Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P481
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: ERRO
IDENTIDADE DO ARGUIDO
RECURSO DE REVISÃO
CORRECÇÃO DA DECISÃO
Nº do Documento: SJ20060329004813
Data do Acordão: 03/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISTA
Decisão: NÃO AUTORIZADA A REVISÃO
Sumário :
I - A solução encontrada para a ocorrência de erro na identidade do arguido condenado não tem sido uniformemente tratada por este Supremo Tribunal: ora se tem decidido que a existência de erro na identificação de pessoa condenada e sua posterior averiguação constitui um facto novo, ou novos meios de prova, o que justifica e fundamenta o recurso de revisão, ora se tem entendido que aquele erro deve ser rectificado através do recurso ao instituto da correcção da sentença previsto no art. 380.° do CPP.
II - Sucede que em situações ou casos como o dos autos, em que ocorreu usurpação de identidade, não estando apenas em causa um mero erro ou lapso de identificação, a solução apresenta-se mais complexa, designadamente quando, como ora se verifica, se desconhece
em absoluto a identidade do usurpador e inexistem no processo objecto do pedido de revisão elementos susceptíveis de conduzirem à obtenção da identidade daquele.
III - Com efeito, neste tipo de casos ou situações o recurso ao instituto da correcção da sentença, expediente processual que pressupõe uma averiguação rápida, simples e incidental, não se torna viável, posto que a rectificação do erro só é possível quando se possa fazer constar que a pessoa condenada foi X, com a sua verdadeira identidade, e que não foi Y; deixando vazio o lugar da identidade do arguido toma-se inviável, visto que uma sentença não pode ter lugares vazios, não se compadecendo a correcção material com um non liquet.
IV - Por isso, nas circunstâncias concretas dos autos, em que apenas se sabe, com total certeza, que a pessoa física julgada e condenada no processo não é a que figura na respectiva sentença, ou seja E, não é viável o recurso ao instituto da correcção.
V - A reposição da correspondência entre a realidade e o processo impõe uma nova decisão que diga, após a adequada prova, que E não cometeu a infracção a que a sua identidade ficou processualmente ligada.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça.
No âmbito do processo sumário n.º 000/01.6, do 1º Juízo da comarca de Vila Franca de Xira, após contraditório foi condenada pela autoria material do crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3º, n.º 2, do DL n.º 2/98, de 2 de Janeiro, na pena de 45 dias de multa à taxa diária de 500$00, arguida que se identificou como sendo AA, nascida no dia 28 de Fevereiro de 1978, solteira, vendedora ambulante, filha de BB e de CC, natural de Lisboa e residente na Rua 000000000, n.º 000, 0000 Loures.
Efectuadas diversas diligências no sentido de executar a sentença, concluiu-se que a pessoa que foi julgada e condenada no âmbito daquele processo não foi AA, mas antes outra que por ela se fez passar, cuja identidade se ignora, tanto mais que se apurou que AA é e era à data dos factos objecto do processo titular da carta de condução n.º E – 00000, tendo sido por isso absolvida do crime de condução ilegal no processo abreviado n.º 00001.3, do Tribunal Judicial da comarca do Entroncamento, bem como no processo abreviado n.º 000/01, 2ª secção, do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto.
Face a este circunstancialismo foi interposto recurso de revisão de sentença pelo Ministério Público, sendo do seguinte teor a parte conclusiva da respectiva motivação:
1. O escopo final da providência extraordinária do recurso de revisão é a busca da verdade material.
2. Verifica-se nestes autos a existência de oposição inconciliável e relevante, entre factos que foram dados como provados em sentença proferida pelo Tribunal Judicial da comarca do Entroncamento, bem como em sentença proferida nos Juízos de Pequena Instância do Porto, e os factos que nestes autos conduziram à condenação da arguida.
3. Foi dado como provado que a arguida, identificada como AA, não é titular de qualquer habilitação legal para conduzir qualquer veículo motorizado.
4. Por sentença proferida no Tribunal Judicial do Entroncamento foi dado como provado que AAo, é e era à data dos factos titular de carta de condução com o número E – 00000, para a categoria B, desde 10 de Novembro de 1995, emitida em 5 de Dezembro de 1995 pela Direcção Geral de Viação.
5. Por sentença proferida nos Juízos de Pequena Instância Criminal do Porto, deu-se como não provado que a arguida não fosse possuidora ou titular de qualquer licença de condução ou documento que a habilitasse a conduzir veículos automóveis.
6. É assim contraditório, bem como inconciliável, que a mesma pessoa seja simultaneamente portador e não portadora de habilitação legal para conduzir veículos automóveis.
7. Desconhecido pelo tribunal na data do julgamento que AA era portadora de habilitação legal para conduzir veículos automóveis, tal facto é susceptível de suscitar dúvidas sérias sobre a justiça da decisão.
8. Aliás, tal como sucede nestes autos, a novidade dos factos ou dos meios de prova é aferida em relação ao processo, ao seu julgador.
