Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1/13.9YGLSB.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: RAUL BORGES
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
ÚNICA INSTÂNCIA
JUÍZA DESEMBARGADORA
ADVOGADO
LEGITIMIDADE
MINISTÉRIO PÚBLICO
NULIDADE
INQUÉRITO
MEIOS DE PROVA
MEIOS DE OBTENÇÃO DA PROVA
PROIBIÇÃO DE PROVA
SEGREDO PROFISSIONAL
ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS
ACTOS PRÓPRIOS DOS ADVOGADOS
AGENTE PROVOCADOR
AGENTE INFILTRADO
EVOLUÇÃO LEGISLATIVA
DOUTRINA
JURISPRUDÊNCIA
AVENÇA
CONTRATO ATÍPICO
REGIME LEGAL
CRIME
PECULATO
FUNCIONÁRIO
COMUNICABILIDADE
CONFORMAÇÃO DO CRIME
CRUZ VERMELHA PORTUGUESA
REGIME JURIDICO
PESSOAS COLECTIVAS DE UTILIDADE PÚBLICA ADMINISTRATIVAS «ESPECIAIS»
CONCURSO DE INFRACÇÕES
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Data da Decisão Sumária: 04/17/2015
Votação: ----------
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: DEBATE INSTRUTÓRIO
Decisão: PRONÚNCIA
Área Temática:
DIREITO PENAL - FACTO / FORMAS DO CRIME - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES E DO CRIME CONTINUADO - CRIMES CONTRA O ESTADO / CRIMES COMETIDOS NO EXERCÍCIO DE FUNÇÕES PÚBLICAS.
Doutrina:
- Actas das Sessões da Comissão Revisora do Projecto da Parte Geral do Código Penal, mais concretamente na Acta da 13.ª Sessão, de 08-02-1964, publicada no BMJ n.º 144, págs. 56/9, artigo 33.º; e, na Acta da 24.ª, relativa à sessão de 24-06-1966, in BMJ n.º 290, págs. 96/97, estando em discussão o artigo 466.º.
- Antonio Luiz de Sousa Henriques Secco, Código Penal Portuguez Annotado, 6.ª edição, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1881, págs. 171 a 173 e 180; Código Penal Portuguez Annotado, Segunda Parte, contendo a Nova Reforma Penal, 1884, e os noventa artigos da Parte Geral e as alterações introduzidas na Parte Especial, incluído o artigo 313.º e seus §§ - págs. 45 e 46.
- Beleza dos Santos, na Revista de Legislação e Jurisprudência (RLJ), Ano 75.º (1942/1943), pág. 205, nota 2, ao comentar o artigo 313.º.
- Cavaleiro de Ferreira, Direito e Justiça, volume IV - 1989/1990, editado em Janeiro de 1992 (Depósito legal n.º 53259/92), Parecer, relativo a “Abuso de confiança, peculato, falsificação e furto de documentos, descaminho – Problemas de autoria material e de autoria moral, de continuação criminosa, de prescrição e de concurso”, págs. 239 a 281; Direito Penal Português, 1982, II, págs. 200, 385, 386.
- Conceição Ferreira da Cunha, em Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, págs. 687 a 704, comentando o artigo 375.º.
- Damião da Cunha, “O Conceito de Funcionário, para Efeito de Lei Penal e a “Privatização” da Administração Pública”, Uma revisão do Comentário ao Art.º 386.º do Código Penal - Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, Limitada, 2008.
- Duarte Faveiro e Laurentino Araújo, Código Penal Português Anotado, de 7.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, 1971, págs. 548/9.
- Eduardo Correia, Teoria do Concurso em Direito Criminal – Unidade e Pluralidade de Infracções, 1945; A Teoria do Concurso em Direito Criminal - Unidade e Pluralidade de Infracções; A teoria do concurso em Direito Criminal, 2.ª Reimpressão, Almedina, Colecção Teses, 1996, págs. 90, 100, 101, 103, 121, 125; Direito Criminal (I - Tentativa e Frustração. II - Comparticipação criminosa. III - Pena conjunta e pena unitária), Colecção Studium, Coimbra, 1953; Direito Criminal, com a colaboração de Figueiredo Dias, II, Reimpressão, Almedina, 1971 (e igualmente 1997), pág. 200; in Actas CP/Eduardo Correia, 1979:494; na Revista de Legislação e Jurisprudência (RLJ) Ano 92 (1959-1960) n.º 3157, págs. 244 a 248; n.º 3158, págs. 260 a 264 e n.º 3159, págs. 276 a 280; Sumários e notas das Lições ao 1.º ano do Curso Complementar de Ciências Jurídicas da Faculdade de Direito de Coimbra, 1975/1976, págs. 115/117.
- Figueiredo Dias, Das consequências jurídicas do crime, 1993, Aequitas, § 395, pág. 278; Direito Penal Parte Geral, Tomo I (Questões fundamentais. A doutrina geral do crime), Coimbra Editora, Dezembro de 2004, págs. 287 e 288; Direito Penal Parte Geral, 2.ª edição, 2007, págs. 303 a 305, 770 e 771, 848 a 854; na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 121.º, 1988-1989, n.º 3777, págs. 379 a 384, Coimbra Editora, Ld.ª, 1989, em anotação a acórdão do Tribunal Colectivo de Braga de 20-01-1989; Temas básicos da doutrina penal, Coimbra Editora, 2001, pág. 48; “Unidade e Pluralidade de crimes: «Où sont les neiges d`antan?»”, inserto em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Coimbra, 2008, Tomo III, págs. 674, 678, 679.
- Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 1992, págs. 552/3,569; Curso de Direito Administrativo, Vol. I, Reimpressão Almedina, Coimbra, 1991, ao abordar as Associações Públicas, págs. 366 e ss.; Freitas do Amaral, Lições ao Curso de Direito de 1983/4, da FDUCL, I., 891. (v.g., as Misericórdias, as Associações de Bombeiros Voluntários).
- Furtado dos Santos, Código Penal (Anotado), Petrony, 1983.
- Henriques Gaspar, “Crimes cometidos no exercício de funções públicas”, Jornadas de Direito Criminal - Revisão do Código Penal (1995), CEJ, Volume II, Lisboa, 1998, a págs. 387 a 407, (cita Figueiredo Dias, RLJ, Ano 121.º, p. 380).
- José António Barreiros, Crime de peculato, incluindo os peculatos especiais, actualizado segundo a jurisprudência, Labirinto de Letras, Editores, Março de 2013, págs. 30 a 33, 35, 52, 54 e 59, 129/130.
- José Francisco de Faria Costa, Direito Penal da Comunicação (Alguns escritos), Coimbra Editora, 1998 (Outubro), págs. 91; “Formas do crime”, Jornadas de Direito Criminal, Fase I, CEJ, Novembro de 1982.
- José Manuel Damião da Cunha, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, págs. 808 a 823, comentário ao artigo 386.º com a redacção então introduzida pela Reforma de 1995; O Conceito de Funcionário, para Efeito de Lei Penal e a “Privatização” da Administração Pública, Uma revisão do Comentário ao Art. 386.º do Código Penal - Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, Limitada, com depósito legal n.º 280 263/2008, Agosto de 2008, págs. 42, 56, 58/9,60, 62, 77, 80, 81/82, 84, 89, 106.
- Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal, 2.ª Edição, 1996, 2.º volume, Rei dos Livros, Comentário ao artigo 386.º, págs. 1228/1230, 1234.
- Luís Osório da Gama e Castro de Oliveira Baptista, em Notas ao Código Penal Português, segunda edição, volume II, Coimbra Editora, Limitada, 1923, págs. 575/6, 668 a 678, 715, (pág. 611), 715/6.
- M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, “Código Penal” Parte geral e especial, Almedina, 2014, comentam o artigo 375.º, de págs. 1242 a 1245, “Código Penal” Parte geral e especial, Almedina, 2014, comentam o artigo 386.º, págs. 1262 a 1268.
- Maia Gonçalves, Código Penal Português na Doutrina e na Jurisprudência, 4.ª edição, Almedina, Janeiro de 1979 e na 5.ª edição actualizada, 1980, a págs. 505 (em ambas as edições); Código Penal Português Anotado e Comentado, 3.ª edição, 1986, pág. 558 e 4.ª edição, 1988, pág. 739; Código Penal Português Anotado, 6.ª edição, 1992, em anotação ao artigo 437.º, págs. 806/7; Código Penal Português, Anotado e Comentado, 18.ª edição, 2007, pág. 1104; parecer com o n.º 1321 no âmbito do recurso de que resultou o acórdão de 2 de Junho de 1965, proferido no processo n.º 31.745, in BMJ n.º 148, pág. 142; Parecer n.º 389, emitido no processo n.º 30.787 e que consta em anotação ao acórdão do STJ de 13-12-1961, proferido naquele processo n.º 30.787, no BMJ n.º 112, pág. 353 (375/6).
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica; Vol I, Sujeitos e Objecto, Almedina 1960, e Reimpressão Coimbra, 1992, foca o tema de classificações doutrinárias e legais das pessoas colectivas, págs. 67 a 92.
- Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10.ª edição, 1980, Vol. I, págs. 396 a 399; Manual de Direito Administrativo, 10.ª edição, Reimpressão (revista e actualizada pelo Prof. Freitas do Amaral), Almedina 1980, Tomo I, págs. 193, 194.
- Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal (Dec.- lei n.º 2.848, de 7 de Dezembro de 1940), Volume IX, arts. 250 a 361, Companhia Editora Forense, Rio de Janeiro, 2.ª edição, 1959 , págs. 334, 335, 345, 346, 348.
- Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 62/64, de 11 de Março de 1965, No BMJ n.º 148, págs. 97 a 121.
- Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 11/88, de 26 de Maio de 1988, citado no Parecer n.º 160/2004, de 17 de Fevereiro de 2005, in Diário da República, n.º 198, de 14-10-2005.
- Parecer da Procuradoria-Geral da República de 24 de Março de 1959, publicado no Diário do Governo, de 11 de Julho.
- Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 24/53, de 25 de Março de 1953, in BMJ n.º 39, pág. 71.
- Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 60/57, de 11 de Março de 1959 (emitido pelo Ajudante do Procurador-Geral da República, António Miguel Caeiro), in BMJ n.º 88, págs. 169/177.
- Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 98/58, de 11 de Junho de 1959 (emitido por António Miguel Caeiro), in BMJ n.º 91, págs. 388/393.
- Parecer da Procuradoria-Geral da República, n.º 17/84, de 5 de Julho de 1984, homologado em 23 de Abril de 1985, in BMJ n.º 346, págs. 39 a 53.
- Parecer da Procuradoria-Geral da República de 17-02-2005, processo n.º 160/2004, DR, n.º 198, de 14-10-2005.
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª edição, 2010, pág. 162; Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2.ª edição actualizada, 2010, na nota prévia ao artigo 372.º, págs. 998 (889, na 1.ª edição) e 1028/1032.
- Pedro Gonçalves, Entidades Privadas com Poderes Públicos, Colecção Teses, Almedina, 2005 (correspondendo a texto apresentado em 30-12-2003, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico - Políticas na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), págs. 437, 454/5, 520/1.
- Serafim Fernandes Neves, “Responsabilidade penal do infiel depositário”, em 15-06-1957, Scientia Iuridica, Tomo VIII, 1959, n.º 42/43, págs. 446/9.
- Susana Aires de Sousa, “A autoria nos crimes específicos: algumas considerações sobre o artigo 28.º do Código Penal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 15, n.º 3, Julho-Setembro 2005, págs. 343 a 368”.
- Teresa Pizarro Beleza, “Ilicitamente comparticipando - O âmbito de aplicação do artigo 28 do Código Penal”, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, III, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Número especial, Coimbra, 1984, págs. 589 a 649 (658, 609, 603/5, 639, 641); “A estrutura da autoria nos crimes de violação de dever - Titularidade versus Domínio do facto?”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, 3.º, Julho-Setembro 1992, págs. 337 a 351.
- Urs Kinderhauser, “Aumento de risco e diminuição de risco”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 20, n.º 1, Janeiro/Março 2010, págs. 11 a 39.
- Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, “Código Penal” Anotado e Comentado, Quid Juris, 2008, a págs.915/918, comentam o artigo 375.º, págs. 939 a 942.
- Vital Moreira, Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra Editora, 1997, págs. 297- 298.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 30.º, N.º1, 77.º, 78.º, 79.º, 375.º, 386.º, N.º 1, AL. D).

REGIME JURÍDICO DA CRUZ VERMELHA PORTUGUESA:
-DECRETO-LEI N.º 36 612, DE 24 DE NOVEMBRO DE 1947 (PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE, N.º 273, DE 24-11-1947, ALTERADO PELO DECRETO-LEI N.º 40 337, DE 17-10-1955, E PELO DECRETO-LEI N.º 40 749, DE 1-09-1956): -ARTIGOS 1.º, 4.º, 7.º, 11.º: A.
-DECRETO-LEI N.º 164/91, DE 7 DE MAIO (DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE, N.º 104, DE 7-05-1991): - ARTIGOS 1.º, 3.º, N.º 2, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 14.º, ALÍNEA D).
-DECRETO-LEI N.º 281/07, DE 7 DE AGOSTO (PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, 1ª SÉRIE, N.º 151, DE 07-08-2007), QUE APROVOU O REGIME JURÍDICO DA CRUZ VERMELHA PORTUGUESA (CVP) E OS RESPECTIVOS ESTATUTOS, OS QUAIS PASSARAM A FAZER PARTE INTEGRANTE DO DECRETO-LEI: - ARTIGOS 2.º, N.º S1 E 2, 3.º, 4.º, N.º 2. ARTIGOS 52.º, 57.º, 58.º, 59.º, 60.º, 61.º DOS ESTATUTOS.
-DECRETO-LEI N.º 460/77, DE 7 DE NOVEMBRO, E A ATRIBUIÇÃO DO ESTATUTO DE PESSOAS COLECTIVAS DE UTILIDADE PÚBLICA (O DIPLOMA FOI ALTERADO PELA LEI N.º 40/2007, DE 24 DE AGOSTO, A QUAL APROVOU UM REGIME ESPECIAL DE CONSTITUIÇÃO IMEDIATA DE ASSOCIAÇÕES, ALTERANDO O CÓDIGO CIVIL (DIÁRIO DA REPÚBLICA, 1.ª SÉRIE, N.º 163, DE 24-08-2007), QUE PELO ARTIGO 19.º, ADITA ALÍNEA F) AO ARTIGO 10.º E O DECRETO-LEI N.º 391/2007, DE 13 DE DEZEMBRO (DIÁRIO DA REPÚBLICA, 1ª SÉRIE, N.º 240, DE 13-12-2007), ALTERANDO OS ARTIGOS 2.º A 8.º, 12.º, 13.º E 15.º; REVOGANDO O N.º 4 DO ARTIGO 5.º; O N.º 3 DO ARTIGO 6.º E AS ALÍNEAS C) E D) DO ARTIGO 10.º, E PROCEDENDO À REPUBLICAÇÃO). ARTIGO 1.º, 2.º, 9.º, 10.º, 12.º.
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Referências Internacionais:
CONVENÇÃO CONTRA A CORRUPÇÃO, ADOPTADA PELA ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS EM 31 DE OUTUBRO DE 2003, APROVADA EM 19-07-2007 PELA RESOLUÇÃO DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA N.º 47/2007 E RATIFICADA PELO DECRETO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA N.º 97/2007, DE 21 DE SETEMBRO, IN DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE, N.º 183, DE 21 DE SETEMBRO DE 2007, AÍ SE DEFININDO NO ARTIGO 2.º, ALÍNEA C), ARTIGO 17.º, ARTIGO 22.º
Jurisprudência Nacional:

ABORDAGENS NA JURISPRUDÊNCIA SOBRE O CRIME DE PECULATO E O CONCEITO DE “FUNCIONÁRIO”

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JURISPRUDÊNCIA ABORDANDO O CRIME DE PECULATO
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL N.º 201/98, DE 3 DE MARÇO DE 1998, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 20/98, DA 1.ª SECÇÃO, IN BMJ N.º 475, PÁG. 44.

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA E RELAÇÕES:

- ASSENTO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 19 DE DEZEMBRO DE 1951, PUBLICADO NO DIÁRIO DO GOVERNO, 1.ª SÉRIE, N.º 3, DE 7 DE JANEIRO DE 1952, E NO BMJ N.º 28, PÁG. 164.
- ACÓRDÃO DE 13 DE DEZEMBRO DE 1961, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 30.784, IN BMJ N.º 112, PÁG. 344.
- ACÓRDÃO DE 23 DE MARÇO DE 1966, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 31 745, BMJ N.º 155, PÁG. 281.
- ACÓRDÃO DE 18 DE JULHO DE 1984, PROCESSO N.º 37 448, IN BMJ N.º 339, PÁG. 289.
- ACÓRDÃO DE 13 DE FEVEREIRO DE 1986, PROCESSO N.º 38 212, IN BMJ N.º 354, PÁG. 303.
- ACÓRDÃO DE 16 DE DEZEMBRO DE 1986, PROLATADO NO PROCESSO N.º 38 675, IN BMJ N.º 362, PÁG. 359.
- ACÓRDÃO DE 11 DE MAIO DE 1988, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 39 502, IN BMJ N.º 377, PÁG. 265.
- ACÓRDÃO DE 31 DE OUTUBRO DE 1990, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 41 086, IN BMJ N.º 400, PÁG. 357.
- ACÓRDÃO DE 13 DE FEVEREIRO DE 1991, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 41 269, IN BMJ N.º 404, PÁG. 169.
- ACÓRDÃO DE 25 DE SETEMBRO DE 1991, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 42 008, IN BMJ N.º 409, PÁG. 491.
- ACÓRDÃO DE 29 DE ABRIL DE 1992, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 42 600, IN BMJ N.º 416, PÁG. 388.
(EM SENTIDO CONTRÁRIO À ALUDIDA INCOMPATIBILIDADE COM A COMINAÇÃO DA PENA ACESSÓRIA DE DEMISSÃO, PRONUNCIOU-SE O ACÓRDÃO DE 17 DE JUNHO DE 1992, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 42 833, IN BMJ N.º 418, PÁG. 523).
- ACÓRDÃO DE 24 DE JUNHO DE 1992, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 42 729, IN BMJ N.º 418, PÁG. 675.
- ACÓRDÃO DE 28 DE OUTUBRO DE 1992, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 43 064, IN BMJ N.º 420, PÁG. 289.
- ACÓRDÃO DE 14 DE ABRIL DE 1993, PROCESSO N.º 43 378, IN BMJ N.º 426, PÁG. 171.
- ACÓRDÃO DE 11 DE NOVEMBRO DE 1993, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 44 874, IN CJSTJ 1993, TOMO 3, PÁG. 245.
- ACÓRDÃO DE 30 DE NOVEMBRO DE 1993, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 45 053, IN BMJ N.º 431, PÁG. 275.
- ACÓRDÃO DE 20 DE JANEIRO DE 1994, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 45 786, IN BMJ N.º 433, PÁG. 284.
- ACÓRDÃO DE 9 DE NOVEMBRO DE 1994, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 46 600, CJSTJ 1994, TOMO 3, PÁG. 245.
- ACÓRDÃO DE 30 DE NOVEMBRO DE 1994, PROCESSO N.º 46 380, BMJ N.º 441, PÁG. 53.
- ACÓRDÃO DE 11 DE OUTUBRO DE 1995, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 48 124, BMJ N.º 450, PÁG. 98.
- ACÓRDÃO DE 30 DE NOVEMBRO DE 1995, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 47 074, CJSTJ 1995, TOMO 3, PÁG. 248.
- ACÓRDÃO DE 23 DE MAIO DE 1996, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 149/96.
- ACÓRDÃO DE 30 DE OUTUBRO DE 1996, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 47 846-3.ª, SUMÁRIOS DE ACÓRDÃOS DO STJ, N.º 4, OUTUBRO DE 1996, PÁG. 95.
- ACÓRDÃO DE 4 DE DEZEMBRO DE 1996, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 48 830-3.ª, IN SASTJ, N.º 6, DEZEMBRO DE 1996, PÁG. 52.
- ACÓRDÃO DE 9 DE JANEIRO DE 1997, PROCESSO N.º 210/96-3.ª, IN CJSTJ 1997, TOMO 1, PÁG. 172, (PÁG. 175).
- ACÓRDÃO DE 23 DE JANEIRO DE 1997, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 19/96.
-ACÓRDÃO DE 19 DE NOVEMBRO DE 1997, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 906/97-3.ª, IN CJSTJ 1997, TOMO 3, PÁG. 237 E SUMÁRIOS DE ACÓRDÃOS DO STJ, N.º 15 E 16, PÁG. 172.
- ACÓRDÃO DE 4 DE DEZEMBRO DE 1997, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 978/07-3.ª SECÇÃO, IN SUMÁRIOS DE ACÓRDÃOS DO STJ, GABINETE DE ASSESSORIA, N.ºS 15 E 16 - NOVEMBRO E DEZEMBRO DE 1997, PÁGS. 197.
- ACÓRDÃO DE 25 DE JANEIRO DE 1998, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 1229-3.ª, IN CJSTJ 1998, TOMO 1, PÁG. 178.
- ACÓRDÃO DE 25 DE MARÇO DE 1998, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 53/98-3.ª, IN CJSTJ 1998, TOMO 1, PÁG. 238 E BMJ, N.º 475, PÁG. 502.
- DIVERSAMENTE DO ANTERIOR, E NÃO SÓ, O ACÓRDÃO DE 7 DE JANEIRO DE 1999, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 953/98-3.ª SECÇÃO, IN BMJ N.º 483, PÁGS. 24 A 48,
[- ASSENTO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 19 DE FEVEREIRO DE 1992, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE - A, N.º 84, DE 9 DE ABRIL,
- ACÓRDÃO N.º 8/2000, DE 4 DE MAIO DE 2000, IN DIÁRIO DA REPÚBLICA, N.º 119, DE 23 DE MAIO DE 2000, CONFIRMOU A JURISPRUDÊNCIA DE 1992, ENTÃO COM CINCO VOTOS DE VENCIDO.
(NA CERTIFICAÇÃO DA BONDADE DA TESE, PRONUNCIARAM-SE O ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DE 8 DE JUNHO DE 2005 - 3.ª SECÇÃO, N.º 303/2005, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 242/05, DIÁRIO DA REPÚBLICA, II SÉRIE, N.º 150, DE 5 DE AGOSTO DE 2005 E O ACÓRDÃO DE 7 DE JULHO DE 2005, N.º 375/2005, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 337/2005, 2.ª SECÇÃO, DIÁRIO DA REPÚBLICA, II SÉRIE, N.º 182, DE 21 DE SETEMBRO DE 2005)
- ACÓRDÃO N.º 10/2013, DE 5 DE JUNHO DE 2013, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 29/04.0JDLSB-Q.S1, DA 3.ª SECÇÃO, PUBLICADO IN DIÁRIO DA REPÚBLICA, 1.ª SÉRIE, N.º 131, DE 10-07-2013, COM QUATRO VOTOS DE VENCIDO. ]
- ACÓRDÃO DE 20 DE OUTUBRO DE 1999, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 1265/98-3.ª, IN BMJ N.º 490, PÁG. 190.
- ACÓRDÃO DE 16 DE FEVEREIRO DE 2000, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 1153/99-3.ª, SUMÁRIOS DE ACÓRDÃOS STJ, N.º 38, FEVEREIRO 2000, PÁG. 71
- ACÓRDÃO DO PLENÁRIO DAS SECÇÕES CRIMINAIS DO STJ DE 17 DE FEVEREIRO DE 2000, NO PROCESSO N.º 344/99-5.ª, SUMÁRIOS DE ACÓRDÃOS DO STJ, N.º 38, PÁG. 82.
- SUMÁRIO DO ACÓRDÃO DE 29 DE NOVEMBRO DE 2000, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 2779/00-3.ª SECÇÃO.
- ACÓRDÃO DE 7 DE DEZEMBRO DE 2000, PROCESSO N.º 2536/2000 - 5.ª SECÇÃO.
- ACÓRDÃO DE 18 DE JANEIRO DE 2001, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 2833/00-5.ª SECÇÃO, IN CJSTJ 2001, TOMO 1, PÁG. 218.
- ACÓRDÃO DE 28 DE NOVEMBRO DE 2002, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 3102/02 - 5.ª SECÇÃO.
- ACÓRDÃO DE 2 DE ABRIL DE 2003, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 4194/02-3.ª.
- ACÓRDÃO DE 12 DE JULHO DE 2006, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 2032/06-3.ª:
- ACÓRDÃO DE 28 DE MARÇO DE 2007, PROCESSO N.º 614/07-3.ª.
- ACÓRDÃO DE 2 DE OUTUBRO DE 2008, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 1608/08-5.ª.
- ACÓRDÃO DE 21 DE JANEIRO DE 2015, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 12/09.9GDODM.S1.

