Publico, concluindo pela procedência parcial do recurso, considerando-se que o arguido «terá somente cometido o crime de ofensa à integridade física grave qualificada pp. pelas disposições conjugadas dos artºs. 143º, 144º, als. b) e c), e 146º, do C. Penal», não lhe merecendo, por outro lado, qualquer reparo a medida das penas.

4. Neste Supremo Tribunal, o Ministério Publico teve vista dos autos, promovendo a designação de data para audiência.
Colhidos os vistos legais, realizou-se a audiência de julgamento.

Nesta, o arguido foi advertido, na pessoa do seu douto patrono, de, na eventualidade de ser absolvido pelo crime de omissão de auxílio, a factualidade correspondente poder integrar a circunstância da alínea d) do artº. 144º do CP.
Cumpre agora decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
5. Factos provados
a) No dia 9 de Janeiro de 1998, pelas 15 horas e 30 minutos, o arguido, após ter ingerido bebidas alcoólicas ao almoço, sentou-se ao volante do veículo automóvel de matrícula 88, sua pertença, e conduziu-o pela E.N. nº. 1, no sentido Grijó-Carvalhos.
b) Ao chegar ao Km 292,300 da referida via, situado na Feiteira, perto de uma paragem de autocarros ali existente, o arguido deparou com o ofendido B, seu vizinho, com quem tinha tido uma acesa discussão no inicio da tarde desse mesmo dia e de quem tinha apanhado, nessa altura, alguns murros.
c) O mesmo caminhava, na altura, pela berma em sentido contrário ao do arguido, ou seja, no sentido Carvalhos-Grijó (Norte-Sul), a uma distância de, pelo menos, um metro em relação à faixa de rodagem.
d) Apesar de ter a via à sua frente livre e aproveitando o facto do ofendido se encontrar completamente indefeso, o arguido, com o intuito de se vingar dos murros que lhe tinham sido infligidos, guinou o volante do automóvel para a direita, atento o seu sentido de marcha, tendo invadido a berma da estrada por onde circulava o ofendido B, atropelando-o com a frente direita da viatura.
e) Em virtude do embate, o B foi projectado para o ar, tendo caído em cima do pára-brisas, acabando por se estatelar na berma da estrada, onde ficou imobilizado, após ter batido com a cabeça.
f) Do embate acima descrito, resultou-lhe, directa e necessariamente, extensa ferida crânio-cerebral fronto-temporal à esquerda, fractura cominutiva fronto-temporal esquerda, com afundamento e contusão fronto-parietal esquerda e efeito de massa frontal, hematoma extradural temporal esquerdo, fractura da parede lateral da órbita esquerda e da asa esfenoidal do mesmo lado, e ainda fractura marginal da rótula direita, fractura da estilóide radial à direita, lesão ligamentar complexa do joelho direito, apresentando arrancamento tibial do LCA com pouco desvio de fragmento ósseo da cabeça do peróneo, tendo sido submetido a correcção cirúrgica da ferida crânio cerebral.
g) Os ferimentos acima descritos determinaram ao ofendido um período de doença compreendido entre 9/1/98 e 31/3/2000, com afectação grave da capacidade de trabalho entre 9/1/98 e 30/6/98, tendo-lhe advindo, como lesões permanentes, epilepsia pós-traumática, cicatrizes lineares resultantes de intervenção cirúrgica situadas no hemicrânio esquerdo e área de depressão fronto-parietal de 6 por 8 centímetros.
h) Em virtude das lesões atrás descritas, o ofendido ficou a padecer de uma incapacidade parcial permanente para o trabalho não inferior a 60%.
i) Ao actuar como se descreveu, o arguido fê-lo com a intenção alcançada de utilizar a sua viatura automóvel, que sabia ser um meio capaz de colocar a vida das pessoas em perigo e do qual as mesmas não se podiam defender quando caminhavam pelos seus próprios meios, para ofender gravemente o B no seu corpo e saúde, retirar-lhe parte da sua capacidade de trabalho e provocar-lhe doença permanente.
