Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3584/04.0TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONTRATO DE FORNECIMENTO
ENERGIA ELÉCTRICA
CASO FORTUITO
FORÇA MAIOR
CULPA
PRESUNÇÕES LEGAIS
PRESUNÇÃO DE CULPA
Data do Acordão: 10/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL / DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CONTRATUAL / ENERGIA ELÉCTRICA
Legislação Nacional: REGULAMENTO DA QUALIDADE DE SERVIÇO, APROVADO PELO DESPACHO N.º 12917-A/2000 (II SÉRIE), 23-06; DESPACHO N.º 2410-A/2003 (II SÉRIE), 05-02; DESPACHO N.º 7952-A/2002 (II SÉRIE), 17-04; NORMAS COMPLENTARES DO REGULAMENHTO DA QUALIDADE DO SERVIÇO N.º 2410/2003, APROVADAS PELO DESPACHO N.º 23 705/2003 (II SÉRIE), 18-11;
CÓDIGO CIVIL : ART. 487.º, N.º 2, 509.º; 798.º, N.º 1, 799.º, N.ºS 1 E 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ARTS. 722.º, 729.º.
Jurisprudência Nacional: AC. STJ 14-10-2010, PROC. N.º 845/06.8TBVCD.P1.S1
Sumário :
I - Sendo a causa de pedir na presente acção a interrupção de fornecimento de energia eléctrica – e que corresponde ao incumprimento da obrigação contratualmente assumida de permanência e continuidade do fornecimento – há que atender, primeiramente, ao conteúdo do contrato para determinar se essa interrupção exclui ou não a responsabilidade da ré.

II - Não obstante resultar ter resultado provado que a causa das interrupções e falhas do fornecimento de energia se ficaram a dever à electrocussão de uma cegonha numa das linhas (no caso a linha 3146), a mesma não pode ser qualificada – como o fez o tribunal da Relação – como caso fortuito ou de força maior.

III - Casos de força maior ou fortuitos serão, assim, os que resultam da ocorrência de greve geral, alteração da ordem público, incêndio, terramoto, inundação, vento de intensidade excepcional, descarga atmosférica directa, sabotagem, malfeitoria e intervenção de terceiro devidamente comprovada (art. 2.º, n.º 4, do Regulamento de Qualidade de Serviço).

IV - Tal situação há, antes, de ser integrada – nos termos conjugados do Despacho 23705/2003 e do n.º 4 do art. 2.º do Regulamento da Qualidade do Serviço – como uma interrupção acidental imprevista de causa própria, resultante de acção ambiental, na qual se incluem as interrupções provocadas por animais, arvoredo, movimentos de terras ou interferências de corpos estranhos, desde que não passíveis de ser classificadas como causas de força maior.

V - Pretendeu-se, com este regime, fazer recair sobre o fornecedor de energia eléctrica o risco de danos provocados por animais, os quais fogem a qualquer possibilidade de controlo por parte do cliente, apenas se exceptuando as hipóteses em que a interferência do animal se tenha ficado a dever a alguma das circunstâncias referidas em III, ou pelos menos semelhantes a elas.

VI - Situando-nos no âmbito da responsabilidade contratual, o devedor, em princípio, só responde pelos danos resultantes desse incumprimento se o mesmo lhe for imputável a título de dolo ou culpa (n.º 1 do art. 798.º do CC), presumindo-se esta última (art. 799.º, n.º 1).

VII - Resultando provado que (i) as linhas eram regularmente inspeccionadas e que tinham sido inspeccionadas pouco antes dos acontecimentos dos autos; (ii) tinham sido instalados meios para evitar que as cegonhas instalassem os seus ninhos nas linhas eléctricas; (iii) que a EDP reagiu imediatamente após a interrupção de energia, encontrando a cegonha, o curto-circuito nas instalações da cliente e o defeito no seccionador 2304; (iv) e foi sucessivamente solucionando os problemas com que se deparou, não merece censura a conclusão das instâncias no sentido de afastar a sua presunção de culpa.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA – …, Lda. (posteriormente, AA – …, Lda.) instaurou uma acção contra EDP – DISTRIBUIÇÃO ENERGIA SA, pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização de € 30.107,24 por danos patrimoniais, com os juros de mora que se vencerem até integral pagamento, e de € 50.000,00 por danos não patrimoniais.

Para o efeito alegou, em síntese, que em 8 de Março de 2004 ocorreu uma interrupção do fornecimento de energia eléctrica pela ré, em violação culposa do contrato entre ambas celebrado e que, em consequência dessa falha, foi forçada a parar o funcionamento da sua unidade fabril e impedida de satisfazer diversas encomendas; que uma das máquinas ficou danificada; que teve de realizar diversas despesas, nomeadamente com o envio para abate das aves que deixou de poder abater nas suas instalações, que teve custos adicionais e que perdeu vendas; e ainda que a sua imagem e prestígio foram abalados.

A ré contestou. Em resumo, alegou que, quando ocorreu a interrupção, procedeu imediatamente às diligências necessárias à detecção da avaria e à sua reparação, vindo a encontrar sucessivamente uma cegonha electrocutada, que foi removida, e um curto circuito na instalação de um outro cliente, que implicou o “seccionamento” da instalação e, posteriormente, um defeito num seccionador de difícil acesso; que actuou no mais curto espaço de tempo possível; que as linhas e equipamentos são submetidas a inspecções periódicas; e que as que agora estão em causa tinham sido inspeccionadas em Janeiro e Fevereiro de 2004.

Para além disso, objectou que a autora deveria ter instalado equipamento que minimizasse os riscos decorrentes de eventuais falhas de energia e impugnou os danos alegados e os demais pressupostos da obrigação de indemnizar; em particular, invocou a existência de caso fortuito ou força maior – “acção da cegonha” – e de intervenção de terceiro – “PT de cliente avariado”, enquanto causas legais de exclusão da sua responsabilidade.

A autora replicou.