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CONCEITO DE FUNCIONÁRIO NA JURISPRUDÊNCIA :

-ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 2 DE NOVEMBRO DE 1937, O DIREITO, TOMO LXX, 1938, PÁG. 117.
-ACÓRDÃO DE 18 DE FEVEREIRO DE 1948, BMJ N.º 5, PÁG. 165.
-ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 27 DE JUNHO DE 1951, PROCESSO N.º 27 899, IN BMJ 25, PÁG. 255, CITADO NO PARECER DA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA N.º 98/58, DE 11 DE JUNHO DE 1959.
-ACÓRDÃO DE 16 DE DEZEMBRO DE 1959, PROCESSO N.º 30 243, IN BMJ N.º 92, PÁG. 324.
-ACÓRDÃO DE 13 DE DEZEMBRO DE 1961, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 30 784, IN BMJ N.º 112, PÁG. 344.
-ACÓRDÃO DE 13 DE DEZEMBRO DE 1961, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 30 787, IN BMJ N.º 112, PÁG. 353.
-ACÓRDÃO DE 2 DE JUNHO DE 1965, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 31 745, IN BMJ N.º 148, PÁG. 142.
-ACÓRDÃO DE 19 DE OUTUBRO DE 1966, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 32 107, IN BMJ N.º 160, PÁG. 199.
-ACÓRDÃO DO STJ DE 3 DE MAIO DE 1967, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 32 369, IN BMJ N.º 167, PÁG. 368.
-ACÓRDÃO DE 6 DE JANEIRO DE 1971, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 33 304, IN BMJ N.º 203, PÁG. 119.
-ACÓRDÃO DE 11 DE NOVEMBRO DE 1981, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 36 353, IN BMJ N.º 311, PÁG. 227.
-ACÓRDÃO DE 18 DE JULHO DE 1984, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 37 448, IN BMJ N.º 339, PÁG. 289.
-ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA DE 3 DE MAIO DE 1985, IN COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA, ANO X, TOMO 3, PÁG. 182.
-ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA DE 11 DE DEZEMBRO DE 1985, IN COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA, ANO X, TOMO 5, PÁG. 133.
-ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA DE 21 DE FEVEREIRO DE 1990, IN COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA, ANO XV, TOMO 1, PÁG. 113.
-ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA DE 24 DE OUTUBRO DE 1990, IN COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA, ANO XV, TOMO 5, PÁG. 70.
-ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA DE 31 DE OUTUBRO DE 1990, IN COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA, ANO XV, TOMO 5, PÁG. 74.
-ACÓRDÃO DE 27 DE JANEIRO DE 1988, PROCESSO N.º 39 308, IN BMJ N.º 373, PÁG. 327.
-ACÓRDÃO DE 13 DE FEVEREIRO DE 1991, PROCESSO N.º 41 269, IN BMJ N.º 404, PÁG. 169.
-ACÓRDÃO DE 18 DE ABRIL DE 1991, PROCESSO N.º 41 722, IN BMJ N.º 406, PÁG. 351, E COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA, ANO XVI, TOMO 2, PÁG. 27, E AJ N.º 18.
-ACÓRDÃO DE 24 DE ABRIL DE 1991, PROCESSO N.º 41 671, IN AJ N.º 18.
-ACÓRDÃO DE 19 DE SETEMBRO DE 1991, PROCESSO N.º 42 039, IN BMJ N.º 409, PÁG. 464.
-ACÓRDÃO DE 2 DE OUTUBRO DE 1991, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 42.065, PUBLICADO NA COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA, XVI, TOMO 4, PÁG. 32, E SUMÁRIO INSERTO NO BMJ N.º 410, PÁG. 261.
-ACÓRDÃO DE DIA 2 DE OUTUBRO DE 1991, O PROFERIDO NO PROCESSO N.º 41 785, IN BMJ N.º 410, PÁG. 294.
-ACÓRDÃO DE 22 DE ABRIL DE 1993, PROCESSO N.º 43 204, IN BMJ N.º 426, PÁG. 244.
-ACÓRDÃO DE 20 DE JANEIRO DE 1994, PROCESSO N.º 45 886, BMJ N.º 433, PÁG. 296.
-ACÓRDÃO DE 15 DE JUNHO DE 1994, PROCESSO N.º 45 950, IN BMJ N.º 438, PÁG. 210.
-ACÓRDÃO DE 16 DE NOVEMBRO DE 1994, PROCESSO N.º 46 433, CJSTJ 1994, TOMO 3, PÁG. 250.
-ACÓRDÃO DE 18 DE DEZEMBRO DE 1996, PROCESSO N.º 45 950-3.ª, SASTJ, N.º 6, DEZEMBRO DE 1996, PÁG. 67.
-ACÓRDÃO DE 13 DE FEVEREIRO DE 1997, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 840/96-3.ª, IN CJSTJ 1997, TOMO 1, PÁG. 221, E SASTJ, N.º 8, PÁG. 89.
-ACÓRDÃO DE 19 DE FEVEREIRO DE 1997, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 84/96-3.ª, IN SASTJ, N.º 8, PÁG. 95.
-ACÓRDÃO DE 9 DE ABRIL DE 1997, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 161/96-3.ª, IN BMJ N.º 466, PÁG. 380 E SASTJ, N.º 10, ABRIL 1997, PÁG. 92.
-ACÓRDÃO DE 9 DE OUTUBRO DE 1997, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 410/97, IN CJSTJ 1997, TOMO 3, PÁG. 185 E SUMÁRIOS DE ACÓRDÃOS DO STJ, N.º 14, PÁG. 138.
-ACÓRDÃO DE 16 DE OUTUBRO DE 1997, PROCESSO N.º 365/97-3.ª, IN CJSTJ 1997, TOMO 3, PÁG. 206 E SUMÁRIOS DE ACÓRDÃOS DO STJ, N.º 14, PÁG. 151.
-ACÓRDÃO DE 12 DE FEVEREIRO DE 1998, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 1249/97-3.ª, IN CJSTJ 1998, TOMO 1, PÁG. 206.
-ACÓRDÃO DE 8 DE JULHO DE 1998, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 1417/96-3.ª, IN CJSTJ 1998, TOMO 2, PÁG. 232.
-ACÓRDÃO DE 29 DE OUTUBRO DE 1998, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 525/98, IN BMJ N.º 480, PÁG. 292.
-ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, DE 28 DE MARÇO DE 2006, IN COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA, 2006, TOMO 2, PÁG. 124.

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TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-ACÓRDÃO N.º 864/96, DE 27 DE JUNHO DE 1996, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 439/94, DA 2.ª SECÇÃO, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, II SÉRIE, N.º 260, DE 9 DE NOVEMBRO DE 1996 E BMJ N.º 458, PÁG. 74.
*
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-ACÓRDÃO DE 9 DE ABRIL DE 1997, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 161/96-3.ª, IN BMJ N.º 466, PÁG. 380, E DE 16 DE OUTUBRO DE 1997, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 365/97-3.ª, IN CJSTJ 1997, TOMO 3, PÁG. 206, E DE 12-02-1998, PUBLICADO NA CJSTJ 1998, TOMO 1, PÁG. 206.

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-ACÓRDÃO DE 6 DE JANEIRO DE 1971, PROCESSO N.º 33 304, BMJ N.º 203 (E NÃO 209), PÁG. 119.
-ASSENTO DE 19 DE DEZEMBRO DE 1951, PUBLICADO NO DIÁRIO DO GOVERNO, 1.ª SÉRIE, N.º 3, DE 7 DE JANEIRO DE 1952, E NO BMJ N.º 28, PÁG. 164.
-ACÓRDÃOS DE 11 DE NOVEMBRO DE 1981, PROCESSO N.º 36 353, IN BMJ N.º 311, PÁG. 227, E DE 13 DE FEVEREIRO DE 1986, PROCESSO N.º 38 212, IN BMJ N.º 354, PÁG. 303, COM INVOCAÇÃO EM AMBOS OS CASOS DO CITADO ASSENTO DE 19 DE DEZEMBRO DE 1951.
*
- ACÓRDÃO DE 23-10-2002, PROCESSO N.º 2133/02, DA 3.ª SECÇÃO, PUBLICADO IN CJSTJ, 2002, TOMO 3, PÁG. 217.
-ACÓRDÃO DE 13-10-2004, PROCESSO N.º 3210/04-3.ª, IN CJSTJ 2004, TOMO 3, PÁG. 186.
*
-ACÓRDÃO DE 25 DE JUNHO DE 1986, PROCESSO N.º 38292, IN BMJ N.º 358, PÁG. 267.
-ACÓRDÃOS DE 02-10-2003, PROCESSO N.º 2606/03-5.ª, CJSTJ 2003, TOMO 3, PÁG. 194 E DE 14-07-2007, PROCESSO N.º 1580/07-5.ª, CJSTJ 2007, TOMO 2, PÁG. 220.
-ACÓRDÃO DE 04-01-2006, PROCESSO N.º 3671/03-3.ª, IN CJSTJ 2006, TOMO 1, PÁG. 159.
-VOTO DE VENCIDO NO ACÓRDÃO DE 13 DE JULHO DE 2011, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 1659/07.3GTABF.S1, IN CJSTJ 2011, TOMO 2, PÁG. 210.

Sumário :

 

I - A dedução de acusação pressupõe a presença de “indícios suficientes” ou “prova bastante” de prática de crime e da sua imputação ao acusado.
II - O requerimento de abertura de instrução procurará infirmar a acusação, substanciando uma contestação àquela, devendo contribuir para a determinação do objecto da instrução, delimitando e definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como a final da decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia; o texto do requerimento constitui o horizonte e o limite da correcção possível.

III - Carece de prévia indagação a qualificação jurídica do sujeito activo, só podendo afirmar-se a ilegitimidade do Ministério Público depois de descaracterizado o crime de peculato, por ausência da qualidade de “funcionário” por banda do sujeito activo, questão por seu turno, relacionada com a prévia e imprescindível necessidade de caracterização da pessoa colectiva posta em foco, no contexto presente, a Cruz Vermelha Portuguesa, maxime, a sua natureza jurídica e tipo de tarefas cometidas.

IV - Concluindo-se pela não configuração do tipo de crime específico em causa, implodindo a caracterização emprestada pela acusação, caindo a conduta indiciada na figura do crime de abuso de confiança, faltará o pressuposto de procedibilidade, como decorre do disposto nos artigos 48.º e 49.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 205.º, n.º 3, do Código Penal.

V - Só depois de efectuado o enquadramento jurídico-criminal é possível saber-se, se sim ou não, estamos face a um crime de peculato, caso em que o Ministério Público terá plena legitimidade (para além do dano patrimonial, em causa está o interesse na observância da lisura dos funcionários, que questionado será face a hipótese de violação funcional); caso contrário, falecerá legitimidade por falta de queixa da ofendida Cruz Vermelha Portuguesa.  

VI - Só após a caracterização da natureza do ente colectivo Cruz Vermelha Portuguesa e do conceito de funcionário para efeitos penais, é que pode ter lugar um correcto tratamento subsuntivo; a afirmar-se a indiciação de presença do crime de peculato, a questão da ilegitimidade não se coloca; caso assim não aconteça, inverificado aquele crime, falecerá legitimidade ao Ministério Público. 

VII - O CPP estabelece uma distinção entre meios de prova e meios de obtenção da prova (epígrafes dos Títulos II e III, respectivamente, do Livro III – arts. 128.º e ss. e arts 171.º e ss.). Os meios de prova caracterizam-se pela sua aptidão para serem por si mesmos fontes do convencimento do juiz; são elementos que o juiz pode usar de modo imediato para fundamentar a sua decisão. Os meios de obtenção de prova são instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e recolher meios de prova.

VIII - No processo penal vigora o princípio da legalidade dos meios de prova. A doutrina distingue entre regras de produção da prova e proibições de prova. As primeiras têm por objectivo disciplinar o modo e o processo de obtenção da prova, não determinando, se infringidas, a proibição de valoração do material probatório. As proibições de prova dão lugar a provas nulas – artigo 38.º, n.º 2, da CRP. A lei portuguesa proíbe as provas fundadas na violação da integridade física e moral do agente e as provas que violem ilicitamente a privacidade.

IX - Não podem ser aproveitados, não podem servir em juízo os actos e as diligências probatórias realizadas em sede de inquérito, que representem, directa ou indirectamente, uma violação do segredo profissional do advogado, assim como não podem ser valorados em tribunal meios enganosos de obtenção de prova, como o daquele que instiga ou que determina outrem à prática de um comportamento delituoso.

X - A proibição de valoração de provas ilícitas suscita dificuldades sempre que implique o problema do «efeito à distância» ou do «fruto de prova proibida», mas a ponderação a efectuar caso a caso das provas subsequentes não deve neutralizar a regra constitucional, tornando legítimas «provas proibidas» (cfr. AcTC n.º 407/97).

XI - “As proibições de prova não são uma subespécie de nulidade. São, isso sim, uma espécie de invalidade, tal como o são as nulidades. Esse é o seu verdadeiro referente comum”.

XII - A afirmação da autonomia das proibições de prova em relação às nulidades e a destrinça entre métodos, absoluta e relativamente proibidos, estava já presente no acórdão deste Supremo Tribunal de 8 de Fevereiro de 1995, proferido no processo n.º 47.084, publicado in CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 194.

XIII - A utilização de provas proibidas que tenham servido de fundamento à condenação pode constituir, a partir da revisão do CPP, operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, fundamento do recurso extraordinário de revisão, conforme o disposto no artigo 449.º, n.º 1, alínea e), do CPP.

XIV - O segredo profissional mostra-se inerente, não ao próprio advogado em si, mas à actividade desenvolvida por este profissional da Justiça, o que significa que nem todos os factos transmitidos ou conhecidos pelo advogado estão a coberto do dever de confidencialidade previsto pelo artigo 87.º, n.º 1, do EOA, mas simplesmente aqueles que sejam relativos ao exercício desta actividade profissional.
XV - Só estão abrangidos pelo segredo profissional do advogado os factos que resultem do desempenho desta actividade profissional (ou, de acordo, com os termos da própria lei, “os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções”), o que leva a excluir do âmbito de protecção desta norma tudo aquilo que é comunicado ao advogado, mas que não respeite a actos próprios da advocacia, ou seja, todos os acontecimentos da vida real que não se prendam com este desempenho profissional, mesmo que cheguem ao conhecimento do advogado no seu local de trabalho.
XVI - O segredo profissional do advogado, à semelhança do sigilo previsto para outras categorias profissionais, visa tutelar, em primeira linha, as relações de confiança que se estabelecem com os clientes e com outros colegas de profissão, que não são postas em crise quando não estão em causa factos relacionadas com o estrito exercício da advocacia.
XVII – O EOA, muito em particular, os artigos 61.º a 63.º, em conjugação com a Lei n.º 49/2004, de 24-08, definem o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores e tipifica o crime de procuradoria ilícita. Decorre destes normativos que, grosso modo, as funções do advogado respeitam a toda a actividade de representação do mandante, quer em tribunal (mandato forense), quer em negociações extrajudiciais com vista à constituição, à alteração ou à extinção de relações jurídicas, mas, de igual modo, podem traduzir-se na actividade de mera consulta jurídica, ou seja, de aconselhamento jurídico a solicitação de terceiro.
XVIII - A intervenção em sede de inquérito do advogado R – o qual denunciou a um Inspector da Polícia Judiciária os factos que deram origem ao inquérito, de que teve conhecimento em virtude de o escritório ser, também seu, à data da prática dos factos, e que relatou conversas que ouviu no escritório e que fotocopiou documentos existentes no mesmo escritório em nada belisca o disposto no artigo 87.º, n.ºs 1, 2, 3 e 7, do EOA, na medida em que, os factos, os documentos e as diligências em referência em nada se relacionam com assuntos profissionais do Advogado. Não está em causa uma relação advogado-cliente, uma actividade no contexto de uma prestação de serviços, de um mandato. Não estão em causa relatos de factos revelados por cliente que tenham sido transmitidos por cliente/consulente. Não estão em causa informações sigilosas recolhidas/transmitidas no pressuposto da confidencialidade. Sobre o que debitou, o Advogado não era um “confidente necessário”.
XIX - Estes factos em nada se relacionam com o exercício da advocacia; as imputadas condutas não se mostram minimamente atinentes ao exercício pelo Advogado das suas funções profissionais, não traduzem a prática de qualquer acto próprio do advogado, pelo que não se pode sustentar, de modo algum, a violação do segredo profissional do advogado R. Para além do local (escritório de Advogados) e dos intervenientes nos factos em apreciação (Advogados), mais nenhum outro elemento se relaciona directa ou indirectamente com o exercício de funções profissionais do Advogado, muito em particular com o exercício de funções de representação do mandante (em juízo ou em negociações) ou de aconselhamento jurídico. Nem tão pouco existe qualquer relação de confiança que se prenda com o exercício de funções de representação forense ou negocial.
XX - Todos os factos atinentes a um acordo para a execução de actos tipicamente integrantes do munus da magistratura judicial (muito em particular, o estudo, a preparação, a pesquisa e a elaboração de acórdãos ou de projectos de acórdãos, no âmbito de processos judiciais, que se encontram pendentes para apreciação, no caso, em matéria cível, em fase de recurso, num dos tribunais da Relação), ainda que praticados por advogado(s) e no seu escritório, não estão cobertos pelo segredo profissional consignado pelo disposto no artigo 87.º, n.ºs 1, 2, 3 e 7, do EOA.
XXI - Não compete à advocacia a execução das tarefas que se mostram descritas na acusação, muito em particular, a preparação e a elaboração de projectos de acórdãos a proferir por um tribunal de recurso, o que inculca o exercício de alguma proximidade que não deveria existir, colocando em causa a incontornável e indefectível independência do juiz. Concluiu-se que a testemunha de acusação - Advogado R - não incorreu em violação do segredo profissional de advogado por ter colaborado com a investigação durante a fase processual de inquérito, pelo que os actos praticados por este e as declarações prestadas pelo Advogado R, bem como, a jusante, noutro bem diferente contexto, as declarações prestadas pela Advogada J, podem fazer prova em juízo.
XXII - A figura do agente infiltrado não se confunde com a do agente provocador, uma e outra figuras que não constituem modos sinónimos de autoria mediata/comparticipação na prática de um comportamento delituoso por parte de sujeito (órgão de polícia criminal ou terceiro, sob supervisão daquele) que se predisponha a colaborar com a investigação. A intervenção do agente provocador em processo penal é rejeitada, de modo unânime, pela doutrina e pela jurisprudência nacionais, por consubstanciar um meio enganoso de obtenção de prova (e, como tal, proibido, à luz do disposto na al. a) do n.º 2 do artigo 126.º do CPP, na modalidade de “perturbação da liberdade de vontade e de decisão através da utilização de meios enganosos”), ao passo que as acções encobertas são legalmente admissíveis, uma vez observadas as condições estabelecidas pela Lei 101/2001, de 25 de Agosto, que regula o regime jurídico das acções encobertas para fins de prevenção e de investigação criminal.
XXIII - O Supremo Tribunal Justiça tem procurado distinguir as situações de provocação e o seu relevo em matéria de proibição de prova e precisar os traços distintivos entre o agente provocador e o agente infiltrado, praticamente sempre em casos de tráfico de estupefacientes. Mais raramente, em casos de lenocínio, tentativa de passagem de moeda falsa e corrupção passiva.
XXIV - A jurisprudência do STJ tem vindo a entender, de modo pacífico, que o recurso à figura do agente(s) provocador(es) consubstancia um método proibido de obtenção de prova, na medida em que esta prova é obtida mediante meios enganosos, ou seja, em que os suspeitos (ou arguidos) da investigação criminal, de modo astucioso, são chamados a executar e a participar em actos ilícitos, resultantes da própria iniciativa do agente provocador, que se apresenta com uma identidade falsa ou fictícia e/ou que não deixa conhecer essa sua qualidade, com a finalidade de os incriminar e de recolher provas que atestem a sua culpabilidade em juízo.
XXV - A testemunha de acusação – Advogado R - trabalhava, desde há vários anos, no escritório da advogada arguida, o que fez, dando a conhecer a sua verdadeira identidade, até que a dado momento, de forma ocasional, tomou conhecimento dos factos, que mais tarde decidiu transmitir às autoridades de investigação criminal. Esta testemunha não se insinuou nem se inseriu nesse escritório de advocacia, com identidade fictícia e com actuação concertada com as autoridades policiais ou judiciárias, por forma a ganhar a confiança das duas arguidas e com o intuito de proceder à recolha de informações, de indícios ou de elementos de prova, por existirem suspeitas de que nesse local se desenvolvia a prática de comportamentos delituosos, muito menos ainda que tenha tido um papel activo, que tenha sido ele a incentivar a prática dos crimes de peculato imputados em co-autoria às duas arguidas.
XXVI – O Advogado R não agiu como agente provocador, pois o processo de elaboração de projectos de acórdãos já estava em marcha, em nada tendo contribuído para a sua génese ou mesmo continuação, pelo que, não existem fundamentos para que o STJ decrete que o MP fez uso de “prova proibida” ou que se verifica uma “nulidade da prova oferecida na acusação”.
XXVII – Analisada toda a prova documental, conclui-se apresentarem-se como cruciais - no plano da averiguação da existência dos indícios a nível fáctico - os documentos apreendidos nas buscas, como os projectos de acórdãos, as folhas manuscritas, os trabalhos preparatórios, os e-mails, os dados extraídos de computadores. A prova testemunhal, adrede arrolada pela defesa, não tem a virtualidade de destruir, contrariar, infirmar, abalar, minimizar ou sequer beliscar a força probatória dos e-mails, que traduzem a revelação das comunicações que foram sendo estabelecidas entre a arguida Advogada e a arguida Juíza e a advogada J, as intervenientes neste exercício de que resultou a formulação de projectos de acórdãos para a arguida Juíza e o pagamento destes serviços pela Delegação M da Cruz Vermelha Portuguesa.