j) Apesar de se ter apercebido perfeitamente do estado de saúde em que se encontrava a vítima e do perigo de vida que a mesma corria, o arguido prosseguiu a sua viagem sem lhe prestar qualquer auxilio ou promover o respectivo socorro.
k) Agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que praticava factos ilícitos e criminalmente puníveis, não se inibindo de os concretizar .
l) Pelas 17 horas e 3 minutos, o arguido foi submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue através do aparelho "Seres Ethylometre", tendo revelado uma T.A.S de 1,27 gl/litro.
m) O arguido não apresenta antecedentes criminais conhecidos e tem a 3ª classe de escolaridade.
n) Vive em casa própria com a sua mulher, que recebe cerca de 200 euros mensais de rendimento mínimo.

6. Factos não provados
1) que o arguido, antes de circular ao volante do seu veiculo automóvel, tenha ingerido grandes quantidades de bebidas alcoólicas;
2) que o arguido, ao circular com o seu veículo, nos termos descritos na acusação e na matéria de facto provada, estivesse sob a influência do álcool e que tal estado lhe diminuía consideravelmente as suas capacidades de reflexo e de controlo do veículo;
3) que o arguido tenha sido submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue no local onde atropelou o ofendido, ou imediatamente a seguir a tal ocorrência;
4) que a discussão e contenda entre o arguido e o ofendido tenha ocorrido na manhã do dia 9 de Janeiro de 1998.

7. Vejamos os problemas a decidir:
7.1. Em primeiro lugar, o preenchimento do tipo legal de crime de omissão de auxílio pelo qual foi o recorrente também condenado, em concurso real com o crime de ofensa à integridade física qualificada.
O arguido defende que tal tipo de crime está consumido naquele, «dada a preterintensionalidade do agente na produção do crime doloso» (sic).
O Ministério Público acompanhou-o nessa parte.
O problema que se coloca é o seguinte: o indivíduo que comete um acto ilícito, maxime, um crime contra a integridade física grave de outra pessoa e, em seguida, não lhe presta o auxílio necessário, providenciando por si ou promovendo a ajuda de que carece, sendo que a situação é de molde, objectivamente, a criar perigo para a vida do ofendido, não comete o crime de omissão de auxílio, nem na sua forma qualificada, prevista no nº. 2 do artº. 200º do CP, nem, ao menos, por força do dever geral de auxílio, previsto no nº. 1?
Atente-se em que qualquer cidadão comete o crime de omissão de auxílio, previsto e punido no artº. 200º, nº. 1, se, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum , que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o socorro.
O fundamento de um tal dever geral de auxílio filia-se num dever de solidariedade humana, na obrigação elementar que todos têm (pois que o homem é um ser societário e interdependente) de se ajudarem mutuamente, em situações que reclamem essa ajuda. O direito penal elegeu certas dessas situações, que designou de grave necessidade, pondo em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade (bens eminentemente pessoais - e apenas esses mereceram a consideração da lei para efeitos de criminalização pelo referido artigo) para estabelecer uma exigência de auxílio, dirigida a todos em geral, sob pena de a omissão constituir um crime. O omitente incorre, assim, na possibilidade de um juízo de censura, não apenas ético, mas ético-jurídico.
Dentro das situações que podem fundar o dever de auxílio, estão não só causas naturais, mas também causas humanas lícitas ou ilícitas, nomeadamente, quanto a estas últimas, crimes praticados por terceiro de que outrem esteja a ser vítima, pois a enumeração legal daquelas é meramente exemplificativa.
Por conseguinte, não é preciso que seja o próprio a ter dado causa à situação de grave necessidade para se lhe exigir a acção correspondente ao dever de auxílio. Basta que uma pessoa esteja colocada numa dessas situações para que seja exigível a qualquer cidadão (no pressuposto, evidentemente, de certos condições: ter a capacidade para prestar auxílio e não pôr em risco a sua própria vida, integridade física ou a sua própria liberdade) que actue em prol de quem está em perigo, auxiliando-a ou promovendo o auxílio necessário.