A acção foi julgada parcialmente procedente, pela sentença de fls. 255. Apesar de ter entendido que se não poderia responsabilizar a ré por incumprimento culposo do contrato, a 1ª Instância considerou verificada uma situação de responsabilidade pelo risco, abrangida pelo artigo 509º do Código Civil, uma vez que não ocorreu nenhuma eventualidade que se pudesse qualificar como “caso de força maior ou caso fortuito”, tal como vem definido no Regulamento de Qualidade de Serviço e no nº 1 da cláusula 3ª do contrato-tipo de fornecimento de energia eléctrica, aprovado pelo Despacho nº 7952-A/2002 (Diário da República, 2ª Série, de 17 de Abril de 2002).

Assim, a ré foi condenada a pagar uma indemnização pelas despesas em que a autora “não teria incorrido não fora a interrupção do fornecimento de electricidade em causa nos autos”: € 10.520,81, com IVA, “a título de reparação do autómato, de transporte dos animais de um para outro local, de abate dos mesmos, de eliminação de resíduos e de refeições aos seus funcionários”, acrescido de juros de mora comerciais.

Ambas as partes recorreram; e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de fls. 402 concedeu provimento à apelação da ré, absolvendo-a do pedido, e julgou prejudicada a apelação da autora.

A Relação considerou que o pedido da autora tinha de ser analisado no âmbito da responsabilidade contratual, que “a electrocussão da cegonha na linha 3146 reun[ia] simultaneamente as condições de exterioridade, imprevisibilidade e irresistibilidade (inevitabilidade), sendo caso para se falar de caso fortuito ou de força maior e excluir a culpa da R. relativamente às falhas de fornecimento de energia eléctrica que a tiveram por causa” e, ainda, que a ré provou que “agiu de forma diligente, tendo desenvolvido os possíveis e adequados esforços para realizar a prestação devida, pelo que não poderão imputar-se os prejuízos sofridos pela A. a conduta culposa da R.”.

2. A autora recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça; o recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi admitido como revista, com efeito devolutivo.

Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:

A. A Recorrente discorda da decisão do acórdão do Tribunal a quo que julgou procedente o recurso apresentado pela Recorrida com fundamento no facto de esta não ter agido com culpa ao abrigo das disposições aplicáveis à responsabilidade civil contratual, nomeadamente o artigo 799.º do Código Civil, afastando assim a aplicação ao caso concreto do artigo 509.º do Código Civil.

B. A questão da qualificação/concurso entre as responsabilidades contratual e extracontratual não possui uma solução linear na doutrina e na jurisprudência.

C. De acordo com o o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Abril de 2005 (processo n.º 10341/2004-7) “a questão não é pacífica como se acentua na citada obra (13). Todavia, como bem se refere neste mesmo estudo (pag. 194) “não há dois danos distintos, nem há duas condutas diferentes, nem do ponto de vista naturalístico, nem no plano jurídico. O que há são dois regimes legais de protecção do lesado que prevêem tal conduta e visam reparar tal dano. Mas cada regime com a sua teleologia própria.”

D. Existindo autores (vejam-se, neste particular, Vaz Serra, Rui de Alarcão e António Pinto Monteiro) que defendem a possibilidade de escolha ou de subsidiariedade entre ambas as responsabilidades, não estando prevista qualquer prevalência da responsabilidade contratual em relação à responsabilidade extracontratual.

E. Ainda que se adopte a teoria da consumpção da responsabilidade extracontratual pela responsabilidade contratual, tal só se pode verificar na prática caso os requisitos desta segunda estejam cumpridos, sob pena de se verificarem situações em que, estando cumpridos os requisitos da responsabilidade extracontratual e já não da responsabilidade contratual, o responsável civil por danos provocados na esfera de outrem, seja totalmente isentado da sua responsabilidade.

F. Caso se admitisse, sem mais, a doutrina da consumpção da responsabilidade civil extracontratual pela responsabilidade civil contratual, daí resultaria o total esvaziamento da responsabilidade objectiva prevista no artigo 509.º, n.º 2 do Código Civil, violando-se o princípio da responsabilidade objectiva e o disposto no artigo 60.º, n.º 1 da CRP.

G. Pelo que só se poderá concluir que, no caso concreto, caso se considerasse não existir responsabilidade contratual da Recorrida, o que apenas por mero dever de patrocínio se admite, os danos causados à Recorrente deverão ser-lhe sempre imputados ao nível da responsabilidade extracontratual, com aquela concorrente.

H. O critério jurídico primário para aferição da existência de responsabilidade da Recorrida quer ao nível contratual, quer ao nível extracontratual, está na existência ou não de causa de força maior ou caso fortuito, que se reconduz a um conceito unívoco com as características que são dadas a estes conceitos no âmbito da responsabilidade extracontratual.

I. Nos termos do artigo 2.º. n.º 4 do RQS, são considerados casos fortuitos ou de força maior os que reúnam simultaneamente as condições de exterioridade, imprevisibilidade e irresistibilidade, não se consignando aí, ainda que exemplificativamente, quaisquer problemas com aves ou situações similares.

J. Por coordenação com o conceito de força maior do Código Civil é pacificamente aceite que é necessário que os requisitos da exterioridade, imprevisibilidade e irresistibilidade estejam cumpridos para que possa haver exclusão da responsabilidade do fornecedor de energia eléctrica.

K. O que não é, manifestamente, o caso dos autos, uma vez que a aterragem de pássaros nas linhas eléctricas e, em especial, de cegonhas, é um facto recorrente, evitável e relativamente previsível, como aliás reconhece, como princípio, o acórdão aqui recorrido.

L. Em acórdão de 8 de Novembro de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que existem factos que, não obstante serem factos da natureza, são tidos como correntes e previsíveis na sua verificação, o que faz com que devam ser considerados como factos comuns e não causas de força maior: 5 - Uma rede de condução e entrega de energia eléctrica não pode localizar fora de si própria a existência normal de trovoadas e de raios que, por isso, não podem dizer-se independentes do seu funcionamento e utilização, embora exteriores a ela. 6 – E, por isso, não preenchem o conceito de causa de força maior tal como o define o nº2 do art.509º, como excludente da responsabilidade objectiva prevista no nº1 do artigo.”