XXVIII - Os E-mails constantes dos autos, atendendo a que constituem veículo de conteúdo informacional, tratando-se de uma comunicação à distância levada a cabo por meios informáticos, revestem-se de primordial importância por exporem o que, em determinado contexto temporal, rigorosamente marcado, incluindo dia de semana, hora, minuto, segundo, umas pessoas transmitiram às outras.

 XXIX - O contrato de avença jurídica pode ser definido, em termos básicos, como um contrato de prestação de sucessivos serviços jurídicos (cfr. artigo 1154.º do Código Civil), mediante uma remuneração mensal certa.  

 XXX - Este tipo de contrato é usual, sobretudo, entre empresas e advogados e visa, no fundo, permitir que estas entidades tenham um acompanhamento jurídico contínuo, dentro de várias áreas do Direito e tendo em conta as necessidades específicas de cada entidade.

XXXI - A avença jurídica é uma das modalidades mais usuais na relação entre os advogados e empresas/empresários, uma vez que tem a virtualidade de facilitar o desenvolvimento da relação de confiança e trabalho entre ambos e permitir uma poupança para ambas as partes (englobando nos serviços a prestar, consulta jurídica; celebração de contratos (nacionais e internacionais); cobranças; pré-contencioso e contencioso; participação em reuniões).
XXXII - No crime de peculato, a definição, ao nível do destinatário da previsão normativa, o que é dizer, da conformação do sujeito activo – o funcionário é/o funcionário será – o que a lei ordinária, a cada momento histórico, designa(rá) como tal, pois estamos perante uma figura em permanente mutação, mas por outro lado, com a constante característica, não de restrição, mas de adição, sempre no sentido do alargamento do campo da destinação da norma, do recrutamento de novos actores, ou seja, de novos autores, de novos sujeitos activos, como se alcança das reformulações punitivas aditivas de 2001 (Lei n.º 108/2001, de 28-11), de 2007 (Lei n.º 59/2007, de 04-09) e de 2010 (Lei n.º 32/2010, de 02-09), no que toca ao artigo 386.º do CP.
XXXIII - No crime de peculato o específico conceito de sujeito activo começou por ser o “empregado público”, com definição desde logo rigorosa, que depois evoluiu para o conceito de “funcionário”, este com estrutura cada vez mais alargada, abrangente, expansiva, e sobretudo, compreensiva. Desde cedo a jurisprudência assumiu a necessidade de afirmar uma maior amplitude da noção de funcionário, abrangendo uma fórmula mais lata.
XXXIV - O artigo  386.º do Código Penal (originário de 1982, revisto em 1995) foi alterado por três vezes, sempre numa lógica de acrescentamento, alargamento, de adição, extensão das noções precedentes. O intróito do n.º 1 e alíneas a), b) e d) e o n.º 4 actual do artigo 386.º do CP correspondem ao artigo 437.º do CP de 1982, com ligeiras alterações introduzidas em 1995. O n.º 2 do art. 386.º foi introduzido em 1995, tendo por fonte o DL 371/83, de 6 de Outubro. O n.º 3 e alíneas a), b) e c) foram alteradas em 2001. A alínea d) do n.º 3 foi aditada em 2007. E a al. c) do n.º 1 foi aditada em 2010.
XXXV - A Cruz Vermelha Portuguesa é uma associação de utilidade pública, que prossegue fins altruístas, sendo o seu Presidente nomeado pelo Governo, no caso por Despacho da Presidência do Conselho de Ministros e Ministério da Defesa Nacional.
XXXVI - A Cruz Vermelha Portuguesa é uma instituição integrada na figura das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa “especiais”, prosseguindo fins de interesse público, tarefas públicas, missão de interesse público, estando submetida a um regime fiscalizador de tutela, de ingerência pública, governativa.
XXXVII - Os factos cuja prática pelas arguidas vem fortemente indiciada preenchem os elementos essencialmente constitutivos do tipo legal de crime de peculato, p. p. pelo artigo 375.º do Código Penal, pois que para pagamento de resumos e projectos de acórdãos destinados a processos do Tribunal da Relação distribuídos à arguida Juíza - concomitantemente Juíza Desembargadora naquele Tribunal e Presidente da Delegação P e M da Cruz Vermelha Portuguesa - foi apropriada a quantia de X, pertencente à Delegação M da Cruz Vermelha Portuguesa, tendo sido entregue a quantia de Y à arguida Advogada, concomitantemente Vice-presidente da Delegação de M da Cruz Vermelha Portuguesa, e a quantia de YY à Advogada J.
XXXVIII - A caracterização da Cruz Vermelha Portuguesa como pessoa colectiva de direito privado de utilidade pública administrativa especial, o exercício de funções públicas e a tutela governativa conduzem à configuração da arguida Advogada e arguida Juíza como preenchendo o conceito de funcionário para efeitos da lei penal, nos termos do art. 386.º, n.º 1, al. d), do CP.
XXXIX - No que tange à arguida Advogada, a quem era imputada a prática de dois crimes de peculato, sendo o segundo por envolvimento directo na contratação da Advogada J para elaboração de projectos de acórdãos distribuídos à arguida Juíza, por verificada forte contra indiciação no que respeita à sua intervenção no que toca a tal contratação, ser-lhe-á imputado a prática de um só crime de peculato.
XL - A acusação imputa dois crimes de peculato à arguida Juíza por conduta relativa ao pagamento devido pela intervenção da arguida Advogada, ao abrigo de uma invocada avença jurídica e a outro pagamento ao abrigo de alegada assessoria jurídica por parte da Advogada J, pagamentos esses provenientes dos cofres da Delegação M da Cruz Vermelha Portuguesa.
XLI - A matéria de concurso de crimes não é tratada no artigo 30.º do Código Penal de forma abrangente e esgotante, na medida em que as soluções indicadas no preceito se limitam a estabelecer um critério mínimo de distinção entre unidade e pluralidade de crimes, tratando-se de um ponto de partida estabelecido pelo legislador a partir do qual à doutrina e à jurisprudência caberá em última análise, encontrar soluções adequadas, tendo em vista a multiplicidade de casos e situações que se prefiguram e que ocorrem.
XLII - A conduta da arguida Juíza dada por fortemente indiciada tem de ser apreciada em função dos bens jurídicos tutelados pela norma incriminadora e na consideração do escopo último pretendido pela arguida com a sua actuação. Estamos face a um crime pluriofensivo, havendo que atender ao bem jurídico protegido na norma, a saber, a probidade e fidelidade do funcionário e o dano no plano patrimonial.
XLIII - Facilmente se intui que se tivesse a arguida Advogada prosseguido o seu desempenho para além da data x a arguida Juíza não teria tido necessidade de contactar a Advogada J; o objectivo era apenas encontrar alguém que pudesse elaborar resumos e projectos de acórdãos, fosse A ou B, reunidos que fossem, é evidente, determinados pressupostos.
XLIV - Há uma renovação do propósito, mas a motivação é a mesma; no fundo quando se verifica a intervenção da Advogada J, já o bem jurídico, componente pessoal, estava violado; o que acresce será um grau de lesividade mais intenso, que poderá ser avaliado a nível de medida da pena, mas não como integrante de um outro crime autónomo.
XLV - Por outro lado, o acréscimo no plano patrimonial é evidente, pois que há uma outra quantia a somar, mas no fundo será uma questão de grau, alcançando-se um dano de maior amplitude na vertente da lesão patrimonial, a avaliar nos mesmos parâmetros. Considera-se assim preenchido um único crime de peculato.

Decisão Texto Integral:

 

     O Ministério Público neste Supremo Tribunal de Justiça, representado pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto Coordenador, deduziu a acusação de fls. 840 a 857, contra as arguidas:

    AA, natural de ---, nascida em ---, ---, Juíza --- no Tribunal ---, residente na ---; e

    BB, natural de ---, ---, nascida em ---, ---, Advogada, residente na ---.

     Imputa o Magistrado do Ministério Público, a ambas as arguidas, a prática, em co-autoria, de dois crimes de peculato, p. e p. pelo artigo 375.º, n.º 1, com referência ao artigo 386.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal.

   (A referência à alínea c) deve-se, certamente, a lapso, pois trata-se da alínea d), a partir da alteração introduzida pela Lei n.º 32/2010, de 2 de Setembro, e, aliás, referida correctamente no início do despacho de acusação, a fls. 838).

                                                               ***

     A arguida BB requereu, a fls. 881, a prorrogação do prazo previsto no artigo 287.º, n.º 1, com fundamento no artigo 107.º, n.º 6, como aquele do CPP, fundamentando-se na especial complexidade do processo.

     Por despacho do Exmo. Conselheiro então instrutor, constante de fls. 891, foi indeferida a requerida prorrogação do prazo.

 

                                                               ***

    

     A arguida AA veio requerer a abertura de instrução, conforme requerimento de fls. 954 a 968, de novo, de fls. 975 a 989, e em original, de fls. 993 a 1007, com os fundamentos seguintes (em transcrição integral, incluídos os realces):

     A.   Questão Prévia - Qualificação; Ilegitimidade do Ministério Público

                                                                1º

A qualificação pelo Ministério Público, como de peculato, do crime por que acusa a Requerente decorre de insustentável interpretação da alínea d) do número 1 do artigo 386º do Código Penal, alargando a ela a qualidade de funcionário.

                                                                2°

Porém, tal interpretação só faria sentido caso as funções da Cruz Vermelha Portuguesa, in casu, pudessem ser entendidas como integrando o exercício de função pública, administrativa ou jurisdicional, o que não acontece, nem sequer vem alegado.

                                                                3º

Mas, só nessa qualificação radicaria também a legitimidade do Ministério Público para a ação penal, tendo em conta a inexistência de queixa da Cruz Vermelha Portuguesa (cf. artigos 48.º, 49.º, número 1, do Código de Processo Penal, e 205.º, número 3, do Código Penal) - sem que se admita estarem, em qualquer caso, presentes os elementos do tipo, semelhante ao do peculato, do abuso de confiança.

Assim, por manifesta ilegitimidade do Ministério Público para a ação penal, deve ser declarada a nulidade do presente processo e os autos arquivados.

                                                    B. Prova proibida

                                                                4º

Este processo, no seu desencadeamento, no seu desenvolvimento, na acusação que encerrou o inquérito, assenta na iniciativa, no interesse e na ação da “testemunha” o advogado Dr. CC.

                                                                5º

Com efeito, como os autos, verdadeiramente ad nauseam, documentam, o Dr. CC é advogado, tendo exercido a advocacia num escritório de advogados onde também a exercia a co-arguida Senhora Dra. BB e o também advogado Senhor Dr. DD, companheiro da Requerente:

                                                                6º

O Dr. CC:

- Denunciou a um amigo, Inspector da Polícia Judiciária, os factos, verdadeiros ou falsos, subsistentes ou insubsistentes, que deram origem a este processo, de que teve conhecimento em virtude de o dito escritório ser, na altura, dele também, e, por força da confiança que os advogados normalmente depositam em Colegas, sobretudo os que trabalham no mesmo escritório, de poder circular livremente nele, de poder aceder livremente, a qualquer hora, a documentos e registos informáticos nele existentes, pertencentes a outros Colegas dele;

- Relatou conversas que escutou nas mesmas circunstâncias, de lugar, e nesse contexto;

- Fotografou e fotocopiou documentos existentes no mesmo escritório, nas mesmas circunstâncias e no mesmo contexto relacional; 

- Desenhou, aliás sem especial valor artístico, croquis do escritório, indicando os lugares de trabalho de cada um dos advogados;

- Aceitou ser contratado, não sabe a Requerente mediante que contrapartida, propina ou gorjeta, para agir como agente infiltrado e provocador, sob a direção da Polícia Judiciária, no interior de um escritório dele e de outros advogados com quem se encontrava associado e a quem deveria atrair - e trair - a ciladas mais ou menos astuciosas;

- E, ao longo do inquérito, foi cumprindo a sua prestação contratual, denunciando, revelando, traindo.

                                                                7º

Ora, não obstante não existir formalmente entre o Dr. CC, a Dra. BB e o Dr. DD, um contrato de sociedade de advogados, entre eles vigorava um acordo de partilha igualitária, de clientes, de trabalho, de honorários e despesas, embora seja igualmente certo que o entusiasmo do Dr. CC na partilha dos honorários não fosse acompanhado de entusiasmo semelhante na partilha de clientes (que ele não conseguia grangear) e de trabalho (vistas as limitações dele) - foi, aliás, em torno da partilha dos honorários que se gerou entre os três, o Dr. CC, por um lado, e os Drs. DD e BB, algo enfadados com a improdutividade dele, um clima de desacordo que o Dr. CC resolveu, abraçando a carreira de polícia, aliás e afinal, a sua verdadeira vocação.

                                                                8º

Mas, assim sendo, forçoso será concluir que os clientes de cada um dos três eram clientes de todos eles, cujos interesses todos deveriam solidariamente prosseguir e defender.

                                                                9º

O que vale por dizer que, sendo - na configuração da acusação - a Requerente cliente da Dra. BB, sê-lo-ia, igualmente, do Dr. CC.

                                                                10º

Mas valha, ou não, essa configuração, é evidente e óbvio que o Dr. CC violou grosseiramente o segredo profissional, tal como exigentemente o recorta o artigo 87.º, números 1, 2, 3 e 7 do Estatuto da Ordem dos Advogados,

                                                                11º

Com a necessária consequência de não poderem fazer prova em juízo os factos diretamente ou indiretamente trazidos ao inquérito pelo Dr. CC - as conversas relatadas, os depoimentos prestados, os documentos copiados ou surripiados, as fotografias, os croquis, os registos informáticos sacados (artigo 87.º, número 5, do mesmo Estatuto).

                                                                12º

É, aliás, redundante a referência a normas de direito positivo, quando, para fundamento de igual conclusão, bastaria o recurso a normas superiores - as que se encontram inscritas na consciência das pessoas civilizadas e constituem o fundamento da ordem jurídica, considerada como expressão máxima da moral social, da civilidade e da decência – “Em vão me atormento para destruir o remorso que sinto, permitindo com as sacrossantas leis, com o monumento da pública confiança e com a base da moral humana, a traição e a dissimulação”, dizia em 1764, a propósito da traição e dos delatores, o Marquês de Beccaria, no seu fundamental “Dos Delitos e das Penas”.

                                                                13º

Em suma, é perfeitamente inacreditável o comportamento indecoroso do Dr. CC; mas, mais inacreditável é que ninguém, nesse Alto e Venerando Supremo Tribunal tenha atentado nele, com olhos justos, que ninguém tenha parado para pensar que um processo assim iniciado e prosseguido assente na colaboração de um advogado travestido em polícia, é uma aberração indecente, ilegal e antijurídica que nada permite seja admitida e mantida em uns autos, para mais correndo termos no Supremo Tribunal de Justiça.

Pelas razões evocadas, do direito, e também, por razões elementares de decoro e de higiene processual, devem, então, ser desconsiderados os factos dos autos trazidos pelo Dr. CC, sendo desentranhados deles todos os documentos que exprimam esses factos, em que ele tenha tido intervenção ou que se reportem a intervenção dele, que, porém, devem neles ficar, por linha, para, preservados, servirem para instruir os procedimentos que convenham ao extravagante comportamento deste Senhor advogado (por assim dizer).

                                                                14º

E o mesmo haverá de requerer - embora sem formular quanto a ela juízo semelhantemente nauseado - da prova constituída por declaração da Senhora Dra. EE:

                                                                15º

É que, a não ser que se mostre comprovada a dispensa dela, pela Ordem dos Advogados, do segredo profissional (o que a Requerente desconhece tenha acontecido ou não), pelos fundamentos indicados, designadamente os que decorrem da configuração que a acusação empresta às relações entre ela e a Requerente, as declarações dela não poderão valer como prova em juízo,

Razão por que deve, igualmente, o auto das suas declarações ser desentranhado e desconsiderado o seu conteúdo, o que sempre terá a utilidade de afastar dos autos uma colaboração probatória obtida como contrapartida da interrupção do procedimento criminal iniciado contra ela, desde logo, abstendo-se de a acusa (sic) o Exmo. Procurador-Geral Adjunto que conduziu o inquérito.

C. A má conduta profissional imputada à Requerente. Os projetos de acórdãos elaborados por advogados e advogados estagiários

                                                                16º

Ocupa-se longamente a acusação em alinhar factos, aliás incontroversos, que colocam a Requerente sob a luz desfavorável do seu passado disciplinar, decorrente de longas pendências de processos a seu cargo.

                                                                17º

Meramente para equilibrar os pratos da balança, convém ter em conta que as classificações da Requerente oscilaram sempre entre o Bom, o Bom com Distinção e o Muito Bom e, o que para aqui não parece despiciendo, nunca teve algum dos Acórdãos por ela relatados censurado pelo Supremo Tribunal de Justiça.

                                                                18º

O que induz extrema perplexidade e sentido de patente inverosimilhança quanto à imputação que lhe é dirigida, de “encomendar” a advogados e a advogados estagiários “projetos de acórdãos”, que ela depois subscreveria, fazendo-se passar por autora desses acórdãos, como se os Venerandos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça pudessem confundir “projetos de acórdãos” elaborados por advogados de limitada experiência ou por advogados estagiários com os acórdãos que confirmaram,

                                                                19º

Sempre aqui se relevando que um acórdão (como o próprio nome indica) não é um acto de um solitário Magistrado, antes o produto do trabalho jurisdicional de, pelo menos, três Juízes de Tribunais Superiores, que discutem entre eles a causa e tiram, depois, a decisão.

                                                                20º

E a história, mal amanhada, da acusação, de serem os tais projetos os acórdãos que a Requerente propunha à discussão dos seus pares não tem o mínimo de sustentação: porque os projetos dela eram analisados e discutidos colegialmente e votados (às vezes com votos de vencido), como é de lei;

                                                                21º

Porque, também, a Requerente tem um estilo próprio de elaboração dos acórdãos, que é inconfundível e que os Senhores Desembargadores que, com ela, habitualmente conferenciavam conhecem perfeitamente e que não confundiriam com projetos de estagiários;

                                                                22º

Porque, finalmente, esses acórdãos acabaram, todos eles, por ser confirmados pelo Supremo Tribunal de Justiça, povoado por Juízes Conselheiros, experientes e sábios - por isso, não por alcunha, Venerandos - que não confirmam “acórdãos” elaborados por advogados estagiários.

                                                                23º

Aliás, se o que se disse pudesse merecer dúvida, bastaria cotejar os ditos projetos com os acórdãos “projetados”, uns outros nos autos.

                                                                24º

A imputação em causa deve ser havida, então, por aquilo que é - uma óbvia malsinação e uma evidente falsidade.

D. O Encargo das Dras. BB e EE

                                                                25º

Sendo verdade que a Requerente solicitou à Dra. BB e à Dra. EE - nunca ao Dr. FF, a quem as peças processuais que lhe facultou serviriam apenas para a aprendizagem dele - que a auxiliassem no seu desembargo, meramente na busca de informação doutrinária e jurisprudencial, que ela previamente circunscrevia e delimitava, identificando as questões a estudar e indicando as fontes de que deviam servir-se.

                                                                26º

Mas não lhes “encomendou” projetos de acórdãos nem, muito menos, ajustou com elas qualquer remuneração por essa atividade, que lhe foi prestada por gentileza desinteressada delas, vista a amizade que as unia e que as une.

                                                                27º

Esse favor prestaram-lho elas sem qualquer contrapartida material e sem prejuízo do serviço jurídico que elas prestaram à Cruz Vermelha Portuguesa,

                                                                28º

Que, no caso da Dra. BB, como consultora e como advogada, se revelou especialmente valioso - em bem mais de uma centena de milhares de euros - e decisivo até para a resolução de diversos contenciosos laborais, indispensável à reestruturação dos serviços da Cruz Vermelha Portuguesa no contexto da crise geral do País; no acompanhamento em Tribunal de diversos processos de violência doméstica e de género.

                                                                29º

E, tendo esses serviços profissionais sido efetivamente prestados, em centenas de processos e procedimentos, com deslocações de centenas de Kilómetros, correspondendo eles ao exercício normal da profissão dela, é evidente deverem eles ser remunerados, como o foram, em montante total ridiculamente inferior ao que resultaria da simples aplicação das regras que regulam os honorários dos advogados (complexidade, volume de trabalho, estilo do foro e resultado), só possível por a Dra. BB entender dever essa atenção à instituição que também, gratuitamente, dirigia, o que levou a que, mesmo antes de auferir qualquer remuneração por eles, já prestasse serviços forenses à Cruz Vermelha Portuguesa, por vezes muito complexos e sempre valiosos.

                                                                30º

E, quanto à Dra. EE, foi igualmente proficiente o serviço jurídico que prestou à Cruz Vermelha, de consulta e de aconselhamento da Presidente e na reelaboração dos Regulamentos Internos de Creche, de Creche Familiar e de Ensino Pré-Escolar, não sendo de duvidar que a remuneração que auferiu só por defeito não corresponde ao que foi prestado.