Dentro deste contexto, muito mais exigível será que a pessoa que deu causa à situação de perigo para a vida, a integridade física ou a liberdade de outrem tenha o dever de ajudar - e até um dever mais forte. Daí o número 2 do artº. 200º estabelecer um dever de auxílio qualificado para esses casos: Se a situação referida no número anterior tiver sido criada por aquele que omite o auxílio devido, o omitente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias (no caso do número 1, a pena de prisão vai até 1 ano e a pena de multa, até 120 dias).
Pergunta-se, então: o indivíduo que voluntariamente coloca um terceiro em perigo, até porque cometeu sobre ele um crime que o pôs nessa situação, não será obrigado a prestar-lhe o auxílio necessário para a tirar do perigo em que foi colocado?
Repare-se: mesmo em relação a um indivíduo que tenha criado a situação de perigo para outrem de forma involuntária ou mesmo lícita, bastando que objectivamente ele seja o causador dessa situação, a lei exige-lhe o especial (não o geral) mas o especial dever de auxiliar a pessoa em perigo - um dever qualificado de auxílio; mesmo em relação a um indivíduo que actue em estado de necessidade e, por força dele, tiver posto um terceiro em grave necessidade, correndo perigo de vida, de lesão grave da saúde ou do corpo ou correndo o perigo de perder a liberdade de se deslocar ou de se autodeterminar, a lei impõe, por forma acrescida, que esse indivíduo actue auxiliadoramente em relação ao necessitado; e mais ainda: mesmo em caso de legítima defesa, o defendente, depois de ter dominado o atacante com a força necessária para isso, tem o dever - não já por força do nº. 2, mas por força do nº. 1, a não ser que tenha provocado a situação que veio a propiciar o direito de legítima defesa, caso em que regerá aquele nº. 2 - mesmo aí, o defendente tem de prestar o auxílio necessário ao que o atacou e ficou em situação de correr perigo quanto aos mencionados bens jurídicos pessoais, sob pena de cometer o crime de que vimos tratando.
E, então, aquele que provoca ilicitamente um tal estado de grave necessidade na vítima e lhe não presta o auxílio necessário não sofre consequências jurídicas nenhumas por isso?
Claro que conceber as coisas assim seria completamente absurdo.
É verdade que o causador, por acto ilícito que constitua crime, do grave estado de necessidade, gerador do perigo para a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, não responde nos termos do crime de omissão de auxílio, quer por força do nº. 1, quer do nº. 2 do artº. 200º, se não socorrer a vítima. Todavia, a sua responsabilidade tem de ser vista a uma outra luz de gravidade, e só por isso é que fica arredado em tal caso aquele artº. 200º. É que ele responde como autor do crime de lesão, resultante da omissão da conduta adequada a evitá-la: se a pessoa morrer em consequência da omissão, responde pelo crime de homicídio consumado; se não morrer, mas a sua vida tiver sido posta em perigo com a omissão, de tal forma que a morte, que se seguiria como consequência adequada da conduta omitida, só não ocorreu por motivo alheio à vontade do omitente, este responde por crime de homicídio tentado, se, ao menos, previu esse resultado como consequência possível da sua omissão, conformando-se com ele. E assim como descrito para o bem jurídico vida, também se verificará idêntico tratamento para os restantes bens jurídicos pessoais.
É que, se qualquer cidadão está onerado com o dever geral de assistência em relação a qualquer pessoa que se encontre em grave necessidade que ponha em perigo a sua vida, integridade física ou liberdade, mesmo que esse cidadão não tenha contribuído minimamente para tal situação, e se sobre aquele que tiver criado ou contribuído para criar, sem culpa, a situação geradora de perigo para bens pessoais, recai um dever qualificado de auxílio, em virtude do qual a omissão da conduta é mais gravemente punida do que no primeiro caso, em relação ao agente de um ilícito típico, que dolosamente tenha criado a situação, configura-se o especial dever jurídico de evitar a produção do resultado, nos termos do nº. 2 do artº. 10º do Código Penal. É, aliás, isto mesmo que resulta do comentário de TAIPA DE CARVALHO ao artº. 200º do CP - Comentário Conimbricense do Código Penal, T. 1º, p. 846 e ss. - onde fomos buscar as ideias que temos vindo a desenvolver.