M. Tal como na exploração de uma rede eléctrica se assume como consequência necessária a ocorrência de descargas eléctricas provocadas por raios, também se assumirá como estando correlacionada com aquela rede o pousar de aves, particularmente cegonhas, nas linhas e nos postes, bem como a construção de ninhos nestes.

N. Em suma, consideramos ser pacificamente aceite que certos factos da natureza são consequências necessárias da actividade levada a cabo pela Recorrida (vejam-se os exemplos dos raios e das aves como os mais manifestos desta ideia), sendo de rejeitar que possam ser considerados como exteriores à mesma.

O. Não podendo aqui falar-se de factos exteriores à rede e, em consequência, independentes do seu funcionamento e utilização, nem tão-pouco de irresistibilidade uma vez que, como bem refere o acórdão supra mencionado, dificilmente se aceita que estes factos não possam ser evitados por uma empresa como a Recorrida.

P. À falta de cumprimento dos elementos de exterioridade e inevitabilidade do conceito de força maior acresce que, conforme tem sido aceite pela jurisprudência, desde há muito tempo, e ao contrário do que refere o acórdão aqui recorrido, o apoio de pássaros nas linhas eléctricas não constitui uma causa de força maior, para efeitos do disposto no artigo 509.º do Código Civil: III – O mero poisar de um estorninho num fio condutor, provocando um curto-circuito com outro fio condutor e a queda de um deles que veio a causar a morte da vítima por electrocussão, não integra aquele conceito (vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-1-1991, CJ, 1991, 1.º-47). 

Q. Não obstante este entendimento, afirma o Tribunal a quo que ao contrário do exemplo do estorninho, “já não será assim quando se trate de uma cegonha, atento o respectivo porte, e ainda que seja relativamente previsível que as mesmas possam pousar nos fios eléctricos e causar curtos circuitos”.

R. O acórdão do Tribunal a quo, afirmando que é relativamente previsível que as cegonhas possam pousar nos fios eléctricos e causar curtos circuitos, aceita a decisão do transcrito acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Janeiro de 1991, mas justifica a sua opção e a posterior rejeição da tese aí vertida no caso concreto com o porte da cegonha e o facto de a acção desta, ao contrário de outras aves (se calhar devido ao seu porte), ser “apenas” relativamente previsível.

S. Não só é muito mais previsível apurarem-se os hábitos de nidificação e de deslocação das cegonhas do que de outras aves de porte inferior, considerado o seu longo historial de problemas relacionados com a rede eléctrica, como nos parece criticável a opção do Tribunal da Relação de Lisboa de introduzir neste âmbito um subcritério naturalístico (previsibilidade relativa) susceptível de desvirtuar o conceito normativo de (im)previsibilidade.

T. De facto, a utilização do critério de previsibilidade relativa para classificar o caso das cegonhas em concreto resulta, na prática, numa resposta dúbia, atendendo a que a “previsibilidade relativa”, sendo relativamente indeterminada, parece conter elementos de previsibilidade e de imprevisibilidade e que em nada auxilia na resolução desta questão.

U. Assim, reconhecendo o Tribunal a quo que existe previsibilidade na acção e na intervenção das cegonhas nas linhas eléctricas, deveria, salvo melhor opinião, ter decidido em conformidade e reconhecido que, neste caso em concreto, não está cumprido o elemento de imprevisibilidade necessário a que tenhamos uma situação de força maior.

V. Pelo exposto, resulta claro que nenhum dos requisitos necessários para a verificação de uma situação de força maior se encontra aqui cumprido.

W. Não obstante, como refere o acórdão aqui recorrido, as três falhas de fornecimento se tenham ficado a dever, naturalisticamente, à mesma causa inicial, a electrocussão da cegonha na linha eléctrica 3149, sempre se dirá, por mero dever de patrocínio, que relativamente à segunda e terceira interrupções de energia eléctrica, que tiveram origem no PT da ... e no seccionador 2304. as mesmas também não se podem considerar como eventos de força maior ou originados pela intervenção de terceiros.

X. Ainda que o posto de transformação seja propriedade da ..., este faz parte da rede eléctrica explorada pela Recorrida, sendo dever desta fornecer os seus clientes de forma ininterrupta, acautelando as soluções técnicas para que quando ocorra qualquer problema em instalações privadas ligadas à rede, esse facto não perturbe o fornecimento dos restantes clientes.

Y.  Mesmo que o problema verificado no PT da ... fosse imprevisível, não é o mesmo exterior à rede, nem tão pouco inevitável.

Z. Quanto ao defeito detectado no seccionador 2304 e ainda que o equipamento tenha sido inspeccionado e não tivesse sido detectado qualquer defeito, a avaria da instalação eléctrica sem razão aparente não constitui causa de força maior, para efeitos de exclusão da responsabilidade pelo risco, por não corresponder aos tipos previstos no ponto 4.4.6 do Anexo I do RQS e por não estarem aqui verificados os requisitos relativos à exterioridade, imprevisibilidade e irresistibilidade, sobretudo porque, desde logo, a avaria verificada no seccionador não é externa ao sistema.

AA. O próprio RQS identifica um determinado tipo de interrupções do fornecimento como sendo originadas por causas próprias da rede eléctrica (veja-se ponto 4.4.7 do Anexo I), estando aqui incluídas todas as interrupções de origem interna (incluem, designadamente, erros de projecto ou de montagem, falhas ou uso inadequado de equipamentos ou de materiais, actividades de manutenção, obras próprias ou erro humano) e desconhecidas (interrupções com causa desconhecida), bem como quaisquer outras causas que não estejam incluídas no elenco apresentado no ponto 4.4.7 nem nos pontos anteriores.

BB. Assim, ainda que se considere que a causa da interrupção da energia é desconhecida, ela é reconduzível a facto próprio da Recorrida.

CC. Ainda que não dê especial enfoque a esta questão, o acórdão aqui recorrido refere, subsidiariamente, que “não pode senão concluir-se que a R. não agiu com culpa, sequer no que respeita à forma como procedeu na reparação das avarias provocadas pela electrocussão da cegonha, sobretudo porque os trabalhos e ensaios em busca da causa da interrupção não podiam ocorrer em simultâneo em vários locais, tendo de ser sucessivos entre si.”