                                                     E. Uma Nota Final

                                                                31º

Para dar conta de que esta montanha processual, dirigida, a partir do ressábio de uma criatura evidentemente pouco aconselhável, à desgraça pessoal e profissional de uma Juiz ---, comportando buscas, escutas, espionagem por agentes á paisana, a escutarem (mal) em pastelarias (com a óbvia insuficiência de não terem podido identificar o consumo de cariocas e de torradas), esta investigação monumental, mobilizando Juízes Conselheiros, Procuradores-Gerais Adjuntos, Polícias sortidos e muito, muito, dinheiro, acaba por desembocar nesta acusação insensata, de peculato de 7.500 euros. Só faltam os iogurtes fora de prazo e os cabazes de natal para a festa ser completa.

Termos em que, porque o Ministério Público não tem legitimidade para este procedimento, porque inexiste prova válida que a sustente, deve a acusação ser rejeitada, lavrando-se despacho de não pronúncia.

 

Prova:

A dos autos (depois de saneados, nos termos pedidos)

Testemunhas:

1 - Dr. GG, Presidente da CVP, com domicílio no ..., que deporá à matéria dos artigos 28.º, 29.º e 30.º deste requerimento;

2 - Doutor HH, Juiz ... no Tribunal ..., que deporá à matéria dos artigos 19.º, 20.º, 21.º e 22.º deste requerimento;

3 - Doutor II, Juiz ... no Tribunal ..., que deporá à matéria dos artigos 19.º, 20.º, 21.º e 22.º deste requerimento;

4 - Dra. JJ, ---, com domicílio profissional na ---, que deporá à matéria dos artigos 28.º, 29.º e 30.º deste requerimento;

5 - Dra. LL, ---, com domicílio profissional na Rua ---, que deporá à matéria dos artigos 28.º, 29.º e 30.º deste requerimento;

6 - Dra. MM, da ---, com domicílio profissional na ---, que deporá à matéria dos artigos 28º, 29º e 30º deste requerimento;

7 - Dra. NN, ----, com domicílio profissional no mesmo local, que deporá à matéria do artigo 30.º deste requerimento

8 - Dr. DD, ---, com domicílio profissional na ---, que deporá à matéria dos artigos 5.º a 9.º deste requerimento;

9 - Dr. OO, ---, com domicilio profissional na ---, que deporá à matéria dos artigos 28.º e 29.º deste requerimento;

10 - Dr. PP, ---, com domicilio profissional na ---, que deporá à matéria dos artigos 28.º e 29.º deste requerimento;

11 - Dr. CC, identificado a fls. 7 dos autos, que deporá à matéria dos artigos 5.º a 9.º deste requerimento.

 

   Requer, ainda, seja ouvida a toda a matéria da acusação e deste requerimento.

   Requer seja inquirida a Dra. BB para, querendo, declarar à matéria dos artigos 5.º a 9.º deste requerimento.

   Requer sejam examinados os “projetos de acórdãos” que se encontram nos autos e comparados com os acórdãos, também nos autos, a que eles se referem.

                                                                ***

      Por seu turno, a arguida BB requereu a abertura de instrução, conforme fls. 900 a 917, de novo, de fls. 1013 a 1030 e, em original, de fls. 1065 a 1082, nos termos e pelos fundamentos seguintes (em transcrição integral, incluindo os realces):

I - Erro na qualificação jurídica e consequente falta de legitimidade do M.P

                                                                1º

Considera o MP a folhas 828, que a arguida, por ser vice-presidente na Cruz Vermelha de ... é, em consequência, funcionária para os efeitos penais previstos no artigo 386° n° 1 d) do C P.

                                                                2º

Salvo o devido respeito e como iremos demonstrar, a arguida não tem essa qualidade de funcionária.

                                                                3º

Segundo o artigo 3º n° 2 do Decreto-lei 281/2007 de 7 de Agosto (Estatutos da Cruz Vermelha Portuguesa), a CVP é uma pessoa coletiva de direito privado e de utilidade pública administrativa, sem fins lucrativos com plena capacidade jurídica para a prossecução dos seus fins.

                                                                4º

Ora o legislador no seu conceito de funcionário para efeitos de lei penal, pretendeu apenas, incluir os organismos e institutos de utilidade pública que sejam fiscalizados, financiados, orientados, ou de qualquer outra forma dependam, de tutela pública, o que não é o caso da CVP, como resulta imediatamente do artigo 4º n° 1 do citado decreto lei 281/2007 de 7 de Agosto, onde se prevê o inverso; ou seja que a CVP desenvolve a sua atividade com autonomia face ao Estado e em obediência aos princípios fundamentais e recomendações do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, estabelecidos em Conferência Internacional.

                                                                5º

E tanto que assim é que no n° 2 desse artigo 4º estão estabelecidos os princípios fundamentais que regem a atividade da Cruz Vermelha, princípios aplicáveis em Portugal e no mundo inteiro, e dos quais resulta inequívoco que os colaboradores da Cruz Vermelha, sejam eles voluntários, com contratos de trabalho ou de prestação de serviços, jamais podem confundir-se com funcionários, nos termos do artigo 386° 1 d) do C. P, pois que tal constituiria, por si só uma violação da natureza destes princípios.

                                                                                                                          A SABER,

                                                                6º

a. Humanidade - a Cruz Vermelha nasce da preocupação de prestar auxílio a todos os feridos, dentro e fora dos campos de batalha; de prevenir e aliviar, em todas as circunstâncias, o sofrimento humano; de proteger a vida e a saúde; de promover o respeito pela pessoa humana; de favorecer a compreensão, a cooperação e a paz duradoura entre os povos;

b. Imparcialidade - a Cruz Vermelha não distingue nacionalidades, raças, condições sociais, credos religiosos ou políticos, empenhando-se exclusivamente em socorrer todos os indivíduos na medida dos seus sofrimentos e da urgência das suas necessidades, sem qualquer espécie de discriminação;

c. Neutralidade - a Cruz Vermelha, a fim de conservar a confiança de todos, abstém-se de tomar parte em hostilidades ou em controvérsias de ordem política, racial, filosófica ou religiosa;

d. Independência - a Cruz Vermelha é independente e, no exercício das suas actividades como auxiliar dos poderes públicos, conserva autonomia que lhe permite agir sempre segundo os princípios do Movimento Internacional da Cruz Vermelha;

e. Voluntariado - a Cruz Vermelha é uma instituição de socorro voluntária e desinteressada;

f. Unidade - a Cruz Vermelha é só uma. Em cada país só pode existir uma sociedade que está aberta a todos e estende a sua acção a todo o território nacional;

g. Universalidade - a Cruz Vermelha é uma instituição universal, no seio da qual todas as sociedades nacionais têm direitos iguais e o dever de entreajuda.

                                                                7º

Coerentemente com estes princípios, a CVP exerce a sua atividade, sempre autonomamente, tal como consta do n° 2 do art° 5º dos Estatutos:

a. Fomenta e organiza a colaboração voluntária e desinteressada das pessoas singulares e coletivas, públicas e privadas, nas actividades da instituição, ao serviço do bem comum e em especial em situações de acidente grave ou catástrofe;

b. Colabora com outras entidades e organismos que actuem nas áreas de proteção e socorro e da assistência humanitária e social, sendo também, neste âmbito, auxiliar ou complementar dos poderes públicos, sem prejuízo da sua independência e autonomia e assegurando o respeito pelos símbolos, distintivos e emblemas da Cruz, Crescente e Cristal Vermelhos, nos termos das Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais;

c. Colabora com as autoridades de proteção civil em articulação com o sistema integrado de operações de proteção e socorro, de acordo com os princípios e as normas a que se encontra submetida e sem prejuízo da sua independência e autonomia;

d. Colabora com os serviços de saúde militar, no âmbito da protecção aos militares feridos, doentes, náufragos, prisioneiros de guerra, às vítimas civis dos conflitos nacionais e internacionais e noutras situações decorrentes de estados de exceção, no quadro da ação do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e de acordo com as disposições das Convenções de Genebra e seus protocolos adicionais;

e. Colabora com o Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho na promoção dos direitos humanos, na difusão e ensino do direito internacional humanitário, bem como na difusão e aplicação das suas orientações.

                                                                8º

Com os princípios e missão acima expostos já bem se vê que é totalmente contrária à natureza da instituição o conceito de funcionário imputado na acusação, como aliás foi entendido por sua Exa. Sr. Juiz Conselheiro Fisher Sá Nogueira no seu Acórdão de 12/02/1998, proferido no Processo n° 97P1249 do STJ, e publicado na Base de dados da DGSI cujo sumário aqui se transcreve:

“I - O chefe de contabilidade da Casa de Cultura da Juventude de ..., sita nesta cidade, não tem a categoria de funcionário público, porque o facto daquela Casa de Cultura se encontrar qualificada como organismo de utilidade pública directamente dependente do Instituto de Juventude, e de este ser um ente público com autonomia administrativa e dependente do Governo, não tem potencialidade para se poder concluir pela atribuição da qualidade de funcionário, para efeitos penais.

II - Os funcionários que o DL 371/83, de 6 de Outubro, equiparou, ou pretendeu equiparar, a funcionários públicos foram só dos Institutos Públicos, mas não os de outros organismos de utilidade pública sobre os quais os referidos Institutos tenham poderes de fiscalização ou de orientação.”

                                                                9º

Mais recentemente, igual entendimento teve o Tribunal da Relação de Guimarães no seu Acórdão de 5/08/2010 proferido no processo n° 1015/07.3TABRGG1, onde se considera do seguinte modo quanto ao conceito de funcionário para efeito da lei penal: "(...) II - Conceito de funcionário para efeito de lei penal:

- Sobre o conceito de funcionário (art. 386.° do C. P.), não podem nele ser integradas as pessoas colectivas de mera utilidade pública e as denominadas instituições particulares de solidariedade social. De facto, pressuposto essencial para a afirmação do exercício de tarefas administrativas era a base legal da sua atribuição. Nestes casos (de mera “utilidade pública”), do que se trata é de “distinguir” pessoas coletivas sem escopo lucrativo, cujos fins estatutários correspondem a interesses sociais".

- Dir-se-á que in casu a razão fundamental para que não se preencham os elementos de quaisquer crimes cometidos no exercício de funções públicas, concretamente o de peculato, reside na inaplicabilidade do conceito de funcionário (para efeito da lei penal) ao arguido, porquanto apesar de o conceito de funcionário, para efeito da lei penal, sempre ter exigido, para legitimar essa qualificação, o desempenho de funções ou atividades no âmbito de uma pessoa coletiva de direito público, no caso dos autos a pessoa coletiva de utilidade pública é uma pessoa coletiva de direito privado, não podendo os seus agentes ser considerados servidores do Estado, nem funcionários, para efeitos da lei penal, tanto mais que o aspeto privatístico é o único a considerar, no caso dos autos.”

                                                                10°

Exactamente como no caso dos autos, visto que a CVP é uma pessoa colectiva de direito privado.

                                                                11°

Não pode pois a arguida ser tida como funcionária para efeitos da lei penal, e o M.P. carece totalmente de legitimidade para a acusação quanto ao alegado crime de peculato com referência à Dra. EE - artigos 205° n°s 1 e 3 e 202° do C P.

                                                                12°

E no que respeita aos factos imputados à arguida, admitindo que constituam ilícito penal, apenas por mera hipótese de raciocínio, teriam que ser integrados no crime de abuso de confiança p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 205° n° 4 a) e 202° a) do C. P.

II - Nulidade da prova oferecida na acusação

                                                                13°

Todo este processo de inquérito assenta na denúncia (especulativa e difamatória como se demonstrará) do ex-colega do escritório de advogados da arguida, Dr. CC, com a colaboração do seu amigo e colega de faculdade, inspetor da PJ do Porto, QQ, conforme folhas 4 a 11 dos autos.

                                                                14°

Acontece que, ao proceder da forma ali descrita, o dito advogado violou gravemente os seus deveres de segredo profissional e exerceu atividade incompatível com o exercício da advocacia.

                                                                15°

Com efeito, face ao disposto no artigo 77° n°s 1 alínea q) e 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados, o advogado CC, ao relatar "profissionalmente" todos os acontecimentos alegadamente ocorridos nas instalações do escritório que partilhava com a arguida, entre outros, actuou com a intenção de devassa e violação da privacidade dos seus pares, permanecendo no escritório da aqui arguida durante dez meses, apenas com o único propósito de observar, fotografar e obter informações que eram prontamente fornecidas à PJ (dando origem por exemplo ao Relatório de Diligência Externa datada de 26/02/2013).

                                                                16°

O que se afirma sem qualquer dúvida já que o mesmo advogado não exercia qualquer atividade de advocacia, limitava-se a receber quota parte dos proventos obtidos com o trabalho dos seus pares, e ficou visivelmente zangado quando estes, designadamente a arguida, deixaram de partilhar rendimentos com ele, que os não merecia nem nada fazia para os merecer;

                                                                17°

Daí ter ido difamar os seus pares junto da jornalista identificada a folhas 20, e não contente com isso, junto do seu amigo da polícia judiciária.

                                                                18°

A agravar esta atuação, o advogado CC aceitou passar de “colaborador “ad hoc” da PJ para assumir as funções de agente infiltrado nos termos do disposto no artigo 3° n° 3 da Lei 101/2001 de 25 de agosto, tal como consta de folhas 94.

                                                                19°

No exercício das anteriores e destas funções, vasculhou os computadores dos seus pares, vasculhou as agendas pessoais dos mesmos, notas pessoais, vasculhou dossiers de clientes que não lhe pertenciam, fotografou (fantástico) o interior do escritório, a localização das secretárias, das pastas, de post its colocados em processos, iogurtes líquidos, gelatinas e pudins, fez croquis da localização dos processos nos armários, etc. e etc.

                                                                20°

Todas estas condutas do advogado CC, consubstanciam grave violação dos deveres de solidariedade, lealdade, confidencialidade e confiança, que devem pautar as relações entre advogados no geral e em colegas de escritório em particular - artigos 106° e 107° do Estatuto da Ordem dos Advogados.

                                                                21°

E como é evidente, consubstanciam grave violação do segredo profissional, não podendo estes atos, nem os que foram praticados pelo órgão de policia criminal na sequência deles, fazer prova em juízo, e jamais poderiam ter sido valorados no sentido de abrir um inquérito à aqui arguida, sendo nula toda a prova assim obtida, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 87° do Estatuto da Ordem dos Advogados e artigo 126° n° 2 do C.P.P.

                                                                22°

Nulidade esta, que se deixa, desde já arguida para os devidos e legais efeitos, e que declarada, tem como necessária consequência o imediato arquivamento destes autos.

III - Do alegado peculato com referência à Dra. EE

                                                                23°

Evitando comentar a tese do arquivamento quanto a esta ex-co-arguida, que a ser válida, teria e também necessariamente que ser aplicada à aqui arguida, importa esclarecer que a requerente, desconhecia totalmente que a advogada EE tinha sido contratada para prestar serviços jurídicos á CVP/.../....

                                                                24°

Não sabia, nunca falou com ela, nunca a consultou para nada, nem na sua qualidade de vice-presidente da direcção nem noutra, nunca ordenou que lhe fosse feito qualquer pagamento, nunca soube da prestação de serviços efetuada por aquela advogada à CVP até ao dia das buscas - 15/10/2013.

                                                                25°

A arguida cessou a sua própria prestação de serviços de advocacia em Fevereiro de 2013, e apesar de ter continuado com o cargo de vice-presidente da direção, a sua colaboração com a CVP cingiu-se a meros atos de representação em substituição da Presidente.

                                                                26°

Isto porque a arguida, além do seu serviço do escritório de advocacia, passou a estar totalmente absorvida com a preparação das eleições autárquicas de Setembro de 2013, sendo que também ela, tal como a co-arguida AA, foi candidata à vereação integrada nas listas do Partido ---.

                                                                27°

A diferença substancial, é que a arguida é militante ativa do Partido ---, enquanto a Dra. AA é uma independente que apenas interveio na campanha.

                                                                28°

Daí que para a arguida, a organização de uma campanha eleitoral constitua um árduo e absorvente trabalho, que a obrigou a cessar a prestação de serviços e a diminuir a sua atividade voluntária na CVP.

                                                                29°

Assim, a estupefação de lhe ser imputada a contratação da advogada EE, pois que não há qualquer prova material ou indiciária de que tenha participado nessa contratação, e se acusação se sustenta apenas na qualidade que a arguida então tinha de vice-presidente, mal se entende porque não estão acusados igualmente todos os outros vice-presidentes da CVP Porto/..., identificados a folhas 636, 639, 640 e 641, nem o Sr. Presidente Nacional, quando constam dos autos declarações da co-arguida

AA e da ex-co-arguida EE, de que a referida contratação foi por ele determinada.

                                                                30°

Aliás, a contradição evidente na acusação que imputa à arguida a proposta de contratação do estagiário ---, - artigos 33° a 36° da acusação, mas conclui que a arguida é co-responsável na contratação da advogada EE, sem qualquer facto concreto que o sustente e de que a arguida se possa sequer defender.

                                                                31°

Em conclusão, não pode a arguida ser pronunciada por este alegado crime.

IV - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS JURÍDICOS À CVP

                                                                32°

Os autos já contêm bastante prova material e indiciária da prestação de serviços jurídicos pela arguida à CVP/.../....

                                                                33°

Folhas 480 a 483, constam listagens de processos de vítimas de violência doméstica, conduzidos pela arguida ou com a sua intervenção, no atendimento, acompanhamento, elaboração de peças processuais e intervenção em diligências e julgamentos. São 117 processos do Centro de atendimento a Vitimas de Violência ---

                                                                34°

Por sua vez, as declarações da co-arguida AA a folhas 604 a 609, são também elucidativas das inúmeras funções que entre outubro de 2012 e Fevereiro de 2013, foram cometidas à arguida no exercício da sua atividade de advogada.

                                                                35°

Volta-se a explicar que a aqui arguida foi contratada porque a Direção da CVP ..., sob a presidência da Dra. AA, assumiu também, a pedido do Sr. Presidente Nacional da CVP, Dr. GG, a direção da CVP do ---, a partir do dia 6 de Agosto de 2012.

                                                                36º

Esta situação implicou um aumento substancial de trabalho, acrescido de problemas jurídicos que não eram comuns a CVP ..., designadamente porque existiam processos pendentes nos tribunais, de responsabilidade civil, de contratos de trabalho e de responsabilidade contratual, que envolviam avultadas quantias.

                                                                37° 

Para fazer face a este problemas e a outros que abaixo se detalham, a Presidente, Dra. AA e o Sr. Presidente Nacional Dr. GG decidiram contratar os serviços jurídicos da arguida, por forma a libertar a presidente na reorganização de todos os serviços da CVP ---, na implementação do novo serviço do Centro Infantil de ---, na reestruturação de procedimentos e a recuperação do avultado défice de quase €300.000,00.

                                                                38°

A arguida aceitou esta prestação de serviços ficando desde logo definido que seria apenas pelo período de tempo necessário para concretizar a reorganização descrita em 37°, como ficou definido que o faria sem horário, e pelo montante mensal de €1.500,00.

                                                                39º

Os processos pendentes em tribunal, cuja listagem se junta como doc. n° 1, eram acompanhados pro bono pela RR e Associados, a qual denunciou esse protocolo, alegando dificuldades económicas; foi a arguida que passou a acompanhar esses processos e que os concluiu.

                                                               40°

No que respeita ao quadro de pessoal da Delegação do ..., sobre dimensionado e muito oneroso do ponto de vista financeiro, foi a arguida que estudou os processos individuais de trabalho, verificou quais as pessoas dispensáveis e chegou a acordo para a rescisão dos contratos de trabalho de 19 trabalhadores e prestadores de serviços, conforme listagem que se junta como docs. n° s 2 e 3.

                                                               41º

Acresce que, a arguida se responsabilizou e cumpriu por se deslocar 2 a 3 vezes por semana às instalações da CVP ..., Casa de Abrigo ---, Centro de Atendimento ---, para reunir com os técnicos respetivos, com vista ao estudo e análise de todos e de cada um dos processos, fazendo parte de uma equipa multidisciplinar que pretende criar condições materiais, jurídicas e psicológicas para que seja delineado um percurso de vida sustentável e autónomo.

                                                               42°

Os docs. n° 4 e 5 refletem as utentes da Casa Abrigo --- que foram acompanhadas pela arguida.

                                                               43°

De realçar que a arguida no âmbito das suas funções deslocou-se muitas vezes a diligências e julgamentos em diversos tribunais em do território nacional.

                                                               44°

Não se entende pois, a razão pela qual a acusação considera que o serviço jurídico prestado, arduamente conforme demonstrado, haveria de ser gratuito.

                                                               45°

Realmente a arguida era antes apenas voluntária, sem obrigação do cumprimento de tarefas, sem a obrigação de atingir objetivos e sem a obrigação de preterir a sua vida profissional liberal a favor dos interesses da CVP.

                                                               46°

Antes, como voluntária, a arguida colaborava, na estrita medida das suas disponibilidades e do seu saber.

                                                               47°

Ao aceitar prestar serviços para a CVP, esta instituição passou a ser cliente da arguida, com as obrigações inerentes e os deveres impostos por lei a um qualquer advogado face a um qualquer cliente.

                                                               48°

A considerar-se, como parece ser a tese da acusação, que o valor pago à arguida seria excessivo, dispõe o tribunal do poder de solicitar laudo de honorários à Ordem dos Advogados para melhor aferição da justeza do montante.

V - DA ALEGADA ELABORAÇÃO DE PROJECTOS DE ACÓRDÃOS

                                                               49°

A acusação de peculato por que vem a arguida acusada, está sustentada em alegada elaboração de Acórdãos que seriam pagos pela CVP, a coberto de uma avença jurídica inexistente e que este requerimento de abertura de instrução desmontou, demonstrando que a avença existiu, foi autorizada pelo Sr. Presidente Nacional, Dr. GG, e correspondeu a trabalho efetivamente executado pela aqui arguida.

                                                               50°

Pontualmente, a arguida prestava auxílio à sua amiga Dra. AA, em trabalho material de montagem de relatórios ou em buscas jurisprudenciais, apenas por amizade e porque se ajudam mutuamente, ajuda essa que nunca incluiu qualquer contrapartida financeira.

                                                               51°

Acresce que como o seu marido é colega de escritório da aqui arguida, a Dra. AA deslocava-se frequentemente às instalações desse escritório, permitindo a requerente a utilização do computador para trabalhar nos seus Acórdãos, sempre pautada pelo sentimento de cooperação e amizade.

                                                               52°

Não efetuou, jamais, a aqui arguida qualquer projeto de Acórdão, tendo apenas remetido via mail o material que entretanto a Dra. AA havia elaborado no seu computador. 

   Termina pedindo que declarada aberta a instrução, inquiridas as testemunhas arroladas, seja proferida decisão de não pronúncia pelos crimes por que vem acusada, sendo ordenado o arquivamento dos autos.