Portanto, em relação ao indivíduo que comete um crime, seja ele contra o património, seja contra um bem jurídico de carácter pessoal, criando com esse acto uma situação de grave necessidade para um terceiro ou para a própria vítima do crime, que consciente e voluntariamente não auxiliou, o agente há-de responder pelo crime que deu causa à situação e também por aquele que atingir (de forma consumada ou tentada) a vida, a integridade física ou a liberdade daquele terceiro ou da própria vítima do primeiro crime.
É precisamente a tese do concurso de crimes que o acima referido autor defende, por exemplo em matéria de acidentes de viação. «Sobre o condutor do veículo recai o dever jurídico de garante, quando o acidente resultar de conduta ilícita» - diz o ilustre comentarista, a p. 861, precisamente sob a rubrica Concurso. E, se recai o dever de garante, quer isto dizer que o condutor, para além dos danos patrimoniais e pessoais que tiverem resultado do acidente, responde ainda pelo crime de homicídio ou de ofensa à integridade física grave, a título de dolo, se, por falta do auxílio necessário, o acidentado correr perigo de vida ou ofensa à integridade física grave e se o omitente tiver (evidentemente) representado o resultado, ainda que só como consequência possível da conduta, conformando-se com ela.
E, mais adiante, e até de forma mais esclarecedora para o presente caso, sustenta o mesmo autor o seguinte: «Entre o crime de ofensas corporais graves, dolosas ou por negligência, e a omissão do posterior, possível e necessário auxílio, no sentido de neutralizar uma situação de perigo para a vida existe um concurso efectivo. Dúvidas apenas poderão existir em saber se o concurso é entre o crime de ofensas corporais graves dolosas (artº. 144º) ou negligentes (artº. 148º - 3) e o crime de omissão de auxílio qualificada (artº. 200º - 2) ou entre um daqueles e o crime de homicídio por omissão, na forma consumada ou tentada (artº. 10º - 2, artº. 131º), não sendo de excluir a possibilidade de homicídio qualificado por omissão. Assim, se A fere corporalmente B, seu cônjuge, e - tendo este ficado impossibilitado de por si recorrer à assistência, começam as feridas a infeccionar e a constituir perigo de vida - não auxilia pessoalmente nem solicita a assistência médica, incorrerá, para além do crime de ofensas corporais, no crime de homicídio por omissão, consumado ou tentado, consoante venha a ocorrer ou não a morte de B.»
Em consonância com o exposto, pareceria à primeira vista que poderia ocorrer no caso um concurso de crimes: o de ofensas à integridade física qualificadas, com o crime de homicídio tentado - este, em vez do crime de omissão de auxílio, pelo qual foi também o recorrente (indevidamente) condenado. Não cremos, todavia, que seja de seguir por esse caminho, quer porque não é possível surpreender na matéria de facto provada dois momentos distintos, com duas resoluções criminosas diferenciadas, quer porque não é possível encontrar nessa mesma matéria de facto afloramento dos elementos correspondentes ao tipo subjectivo e mesmo objectivo do ilícito em causa.
O que está dado como provado é que o recorrente agiu «com a intenção alcançada de utilizar a sua viatura automóvel, que sabia ser um meio capaz de colocar a vida das pessoas em perigo e do qual as mesmas não se podiam defender quando caminhavam pelos seus próprios meios, para ofender gravemente a B no seu corpo e saúde, retirar-lhe parte da sua capacidade de trabalho e provocar-lhe doença permanente».
A esse comportamento, todavia, acresce um mais, que é censurável do ponto de vista ético-jurídico. Vem esse mais a traduzir-se no seguinte ponto da matéria de facto provada: «Apesar de se ter apercebido perfeitamente do estado de saúde em que se encontrava a vítima e do perigo de vida que a mesma corria, o arguido prosseguiu a sua viagem sem lhe prestar qualquer auxílio ou promover o respectivo socorro».