9. Da conjugação e do cruzamento dos elementos de identificação presentes nos autos e nos processos judiciais supra referenciados resultam dúvidas acerca da identidade da arguida nos presentes autos.
10. A verdadeira AA não esteve presente como arguida no julgamento relativo ao Processo n.º 0000/01.6 PAVFX, tendo sido outra pessoa quem foi julgada, fazendo-se passar pela mesma, com conhecimentos específicos sobre os elementos de identificação daquela.
11. A pessoa física que cometeu o crime foi efectivamente condenada, embora se tenha identificado com elementos suficientes que permitiam uma completa identificação de AA.
12. AA não praticou os factos que lhe são imputados e pelos quais foi condenada.
13. AA era à data da autuação e da condenação – 12 de Junho de 2001 – titular de carta de condução com o número E – 0000, emitida em 5 de Dezembro de 1995, válida para a categoria B, desde 10 de Novembro de 1995, com validade até 11 de Fevereiro de 2039.
14. O documento emitido pela Direcção Geral de Viação, seja ele facto novo, já que revela situação fáctica substancialmente diversa da que foi apreciada, seja meio de prova, aponta para a inocência e absolvição da arguida.
O recurso foi admitido.
Não foi apresentada resposta.
Também não foi realizada qualquer diligência probatória, por se haver entendido não mostrar utilidade a diligência requerida pelo Magistrado requerente.
Na informação a que alude o artigo 454º, do Código de Processo Penal, o Exm.º Juiz pronunciou-se no sentido da ocorrência de fundamento justificador da revisão.
A Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido da denegação da revisão, por entender haver sido condenada no processo a pessoa física que cometeu o crime, embora com outra identificação, propondo se proceda à correcção da sentença objecto do pedido de revisão nos termos do artigo 380º, n.º1, alínea b), do Código de Processo Penal, rectificando-se, após a realização das necessárias averiguações, a identificação da arguida.
Colhidos os vistos e realizada a conferência alargada nos termos dos artigos 455º, n.º 6 e 435º, do Código de Processo Penal, cumpre decidir.
A questão ora submetida à apreciação e julgamento deste Supremo Tribunal, traduzida em pedido de revisão de sentença por ocorrência de erro na identidade de arguido condenado, não tem sido uniformemente tratada.
Com efeito, ora se tem decidido que a existência de erro na identificação de pessoa condenada e sua posterior averiguação constitui um facto novo, ou novos meios de prova, o que justifica e fundamenta o recurso de revisão (1), ora se tem entendido que aquele erro deve ser rectificado através do recurso ao instituto da correcção da sentença previsto no artigo 380º, do Código de Processo Penal (2 ).
Sucede que, em situações ou casos como o dos autos, em que ocorreu usurpação de identidade, não estando apenas em causa um mero erro ou lapso de identificação, a solução apresenta-se mais complexa, designadamente quando, como ora se verifica, se desconhece em absoluto a identidade do usurpador (3 ).
Com efeito, neste tipo de casos ou situações o recurso ao instituto da correcção da sentença, expediente processual que pressupõe uma averiguação rápida, simples e incidental, não se torna viável, posto que a rectificação do erro só é possível quando se possa fazer constar que a pessoa condenada foi X, com a sua verdadeira identidade, e que não foi Y; deixando vazio o lugar da identidade do arguido torna-se inviável, visto que uma sentença não pode ter lugares vazios, não se compadecendo a correcção material com um non liquet (4 ).
Por isso, nas circunstâncias concretas dos autos, em que apenas se sabe, com total certeza, que a pessoa física julgada e condenada no processo sumário n.º 0000/01.6, do 1º Juízo da comarca de Vila Franca de Xira, não é a que figura na respectiva sentença, ou seja, Elisabete Pinto, não é viável o recurso ao instituto da correcção.
Como se diz no já referido acórdão deste Supremo Tribunal de 04.01.28, a reposição da correspondência entre a realidade e o processo, impõe uma nova decisão que diga, após a adequada prova, que AA não cometeu a infracção a que a sua identidade ficou processualmente ligada.
Termos em que se decide com fundamento no artigo 449º, n.º 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Penal, autorizar a requerida revisão.
Sem tributação.

Lisboa, 29-03-2006

Oliveira Mendes (relator)
João Bernardo
Pires Salpico
Henriques Gaspar



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(1) - Entre outros os acórdãos de 93.11.04, BMJ, 431, 357, de 94.01.28, CJ (STJ), II, I, 217, de 94.05.12, BMJ, 437, 394, de 97.07.05, CJ (STJ), III, III, 186 e de 03.10.01, CJ (STJ), XI, III, 179.
(2) - Entre outros os acórdãos de 93.03.11, CJ (STJ), I, I, 212, de 95.11.08, CJ (STJ), III, III, 229, de 03.02.20, processo n.º 395/03-5ª, de 03.03.27, processo n.º 876/03-5ª e de 03.10.09, CJ (STJ), XI, III, 204.
(3) - Não só se desconhece a identidade do usurpador, como inexistem no processo objecto do pedido de revisão elementos susceptíveis de conduzirem à obtenção da identidade daquele.
(4) - Neste preciso sentido o acórdão deste Supremo Tribunal de 04.01.28, relatado pelo Exm.º Conselheiro Henriques Gaspar, publicado na CJ (STJ), XII, I, 183.