   Apresentou como meios de prova

   Juntou 5 documentos constantes de fls. 918 a 949, de novo, de fls. 1031 a 1063, e, em original, de fls. 1083 a 1115.    

   E arrolou como prova testemunhal:

1 - Dr. GG, Presidente da CVP, com domicílio ---;

2 - Dra. JJ, ---, com domicílio profissional na Rua --- ...;

3 - Dra. LL, ---, com domicílio profissional no mesmo local;

4 - Dra. MM, ---, com o mesmo domicílio profissional;

5 - Dr. DD, ---, com domicílio profissional no mesmo local;

6 - Dr. OO, ---, com o mesmo domicílio profissional;

7 - Dr. PP, ---, com o mesmo domicílio profissional.

                                                                    ***

    Actos instrutórios

    Por despacho de fls. 1136/7, foram admitidos os requerimentos de abertura de instrução, sendo a requerente BB convidada a indicar os concretos pontos de facto versados no requerimento a que pretendia fossem inquiridas as testemunhas por si arroladas.

    Os Juízes ---, arrolados como testemunhas por AA, foram notificados no sentido de saber se pretendiam fazer uso da prerrogativa a que alude o artigo 503.º, n.º 2, alínea c), do CPC.

    A arguida/requerente BB veio, na sequência do despacho convite formulado, complementar o requerimento de abertura de instrução (RAI) inicialmente apresentado, com indicação dos concretos pontos de facto a que deveriam ser ouvidas as testemunhas por si arroladas (fls. 1145/6).    

    O Juiz ---- no Tribunal ---, II, exerceu a prerrogativa de depor por escrito, conforme fls. 1150, juntando o depoimento - fls. 1151 - no qual refere ter sido adjunto de AA entre Setembro de 2012 e Julho de 2013, confirmando, em geral, os factos narrados e os juízos de valor (sic) enunciados nos artigos 19.º a 22.º do articulado de defesa.

    Na discussão dos projectos dos acórdãos relatados pela Sr.ª Dr.ª AA, sempre esta demonstrou estar perfeitamente ciente das questões neles abordadas, recordando-se de alguns terem sido alterados, após aceitação de sugestões feitas pelos seus adjuntos.

    Acresce - diz o depoente - não ter surpreendido particularidades na estrutura das peças processuais e na escrita que fizessem suspeitar que outrem elaborasse qualquer dos projectos que apresentou aos adjuntos, estando convicto de que só podiam ser da sua autoria.

                                                                 ***

    Já no decurso da instrução, foram prescindidas, conforme requerimento conjunto de ambas as arguidas, de fls. 1188 (por exclusão de partes), a testemunha Dra. NN, arrolada pela requerente AA, e as testemunhas arroladas por ambas as arguidas, Dra. MM, Directora da Casa Abrigo ---, Dr. OO e Dr. PP, estes últimos, psicólogos.

    Em sede de instrução, procedeu-se à inquirição de:

    Em 5-12-2004 – GG, Presidente Nacional da Cruz Vermelha Portuguesa (acta de fls. 1183) e SS, Adjunta executiva da Delegação da CVP de ... (acta de fls. 1184).

    Em 12-12-2014 – Juiz --- HH - acta de fls. 1212 - LL - acta de fls. 1213 - CC, o advogado denunciante - acta de fls. 1214 - e DD, ex-marido e actual companheiro de AA e associado no escritório de BB, com CC - acta de fls. 1215/6.

    Foram tomadas declarações à requerente AA, após adiamento, em 6 de Março de 2015, conforme acta de fls. 1268.

    Estas declarações, bem como os depoimentos prestados, foram gravados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Supremo Tribunal de Justiça.

    A requerente AA, no dia de prestação de declarações, em 6 de Março de 2015, apresentou requerimento de produção de prova, de fls. 1271 a 1277, juntando 49 documentos [na realidade 52, já que o n.º 45 se apresenta com as letras A), B), C) e D)], os quais originaram onze volumes numerados como Anexos 1 a 11.

    O debate instrutório, após adiamento, a solicitação das requerentes, teve lugar em 26 de Março de 2015.  

                                                           *******

    Da finalidade da instrução

    Como decorre do disposto no artigo 286.º do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
    No que respeita à direcção e natureza da instrução, o artigo 288.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, dispõe que o juiz de instrução – a quem compete a direcção da instrução –, investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo anterior.
    Por outro lado, determina o artigo 307.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que, encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução; acrescenta o artigo 308.º, n.º 1, do mesmo diploma que se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
    Da análise deste regime extrai-se que, visando a instrução, no caso de ter sido deduzida acusação, a comprovação judicial da acusação, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido deve conter as razões de facto e de direito que fundamentam a sua discordância relativamente à acusação deduzida.
    O requerimento de abertura de instrução procurará infirmar a acusação, substanciando uma contestação àquela, devendo contribuir para a determinação do objecto da instrução, delimitando e definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como a final da decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia; o texto do requerimento constitui o horizonte e o limite da correcção possível.

    A este propósito, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, a págs. 130/131, afirma: «formulada a acusação pelo MP (art. 283.º) ou pelo assistente quando o procedimento depender de acusação particular (art. 285.º), o arguido pode (…) requerer a abertura da fase da instrução, fundamentando o requerimento com as razões de facto e de direito que, na sua perspectiva, deverão conduzir à rejeição total ou parcial da acusação (…)».
    Acrescenta este Autor (loc. cit.) que «(…) a instrução pode ser requerida pelo arguido com o fim de ilidir ou enfraquecer a prova judiciária da acusação, mas também por razões puramente de direito material ou adjectivo, que a tornem inadmissível. Já não parece que possa ter lugar a requerimento do arguido quando apenas pretenda ilidir ou enfraquecer a prova indiciária ou preparar a defesa sem pretender, porém, a neutralização da acusação, pela sua rejeição na decisão instrutória».
    Conclui que a instrução a requerimento do arguido «visa o controlo negativo da acusação».

    Nas palavras de Cecília Santana, “Dos limites do requerimento do arguido para abertura da instrução”, in Questões Avulsas de Processo Penal, AAFDL 2000, pág. 47, «numa primeira leitura conjugada dos artigos 286.º, n.º 1, e 287.º, n.º 1, alínea a), do CPP, pode apreender-se que, para o arguido, o requerimento para abertura de instrução funciona como uma impugnação da acusação do MP, nos crimes públicos e semi-públicos, onde ela é a acusação dominante (artigos 283.º e 284.º do CPP), ou da acusação particular, nos crimes dela dependentes, onde ela, existindo, se apresenta igualmente como a acusação dominante (artigo 285.º, n.º 3, do CPP)».

    Explica Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, Lisboa 2007, pág. 741 (e pág. 781, na 4.ª edição actualizada, 2011) em anotação ao artigo 287.º do citado Código, que o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido é constituído pelas seguintes partes: a) a narração dos factos que fundamentam a não aplicação de uma pena ou uma medida de segurança; b) as razões de direito de discordância relativamente à acusação; c) a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo; d) e os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito.

    No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Março de 2007, proferido no processo n.º 4688/06, da 3.ª Secção, refere-se:
    “A estrutura acusatória do processo determina que o thema da decisão seja apresentado ao juiz, e que a decisão deste se deva situar dentro da formulação que lhe é proposta no requerimento para abertura de instrução.
    O requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais – artigo 287.º, n.º 2, do CPP – mas há-de definir o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação.
    O objecto da instrução deve ser suficientemente delimitado, com a indicação («mesmo em súmula», diz a lei – artigo 287.º, n.º 2, do CPP) das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação ou arquivamento, bem como a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar.
    (…) O requerimento para abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental de definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas delimitada pelo tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução”.

    A dedução de acusação pressupõe a presença de “indícios suficientes” ou “prova bastante” de prática de crime e da sua imputação ao acusado.

    Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, primeiro volume, Coimbra Editora, 1981, págs. 132/3, pondera que o Ministério Público tem de considerar que já a simples dedução da acusação representa um ataque ao bom nome e reputação do acusado, o que leva a defender que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.

    De seguida, cita Castanheira Neves, que ensina que na suficiência dos indícios está contida «a mesma exigência de “verdade” requerida pelo julgamento final - só que a instrução preparatória (e até a contraditória) – assim era ao tempo – não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.

    Acrescenta que a alta probabilidade, contida nos indícios recolhidos, de futura condenação tem de aferir-se no plano fáctico e não no plano jurídico.

    Questões prévias

    Acontece que, antes de nos pronunciarmos sobre o plano fáctico, sobre o que indiciariamente estará ou não em condições de ser dado por assente, a esse nível, num mero grau de probabilidade, cumpre apreciar e decidir as arguidas, pelas ora requerentes, nulidades e questões prévias, conforme o disposto no artigo 308.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

    E assim é, até pela singela razão de que, sendo de erradicar determinadas provas por nulas, já não subsistirá/ia substrato fáctico, que alimente/justifique/fundamente um posterior tratamento subsuntivo.  

     As questões prévias suscitadas pelas ora requerentes colocam-se em dois vectores muito diferentes, a saber:

     I Ilegitimidade do Ministério Público

 

     II Nulidade e Prova proibida Na dupla perspectiva de violação de segredo profissional e de alegada actuação de advogado como agente provocador ou agente infiltrado

     No fundo, neste último segmento, em causa, por uma razão ou por outra, está a alegada imprestabilidade da prova oferecida pela acusação (no que tem a ver com a actuação de dois Advogados, em planos e tempos muito diferentes, no que concerne à alegada violação do sigilo profissional, e apenas quanto a um deles, no que tange à imputada actuação como agente provocador ou agente infiltrado).

     Concretizando.

     Questão I – Da alegada ilegitimidade do Ministério Público

     A requerente AA, nos artigos 1.º a 3.º do requerimento de abertura de instrução, coloca a questão da ilegitimidade do Ministério Público, assim:

     “Questão Prévia Qualificação; Ilegitimidade do Ministério Público”.

     Por seu turno, a requerente BB, nos artigos 1.º a 12.º do requerimento de abertura de instrução, coloca a mesma questão, sob a designação:

     “Erro na qualificação jurídica e consequente falta de legitimidade do MP”  

     Como se vê, nos dois requerimentos de abertura de instrução, a questão da (i) legitimidade do Ministério Público, em princípio um problema de cariz adjectivo, entronca, ou vem associada, à questão relacionada com a qualificação jurídica, esta de matriz substantiva.

     O que está em causa neste específico ponto é a qualificação, a consideração das arguidas como “funcionárias” à luz dos estatutos da Cruz Vermelha Portuguesa, o que em linha recta, conduz à necessidade de apreciação dos respectivos estatutos, à indagação sobre a natureza da pessoa colectiva em causa, o que demanda estudo do estabelecido no plano substantivo.

     A conclusão a tirar – legitimidade ou ilegitimidade do Ministério Público para accionar o presente feito – passa por necessária antecâmara de análise dos contornos do conceito de “funcionário”, mais concretamente da expressão “funcionário” para efeito da lei penal.

     Com efeito, brandir o argumento da ilegitimidade do Ministério Público só faz sentido se, adquirido for, que da conduta praticada, dada por fortemente indiciada, emerge, não um específico crime de peculato, mas um “básico” crime de abuso de confiança. 

     Carece, pois, de prévia indagação a qualificação jurídica do sujeito activo, só podendo afirmar-se a ilegitimidade do Ministério Público depois de descaracterizado o crime de peculato, por ausência da qualidade de “funcionário” por banda do sujeito activo, questão por seu turno, relacionada com a prévia e imprescindível necessidade de caracterização da pessoa colectiva posta em foco, no contexto presente, a Cruz Vermelha Portuguesa, maxime, a sua natureza jurídica e tipo de tarefas cometidas.

     Neste carrocel interpretativo, só após o enquadramento dos factos e concluindo-se pela não subsunção/integração no conceito de “funcionário” por parte das requerentes, se poderá concluir pela alegada ilegitimidade.

     Nodal no conspecto é a integração da Cruz Vermelha Portuguesa numa das alíneas do n.º 1 do artigo 386.º do Código Penal e a consequente afirmação, ou não, da qualidade de ambas as arguidas como “funcionárias”.

     Concluindo-se pela não configuração do tipo de crime específico em causa, implodindo a caracterização emprestada pela acusação, caindo a conduta indiciada na figura do crime de abuso de confiança, faltará o pressuposto de procedibilidade, como decorre do disposto nos artigos 48.º e 49.º, n.º 1, do CPP e artigo 205.º, n.º 3, do Código Penal.

     Só depois de efectuado o enquadramento jurídico-criminal é possível saber-se, se sim ou não, estamos face a um crime de peculato, caso em que o Ministério Público terá plena legitimidade (para além do dano patrimonial, em causa está o interesse na observância da lisura dos funcionários, que questionado será face a hipótese de violação funcional); caso contrário, falecerá legitimidade por falta de queixa da ofendida Cruz Vermelha Portuguesa. 

     Concluindo: Só após a caracterização da natureza do ente colectivo Cruz Vermelha Portuguesa e do conceito de funcionário para efeitos penais, é que pode ter lugar um correcto tratamento subsuntivo; a afirmar-se a indiciação de presença do crime de peculato, a questão da ilegitimidade não se coloca; caso assim não aconteça, inverificado aquele crime, falecerá legitimidade ao Ministério Público.  

                                                              *******

     Do exposto se extrai que como questões prévias restam a nulidade e prova proibida, invocadas por ambas as requerentes e daí que se comece por abordar questões que têm a ver, não com a verificação do pressuposto processual de legitimidade, mas antes relacionadas com o direito material probatório, o qual regula o ónus da prova, a admissibilidade das provas e sua força probatória, tendo em conta que o ónus da prova, no exercício do ius puniendi, é cabível apenas ao acusador.

     O que nos remete para o Código de Processo Penal, e concretamente, os terrenos do Livro III “DA PROVA”, Título I “Disposições gerais”, e mais concretamente, dos seguintes preceitos:

Artigo 124.º - (Objecto da prova)

1 “Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis”.

Artigo 125.º - (Legalidade da prova), que estabelece:

“São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”.

Artigo 126.º - (Métodos proibidos de prova), que estabelece a nulidade de provas obtidas mediante determinados meios, especificados nos números 2 e 3.

Artigo 127.º - (Livre apreciação da prova), que estabelece:

«Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

    A norma consagra, ao invés do princípio ou sistema de prova legal, o sistema da livre convicção, também designado da íntima convicção e de prova moral.

    O Código de Processo Penal estabelece uma distinção entre meios de prova e meios de obtenção da prova (epígrafes dos Títulos II e III, respectivamente, do Livro III - artigos 128.º e seguintes e artigos 171.º e seguintes).

    Os meios de prova caracterizam-se pela sua aptidão para serem por si mesmos fontes do convencimento do juiz; são elementos que o juiz pode usar de modo imediato para fundamentar a sua decisão. Os meios de obtenção de prova são instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e recolher meios de prova. (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, Lisboa, Editora Verbo, 1999, pág. 95 e 2002, pág. 209).  

    Proibição da prova

    Estabelece o artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa:

    São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.


   No plano ordinário, estabelece o artigo 126.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe (Métodos proibidos de prova):

1 – São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.

2 - São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:

a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;

 b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;

c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;

d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;

e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível.

3 – Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.

4 – Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.

    (A expressão do n.º 3 “não podendo ser utilizadas” foi introduzida em 2007 – Lei n.º 48/07, de 29-08).

    Como refere Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.º volume, Coimbra Editora, Limitada, 1974, (edição de 1981), pág. 194, “A verdade que o processo penal serve, «não sendo “absoluta” ou “ontológica”, há-de ser antes de tudo uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida”.

    Ou nas palavras de José Faria Costa, Consenso, Verdade e Direito, Boletim da Faculdade de Direito (BFD), vol. LXXVII (2001), a págs. 421: «A verdade que as normas processuais permitem».

   

    No processo penal vigora o princípio da legalidade dos meios de prova.

   

    O artigo 125.º do CPP, com a epígrafe “Legalidade da prova” estabelece que “São admissíveis os meios de prova que não forem proibidos por lei”.

    Figueiredo Dias entende - loc. cit., págs. 197 - que “A legalidade dos meios de prova, bem como as regras gerais de produção de prova e as chamadas «proibições de prova» (narco-análises, polígrafos ou lie-detectores, etc.) são condições de validade processual da prova e, por isso mesmo, critérios da própria verdade material”. (cfr. mais à frente, págs. 457 a 463).

    Numa primeira aproximação a estas matérias, ainda no domínio do Código de Processo Penal de 1929, Eduardo Correia, em Les Preuves en Droit Penal Portugais, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XIV, n.º 1 e 2, Janeiro-Junho 1967, Atlântida Editora, S.A.R.L., Coimbra, nos pontos 35 (págs. 34 a 37) e 40 e 41 (págs. 39 a 41), aborda esta temática.

    Estes ensinamentos são citados no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 274/07, de 2 de Maio de 2007, processo n.º 360/07-2.ª Secção, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 2007 e ATC, volume 69, págs. 121 a 142, que citando o referido pelo Autor a págs. 8 do seu trabalho, afirma: “O Estado está, por isso, igualmente interessado em garantir aos indivíduos a sua liberdade contra os perigos de injustiças. Está interessado, desde logo, em defendê-los contra agressões excessivas da actividade encarregada de realizar a justiça penal”.

    Prossegue o acórdão, dizendo: “Existe um dever ético e jurídico de procurar a verdade material. Mas existe também um outro dever ético e jurídico que leva a excluir a possibilidade de empregar certos meios na investigação criminal.

    A verdade material não pode conseguir-se a qualquer preço: há limites decorrentes do dever de respeito pela integridade moral e física das pessoas; há limites impostos pela inviolabilidade da vida privada, do domicílio, da correspondência e das telecomunicações, que só nas condições previstas na lei podem ser transpostos. E existem também regras de lealdade que têm que ser observadas. (…).

    Numa síntese aproximativa, pode dizer-se, com Eduardo Correia, que determinada prova é inadmissível «quando a violação das formas da sua obtenção ou da sua produção entra em conflito com os princípios cuja importância ultrapassa o valor da prova livre» (cf. ob. cit., p. 40); numa palavra: quando aqueles valores e princípios são lesados «a um ponto tal que as razões éticas que impõem precisamente a verdade material não podem deixar de a proibir» (ob. cit., p. 35)”.

   Karl-Heinz Gössel, As proibições de prova no direito processual penal da República Federal da Alemanha, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, 3.º Julho/Setembro 1992, págs. 397 a 442, começa por referir que por doutrina das proibições de prova compreende-se a doutrina das proibições de investigação de determinados factos relevantes para o objecto do processo, bem como das proibições de levar determinados factos ao objecto da sentença e, finalmente, das consequências processuais da violação daquelas proibições, sendo hoje generalizadamente aceite a distinção formal entre as proibições de produção de prova (limitação já ao nível dos próprios factos a investigar) e proibições de valoração de prova (impedindo que determinados factos sejam objecto da sentença).

    Na pág. 410, refere que no domínio de violação de dispositivos processuais relativos à prova dos factos, distinguem-se três grandes grupos de proibições de prova: em primeiro lugar, na área da investigação relacionada com os atentados aos direitos fundamentais; em segundo lugar, as violações dos princípios fundamentais do processo, e por último, as infracções dos demais preceitos que regulamentam a produção da prova. Em todos estes grupos é fundamentalmente a ponderação entre os interesses comunitários da perseguição penal e os interesses do arguido que decide da revisibilidade das violações das normas atinentes à prova e, por vias disso, da existência das proibições de valoração.

    O Autor sublinha o critério da ponderação de interesses, entre os interesses da perseguição penal e os direitos fundamentais do arguido, a tutela dos bens jurídicos individuais co-envolvidos.

    Mais adiante, págs. 424/5, a propósito das violações da vida privada refere assumir grande significado a teoria das três esferas, distinguindo a área nuclear inviolável da conformação da vida privada (esfera íntima) com protecção absoluta do direito fundamental, a vida privada dos cidadãos fora desta área nuclear, em que a intromissão só será admissível em nome de interesses prevalecentes da comunidade e pressuposta a estrita observância do imperativo da proporcionalidade, só podendo ser valorados sem quaisquer restrições os registos (filmes, gravações) que não relevam já da esfera privada juridicamente tutelada, reportando mais à frente - pág. 435 - o chamado «efeito - à - distância das proibições de valoração».

    Como refere Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Volume II, Lisboa, Editora Verbo, 1999, págs. 116/7, abordando o conceito de proibição de prova: “Um dos meios de que a lei se serve para proteger os cidadãos contra ingerências abusivas nos seus direitos é a proibição de prova.

    A proibição de prova assume desde logo grande importância pelo seu efeito dissuasor. Se os direitos do cidadão são violados, as provas que se obtenham através de tal violação não poderão ser atendidas no processo, são proibidas. Pretende-se com tal proibição evitar o sacrifício de direitos de pessoas por parte das autoridades judiciárias, dos órgãos de polícia criminal ou dos particulares, privando de eficácia as provas obtidas ou produzidas ilegalmente: as provas proibidas não podem ter efeitos no processo”. (…)

    “O CPP /87 não considera a busca da verdade como um valor absoluto e por isso não admite que a verdade possa ser procurada, usando de quaisquer meios, mas tão só através de meios justos, ou seja, de meios legalmente admissíveis. A verdade processual não é um valor absoluto e, por isso, não tem de ser investigada a qualquer preço, mormente quando esse «preço» é o sacrifício de direitos fundamentais das pessoas”.

    Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 2007, na anotação XV ao artigo 32.º, pág. 524, “Os interesses do processo criminal encontram limites na dignidade humana (art. 1.º) e nos princípios fundamentais do Estado de direito democrático (art. 2.º), não podendo, portanto, valer-se de actos que ofendam direitos fundamentais básicos. Daí a nulidade das provas obtidas sob tortura ou coacção (nulidade e não mera irregularidade. Cfr. AcTC n.º 528/03) obtidas com ofensa da integridade pessoal, da reserva da intimidade da vida privada, da inviolabilidade do domicílio e da correspondência ou das telecomunicações (n.º 8; cfr. arts. 25.º-1 e 34.º), não podendo tais elementos ser valorizados no processo”.   

    A doutrina distingue entre regras de produção da prova e proibições de prova.

    As primeiras têm por objectivo disciplinar o modo e o processo de obtenção da prova, não determinando, se infringidas, a proibição de valoração do material probatório.

    Sobre a distinção, pronunciou-se Figueiredo Dias na comunicação “La Protection des Droits de l`Homme dans la Procedure Penale Portugaise”, Relatório do Grupo nacional português da A.I.D.P., apresentado no Colóquio Preparatório para o «XII Congresso Internacional de Direito Penal em Hamburgo em 1979» sobre o tema «A protecção dos direitos do homem em processo penal» (Viena, 29 a 31 de Março de 1978), tendo em vista o artigo 261.º do CPP de 1929, na nova redacção então vigente.