DD.  Relativamente à actividade de condução e fornecimento de energia eléctrica não se aplica o disposto no artigo 509.º do Código Civil, in fine, ou seja, não se afasta a responsabilidade objectiva nos casos em que se considere estarem cumpridas, na rede, as regras técnicas em vigor e aquela esteja em perfeito estado de conservação.

EE. Assim, não importa a diligência demonstrada pela Recorrida quanto à manutenção da rede eléctrica, uma vez que se trata de uma responsabilidade pelo risco inerente à entrega e fornecimento de energia eléctrica e de um incumprimento da obrigação de fornecimento de energia.

FF. Ainda que estivéssemos ao abrigo da responsabilidade contratual, não só não estamos aqui perante um evento de força maior, como ainda não ficou provado que a Recorrida tenha levado a cabo tudo o que estava ao seu alcance para evitar o sucedido, ao contrário do que conclui o acórdão aqui recorrido.

GG. Tendo discordado do montante de indemnização fixado pelo Tribunal de 1.ª instância, a Recorrente apresentou recurso da sentença proferida por este.

HH. Uma vez que o Tribunal a quo veio revogar a decisão do Tribunal de 1.ª Instância que condenou a Recorrida ao pagamento à Recorrente de uma indemnização de € 10.520,81 (dez mil quinhentos e vinte euros e oitenta e um cêntimos) considerou prejudicada a apreciação do recurso interposto pela Recorrente.

II. Nesse pressuposto e caso venha a ser dado provimento ao presente recurso, como se pretende, deverão os autos ser remetidos ao Tribunal da Relação para a necessária apreciação do recurso da sentença do Tribunal de 1.ª instância. 


Nestes termos, julgando o presente recurso procedente revogando o acórdão do Tribunal a quo e devolvendo os presentes autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para apreciação do recurso subordinado apresentado pela Recorrente farão V. Exas, Venerandos Juízes Conselheiros, o que é de inteira JUSTIÇA.»

            A ré contra-alegou, concluindo desta forma:

«1 - Do julgamento efectuado resultaram provados factos que aqui se dão por integralmente reproduzidos, salientado apenas os que se entendem relevaram na decisão agora posta em crise com a presente revista:

- De imediato a Ré colocou as suas equipas no terreno visando a detecção da avaria;

-Em ronda à linha eléctrica 3146 foi encontrada uma cegonha electrocutada no DAR579 (resposta ao qº 38);

  – Na instalação do cliente ...-PT …C os técnicos da Ré detectaram um seccionador em curto circuito (resposta ao qº 42º);

- Tendo sido necessário proceder ao seccionamento desta instalação eléctrica (resposta ao qº 47º);

 – Tendo sido encontrado um defeito no seccionador 2304 (resposta ao qº 47º);

 – O seccionador em causa encontrava-se situado junto a uma vala com água e ali existia também uma vedação (resposta ao qº 48º);

 – O PT da ... é uma instalação propriedade de tal cliente da Ré, incumbindo a sua conservação e manutenção à mesma (cliente) (resposta ao qº 57º);

- A resolução das duas interrupções de fornecimento de energia eléctrica teve lugar, da parte da manhã, com três equipas de dois funcionários da Ré, cada uma, e à tarde por outra equipa e que os trabalhos e ensaios em busca da causa da interrupção não podiam ocorrer em simultâneo em vários locais, tendo de ser sucessivos entre si e que a reposição do fornecimento ocorreu logo que foram detectadas e resolvidas as deficiências (resposta ao qº 49º e 50º);

- A linha que abastece as instalações da A., a sub-estação do E... e o equipamento envolvido se encontrava em bom estado de conservação (resposta ao qº 51º);

- A linha eléctrica em causa era regularmente inspeccionada, tendo-o sido entre 27 de Janeiro de 2004 e 3.02.2004, inspecção essa de que são feitos relatórios ou fichas de inspecção que constam a fls. 117 a 143 dos autos, existindo na linha anti-ninhos (sistemas destinados a desincentivar as cegonhas de ali fazer os ninhos) e plataformas com ninhos artificiais para o efeito (resposta aos qº 52º e 53º);

2 - A primeira interrupção ocorre em consequência da electrocussão de uma cegonha, que provoca o disparo da linha eléctrica.
a) Após a remoção da cegonha e tentativa de religação da linha, verifica-se novo disparo, em consequência da avaria que estava a ser induzida na rede de distribuição pelo PT da ...;
b) Já ao fim do dia, após alerta foi identificado um seccionador avariado, cuja dificuldade de detecção e reparação se deveu ao facto deste equipamento se encontrar instalado junto a uma vala com água e o local se encontrar vedado com uma rede alta.
3 - Quanto à interrupção motivada pela electrocussão da cegonha, a contrário do que conclui a Recorrente não está na esfera de acção da Ré Recorrida, poder evitar, apesar de todas as medidas preventivas, na data do incidente, hoje ou mesmo amanhã, a acção das cegonhas sobre as instalações eléctricas, que, como ave sedentária e protegida por legislação especial, que é, volta sempre ao lugar de nidificação, não reconhecendo, muitas vezes os ninhos artificiais implantados pela Recorrida nem respeitando os dispositivos dissuasores.
4 - Na verdade a Ré fazia e continua a fazer tudo o que a ciência e a técnica põe à sua disposição para prevenir este tipo de problema, contudo, nem sempre a eficácia é plena.
5 - Relativamente ao PT da ..., esta é uma instalação propriedade deste cliente da Ré, apenas “ligada” à rede eléctrica para ser fornecido e não faz parte da RND/RESP, cuja conservação e manutenção é da responsabilidade do seu proprietário, e a aqui Recorrida não tinha como prever que aquela instalação iria cria incidentes e perturbações na rede eléctrica de distribuição pública. 

6 - Deste curto-circuito nas instalações eléctricas de um terceiro, resulta claramente, a qualificação do incidente como de “intervenção de terceiros” na rede eléctrica, equiparado a caso fortuito ou de força maior, e expressamente previsto quer no Regulamento das Relações Comerciais, quer no Regulamento da Qualidade de Serviço. Está devidamente comprovado como resulta dos factos provados.