Como qualificar esse mais, sendo ele digno de censura ético-jurídica, se não é como omissão de auxílio, nem o pode ser, como vimos, por crime de homicídio tentado (que, aliás, a sê-lo, parece que consumiria, então, ante a globalidade da conduta , o crime de ofensa à integridade física)?
Esse mais, que acarretou perigo para a vida da vítima - um perigo abrangido pelo dolo do agente, uma vez que o recorrente praticou todos os factos dados como provados consciente e voluntariamente - constitui a circunstância qualificativa da alínea d) do artº. 144º do CP, enquadrando-se no âmbito do tipo legal das ofensas à integridade física graves.
O recorrente foi condenado por ofensas à integridade física qualificadas do artº. 146º do CP, referenciado ao crime do artº. 144º, mas apenas no tocante às alíneas b) e c), que não daquela alínea d), que consiste em o agente ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, de forma a provocar-lhe perigo para a vida.
Para além desse, foi o recorrente acusado e condenado por crime de omissão de auxílio do artº. 200º, n.º 2 do CP, mas, como vimos, este tipo legal de crime não tem como agentes os próprios causadores, por acto ilícito culposo, da situação carecida de ingerência auxiliadora de terceiro. Esses respondem pelo resultado a que a omissão adequadamente der lugar, a título de autores, por omissão, do crime configurado por esse resultado.
Ora, não respondendo o recorrente pelo crime de omissão de auxílio, que deve ser subtraído à sua condenação, é justo que responda pelo crime de ofensas à integridade física qualificadas, mas reportando-se também à referida alínea c) do artº. 144º, ou seja, a criação de perigo para a vida da vítima, a que a omissão de auxílio deu lugar e que está englobada no dolo unitário do agente (cf. alíneas j) e k) dos factos provados - supra 5.).
É certo que se o recorrente, advertido na pessoa do seu defensor na audiência de julgamento realizada neste Supremo, da possibilidade de alteração de qualificação (alteração não substancial), não vai sofrer um agravamento da pena, desde logo por força do princípio da «proibição da reformatio in pejus, tal circunstância deve, pelo menos, obstar reforçadamente à pretendida atenuação da pena aplicada no tribunal «a quo» pelo crime de ofensas à integridade física graves, com suspensão da respectiva execução.
Seria, com efeito, um atentado aos princípios que regem a determinação concreta da pena a satisfação da pretensão do recorrente, baixando-se-lhe a pena de tal crime para 3 anos de prisão e suspendendo-se-lhe a execução desta, quando ele agiu da forma que se deixou assinalada, e já beneficia da subtracção do crime de omissão de auxílio. E mais: o crime que provavelmente lhe deveria ter sido imputado desde o início (isto é, desde a acusação) seria mesmo o de homicídio tentado, já que o recorrente, mais do que ofender a vítima no seu corpo de forma grave, terá previsto como consequência possível da sua conduta que, abandonando a vítima à sua sorte, esta poderia vir a morrer em resultado da falta de assistência adequada, conformando-se assim com esse resultado.
Mas vejamos mais detidamente a forma como o tribunal «a quo» determinou a pena concreta e se ela merece censura.

7.2. O tribunal «a quo», para a fixação concreta da pena, começou por partir da determinação da moldura penal abstracta, no quadro de uma dupla agravação: a resultante do preenchimento das alíneas b) e c) do artº. 144º (respectivamente, afectação grave da capacidade de trabalho e provocação de doença permanente) e qualificação da ofensa por ter sido produzida em circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade do comportamento do agente (artigos 146º, nºs. 1 e 2, este referenciado à alínea g) do nº. 2 do artº. 132º do CP - utilização de meio particularmente perigoso). Assim, por força da agravação sucessiva resultante da acumulação de circunstâncias qualificativas agravantes, a moldura penal abstracta situar-se-ia entre um mínimo de 2 anos e 8 meses de prisão e um máximo de 13 anos e 4 meses de prisão.