    A págs. 184/5, refere o Autor: A violação das simples regras de produção da prova deve implicar eventual responsabilidade civil, disciplinar ou mesmo penal do autor, mas não deve ter por consequência a recusa das provas obtidas através desta mesma violação.

    A violação da proibição de prova terá como consequência a recusa das provas obtidas.

    Coloca de seguida a questão de saber os casos em que a violação da proibição de prova abrangerá somente as provas directamente obtidas e os casos em que afectará também todas as provas obtidas indirectamente por esta violação (de acordo com as doutrinas da «poisonous tree» ou da «Fernwirkung des Beweisverbots».

    Para Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, 1992, Coimbra Editora, 1.ª Edição (Reimpressão), Outubro de 2013, pág. 84, as regras de produção da prova visam apenas disciplinar o procedimento exterior da realização da prova na diversidade dos seus meios e métodos, não determinando a sua violação a reafirmação contrafáctica através da proibição de valoração.

    Para Figueiredo Dias, Processo Penal, pág. 446, as regras de produção de prova configuram “meras prescrições ordenativas de produção de prova, cuja violação não poderia acarretar a proibição de valorar como prova (…) mas unicamente a eventual responsabilidade (disciplinar, interna) do seu autor”.

    

    Invocando Gössel, Costa Andrade, loc. cit., pág. 83, afirma que as proibições de prova são «barreiras colocadas à determinação dos factos que constituem objecto do processo», adiantando que “o que define a proibição de prova é a prescrição de um limite à descoberta da verdade. Normalmente formulada como proibição, a proibição de prova pode igualmente ser ditada através de uma imposição e, mesmo, de uma permissão”.

    Como salienta o Autor, na pág. 75, “não parece que deva encarar-se o arguido como titular ou portador exclusivo dos direitos, interesses ou bens jurídicos cuja salvaguarda pode ditar, em concreto, balizas à descoberta da verdade. Pelo contrário, só uma arrumação e imputação policêntricas daqueles interesses abrirá a porta a uma adequada compreensão teleológica das proibições de prova. (…) As proibições de prova podem resultar do primado reconhecido a valores ou interesses de índole supra-individual como os subjacentes ao Segredo de funcionários e Segredo de Estado (arts. 136.º e 137.º do CPP)”.

    Nesta linha, Susana Aires de Sousa, Agent procateur e meios enganosos de prova, Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2013, págs. 1212/3, afirma: “Enquanto expressão de um Estado de Direito, o ius puniendi há-de aparecer perante o delinquente como um poder dotado de superioridade ética, como expressão das suas mãos limpas, como refere Radbruch. Neste sentido, a protecção dos direitos fundamentais manifestada no regime das proibições de prova, não tutela apenas o seu titular mas a própria credibilidade, reputação e imagem do Estado de Direito.

    Além dos direitos fundamentais, as proibições de prova podem resultar ainda da guarida concedida a outros valores ou interesses: o segredo de estado, o segredo profissional, até mesmo a descoberta da verdade (v. g. artigos 132.º, n.º 2 e 134.º do CPP)”.

    Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, Lisboa, Editora Verbo, 1999, págs.118/9, seguindo de muito perto Costa Andrade, afirma: “As proibições de prova são verdadeiros limites à descoberta da verdade, barreiras colocadas à determinação dos factos que constituem objecto do processo”. «Diferentemente, as regras de produção da prova visam apenas disciplinar o procedimento exterior da realização da prova na diversidade dos seus meios e métodos, não determinando a sua violação a reafirmação contrafáctica através da proibição de valoração».

    Acrescenta que “Noutros termos, as proibições de prova respeitariam ao an da prova, consequência do exercício de um poder não reconhecido por lei, enquanto as invalidades relativas às regras de produção de prova respeitariam ao quomodo, à assunção da prova com violação das normas da sua obtenção; no primeiro caso a prova nunca seria admissível, a causa da proibição seria a protecção de valores extra processuais, enquanto no segundo a prova seria admissível desde que observadas as regras processuais para a sua produção, por isso que a sua eventual invalidade teria a ver apenas com a violação das normas rituais, de mera ordenação processual”.

    Para Helena Mourão, O efeito-à-distância das proibições de prova no direito processual penal português, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 16, n.º 4, Out./Dez. 2006, págs. 575 a 620, concretamente a págs. 586, não só ao nível da jurisprudência, mas também a nível doutrinal, se tem defendido, entre nós, que as proibições de prova constituem não só instrumentos de protecção de direitos individuais, mas também de interesses de carácter supra-individual, representados pelo Estado e pela comunidade, que ultrapassa a esfera jurídica do arguido, e que, enquanto valores do Estado de Direito, consubstanciam barreiras à busca da verdade (Jorge de Figueiredo Dias, “Para uma reforma global do processo penal português — Da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais”, in Para Uma Nova Justiça Penal, Coimbra, 1983, pp. 208 e ss.; João Castro e Sousa, A Tramitação do Processo Penal, Coimbra, 1985, p. 197, nota 264; Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, pp. 33, 75 e ss. e 142; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal – II, Lisboa, 1999).

    Distinguindo-se, assim, das meras regras de produção de prova que visam apenas disciplinar o procedimento exterior da prova na diversidade dos seus meios e métodos, não determinando a sua violação a reafirmação contrafáctica através da proibição de valoração (Manuel da Costa Andrade, op. cit., p.84; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º vol., p. 446; Germano Marques da Silva, op. cit., pp. 118 e ss.; e ainda João Conde Correia, op. cit., p. 156, que afirma (em sentido próximo ao de Teresa Beleza, “Tão amigos que nós éramos” – O valor probatório do depoimento de co-arguido no processo penal português”, Revista do Ministério Público, n.º 74, 1998, p. 45) a “necessidade de distinguir entre a obtenção ou valoração de uma prova proibida e a obtenção de provas permitidas, mas logradas sem a observância das respectivas formalidades legais. Naquela situação, o vício cometido é a violação de uma proibição de prova, conduzindo à eventual proibição da sua valoração. Já, nesta situação, o vício cometido pode constituir causa de inexistência, de nulidade ou de mera irregularidade, consoante o teor da previsão legislativa”)”.

    As proibições de prova dão lugar a provas nulas – artigo 38.º, n.º 2, da CRP.

 

    A lei portuguesa proíbe as provas fundadas na violação da integridade física e moral do agente e as provas que violem ilicitamente a privacidade.

 

    Maia Gonçalves, Meios de Prova, Jornadas de Direito Processual Penal, 1989, pág. 195, a propósito dos n.ºs 1 e 3 do artigo 126.º, referia tratar-se em seu entender de dois graus de desvalor de provas obtidas contra as cominações legais, sendo maior o desvalor ético-jurídico das provas obtidas mediante os processos referidos no n.º 1 e tal diferente grau de desvalor tem reflexo nas nulidades cominadas; «enquanto as provas obtidas pelos processos referidos no n.º 1 estão fulminados com uma nulidade absoluta, insanável e de conhecimento oficioso, que embora como tal não esteja consagrada no art.º 119.º e está neste art.º 126.º, através da expressão imperativa não podendo ser utilizadas, já as provas obtidas mediante o processo descrito no n.º 3 são dependentes de arguição, e portanto sanáveis, pois que não são apontadas como insanáveis no art. 119.º ou em qualquer outra disposição da lei. Em relação a estas últimas provas, obtidas mediante os processos aludidos no n.º 3, a lei atendeu de algum modo à vontade do titular do interesse ofendido e ao princípio volenti non fit injuris».

 

    Como expende Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, Dezembro 2007, pág. 326, anotação 3 “A nulidade das provas proibidas obedece a um regime distinto da nulidade insanável e da nulidade sanável. Trata-se de um regime complexo, que distingue dois tipos de proibições de provas consoante as provas atinjam a integridade física e moral da pessoa humana ou a privacidade da pessoa humana”.   

    E no ponto 4 – quanto ao regime da nulidade da prova proibida – diz que há que distinguir: “a nulidade da prova proibida que atinge o direito à integridade física e moral previsto no artigo 126.º, n.ºs 1 e 2 do CPP é insanável; a nulidade da prova proibida que atinge os direitos à privacidade previstos no artigo 126.º, n.º 3 é sanável pelo consentimento do titular do direito. A legitimidade para o consentimento depende da titularidade do direito em relação ao qual se verificou a intromissão ilegal. O consentimento pode ser dado ex ante ou ex post facto. Se o titular do direito pode consentir na intromissão na esfera jurídica do seu direito, ele também pode renunciar expressamente à arguição da nulidade ou aceitar expressamente os efeitos do acto, tudo com a consequência da sanação da nulidade da prova proibida.

    Em síntese, o artigo 126.º, nºs 1 e 2, prevê nulidades absolutas de prova e o n.º 3 prevê nulidades relativas de prova.”.

    (Na 4.ª edição actualizada de Abril 2011, os n.º 3 e 4 encontram-se na pág. 335).

    Assim também Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 2007, em anotação XV ao artigo 32.º, pág. 524: A interdição é absoluta no caso do direito à integridade pessoal (cfr. AcTC n.º 616/98); e, relativa, nos restantes casos, devendo ter-se por abusiva a intromissão quando efectuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial (art. 34.º-2 e 4), quando desnecessária ou desproporcionada ou quando aniquiladora dos próprios direitos (cfr. art.18.º-2 e 3).

    (…)

    A proibição de valoração de provas ilícitas suscita dificuldades sempre que implique o problema do «efeito à distância» ou do «fruto de prova proibida», mas a ponderação a efectuar caso a caso das provas subsequentes não deve neutralizar a regra constitucional, tornando legítimas «provas proibidas» (cfr. AcTC n.º 407/97).

    Simas Santos-Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, 3.ª edição, 2008, volume I, pág. 832, distinguem entre os métodos proibidos de prova, os absolutos (proibidos mesmo com consentimento), abrangendo as provas obtidas mediante tortura, coacção e ofensa à integridade física ou moral, e os relativos (proibidos apenas sem consentimento), abrangendo as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações.

    Os n.ºs 1 e 2 enunciam os métodos de prova que o legislador considera proibidos em termos absolutos, pois que atentam contra direitos indisponíveis para o seu próprio titular e em relação aos quais é irrelevante o consentimento.

    Os métodos proibidos de carácter relativo abrangem os casos em que se utilizam processos de recolha de prova sem o consentimento dos respectivos titulares.

    Aqui, já não existe uma proibição absoluta, mas meramente relativa, uma vez que, estando apenas em causa direitos disponíveis, é sempre possível utilizar os meios de prova aí referidos se houver consentimento válido para tal ou a situação esteja prevista na lei.

    A propósito da questão de saber se a nulidade contemplada no n.º 3, 2.ª parte, é ou não sanável, consideram – pág. 840 – que a última alteração legislativa pôs fim à dúvida, ao acrescentar que, em tais casos as provas obtidas em desrespeito da lei não podem ser utilizadas.

 

    Na obra colectiva Prova Criminal e Direito de Defesa, Almedina, 2010, Luís Pedro Martins de Oliveira, no trabalho Da Autonomia do Regime das Proibições de Prova, págs. 257 e seguintes, afirma que as proibições de prova não estão numa mera relação de especialidade face às nulidades. São, antes, tal como as nulidades, uma espécie de invalidade, que constitui o padrão comum a que se reportam ambas as figuras.

    Sendo uma espécie autónoma de invalidade, o efeito associado às proibições de prova tem de ser distinto das nulidades.   

    Conclui que “as proibições de prova não são uma subespécie de nulidade. São, isso sim, uma espécie de invalidade, tal como o são as nulidades. Esse é o seu verdadeiro referente comum”.

  

    Recentemente, Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, págs. 441 a 455, em anotação ao artigo 126.º do Código de Processo Penal, escreve: “(…) é nítido o diferente recorte que assumem, no preceito citado, e em termos de tonalidade ético-normativa, a proibição de provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física, ou moral, em relação àquelas que têm por fundamento a intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. Se, na primeira hipótese, estamos perante uma proibição absoluta, insusceptível de qualquer concessão, pois que está em causa o próprio núcleo dos direitos de personalidade, já no segundo caso é a própria norma – ao referir os casos ressalvados na lei – que admite a compressão de direitos constitucionais, porquanto tal é razoável e admissível, numa lógica de proporcionalidade, é exigido pelo próprio interesse do Estado no funcionamento da justiça penal.

     2. As proibições de prova dão lugar a provas nulas (artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República). Porém, a nulidade das provas proibidas obedece a um regime próprio, distinto da nulidade insanável e da nulidade sanável. Trata-se de uma regime complexo que distingue dois tipos de proibições de prova consoante atinjam a integridade física e moral da pessoa humana ou a privacidade da pessoa humana (…).

     3. Aprofundando o regime das proibições de prova uma referência importante a estabelecer é a divisão entre nulidades processuais e proibições de prova. Nesta tarefa é pressuposto que o processo penal se configura necessariamente como justo no sentido de que circunscreve a forma de obter a verdade material no respeito da legalidade o que não é mais do que a manifestação do exercício do contraditório. Na verdade, é consabido o princípio de que só uma verdade adquirida por forma processualmente válida é admissível num Estado de Direito.

     Porém, se é certo que até aqui existe uma convergência entre as duas figuras processuais, evidente na sua sujeição aos limites impostos pelo processo justo e equitativo, começam então as divergências, que mais não são do que a consequência de sua diversa natureza e da própria etiologia. Existe, na verdade, uma destrinça fundamental entre nulidade processual e meio proibido de prova que se reflecte no respectivo regime jurídico.

     Ultrapassando as dessintonias impostas pelo apelo a critérios meramente formais na distinção entre as duas figuras, os quais não contêm qualquer virtualidade em termos de elucidação, importa encontrar a referência substancial da mesma distinção. No que concerne, e seguindo de perto a proposta formulada por Conde Correia (Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais, Studia Jurídica Coimbra 1999, Coimbra Editora, pág. 194 e seg.) estamos em crer que a distinção a estabelecer arranca do facto de as proibições de prova derivarem, fundamentalmente, das opções constitucionais em matéria de investigação penal e de protecção dos direitos, liberdades e garantias individuais. Assim, o cerne da delimitação da área da prova proibida inscreve-se no texto constitucional, seja na identificação das provas absolutamente proibidas seja, sobretudo, na identificação das provas relativamente proibidas que a Constituição autoriza. A compreensão dos mecanismos constitucionais de restrição dos direitos liberdades e garantias é o ponto essencial da mesma distinção.

     Por seu turno a nulidade processual vai ancorar em razões de índole processual que não estão directamente ligadas com a norma constitucional”.

    Em consonância com Martins de Oliveira, conclui que “ as proibições de prova não são uma subespécie de nulidade. São uma espécie de invalidade, tal como o são, também as nulidades. Como refere Conde Correia (Contributo… pág. 102) «A invalidade é um conceito unitário, que exprime todos os desvios entre as disposições processuais e a actividade empreendida, capazes de legitimar uma pretensão eliminatória dos efeitos jurídicos produzidos. (…) Tal unidade não significa uniformidade nas suas consequências. Antes pelo contrário, os actos processuais penais inválidos dão origem a uma pluralidade de tratamentos, que variam em função da gravidade e da natureza da violação».

     É justamente em função da gravidade e natureza da violação dos bens jurídicos que pretendem proteger, que as proibições de prova merecem um tratamento diferenciado”.

     Prossegue no ponto 4, pág. 446, dizendo: “Acrescente-se, ainda, que, a nosso ver, não merece aplauso o entendimento de alguns autores no sentido de que, para além das provas proibidas por intrínseca ilegitimidade objectiva, teríamos as provas proibidas por ilegitimidade procedimental. Neste entendimento assim sucederia se o caminho não foi correcto e se, no processo concreto de restrição dos direitos fundamentais, não foram observados todos os requisitos – ainda que aparentemente de carácter formal – constitucionalmente imprescindíveis à legitimidade da intervenção.

     Na verdade, uma coisa é a autorização judicial, que corporiza a ultrapassagem de um direito constitucionalmente assegurado em função de outros interesses igualmente legítimos e outra, totalmente distinta, é o incumprimento de regras formais, ou procedimentais, em relação a uma autorização já concedida. Aqui não está em causa nenhum dos pressupostos que informaram o juízo de proporcionalidade formulado pelo juiz ao conceder a respectiva autorização judicial para “quebra” de uma garantia constitucional, mas única e simplesmente uma regra procedimental que visa conformar a forma como aquela autorização judicial se concretiza processualmente, ou seja, uma regra de produção de prova”.

    

     Ainda sobre esta matéria, podem ver-se:

     Costa Andrade, Sobre o regime processual penal das escutas telefónicas, in RPCC, Ano 1, n.º 3, Jul/Set 1991, págs. 369 a 408, abordando as escutas telefónicas no contexto das proibições de prova e “conhecimentos fortuitos”,

     Helena Moniz em Notas sobre a protecção de dados pessoais perante a informática (o caso especial dos dados pessoais relativos à saúde, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal (RPCC), Ano 7, Fasc. 2, Abril-Junho 1997, págs. 231 a 298, abordando o direito à intimidade da vida privada e dados pessoais e dados públicos.  

     João Conde Correia, Qual o significado de abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações (art. 32.º, n.º 8, 2.ª parte da C.R.P.)?, 1996, in Revista do Ministério Público, Ano 20, Jul/Set 1999, n.º 79, págs. 45 a 67;

    Helena Moniz em Os problemas jurídico-penais da criação de uma base de dados genéticos para fins criminais, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal (RPCC), Ano 12, n.º 2, Abril/Junho 2002, págs. 237 a 264, aborda o crime de devassa por meio de informática, p. p. pelo artigo 193.º do Código Penal e as proibições de prova, de págs. 251 a 257;

    Medina de Seiça, Legalidade da prova e reconhecimentos «atípicos» em processo penal. Notas à margem da jurisprudência (quase) constante, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, págs. 1387 a 1421;

    Pedro Verdelho, A Obtenção de Prova no Ambiente Digital, Revista do Ministério Público, Ano 25, n.º 99, Julho/Setembro 2004, páginas 117 a 136;

    Do mesmo Autor, in Revista do Ministério Público, Ano 27, Out-Dez. 2006, n.º 108, páginas 97 a 124, A reforma penal portuguesa e o Cibercrime, focando “localização celular”, “facturação detalhada” e apreensão de correio electrónico;

    Sónia Fidalgo, em Determinação do perfil genético como meio de prova em processo penal, in RPCC, Ano 16, 1.º, Janeiro/Março 2006, págs. 115 a 148, no item Os métodos proibidos de prova, a págs. 132 a 134;

    Mário Ferreira Monte, O resultado da análise da saliva através de zaragatoa bucal é prova proibida? em comentário datado de 3-01-2007  ao acórdão Tribunal ---, de  13 de Setembro de 2006, in Revista do Ministério Público, Ano 27, Out-Dez. 2006, n.º 108, páginas 239 a 262.

    No plano da “Reserva da vida privada”, podem ver-se: 

    Manuel da Costa Andrade, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo 1, Coimbra Editora, 1999, págs. 725 a 742, comenta o artigo 192.º, que prevê o crime de devassa da vida privada, afirmando “A privacidade/intimidade é um bem jurídico pessoal, sobrelevando as notas da relatividade e variabilidade”; “A lei portuguesa presta homenagem à chamada teoria dos três graus ou das três esferas”; “ a esfera da intimidade corresponde ao último reduto do rigth to be let alone”.

    Na mesma colectânea, de págs. 743 a 751, Damião da Cunha comenta o artigo 193.º -  Devassa por meio de informática -, afirmando: “Do que se trata é de garantir a interdição absoluta, constitucionalmente imposta, do tratamento informático de um conjunto de dados pessoais que a CRP afirma como insindicáveis e da total e plena disponibilidade da pessoa a que se reportam”.

    José Francisco de Faria Costa, Direito Penal da Comunicação (Alguns escritos), Coimbra Editora, 1998 (Outubro), colige vários escritos elaborados ao longo dos últimos anos, como refere na nótula explicativa.

    No capítulo “O direito penal, a informática e a reserva da vida privada”, de fls. 63 a 82, aborda os valores da reserva da vida privada e da preservação dos espaços de intimidade, versando sobre o crime de devassa por meio de informática, mas aportando o artigo 181.º (fls. 69, 73, 75/6), que à data da publicação era já doutro compartimento, devendo entender-se como sendo ao artigo 193.º actual.    

    No capítulo “As telecomunicações e a privacidade: o olhar (in)discreto de um penalista”, págs. 143 a 177, aborda a palavra falada, a palavra escrita e a palavra virtual, a privacidade como bem jurídico-penal, informação veiculada por E-mail; a interferência entre (tele) comunicações e o direito penal; modos de protecção jurídico-penal da privacidade – artigos 194.º e 384.º do Código Penal; as violações da privacidade permitidas pelo próprio ordenamento penal: a intromissão não proibida no conteúdo da comunicação; possibilidade ou não de apreensão do conteúdo das comunicações levadas a cabo por meio da palavra virtual.

     Segundo o Parecer da PGR n.º 12/66, de 13 de Maio de 1966, “À face da ordem jurídica portuguesa, a narcoanálise não é um meio de prova admissível, mesmo que se verifique o prévio consentimento do ofendido”.

     Sobre colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, sem autorização do juiz, quando aquele tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita, pronunciaram-se no sentido da inconstitucionalidade das normas do artigos 172.º e 126.º, n.º 1 e 2, alíneas a) e c) e 3, do CPP, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 155/2007, de 2 de Março de 2007, proferido no processo n.º 695/06, da 3.ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Abril de 2007, e ATC, volume 68, págs. 157 a 202, e n.º 228/2007, da de 28 de Março de 2007, proferido no processo n.º 980/06, da 2.ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Maio de 2007, e igualmente em ATC, volume 68, págs. 721 a 756.

     Sobre recolha de autógrafos em inquérito e crime de desobediência, pronunciou-se o Acórdão de Fixação de Jurisprudência, de 28 de Maio de 2014 – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 14/2014 –, proferido no processo n.º 171/12.3TAFLG.G1.-A.S1-3.ª, publicado no Diário da República, 1.ª Série, n.º 203, de 21 de Outubro de 2014, págs. 5331 a 5354, tendo o Tribunal Constitucional pela decisão sumária n.º 581/2014, de 29 de Junho de 2014, proferida no processo n.º 709/14, da 3.ª Secção, decidido não tomar conhecimento do objecto do recurso.