7 - Por outro lado, o incidente da tarde é igualmente imprevisível, nada havendo que o fizesse prever, atento o bom estado e vistorias realizadas pela Ré Apelante, conforme prova efectuada.

8 - Ora, pelo circunstancialismo factual descrito e provado é notório que a Ré desenvolveu todos os esforços que era razoável e estava obrigada a executar, foi diligente, para tentar prevenir incidentes como estes e repor o serviço no mais curto espaço de tempo.

9 – Logo, no entender da aqui Recorrida e salvo melhor e mais douta interpretação os factos alegados excluem, quer a responsabilidade pelo risco quer a responsabilidade contratual da Ré, à luz do disposto no artº 509º, nº 2 do, e/ou 798º e 799º, todos do C.C. bem como restante legislação do sector eléctrico, nomeadamente o já citado regulamento da Qualidade de Serviço.

10 - Assim sendo nada se pode imputar à ora Apelante EDP Distribuição, quer por acção quer por omissão, devendo considerar-se ilidida qualquer presunção que sobre si impendesse no caso em apreço.

Consequentemente,

11 - Andou bem o Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão proferido, pelo que deve a presente revista improceder, mantendo-se a decisão proferida e com isso a absolvição da Recorrida de todo o pedido formulado pela Recorrente.

Nesta conformidade, Deve ser julgada totalmente improcedente a presente Revista, mantendo-se o acórdão recorrido que absolveu a R/apelante, EDP Distribuição-Energia, S.A.».

3. Na apelação que interpôs, a autora impugnou alguns pontos do julgamento de facto; mas o seu recurso não foi apreciado, como se viu.

Assim, vem provado:

1- A Autora dedica-se à produção, industrialização, distribuição e comercialização de aves, carnes, ovos e produtos derivados bem como à distribuição e comercialização de outros produtos alimentares (Al. A) da Matéria Assente).

2- A Autora celebrou com a Ré EDP – Distribuição de Energia, S. A. um contrato de fornecimento de energia eléctrica com o n° …, tendo sido atribuído à Autora o número de cliente …, contrato com início de vigência em 24 de Janeiro de 2003 (Al. B) da Esp.).

3- No âmbito do referido contrato a Ré obrigava-se a fornecer energia eléctrica (Média Tensão) às instalações sitas na Estrada Nacional n° …, Km 8,5, na A..., local a que foi atribuído o n° de identificação interna de local …(Al. C) da Esp.).

4- No dia 8 de Março de 2004 ocorreu uma interrupção do fornecimento de energia eléctrica nas instalações da Autora (Al. D) da Esp.).

5- No local referido em 2 - a Autora dedicava-se ao abate e transformação de carne de aves para comercialização (Resp. ao Qt°1º)).

6- O fornecimento de energia eléctrica é essencial à actividade de abate e transformação de carne de aves que a Autora desenvolvia no local referido em 2 - dado que toda a produção da Autora depende do funcionamento de máquinas e sistemas mecânicos movidos com tal fonte de energia, apenas não sendo necessária a electricidade para a distribuição dos produtos da Autora (Resp. ao Qt°2°)).

7- E por isso a Autora celebrou o acordo referido em 2 - com a Ré (Resp. ao Qt°3º)).

8- Na data referida em 2 - ocorreu uma interrupção de fornecimento de energia eléctrica às instalações da Autora entre as 6.55 horas e as 12.30 horas ou 12.45 horas e entre as 17.30 horas ou 17.45 horas e as 20.30 horas e, devido a tal falta de fornecimento de electricidade, a parte produtiva da Autora – abate de animais, sua preparação anterior ao abate e posterior – e a parte administrativa da demandante não puderam desenvolver a sua actividade, apenas tendo funcionado, durante esse lapso de tempo, a parte da embalagem por tal secção dispor de uma UPS que permitiu o funcionamento da mesma, sendo que a secção administrativa funciona com computadores (Resp. aos Qt°s.4º) e 5º)).

9-O período de tempo referido em 8 - abrange as principais horas de laboração diária da Autora (Resp. ao Qt°9º)).

10- Sendo nesse período temporal que se efectua toda a produção dessa unidade (Resp. ao Qt°10°)).

11- Durante aquele período temporal do dia estão em funcionamento as máquinas das instalações da Autora e todos os funcionários daquelas instalações da Autora encontram-se a trabalhar, tendo em conta os respectivos horários de entrada e saída (Resp. ao Qt°11°)).

12- Por não ter energia eléctrica de modo a que as máquinas necessárias à preparação das aves para o abate e para o próprio abate pudessem trabalhar a Autora teve de enviar cerca de 12.000 frangos vivos para uma unidade da mesma, sita em Aveiro, para abate nesse local e para evitar que as aves morressem naturalmente à espera do abate, situação em que não poderiam ser aproveitadas, por contaminação (Resp. ao Qt°12°)).

13- A Autora pagou, pelo transporte referido em 12 -, a quantia de 601,34 Euros, com I.V.A. incluído (Resp. ao Qt°13°)).

14- Pelas razões referidas em 12 - a Autora teve de enviar para o Aviário do P... cerca de 8.000 Kgs de frangos vivos, para abate no local (Resp. ao Qt°14°)).

15- A Autora pagou, pelo transporte dos frangos vivos referido em 14 - a quantia de, 196,13 Euros e, pelo transporte dos mesmos, após o abate, uma quantia não apurada a Transportes BB (Resp. ao Qt°15°)).

16- Pelo abate de tais frangos a Autora pagou ao Aviário do P... a quantia de 728,54 Euros, acrescida de I.V.A. à taxa de 19% e a quantia de 623,78 Euros, acrescida de I.V.A. à mesma taxa, tendo ainda pago as quantias de 378,66 Euros e de 319,18 Euros pela eliminação de resíduos (Resp. ao Qt°16°)).