Para tanto, o tribunal «a quo» partiu da factualidade provada, nomeadamente a constante das alíneas d), e), f), g), h) e i) do ponto 5. (supra): natureza das lesões, tempo e qualidade da doença, consequências permanentes, como epilepsia pós - traumática e incapacidade para o trabalho não inferior a 60%, e, por último, a natureza do instrumento utilizado. Quanto a este, considerou o tribunal «a quo» que o veículo-automóvel constituiu um meio particularmente perigoso e que o modo como o recorrente agrediu o ofendido, «utilizando o seu veículo-automóvel, que dirigiu contra o corpo daquele, num momento em que circulava a pé pela berma da estrada e estava, portanto, impedido de se defender, revela uma atitude de especial censurabilidade, fundamentadora do juízo de culpa agravado pressuposto pelo tipo incriminador contido no artº. 146º, nº. 1 do C. Penal.»
Nada há a censurar a esta qualificação dos factos, que serviu de base à determinação da moldura penal abstracta cabível ao caso, quer no que respeita à afectação grave da capacidade de trabalho e provocação de doença permanente, quer no que toca ao instrumento utilizado e ao acréscimo de censura daí resultante. Com efeito, é de considerar a forma, bem realçada na decisão recorrida, como foi utilizado o veículo, tendo o recorrente invadido propositadamente a berma, por onde o ofendido caminhava desprevenidamente, como qualquer transeunte o faria, confiado na utilização normal e pacífica da estrada e da berma: aquela para os veículos, esta para os peões, e com isso se dificultando enormemente a sua defesa.
O uso do veículo pela forma traduzida na factualidade provada (como instrumento de agressão) revela até uma certa perversidade, pois que foi desviado de forma completamente inusitada, para serviço de um intento de vingança (ainda por cima mesquinha), do seu uso normal como meio de transporte.
De resto, a qualificação do crime pelo artº. 146º, nº. 1 do CP não foi posta em causa no recurso.

7. 3. A determinação da pena concreta há-de recortar-se no âmbito da referida moldura abstracta de acordo com os critérios gerais estabelecidos no nº. 1 do artº. 71º - os parâmetros a que deve obedecer toda e qualquer fixação da pena, em atenção às finalidades que lhe são legalmente assinaladas - e os especiais constantes do nº. 2 - grau de ilicitude, modo de execução, gravidade das consequências, intensidade do dolo, fins ou motivos, condições pessoais do agente, conduta anterior e posterior ao facto, etc.
Por conseguinte, a determinação da medida concreta da pena há-de efectuar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, quer a prevenção geral positiva ou de reintegração (protecção de bens jurídicos), quer a prevenção especial (reintegração do agente na sociedade) - artº. 40º, nº. 1 do CP - funcionando a culpa como limite máximo que aquela pena não pode ultrapassar (nº. 2 do mesmo normativo).
A medida da tutela dos bens jurídicos, correspondente à finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime, entre esses limites se devendo satisfazer, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, p. 227 e ss.e Acórdão do STJ de 17/9/97, Proc. nº. 624/97).
As circunstâncias referidas no nº. 2 do artº. 71º do CP constituem os itens a que deve atender-se para a fixação concreta da pena, dentro da submoldura definida pelas exigências de prevenção geral, cujo limite máximo não pode ultrapassar a medida da culpa.

A decisão recorrida fundamentou assim a medida da pena
Em sede de culpa:
- o arguido actuou com dolo directo de elevada intensidade, não mitigado por qualquer circunstância, o que sempre revela uma personalidade, manifestada no facto, distanciada da pressuposta no "homem fiel ao direito";
- ainda em desfavor do arguido, deve ser ponderada a ilicitude do facto, ao nível do desvalor de acção, tendo em conta o grau de violência empregue e a motivação desvaliosa que presidiu ao seu comportamento, uma vez que atropelou o ofendido movido por um sentimento de vingança, sendo a sua reacção perfeitamente desproporcionada em relação à agressão de que previamente havia sido vitima;
- favoravelmente ao arguido pondera-se, apenas, a circunstância de não apresentar antecedentes criminais.