 

                                                *******

   

    A afirmação da autonomia das proibições de prova em relação às nulidades e a destrinça entre métodos, absoluta e relativamente proibidos, estava já presente no acórdão deste Supremo Tribunal de 8 de Fevereiro de 1995, proferido no processo n.º 47.084, publicado in CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 194.

   Estando então em causa a questão da nulidade das provas obtidas através de busca domiciliária e a interpretação do artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, pode ler-se no sumário daquela publicação:

    “As provas obtidas por métodos absolutamente proibidos não podem nunca ser utilizadas no processo, mesmo com o consentimento do visado; as provas obtidas por métodos apenas relativamente proibidos, por susceptíveis de consentimento relevante do respectivo titular, são da mesma forma nulas, mas essa nulidade, por ser sanável, depende da arguição do interessado. 

    Por isso, não pode ser arguida em recurso a nulidade das provas obtidas no inquérito durante busca domiciliária sem autorização da autoridade judiciária ou do visado”. 

   Aí se afirmava a autonomia das proibições de prova relativamente às nulidades: «Apesar da ligação estreita entre o regime das nulidades e as proibições da prova, trata-se de figuras ou realidades autónomas (…).

   A proibição da prova tem a ver com a sua inadmissibilidade no processo. Os elementos recolhidos por métodos proibidos de prova não poderão por via de regra ser valorados. O art.º 126.º do citado código descreve métodos proibidos da prova, ferindo de nulidade as provas deles resultantes; e o seu n.º 1 refere-se a provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa de integridade física ou moral das pessoas, não podendo ser utilizadas, enquanto o n.º 3 considera igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular».

   E acrescenta: «No caso do n.º 1, as provas são sempre inválidas, não poderão nunca ser utilizadas, mesmo com o consentimento do titular, porque contendem com a dignidade e integridade física ou moral das pessoas, que são bens jurídicos indisponíveis para o seu titular; no caso do n.º 3, as provas só serão nulas quando os métodos utilizados para a sua obtenção não obtiveram o consentimento do respectivo titular, porque se reportam a bens jurídicos disponíveis».

   Finaliza, explicando a diferente abordagem: «Da diferente qualificação dos bens em causa e da respectiva disponibilidade ou indisponibilidade para o seu titular resultam regimes ou consequências diversas. As provas obtidas por métodos absolutamente proibidos não poderão nunca ser utilizados no processo mesmo com o consentimento daquele; pelo contrário, se tais métodos forem apenas relativamente proibidos, enquanto susceptíveis de consentimento relevante do respectivo titular, as provas obtidas também serão nulas, mas tal nulidade, porque sanável, depende da arguição do interessado, ficando sujeita à disciplina do art. 120.º e 121.º do C.P.P».

   Outras abordagens feitas pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre prova proibida e suas implicações, podem ser vistas, inter alia, nos acórdãos datados de:  

15 de Fevereiro de 1995, proferido no processo n.º 44 846, in CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 205, aborda a destrinça entre furtum rei e furtum usus, bem como autoria, associação criminosa, o crime de roubo, como crime complexo e impróprio, e a teoria da margem de liberdade quanto à medida da pena, estando em causa  provas por cassetes de vídeo, constando do sumário:

   “Apenas não podem ser usadas em processo penal as fotografias extraídas de cassetes de vídeo, quando, para as obter, tiver havido abusiva intromissão na vida privada do arguido. O que não acontece quando este é filmado em local que não é privado, ao qual outras pessoas tenham acesso e que apenas substituem depoimentos de agentes ou pessoas que fizessem a observação da conduta do mesmo arguido. Não sendo assim, é cometida nulidade do artigo 119.º do C.P.Penal, dependente de tempestiva arguição”.

14 de Janeiro de 1999, proferido no processo n.º 176/96, in CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 179, abordando a “confidencialidade da palavra falada” e citando Costa Andrade em “Sobre a valoração, como meio de prova em processo penal, das gravações produzidas por particulares, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, Universidade de Coimbra, Boletim da Faculdade de Direito, Número Especial, I, págs. 595/6 e 612, concluiu:

   “O propósito de carrear provas para o processo penal não pode, enquanto tal, excluir a ilicitude das gravações efectuadas por particulares sem o consentimento do visado.

    A «justa causa» prevista no art. 179.º do C. P. (actual 199.º) tem de reportar-se a interesses, valores ou bens jurídicos transcendentes ao processo penal, tais como o direito à vida ou à integridade física, valores estes que devem encontrar-se perante um efectivo e actual perigo.

   Destinando-se as gravações feitas por particulares e sem o consentimento do visado a ser utilizadas para efeitos probatórios, estamos perante provas proibidas, provas nulas”.

3 de Março de 1999, proferido no processo n.º 415/98, in CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 231, aborda a colaboração de outro arguido com as autoridades, afastando actuação como agente provocador ou agente infiltrado.

20 de Junho de 2001, processo n.º 244/00-3.ª, in CJSTJ 2001, tomo 2, pág. 221 – Aborda o direito à reserva da vida privada e as provas obtidas por sistemas de videogravação do local.

15 de Outubro de 2003, processo n.º 1882/03-3.ª, sumariado em Código de Processo Penal, Notas e Comentários, de Vinício Ribeiro, pág. 986 – (…) As proibições de provas estão enunciadas no art. 126.º, n.º1, do CPP, e desse preceito não constam, nem enquanto tais nem integráveis em qualquer das espécies que revelem ofensa da integridade física ou moral das pessoas, as declarações prestadas perante funcionários da PJ sem os declarantes terem sido constituídos arguidos e sem a assistência de advogado (…).

20 de Setembro de 2006, processo n.º 2321/06-3.ª, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 189 (Leitura do cartão do telemóvel, SMS – nulidade sanável).

23 de Novembro de 2006, processo n.º 4096/06-5.ª – Suficiência de prova indirecta.

15 de Março de 2007, processo n.º 659/06-5.ª, in CJSTJ 2007, tomo 1, pág. 210 – Reconhecimento fotográfico.

15 de Novembro de 2007, processo n.º 3236/07-5.ª – Aborda a nulidade cominada pelo artigo 126.º, n.º 3, do CPP.

31 de Janeiro de 2008, processo n.º 4805/06-5.ª, in CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 209 – No âmbito dos efeitos à distância dos métodos proibidos de prova deve distinguir-se entre os previstos nos n.ºs 1 e 3 do artigo 126.º do CPP.

   Em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, nelas incluídas as presunções judiciais.

20 de Fevereiro de 2008, processo n.º 4553/07-3.ª, in CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 229 – Abordando proibições de prova; efeito à distância; limites do efeito à distância; limitação da fonte independente; a limitação da descoberta inevitável e a limitação da mácula «(nódoa) dissipada».

12 de Março de 2009, processo n.º 395/09-3.ª, podendo ler-se: “O efeito à distância da prova proibida nunca poderá alcançar uma abrangência que congregue no seu efeito anulatório provas que só por uma relação colateral, e não relevante, se encontram ligadas à prova proibida ou que sempre se produziriam, ou seria previsível a sua produção, independentemente da existência da mesma prova produzida.

    Nada obsta a que as provas mediatas possam ser valoradas quando provenham de um processo de conhecimento independente e efectivo, uma vez que não há nestas situações qualquer relação de causalidade entre o comportamento ilícito inicial e a prova mediatamente obtida. Pode afirmar-se que o efeito metastizante da violação das regras de proibição de prova apenas tem razão de ser em relação à prova que se situa numa relação de conexão de ilicitude”.

16 de Abril de 2009, processo n.º 3375/08-5.ª – (Versando sobre a doutrina dos “frutos da árvore venenosa” e do “efeito dominó”).

15 de Julho de 2009, processo n.º 200/02.9JELSB.S1-3.ª – O efeito à distância reflecte o alcance, a expansão, a projecção de um meio de prova nulo sobre provas secundárias.

3 de Março de 2010, processo n.º 886/07.8PSLSB.L1.S1-3.ª – Aborda a abertura e visualização de agenda de telemóvel.

18 de Março de 2010, processo n.º 1131/02.8GISNT.S1-5.ª – Abordando as intercepções das comunicações telefónicas. Valor probatório dos conhecimentos fortuitos.

18 de Março de 2010, processo n.º 538/00.0JACBR-B.C1.S1-5.ª – Abordada a  valoração das intercepções telefónicas.

6 de Maio de 2010, processo n.º 156/00.2IDBRG.G1.S1-5.ª, in CJSTJ 2010, tomo 2, pág. 180 – “A fiscalização sobre eventual uso de método proibido de prova é uma questão de direito susceptível de recurso para o STJ”.  

14 de Julho de 2010, processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1-3.ª – Em caso de tráfico de estupefacientes (cerca de duas toneladas de haxixe, transportadas por três cidadãos ingleses, em camião TIR, em direcção ao Algarve), são abordados temas como vigilâncias e abertura e leitura da memória de telemóvel.

28 de Setembro de 2011, processo n.º 172/07.3GDEVR.E2.S2-3.ª – Uso de meio de obtenção de prova proibida; conversa informal; violação do direito ao silêncio e princípio da imediação; reconstituição; reportagem fotográfica.

19 de Setembro de 2012, processo n.º 438/07.2PBVCT.G1.S1-5.ª – Versa sobre depoimento testemunhal indirecto.

19 de Setembro de 2012, processo n.º 16/09.1GBBRG.G3.S1-5.ª – A fiscalização sobre o eventual uso de um método proibido de prova é uma questão de direito que deve tomar-se conhecimento, ainda que em última análise se reporte à fixação da matéria de facto, já que podem estar em causa direitos, liberdades e garantias essenciais para o cidadão, desde que seja recorrível a decisão final do processo onde se verificou a situação.

17 de Outubro de 2012, processo n.º 1243/10.4PAALM.L1.S1-3.ª – Na inexistência dos vícios constantes do n.º 2 do art. 410.º do CPP, ao STJ apenas incumbe sindicar eventuais nulidades, se a convicção do tribunal de julgamento se fundamentasse em meios de prova e provas proibidas por lei, atentos o princípio da legalidade das provas e os métodos proibidos de prova (arts. 125.º e 126.º do CPP).

24 de Outubro de 2013, processo n.º 780/10.5JAPRT.S1-5.ª, CJSTJ 2013, tomo 3, pág. 200 – Em causa o uso de sistema GPS.

11 de Junho de 2014, processo n.º 14/07.0TRLSB.S1 – Em caso de busca domiciliária a magistrada judicial, sendo presente a imputação de crime de branqueamento.

   Do Tribunal Constitucional

 

Acórdão n.º 607/2003, Diário da República, II Série, de 8-04-2004 – Abordando caso de apreensão de “diário” em busca domiciliária realizada em caso de crime de abuso sexual de crianças (Casa Pia).

Acórdão n.º 155/2007, Diário da República, II Série, de 10-04-2007 – Em caso de colheita coactiva de vestígios biológicos.

 

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   Noutra perspectiva há que ter em conta que a utilização de provas proibidas que tenham servido de fundamento à condenação pode constituir, a partir da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, fundamento do recurso extraordinário de revisão, conforme o disposto no artigo 449.º, n.º 1, alínea e), do CPP.

   Na ponderação de interesses que sempre implica a resolução do conflito existente entre o valor do caso julgado e a admissibilidade da revisão de uma sentença, o legislador de 2007, possibilitando a quebra do caso julgado perante um vício decisório resultante da utilização e valoração de provas proibidas, entendeu limitá-la aos casos em que da ocorrência da anomalia probatória só posteriormente à condenação se deu conta.

   Sobre este fundamento de revisão, pronunciaram-se os acórdãos de 24-04-2008, processo n.º 4373/07-5.ª; de 11-02-2009, processo n.º 4215/04-3.ª (versando o grau de exigência a observar na interposição do recurso); de 17-09-2009, processo n.º 1566/03.9PALGS-A.S1- 3.ª; de 28-10-2009, processo n.º 109/94.8TBEPS-A.S1 - 3.ª; igualmente de 28-10-2009, no processo n.º 40/03.8TELSB.C.S1-3.ª, em que interviemos como adjunto (versando acções encobertas); de 26-11-2009, processo n.º 103/01.4TBBRG-G.S1 - 5.ª (com exclusão dos métodos proibidos de prova elencados no artigo 126.º, do caso de violação do artigo 133.º, n.º 2, do CPP); de 8-04-2010, processo n.º 12749/04.4TDLSB-A.S1- 5.ª; de 12-05-2010, processo n.º 6319/01.6TDPRT-A.S1-5.ª; de 10-11-2010, processo n.º 347/06.2GBVLG-A.S1-3.ª em que interviemos como adjunto (colheita de sangue); de 24-02-2011, processo n.º 121/00.0GBGDL-B.s1-5.ª, CJSTJ 2011, tomo 1, pág. 203; de 24-03-2011, processo n.º 520/00.7TBABT-B.S1-3.ª, em que interviemos como adjunto; de 18-05-2011, processo n.º 140/05.0JELSB-N.S1 - 3.ª (As provas proibidas são as obtidas mediante meios que por natureza são ilegítimos, alguns constituindo mesmo infracção criminal, e que, por isso, inquinam total e absolutamente qualquer elemento que tenha sido adquirido com tal grau de violação de regras e princípios fundamentais. Nada tem que ver com o regime específico das «provas proibidas» a utilização no processo de meios que, embora afectando direitos fundamentais, podem assumir legitimidade se foram respeitados pressupostos materiais e procedimentais na aquisição, pelo que, sendo tal ocorrente no caso dos autos, é de negar a pretendida revisão); de 20-10-2011, processo n.º 665/08.5JAPRT.E1.S1.3.ª (excepcionalidade da revisão); de 2-05-2012, processo n.º 177/03.3GGLSB-B.S1-3.ª, em caso em que o arguido foi submetido a colheita de sangue na sequência de um acidente de viação, onde se pode ler, citando os acórdãos de 20-10-2011 e de 24-04-2008, processo n.º 4373/07-5: “A natureza de «provas proibidas» a que se refere o fundamento da alínea e) do n.º 1 do art. 449.º do CPP, exige uma leitura material de integração com os critérios essenciais enunciados no art. 126.º do CPP. As «provas proibidas» são «as provas as provas obtidas mediante tortura, coacção ou em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas»; nesta categoria estão incluídas as provas com perturbação da liberdade de vontade ou de decisão, através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos; perturbação da capacidade; de promessa de vantagem legalmente inadmissível; intromissão na vida privada, no domicílio ou na correspondência, ou nas telecomunicações fora dos casos previstos na lei”.

   “As causas de afectação de prova enunciadas no artigo 126.º do CPP, remetem, todas elas, para violações insuportáveis, que contendem e afectam a própria dignidade da pessoa e que constituem sempre sempre condutas absolutamente proibidas; as provas obtidas em tais circunstâncias são sempre, por isso, também, «absolutamente proibidas» (não assumindo tal natureza a prova obtida mediante meio legalmente admitido ou admissível, cuja regularidade processual poderia ter sido considerada e discutida na decisão condenatória); de 3-10-2012, processo n.º 379/10.6GACSC-B.S1-5.ª – foi versada questão relacionada com busca domiciliária, fazendo-se distinção entre nulidades e provas proibidas; de 09-01-2013, proferido no processo n.º 709/00.9JASTB-J.S1, por nós relatado em caso de tráfico de estupefacientes e alegado uso de prova proibida com depoimento de agente infiltrado - Caso Irmãos Pinto - com pontos de conexão com o tratado nos mencionados acórdãos de 24-04-2008 e 28-10-2009; de 14-03-2013, por nós relatado no processo n.º 158/09.3GBAVV-B.S1-3.ª, com citação de vária jurisprudência, referindo-se:

“A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a pronunciar-se de modo uniforme no sentido de que as provas em causa devem ter sido descobertas já depois da decisão a rever, podendo citar-se os acórdãos (que seguem - já descritos), não se incluindo o acórdão de 24-02-2011, proferido no processo n.º 121/00.0GBGDL-B.S1-5.ª, in CJSTJ 2011, tomo 1, pág. 203, o qual pronunciou-se em caso em que fora alegada apenas a incompetência funcional do departamento da Polícia Judiciária que investigou o caso); de 3-10-2012, processo n.º 379/10.6GACSC-B.S1-5.ª (busca domiciliária); de 03-04-2013, processo n.º 157/05.4JELSB-N.S1-3.ª; de 28-11-2013, processo n.º 911/10.5TBOLH-H.S1-5.ª; de 12-12-2013, processo n.º 760/09.3PPPRT-B.S1-5.ª, CJSTJ 2013, tomo 3, pág. 220; de 29-01-2014, processo n.º 528/06.9TAVIG-A.S1-5.ª; de 25-09-2014, processo n.º 543/02.1PLLSB.-A.S1-5.ª; de 1-10-2014, processo n.º 184/10.0JAFAR-B.S1-3.ª; de 16-10-2014, processo n.º 370/08.2TAODM.E1.-A.S1-5.ª; de 3-12-2014, do mesmo relator, nos processos n.º 798/12.3GCBNV-B.S1 e n.º 515/06.7GBLLE-A.S1-3.ª.

   

                                                                             *******

             

    Questão Prévia I Prova proibida / Nulidade da prova oferecida na acusação

    A arguida AA, ao longo dos artigos 4.º a 15.º do requerimento de abertura de instrução (considerando apenas a peça original, de fls. 994 a 999), sob o título “Prova proibida”, veio sustentar que não podem fazer fé em juízo os factos directamente ou indirectamente trazidos ao inquérito pela testemunha de acusação, advogado Dr. CC, na medida em que consubstanciam uma violação grosseira do segredo profissional, consagrado pelo artigo 87.º, n.ºs 1, 2, 3, 5 e 7, do Estatuto da Ordem dos Advogados.

    Entende que o processo, no seu desencadeamento, no seu desenvolvimento, na acusação que encerrou o inquérito, assenta na iniciativa, no interesse e na acção da testemunha/advogado, o qual:

    “Denunciou a um amigo, Inspector da Polícia Judiciária, os factos, verdadeiros ou falsos, subsistentes ou insubsistentes, que deram origem a este processo, de que teve conhecimento em virtude de o escritório ser, na altura, dele também, e, por força da confiança que os advogados normalmente depositam em Colegas, sobretudo os que trabalham no mesmo escritório (…)”,

   “Relatou conversas que escutou nas mesmas circunstâncias (…)”,

   “Fotografou e fotocopiou documentos existentes no mesmo escritório, nas mesmas circunstâncias e no mesmo contexto relacional (…)” e que também

   “Aceitou ser contratado (…) para agir como agente infiltrado e provocador, sob a direcção da Polícia Judiciária, no interior de um escritório dele e de outros advogados, com quem se encontrava associado (…)”.

   Do exposto, retira a requerente a consequência de não poderem fazer prova em juízo os factos directamente ou indirectamente trazidos ao inquérito pelo mencionado advogado, como sejam, as conversas relatadas, os depoimentos prestados, os documentos copiados ou surripiados, as fotografias, os croquis, os registos informáticos sacados (artigo 11.º), rematando, na segunda parte do artigo 13.º que devem ser desconsiderados os factos dos autos trazidos pelo Dr. CC, sendo desentranhados deles todos os documentos que exprimam esses factos, em que ele tenha tido intervenção ou que se reportem a intervenção dele.

   Nos artigos 14.º e 15.º a requerente formula o mesmo pedido, embora por razões não inteiramente coincidentes, no que tange à prova constituída por declarações da Advogada Dra. EE prestadas no inquérito.

   É que, a não ser que se mostre comprovada a dispensa dela, pela Ordem dos Advogados, do segredo profissional, pelos fundamentos indicados, designadamente os que decorrem da configuração que a acusação empresta às relações entre ela e a requerente, as declarações dela não poderão valer como prova em juízo.

   Conclui que deve, igualmente, o auto das suas declarações ser desentranhado e desconsiderado o seu conteúdo. (Sublinhados do texto).

                                                                ***

   Por seu turno, a arguida BB veio, sob o título “Nulidade da prova oferecida na acusação”, nos artigos 13.º a 22.º (fls. 1071 a 1074), sustentar que é nula a prova dos autos, para tanto alegando, em suma:

   Todo o processo de inquérito assenta na denúncia (especulativa e difamatória) do ex-colega do escritório de advogados da arguida, Dr. CC, com a colaboração do seu amigo e colega de faculdade, inspector da PJ do Porto, QQ, conforme folhas 4 a 11 dos autos;  

   Ao proceder de tal forma, violou gravemente os seus deveres de segredo profissional e exerceu actividade incompatível com o exercício da advocacia;

   “Face ao disposto no artigo 77.º, n.ºs 1, alínea q) e 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados, o advogado CC, ao relatar “profissionalmente” todos os acontecimentos alegadamente ocorridos nas instalações do escritório que partilhava com a arguida, entre outros, actuou com a intenção de devassa e violação da privacidade dos seus pares, permanecendo no escritório (…) durante dez meses, apenas com o único propósito de observar, fotografar e de obter informações que eram prontamente fornecidas à PJ (…);

   “ (…) aceitou passar de “colaborador “ad hoc” da PJ para assumir as funções de agente infiltrado nos termos do artigo 3.º n.º 3 da Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto (…)”.

   No exercício destas funções vasculhou os computadores dos seus pares, as agendas pessoais dos mesmos, notas pessoais, dossiers de clientes que não lhe pertenciam, fotografou o interior do escritório, a localização das secretárias, das pastas, dos post its colocados em processos, iogurtes líquidos, gelatinas e pudins.  

   Entende que todas as condutas consubstanciam grave violação dos deveres de solidariedade, lealdade, confidencialidade e confiança, que devem pautar as relações entre advogados no geral e em colegas de escritório em particular - artigos 106.º e 107.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

   E consubstanciam grave violação do segredo profissional, não podendo estes actos, nem os que foram praticados pelo órgão de polícia criminal na sequência deles, fazer prova em juízo, e jamais poderiam ter sido valorados no sentido de abrir um inquérito à arguida, sendo nula toda a prova assim obtida, como resulta das disposições conjugadas dos artigos 87.º do Estatuto da Ordem dos Advogados e 126.º, n.º 2, do CPP.

   Termina pedindo que seja declarada a nulidade de toda a prova obtida a partir da conduta do mencionado advogado, tendo como consequência o imediato arquivamento dos autos.

   Apreciando.

   

   Com a invocação de “Prova proibida” (opção da requerente AA), ou de “Nulidade da prova oferecida na acusação” (opção da requerente BB), as ora requerentes colocam na prática a mesma questão, até porque o pano de fundo é exactamente o mesmo, se bem que de forma mais alargada por parte da requerente AA, com a inclusão da intervenção da Advogada Dr.ª EE.