17- Parte dos funcionários da Autora tiveram, naquele dia, de trabalhar até mais tarde, devido à interrupção da energia eléctrica, sendo que os que trabalharam até mais tarde foram os da secção do abate e da embalagem - identificados a fls. 29 dos autos, de CC a DD.. - e que, por isso, os mesmos, cerca de 12 ou 13 da embalagem e alguns do abate, com excepção do primeiro - com isenção de horário - auferiram horas extraordinárias por tal facto, tendo também os funcionários do sector da expedição e distribuição trabalhado até mais tarde, sendo o horário de trabalho dos primeiros, naquela época do ano, das 7 horas às 16 horas, com uma hora de almoço (Resp. ao Qt°17°)).

18- A Autora pagou horas extraordinárias aos empregados que trabalharam mais do que as horas normais de trabalho naquele dia 8 de Março de 2004 (Resp. ao Qt°18°)).

19- A Autora pagou a Café Restaurante " ... ", no dia 8 de Março de 2004, por refeições e bebidas para os funcionários que ficaram a trabalhar até mais tarde, a quantia de 112 Euros (Resp. ao Qt°19°)).

20- Nesse dia avariaram duas bobines de compressores do sistema de frio da Autora devido aos picos de tensão da electricidade nas tentativas de reposição do fornecimento e pelo menos uma carta de comando do autómato que geria o mesmo sistema de frio ardeu, autómato esse que geria o mesmo sistema de frio, autómato esse que permitia que tal sistema funcionasse automaticamente, pelas mesmas razões (Resp. ao Qt°20°)).

21- Pela reparação da máquina ou equipamento referido em 20 - a Autora pagou a EE, Lda. a quantia total de 7.190 Euros, acrescida de I.V.A., à taxa de 19% (Resp. ao Qt°21°)).

22- A Autora forneceu, naquele dia, todas as grandes superfícies por ter um stock para o efeito e os frangos que foram enviados para abate na sua unidade de Viseu foram vendidos por tal unidade e os que foram remetidos para o Aviário do P... regressaram às instalações da Autora sitas na A..., tendo sido vendidos no dia seguinte e alguns deles foram desmanchados e vendidos desmanchados, sendo que esses frangos se destinavam a ser fornecidos a grossistas naquele dia (Resp. ao Qt°22°)).

23- A unidade fabril da Autora dispõe de um sistema de produção de larga capacidade de forma a responder ao volume diário de encomendas a que tem de fazer face (Resp. ao Qt°23°)).

24- A Autora recebe encomendas com regularidade e fornece grossistas com regularidade (Resp. ao Qt°24°)).

25- Sem fornecimento de electricidade as instalações da Autora na A..., no que toca à sua parte produtiva, não funcionam (Resp. ao Qt°25°)).

26-Não podendo funcionar a Autora não pode satisfazer encomendas (Resp. ao Qt°26°)).

27- A Autora é uma das grandes empresas nacionais no sector da produção, industrialização, distribuição e comercialização de aves, carnes, ovos e outros derivados (Resp. ao Qt°28°)).

28- A Autora tinha, à data, como clientes, as grandes cadeias de supermercados nacionais instaladas em Portugal e também grossistas, em número não apurado de clientes totais (Resp. ao Qt°29º)).

29- No dia 8 de Março de 2004, pelas 6.57 horas disparou o disjuntor de Média Tensão na Subestação do E..., na saída da …  (Resp. ao Qt°35°)).

30- O que provocou a interrupção do fornecimento de energia eléctrica em toda a zona servida por essa subestação, incluindo as instalações da Autora (Resp. ao Qt°36°)).

31- De imediato a Ré colocou as suas equipas no terreno visando a detecção da avaria (Resp. aoQt°37º)).

32- Em ronda à linha eléctrica 3146 foi encontrada uma cegonha eletrocutada no DAR579 (Resp.aoQt°38º)).

33- A qual foi imediatamente removida (Resp. ao Qt°39°)).

34- E tentado o restabelecimento da rede, tendo ocorrido novo " disparo" no disjuntor da subestação em causa (Resp. ao Qt°40°)).

35- Tendo as buscas prosseguido (Resp. ao Qt°41°)).

36- Na instalação do cliente FF - PT … os técnicos da Ré detectaram um seccionador em curto-circuito (Resp. ao Qt° 42°)).

37- Tendo sido necessário proceder ao " seccionamento " desta instalação eléctrica (Resp. ao Qt°43°)).

38- A reposição da energia eléctrica verificou-se cerca das 12.30 horas ou 12.45 horas daquele dia 8 de Março de 2004 (Resp. ao Qt°44°)).

39- Entretanto os serviços da Ré foram alertados por alguns clientes, cerca das 18.57 horas desse mesmo dia que o fornecimento de energia não se encontrava integralmente restabelecido (Resp.aoQt°45º)).

40- E por isso foi feita nova busca de avaria (Resp. ao Qt°46°)).

41- Tendo sido encontrado um defeito no seccionador 2304 (Resp. ao Qt°47°)).

42- O seccionador em causa encontrava-se situado junto a uma vala com água e ali existia também uma vedação (Resp. ao Qt°48°)).

43- A resolução das duas interrupções de fornecimento de energia eléctrica teve lugar, da parte da manhã, com três equipas de dois funcionários da Ré, cada uma e, à tarde, por outra equipa e os trabalhos e ensaios em busca da causa interrupção não podiam ocorrer em simultâneo em vários locais, tendo de ser sucessivos entre si e a reposição do fornecimento ocorreu logo que foram detectadas e resolvidas as deficiências (Resp. aos Qt°s.49°) e 50°)).

44- A linha que abastece as instalações da Autora, a sub-estação do E... e o equipamento envolvido encontrava-se em bom estado de conservação (Resp. ao Qt°51°)).

45- A linha eléctrica em causa era regularmente inspeccionada, tendo-o sido entre 27 de Janeiro de 2004 e 3 de Fevereiro de 2004, inspecção essa de que são feitos relatórios ou fichas de inspecção que constam a fls. 117 a 143 dos autos, existindo na linha anti-ninhos (sistemas destinados a desincentivar as cegonhas de ali fazer os seus ninhos) e plataformas com ninhos artificiais para o efeito (Resp. aos Qt°s52°) e 53°)).