Em sede de prevenção:
- a ilicitude do facto, ao nível do desvalor de acção, tendo em conta o grau de violência empregue e a motivação desvaliosa que presidiu ao comportamento do arguido, uma vez que atropelou o ofendido movido por um sentimento de vingança, sendo a sua reacção perfeitamente desproporcionada em relação à agressão de que previamente havia sido vitima, com projecção desfavorável ao nível da prevenção geral de integração
- a atitude do arguido posterior aos factos, consubstanciada na circunstância de aparentemente nunca ter interiorizado a gravidade do seu comportamento, sendo certo que na audiência de julgamento sempre negou e desvalorizou os factos, nunca tendo denotado o mínimo sentimento de arrependimento, antes escarnecendo da pessoa do ofendido, o que revela uma personalidade profundamente distanciada da pressuposta num "homem fiel ao direito", com evidentes reflexos negativos em sede de prevenção especial de socialização;
- favoravelmente ao arguido, pondera-se, apenas, a circunstância de não apresentar antecedentes criminais conhecidos, com reflexos positivos ao nível de prevenção especial de socialização e geral de integração.

Ora, em face destas considerações, que no fundamental acolhemos, verifica-se que foram levados em conta todos os factores relevantes para a fixação da pena, dentro dos parâmetros que definem os fins das penas - exigências de prevenção geral e especial, limitadas aquelas em função do limite da culpa - bem como foram respeitados os limites de necessidade e proporcionalidade a que a fixação da pena em concreto deve obedecer - aspectos estes que se circunscrevem no âmbito dos poderes do Supremo, como tribunal de revista, em matéria de determinação da pena (cf. FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 197).
Considerando os limites mínimo e máximo da moldura penal abstracta - 2 anos e 8 meses e 13 anos e 4 meses - e levando em conta os factores de dosimetria penal que foram ponderados pelo tribunal «a quo», não se pode dizer que a pena fixada seja desproporcionada. Antes pelo contrário: ela foi fixada próximo do limite mínimo da submoldura de prevenção - limite que coincide com as exigências mínimas de prevenção geral, abaixo das quais a protecção dos bens jurídicos ofendidos não seria comunitariamente assegurada. Esse limite mínimo reputamo-lo assegurado com a pena 4 anos e 6 meses de prisão; o limite máximo, ainda compatível com a culpa, que, como se viu, é muito intensa, sendo que as exigências de prevenção são particularmente fortes no caso, estaria situado nos 8 anos de prisão.
E com isto nem sequer considerámos, propositadamente, a circunstância da alínea d) do artº. 144º do CP, que, sem dúvida, também se verifica no caso, acrescendo às que o tribunal «a quo» levou em consideração e intensificando a qualificação do crime. Tudo para mostrar, afinal, que a pena aplicada não é exagerada e até peca por defeito.
Ora, o recorrente só tem a ausência de antecedentes criminais para opor à enorme carga negativa das demais circunstâncias relevantes. Seria, por isso, de todo impensável (um atentado, como dissemos acima) baixar a pena para três anos, que só por força de uma atenuação especial poderia conceber-se, pois se situa abaixo do limite mínimo da submoldura de prevenção.
Como tal, fica prejudicada a pretensão do recorrente de ver suspensa a execução da pena (artº. 50º do CP).

III. DECISÃO
8. Nestes termos, acordam em audiência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:
a) - Concedendo parcial provimento ao recurso, absolver o recorrente do crime de omissão de auxílio do artº. 200º, nº. 2 do Código Penal, assim revogando, nessa medida, a decisão recorrida;
b) - Manter em tudo o mais a decisão recorrida, nomeadamente a condenação pelo crime de ofensas à integridade física qualificadas, previsto e punido pelos artigos 143º, nº. 1, 144º, alíneas b), c) e d) e 146º, nº. 1 , todos do Código Penal.

9. Custas pelo recorrente, que beneficia de apoio judiciário, com 5 Ucs. de taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Fevereiro de 2004
Artur Rodrigues da Costa
Quinta Gomes
Pereira Madeira
Carmona da Mota