46- A falta de corrente eléctrica não pode provocar danos em equipamentos eléctricos ( Resp. ao Qt°54°)).

47- A reposição do fornecimento de energia eléctrica não deverá afectar equipamentos instalados pelos utilizadores por a sobretensão de manobra, da mesma resultante, dever verificar os parâmetros que respeitam a compatibilidade electromagnética dos equipamentos mas se algum equipamento estiver em curto-circuito, haverá picos de tensão nesses momentos de tentativas de reposição e, não estando os equipamentos devidamente protegidos pelos utilizadores para esse efeito - através de relés e ou outros meios - podem ocorrer avarias (Resp. ao Qt°55°)

48- E o tempo de interrupção não influencia os parâmetros verificados na reposição (Resp. ao Qt°56°)).

49- O PT da ... é uma instalação propriedade de tal cliente da Ré, incumbindo a sua conservação e manutenção à mesma (cliente) (Resp. ao Qt°57°))

50- A Autora não tinha, nas suas instalações, qualquer gerador que lhe permitisse o fornecimento de energia em situação de interrupção do fornecimento pela Ré (Resp. ao Qt°58°)).

4. Estão em causa as seguintes questões:

– Concorrência, no caso, de responsabilidade contratual e pelo risco;

– Verificação de caso fortuito ou de força maior, ou de intervenção de terceiros;

– Existência de culpa da ré;

– Remessa ao Tribunal da Relação de Lisboa para apreciação da apelação da autora.

5. Antes de mais, cumpre recordar que o contrato de fornecimento de energia eléctrica foi celebrado entre as partes para ter início em 24 de Janeiro de 2003, como resulta do documento que o consubstancia, junto a fls. 16.

Nessa data, vigorava o Regulamento da Qualidade de Serviço aprovado pelo Despacho n.º 12917-A/2000 (2.ª série), de 23 de Junho, posteriormente revisto pelo Despacho nº Despacho n.º 2410-A/2003 (2ª série), de 5 de Fevereiro, este último em vigor no momento dos factos relevantes na presente acção e aplicável a contratos anteriores, como, aliás, se diz expressamente no artigo 15º do ANEXO III do Despacho nº 7952-A/2002 (2ªsérie), de 17 de Abril (aprova as condições gerais a integrar os contratos de fornecimento de energia eléctrica aos clientes do SEP em BTN, em BTE e em MT.– Contrato tipo de fornecimento de energia eléctrica em MT — Condições gerais, condições essas que integram o contrato dos autos (nº 2 do Despacho).

Relevam também as “normas complementares do Regulamento da Qualidade do Serviço” nº 2410/2003 aprovadas pelo Despacho nº 23 705/2003 (2ª série), de 18 de Novembro.

Mas já não relevam as alterações introduzidas no Regulamento da Qualidade de Serviço em momento posterior a 8 de Março de 2004 (hoje aprovado pela Portaria nº 596/2010, como se dá nota no acórdão recorrido), nomeadamente pelo Despacho 5255/2006 (2ª série), de 8 de Março de 2006.

É pois especialmente relevante, no âmbito deste recurso, o que resulta do Regulamento da Qualidade de Serviço aprovado pelo Despacho n.º 2410-A/2003 (2ª série), de 5 de Fevereiro, complementado pelo nº 23 705/2003, de 18 de Novembro, e do Despacho nº 7952-A/2002, de 17 de Abril.

No entanto, tendo em conta o pedido e a causa de pedir tal como forma conformados pela autora, e a limitação daí decorrente para a delimitação dos poderes de cognição do tribunal, não está em causa na presente acção o regime especialmente previsto para as compensações por quebra do dever de continuidade do serviço, à data constantes dos artigos 46º e segs. do Despacho nº 2410-A/2003. Nem sequer foi trazida aos autos matéria de facto que permitissem a sua eventual aplicação.

6. O acórdão recorrido afastou a aplicação do regime do artigo 509º do Código Civil, considerando que o litígio se desenrola no âmbito da responsabilidade contratual; a recorrente recorda, todavia, que esta pode concorrer com a responsabilidade extra-contratual (pelo risco, para o que agora interessa).

Sem prejuízo de essa concorrência se poder verificar, a verdade é que a autora pede nesta acção uma indemnização por danos decorrentes da interrupção de fornecimento de energia eléctrica, que a ré estava obrigada a fornecer no âmbito do contrato entre ambas celebrado; não se trata, pois, de nenhum pedido de indemnização por danos objectivamente decorrentes “da condução ou entrega da electricidade” ou “da própria instalação”, não se enquadrando o pedido, nem na letra, nem na razão de ser da responsabilidade pelo risco que fundamenta o regime previsto no artigo 509º do Código Civil.

A causa de pedir invocada é essa interrupção, que corresponde ao incumprimento da obrigação contratualmente assumida – cfr. o contrato de fls. 76 e, em especial, a obrigação de permanência e continuidade do fornecimento, imposta pelo nº 1 do artigo 3º do Anexo III ao Despacho nº 7952-A/2002 (2ªsérie), de 17 de Abril (contrato tipo).

É pois, em primeiro lugar, ao conteúdo do contrato (convencionado ou legalmente imposto) que cabe recorrer para determinar se essa interrupção exclui ou não a responsabilidade da ré.


7. O acórdão recorrido concluiu no sentido dessa exclusão, por entender que “a electrocussão da cegonha na linha 3146” foi a causa das interrupções (da matéria provada “resulta, salvo melhor opinião que, tal como alegado, as falhas de fornecimento de energia eléctrica ficaram naturalisticamente a dever-se à mesma causa inicial: a electrocussão da cegonha na linha eléctrica 3146, apresentando-se como suas consequências”, decidiu-se no acórdão) e que se deve considerar como “caso de força maior ou caso fortuito”. Recorre, para o efeito, à noção constante do nº 2 do artigo 509º do Código Civil, conjugada com o que consta do Regulamento de Qualidade de Serviço aprovado pelo Despacho nº 2410-A/2003, de 5 de Fevereiro, concluindo que “a electrocussão de cegonha em linha eléctrica reúne simultaneamente as condições de exterioridade, imprevisibilidade e irresistibilidade” que caracterizam os referidos casos fortuitos ou de força maior.
Mas não pode acompanhar-se esta última conclusão. É certo que está definitivamente assente que, naturalisticamente, a electrocussão da cegonha esteve causalmente na origem das interrupções que ficaram provadas. Trata-se de uma conclusão de facto que vincula o Supremo Tribunal de Justiça (artigos 722º e 729º do Código de Processo Civil); mas o mesmo não sucede quanto à qualificação como caso fortuito ou de força maior.

Ora entende-se que, na economia do Regulamento de Qualidade de Serviço aplicável e do Despacho nº 23 705/2003, de 18 de Novembro, a electrocussão da cegonha não pode ser qualificada como caso fortuito ou de força maior.

Com efeito, ao proceder à “classificação das interrupções” de fornecimento “e suas origens”, o ponto 3 do Despacho 23705/2003 distingue, de entre as interrupções acidentais (imprevistas), as que resultem de causas fortuitas ou de força maior, de razões de segurança, de facto imputável ao cliente e de causas próprias. Inclui nestas (causas próprias), entre outras, as que resultam de acção ambiental“inclui as interrupções provocadas, designadamente, por animais, arvoredo, movimentos de terras ou interferências de corpos estranhos, desde que não sejam passíveis de ser classificadas como causas de força maior”, sendo certo que o Despacho remete para o nº 4 do artigo 2º do Regulamento da Qualidade de Serviço, segundo o qual se consideram “casos fortuitos ou de força maior nomeadamente os que resultam da ocorrência de greve geral, alteração da ordem pública, incêndio, terramoto, inundação, vento de intensidade excepcional, descarga atmosférica directa, sabotagem, malfeitoria e intervenção de terceiro devidamente comprovada”.

No fundo, o regime que, pela via atrás referida, integra o contrato dos autos, significa que, por regra, se pretendeu fazer recair sobre o fornecedor de energia eléctrica o risco de danos provocados por animais. O cliente, que não tem qualquer possibilidade de controlo sobre as opções tomadas para a execução da obrigação de fornecimento.

Apenas se exceptuam as hipóteses em que a interferência do animal se tenha verificado em circunstâncias pelo menos semelhantes às que aparecem enumeradas

Nada vem provado que permita enquadrar a electrocussão da cegonha no âmbito das causas de força maior: não resultou de nenhuma das eventualidades ali previstas, ou semelhante; pelo menos, nada vem provado nesse sentido.

8. Também não pode entender-se que o curto-circuito encontrado nas instalações do cliente ... (ponto 36 da matéria de facto provada) possa ser considerado intervenção de terceiro. No entanto, esta questão não tem relevância autónoma, tendo em conta que está assente que a electrocussão da cegonha esteve na origem das interrupções de fornecimento. Recorde-se que, perante o lesado, uma eventual concorrência de causas (efectivas) não afasta nem limita a obrigação de indemnizar. E o mesmo se diga quanto ao defeito que foi detectado “no seccionador 2304”.

9. A recorrente sustenta que não está assente que a ré “tenha levado a cabo tudo o que estava ao seu alcance para evitar o sucedido” (conclusão FF), questão que se reveste da maior importância no âmbito da responsabilidade por incumprimento contratual: em princípio, o devedor só responde pelos danos resultantes desse incumprimento se o mesmo lhe for imputável a título de dolo ou culpa (nº 1 do artigo 798º do Código Civil), presumindo-se a culpa (nº 1 do artigo 799º).

Como se viu, ambas a instâncias excluíram a culpa da ré, extraindo dos factos provados que a mesma actuou de forma adequada, quer quanto à prevenção de acidentes como o dos autos, quer quanto à reparação dos danos causados pela electrocussão da cegonha, em ordem à reposição do fornecimento de energia.

Ora, no campo dos factos, existe apenas um grau de recurso, que já foi cumprido; resta assim verificar se pode ter-se como satisfeito o critério definido pelo nº 2 do artigo 487º do Código Civil, aplicável à responsabilidade contratual, nos termos do nº 2 do artigo 799º (cfr. por exemplo o acórdão de 14 de Outubro de 2010, www.dgsi.tp, proc. nº 845/06.8TBVCD.P1.S1).

Como as instâncias recordam, vem provado que as linhas eram regularmente inspeccionadas e que tinham sido inspeccionadas pouco antes dos acontecimentos dos autos; que tinham sido instalados meios para evitar que as cegonhas instalassem os seus ninhos nas linhas eléctricas; que a EDP reagiu imediatamente após a interrupção da energia, tendo sucessivamente encontrado a cegonha, o curto-circuito nas instalações da cliente ... e o defeito no seccionador 2304; que, sucessivamente também (e necessariamente) foi solucionando os problemas com que se deparou (cfr. ponto 31 e segs. da lista de factos provados), sendo certo que “a reposição do fornecimento ocorreu logo que foram detectadas e resolvidas as deficiências” (ponto 43).

A recorrente não aponta motivos concretos que permitam ponderar da inadequação ou da insuficiência da actuação da EDP; nada se provou nesse sentido.

A conclusão das instâncias no sentido de ter sido afastada a presunção de culpa não merece qualquer censura.

10. A terminar, resta dizer que não ficou provado qual seria o custo, para a autora, da instalação de um “gerador que lhe permitisse o fornecimento de energia em situação de interrupção do fornecimento pela Ré”, que não existia (ponto 50 da lista de factos provados). Apesar de ser a própria recorrente que afirma que o fornecimento de energia é essencial à actividade que desenvolve, não é assim possível afirmar se lhe incumbiria ou não ter instalado meios de minimização dos danos que uma interrupção de fornecimento de energia eléctrica poderia provocar, nos termos previstos no artigo 6º do Despacho nº 2410-A/2003.

De qualquer modo, a conclusão de que a ré não agiu com culpa, inviabilizando a procedência do pedido de indemnização formulado nesta acção, torna a questão inútil.

11. Resta negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido e, portanto, reiterando que está prejudicada a apreciação da apelação interposta pela autora.

Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 3 de Outubro de 2013

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Lopes do Rego