   São as seguintes as questões controvertidas, colocadas pelas requerentes:

 

   I – De um modo mais evidente, se a testemunha de acusação, Dr. CC, que é Advogado, incorreu (ou não) em grave violação do segredo profissional de advogado por ter despoletado o inquérito e colaborado com a investigação durante o seu decurso;

   II – Se a Advogada Dr.ª EE incorreu (ou não) em grave violação do segredo profissional de advogado por ter prestado declarações no inquérito, das quais decorre a configuração que a acusação empresta às relações entre ela e a requerente AA;

   III – De um modo menos claro e manifesto, se o mesmo advogado CC, actuou (ou não), no âmbito deste processo-crime, como agente provocador ou como agente infiltrado, a coberto do disposto no artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto;

   IV – Se as provas assim obtidas são proibidas ou nulas, não podendo ser aproveitadas para a formulação do juízo acusatório, devendo ser desconsiderado o seu conteúdo e desentranhadas, conduzindo ao arquivamento do processo.

   A resposta afirmativa a estas questões terá inevitáveis implicações ao nível da (in)validade da prova testemunhal e documental recolhida em sede de inquérito, assim como, por consequência, servirá decisivamente para determinar a (in)suficiência dos indícios existentes quanto à eventual prática pelas arguidas AA  e BB dos crimes de peculato, que lhes são imputados na acusação deduzida pelo Ministério Público.

   Como desde logo ressalta da enunciação das questões, não podem ser aproveitados, não podem servir em juízo os actos e as diligências probatórias realizadas em sede de inquérito, que representem, directa ou indirectamente, uma violação do segredo profissional do advogado, assim como não podem ser valorados em tribunal meios enganosos de obtenção de prova, como o daquele que instiga ou que determina outrem à prática de um comportamento delituoso.

   Resulta do exposto, numa lógica sequencial, que se abrem duas sub-questões, relacionadas, a primeira, com a alegada violação do segredo profissional de advogado, determinativa de nulidade, ou configurando mesmo caso de prova proibida, cabível no âmbito mais alargado, a que se referem, como vimos, Costa Andrade e Susana Aires de Sousa (segredo de funcionários, segredo profissional, segredo de Estado), e depois, uma outra, com a utilização do advogado como agente provocador ou agente infiltrado, constituindo neste plano, prova proibida.

   Analisando.

   Da violação do segredo profissional de Advogado

   À semelhança do que sucede com outras categorias profissionais, o Advogado está obrigado a guardar segredo relativamente a factos que lhe advenham através do exercício da sua actividade profissional, conforme imposição prevista pelo artigo 87.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro (Diário da República, Série I-A, n.º 18, de 26 de Janeiro de 2005, alterada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro e pela Lei n.º 12/2010, de 25 de Junho).

   Os Advogados desempenham um relevante papel no exercício de uma função de soberania, a administração da justiça, como reconhece o artigo 208.º da Constituição, que estabelece sob a epígrafe “Patrocínio forense”:

   “A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça”.

   (O preceito foi aditado pelo artigo 132.º da Lei Constitucional n.º 1/97, que operou a 4.ª Revisão Constitucional, in Diário da República, I-A Série, n.º 218/97, de 20 de Setembro de 1997, pág. 5145).

   

   O segredo profissional está reconhecido pela lei – artigo 114.º, n.º 1 e 3, alíneas a) e c), da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, que aprovou a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ) e artigo 144.º da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto (Nova LOFTJ), o qual, inserto igualmente no Capítulo VII - Mandatários Judiciais, reproduz integralmente o texto daquele.

   Vitalino Canas, O Segredo Profissional dos Advogados, in Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, Volume II, Almedina, 2005, págs. 791 a 803, começa por assinalar que o segredo profissional dos advogados não tem a mesma natureza e significado que o dever de segredo vigente para outras categorias profissionais ou entidades (banqueiros, jornalistas, funcionários de finanças, etc.).

   O segredo profissional não visa salvaguardar qualquer interesse, mais ou menos disponível, do próprio advogado, mas interesses de outrem (do cliente e de outros cidadãos, incluindo colegas) e os altos interesses da Justiça e do Estado de Direito.

   Considera que o direito-dever de segredo profissional dos advogados é um direito particular análogo aos direitos, liberdades e garantias.

   Como direito do advogado, o segredo profissional é uma forma de escudar o advogado de pressões tendentes à revelação de factos, com prejuízo do exercício independente da sua profissão. É outrossim um modo de salvaguardar o ambiente de confiança que deve rodear o exercício profissional da advocacia livre.

   Como dever, o respeito do advogado pelo segredo profissional tem como beneficiário principal e proeminente o cliente.

   Fernando Sousa Magalhães, Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado e Comentado, Almedina, 8.ª edição, pág. 122, afirma: O segredo profissional, sendo radicialmente um dever para com o cliente, já que sem ele sempre seria impossível o estabelecimento da relação de confiança, resulta também de um compromisso da Advocacia com a sociedade.

   Na verdade, a função social desempenhada pelos Advogados implica, para além da independência e isenção, o reconhecimento do seu papel como confidentes necessários.   

   Sobre esta “matéria diabólica” discorre Rodrigo Santiago em Considerações acerca do regime estatutário do segredo profissional dos Advogados, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 57, Janeiro 1997, Lisboa, Tomo I, págs. 229 a 247, referindo a propósito do então n.º 5 do artigo 81.º do Estatuto de 1984, que o dever de guarda de segredo profissional corporiza aquilo que a doutrina vem chamando de regra de proibição de produção de prova, expressão que prefere a consideração de regra de proibição de valoração de prova (pág. 232).

 

   Inserto no Título III – “Deontologia profissional” – Capítulo I – “Princípios gerais”, do Estatuto da Ordem dos Advogados, sob a epígrafe “Segredo profissional”, estabelece o artigo 87.º:

   1 – O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

   a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

   b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

   c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

   d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;

   e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

   f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

   2 – A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

   3 – O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.

   4 – O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento.

   5 – Os actos praticados pelo advogado com violação do segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

   6 – Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

   7 – O dever de guardar sigilo quando aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua actividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

   8 – O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração.

   Este preceito não enuncia, de modo exaustivo, todos os factos que se encontram a coberto do segredo profissional do advogado, na medida em que, por um lado, remete, de modo indeterminado, para “todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestações dos seus serviços”, para, de seguida, passar a enumerar, de modo exemplificativo, alguns dos casos em que se impõe esse dever de confidencialidade, como os “factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste” (al. a) do n.º 1), os “factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na OA” (al. b) do n.º 1), os “factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração” (al. c) do n.º 1), os “factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante” (al. d) do n.º 1), os “factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio” (al. e) do n.º 1) e ainda os “factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo” (al. f) do n.º 1 do artigo 87.º do EOA).

   Como ressalta do exposto, o segredo profissional mostra-se inerente, não ao próprio advogado em si, mas à actividade desenvolvida por este profissional da Justiça, o que significa que nem todos os factos transmitidos ou conhecidos pelo advogado estão a coberto do dever de confidencialidade previsto pelo artigo 87.º, n.º 1, do EOA, mas simplesmente aqueles que sejam relativos ao exercício desta actividade profissional.

   Deste modo, só estão abrangidos pelo segredo profissional do advogado os factos que resultem do desempenho desta actividade profissional (ou, de acordo, com os termos da própria lei, “os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções”), o que leva a excluir do âmbito de protecção desta norma tudo aquilo que é comunicado ao advogado, mas que não respeite a actos próprios da advocacia, ou seja, todos os acontecimentos da vida real que não se prendam com este desempenho profissional, mesmo que cheguem ao conhecimento do advogado no seu local de trabalho.

   Por isso, não estão a coberto deste sigilo profissional, por absurdo, os factos que estejam relacionados com um acordo firmado entre dois ou mais advogados para a prática, por eles, de comportamentos criminosos, nem tão pouco os factos relativos a uma combinação entre o advogado e o seu cliente de escritório de advocacia, ainda que ocorrida nesse local, para a participação, em conjunto, num evento desportivo ou cultural.

   Isto significa que o local onde decorreram ou onde se teve conhecimento dos factos não se mostra decisivo ou determinante para se concluir que esses eventos se encontram cobertos pelo segredo profissional, assim como nem toda a actividade desenvolvida pelo advogado, ainda que no seu escritório, se mostra protegida pelo citado artigo 87.º do EOA.

   Mais uma vez se salienta que são os factos inerentes à própria actividade profissional em si, desenvolvida pelo advogado, que se mostram abrangidos pelo sigilo deste profissional da Justiça, o que vale por dizer, desde logo, que estão afastadas do âmbito de protecção desta norma todas as actividades levadas a cabo por advogado que não se prendam directa ou indirectamente com o exercício da advocacia (por exemplo, os actos da sua vida privada ou os actos que se prendam com o desempenho de outra(s) actividade(s) profissional(ais) ).

   Como melhor se verá, o segredo do advogado, à semelhança do sigilo previsto para outras categorias profissionais, visa tutelar, em primeira linha, as relações de confiança que se estabelecem com os clientes e com outros colegas de profissão, que não são postas em crise quando não estão em causa factos relacionadas com o estrito exercício da advocacia.

   Acresce que o local onde decorreram ou onde se teve conhecimento dos factos pode constituir singelo indício, que deve ser ponderado, em conjunto, com os demais elementos do caso, de que essa factualidade se encontra excluída ou incluída no segredo profissional do advogado: assim, por exemplo, factos que foram transmitidos ao advogado no seu próprio escritório, durante o normal horário de atendimento/consulta, por um seu cliente que aí se deslocou, intencionalmente, para tratar ou abordar uma questão ou um assunto de cunho jurídico ou jurisdicional, à partida estarão a coberto de segredo profissional, por presumivelmente respeitarem ao desempenho profissional do advogado.

   Conforme muito a propósito deixou assinalado Augusto Lopes Cardoso inDo Segredo Profissional na Advocacia”, 1998, pág. 26, “Para haver legitimidade e obrigação para a manutenção do segredo forçoso é que, por um lado, se trate de factos conhecidos no exercício da profissão e que, por outro lado, eles sejam relativos a esse exercício.”.

   Logo a seguir, o então Bastonário da Ordem dos Advogados, citando Parecer do Conselho Geral de 30-10-1952, explicita: “por isso (…) não estão incursos nessa categoria de factos os que, embora ocorridos no escritório do Advogado, não eram relativos ao exercício profissional”.

    E acrescenta: “Outra não é também a razão por que o n.º 2 do art.º 135.º CP, como adiante se refere, prevê a possibilidade de a autoridade judiciária ou o Tribunal concluir que o Advogado não tenha «legitimidade» para se escusar a depor em processo crime (e agora, por extensão, em processo cível) com o pretexto de segredo profissional, obrigando-o então ao depoimento”.

    Dito por outras palavras: o advogado não está obrigado a guardar confidencialidade sobre tudo aquilo que lhe é transmitido ou sobre tudo aquilo de que toma conhecimento, mesmo no seu local de trabalho (maxime, escritório de advocacia), mas somente sobre o que diga respeito ao estrito exercício da sua actividade profissional, ou seja, o mandatário só deve guardar segredo sobre os factos e/ou sobre os documentos cuja transmissão (maxime, pelos clientes ou pelos outros colegas de profissão) ou cujo conhecimento digam respeito ao seu desempenho profissional, naturalmente se excluindo deste dever, desde logo pela própria natureza das coisas, os factos que já sejam de conhecimento público.

    Como diz Vitalino Canas, O Segredo Profissional dos Advogados, 2005, supra referido, pág. 797, “Sobre o objecto do segredo profissional, a regra geral é que abrange apenas os factos, ainda não públicos ou publicamente revelados, conhecidos no exercício profissional e relativos a esse exercício. O que está fora não está sujeito a segredo. Estão sujeitos a segredo factos revelados pelo cliente, por ordem de um cliente ou obtidos sobre um cliente no exercício da profissão ou por causa do exercício profissional, mas também os factos sobre a relação com o cliente”.

    O que se deixa explanado permite, de imediato, apontar duas notas delimitadoras, por exclusão, do segredo profissional do advogado: em primeiro lugar, estão excluídos do dever de confidencialidade todos aqueles factos que não se relacionem (directa ou indirectamente) com este desempenho funcional, mesmo que sejam transmitidos ou que cheguem ao conhecimento do advogado no seu local de trabalho; em segundo lugar, estão também excluídos deste dever, pela própria natureza das coisas, os factos que sejam revelados sem factor de reserva ou confidencialidade, como os factos públicos e notórios.

    Já se vê que, mesmo que o advogado venha a infringir este dever de sigilo, revelando factualidade ou dando a conhecer documentos que se considerem estar a coberto do segredo profissional do advogado, o n.º 5 do mencionado artigo 87.º do EOA deixa expressamente consignado que os mesmos não podem fazer prova em juízo, podendo dar origem a uma proibição de prova, por intromissão na vida privada, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 126.º do CPP (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª Edição Actualizada, 2011, nota 21, pág. 199).

    Prosseguindo.

    Estando excluídos, conforme se deixou assinalado, do sigilo profissional todos os factos que não se relacionem directa ou indirectamente com a advocacia, importa então delimitar, para melhor compreender o dever de confidencialidade, o que são actos próprios do advogado, no que se traduz, em concreto, o exercício pelo advogado das suas funções, o que são factos conhecidos no âmbito do exercício profissional do mandatário.

    Para o efeito, importa novamente lançar mão daquilo que é transmitido a este respeito pelo EOA, muito em particular pelos seus artigos 61.º a 63.º, em conjugação com a Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, que define o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores e tipifica o crime de procuradoria ilícita.

    Decorre destes normativos que, grosso modo, as funções do advogado respeitam a toda a actividade de representação do mandante, quer em tribunal (mandato forense), quer em negociações extrajudiciais com vista à constituição, à alteração ou à extinção de relações jurídicas, mas, de igual modo, podem traduzir-se na actividade de mera consulta jurídica, ou seja, de aconselhamento jurídico a solicitação de terceiro.

    O mandato forense está delineado no artigo 2.º da Lei n.º 49/2004, conjugado com o artigo 62.º do EOA e a consulta jurídica no artigo 3.º daquela lei e artigo 63.º do EOA.

    Por conseguinte, o advogado deve guardar segredo profissional quanto a todos os factos que se prendem com estas actividades, com o exercício destas funções de representação do mandante (em juízo ou em negociações) ou de aconselhamento jurídico, casos em que imperam as relações de confiança do advogado com o seu constituinte e de todos os advogados entre si, entenda-se dos advogados que venham a ter, de algum modo, intervenção no litígio ou na composição de interesses antagónicos, por forma a que seja mantida a confidencialidade de toda a factualidade que lhes foi confiada nesse âmbito.

    Em suma: o segredo profissional respeita a factos que sejam atinentes aos actos próprios da advocacia, a saber: o exercício do mandato forense (o mandato é judicial quando se destina a ser exercido em qualquer tribunal); a consulta jurídica; a elaboração de contratos e a prática dos actos preparatórios tendentes à constituição, à alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais; a negociação tendente à cobrança de créditos; o exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de actos administrativos ou tributários; os actos que forem exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional e todos aqueles que resultem do exercício do direito dos cidadãos a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade, como resulta dos n.ºs 5, 6, 7 e 9 do artigo 1.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto e artigos 61.º a 63.º do EOA.

    Noutra perspectiva, o segredo profissional do advogado visa primordialmente a salvaguarda da relação de confiança que se estabelece, num primeiro plano, entre o advogado e o seu constituinte («guardar segredo profissional»  é um dos «deveres do Advogado para com o cliente»), e, num segundo plano, entre todos os advogados que tenham, de algum modo, intervenção no litígio ou na composição de interesses de sinal contrário, por forma a que seja mantida a confidencialidade dos factos.

    Recorrendo uma vez mais aos ensinamentos do Bastonário Augusto Lopes Cardoso (in obra citada, pág. 16) “O serviço «da justiça e do Direito», que deve timbrar o exercício profissional do Advogado, tem a ver com a «honra» e com as «responsabilidades» inerentes.

    Mas estas radicam numa relação de confiança intensa entre o Advogado e aquele que, fazendo fé naquele serviço, naquela honra e naquelas responsabilidades, se lhe «confia», entregando-lhe, como soe dizer-se, a defesa da fazenda e da honra próprias. Para tanto, tal como expressa o ditado popular, o «cliente» devia, ou teve de «dizer-lhe toda a verdade», com tudo o que isso implica de abertura da alma e de capacidade de ser ouvido, e de ser defendido de acordo com critérios de justiça e de oportunidade não isentos de boa dose de subjectivismo.”.

    Adianta, a págs. 17, que “A matriz do sigilo é consectário natural da relação de prestação de serviços profissionais a alguém, o «cliente», em função do qual a profissão existe”.

    Aliás, a tutela da confiança, a confiança merecida e exigida, constitui o denominador comum do segredo de diversas categorias profissionais: o segredo médico assenta numa relação de mútua confiança que se deve estabelecer entre o médico e o seu doente (artigos 85.º a 93.º do Código Deontológico, salientando-se no primeiro que o segredo médico é condição essencial ao relacionamento médico-doente, assenta no interesse moral, social, profissional e ético, que pressupõe e permite uma base de verdade e de mútua confiança); por seu turno, o sigilo profissional do jornalista visa a salvaguarda das suas fontes de informação, como resulta do artigo 11.º do Estatuto do Jornalista, aprovado pela Lei n.º 1/99, de 13 de Janeiro, com as suas sucessivas alterações pela Lei n.º 64/2007, de 6 de Novembro e Rect. n.º 114/2007, de 20 de Dezembro; por último, o sigilo dos solicitadores, à semelhança do segredo dos advogados, visa a salvaguarda da relação de confiança que deve existir entre este profissional e o seu cliente (cfr. artigo 110.º do Estatuto da Câmara dos Solicitadores, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26 de Abril).

    Tal não significa que o segredo profissional vise a tutela de interesses privados dos clientes, dos doentes ou das fontes de informação, já que tem sobretudo em consideração interesses públicos, que se prendem com a boa administração da Justiça, com a saúde pública, com a liberdade de informar característica de um Estado democrático ou mesmo ainda com o adequado desempenho profissional, que apenas poderão vir a ser atingidos caso permaneça intocada essa relação de confiança.

    Como salienta António Arnaut, in Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado, Coimbra Editora, 13.ª edição revista, Setembro 2011, pág. 99: “O cliente ou simples consulente deve ter absoluta confiança no advogado para lhe poder contar toda a verdade, numa verdadeira “confissão”, e saber que ele é um Sésamo que nunca se abre. Outras profissões (médicos, jornalistas, sacerdotes e bancários) estão vinculados ao segredo, mas em nenhuma, como na nossa, é tão forte o vínculo de confiança. O segredo profissional abrange não apenas os factos revelados pelo cliente e pela outra parte, mas também pelos próprios colegas, verbalmente ou por escrito, e em tudo o que se relacione, directa ou indirectamente, com o exercício da profissão”.   

    Traçado este breve quadro sobre o objecto do segredo profissional, é de concluir que, no caso vertente, a intervenção em sede de inquérito do advogado Rodrigo Alves Pires Rodrigues Moreira em nada belisca o artigo 87.º, n.ºs 1, 2, 3 e 7, do EOA, na medida em que, sem margem para quaisquer dúvidas, os factos, os documentos e as diligências em referência em nada se relacionam com assuntos profissionais do advogado. Não está em causa uma relação advogado-cliente, uma actividade no contexto de uma prestação de serviços, de um mandato. Não estão em causa relatos de factos revelados por cliente que tenham sido transmitidos por cliente/consulente.

    Não estão em causa informações sigilosas recolhidas/transmitidas no pressuposto da confidencialidade. Sobre o que debitou, o advogado não era um confidente necessário.

    De acordo com a narrativa da acusação, a arguida AA, que é Magistrada Judicial e exerce funções no Tribunal ---, combinou com a arguida BB, que é advogada com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados, a preparação de processos judiciais que lhe estavam distribuídos no âmbito do seu desempenho profissional de juíza desembargadora, o que esta última fez, procedendo designadamente à elaboração de resumos, à realização de pesquisas jurídicas e à elaboração de projectos de acórdãos.

    Foram essencialmente estes factos que a testemunha em causa relatou em inquérito: a “(…) Juíza Desembargadora do Tribunal --- já teve alguns processos disciplinares pendentes contra si, motivados por questões de pendência processual. Para obviar a este seu problema, a Dra. Joana terá chegado a acordo com a Dra. Alexandra que chega a ser a própria a, em contactos com processos do Tribunal da Relação, formular acórdãos, como se da Dra. Joana se tratasse (…)”, que “(…) já viu no escritório processos do Tribunal da Relação (…), que “(…) no que diz respeito aos processos do Tribunal da Relação em que viu a Dra. Alexandra trabalhar, refere que primeiramente os viu pousados no parapeito do lado da secretária da Dra. Alexandra (…)” e ainda que “(…) a Dra. AA deslocou-se fisicamente ao escritório, tendo conversado com a Dra. Alexandra a propósito da formatação da decisão de outro dos processos (…) (cfr.  autos de inquirição da testemunha de 14 de Dezembro de 2012, de fls. 7 a 11, maxime, a partir de fls. 9 e de 31 de Janeiro de 2013, de fls. 15 a 20, como aquelas do 1.º volume).

    Ao contrário do sustentado pelas requerentes, resulta claro do exposto que estes factos em nada se relacionam com o exercício da advocacia, que as imputadas condutas não se mostram minimamente atinentes ao exercício pelo advogado das suas funções profissionais, que não traduzem a prática de qualquer acto próprio do advogado, pelo que, não se pode sustentar, de modo algum, a violação do segredo profissional do advogado.

    Com o devido respeito, para além do local (escritório de advogados) e dos intervenientes nos factos em apreciação (advogados), mais nenhum outro elemento se relaciona directa ou indirectamente com o exercício de funções profissionais do advogado, muito em particular com o exercício de funções de representação do mandante (em juízo ou em negociações) ou de aconselhamento jurídico.

    Nem tão pouco existe qualquer relação de confiança que se prenda com o exercício de funções de representação forense ou negocial.

    Atendendo à versão dos factos vertida na acusação, em causa estaria um eventual pacto, implícito ou expresso, o seu resguardo, no sentido desta prestação levada a cabo por BB não vir a ser revelada a terceiros, até pelos problemas e incómodos que causariam, mas tudo completamente fora de um quadro em que estivesse em causa qualquer intuito de defesa da boa administração da Justiça, de respeito pela liberdade profissional do advogado ou de efectiva tutela da honra e da fazenda do mandante.

    De acordo com o entendimento perfilhado pelas requerentes, parece que estaria submetido ao segredo profissional do advogado, não tanto aquilo que o hipotético mandante haja comunicado ao hipotético mandatário (por regra, como se viu, os factos principais ou acessórios atinentes a um certo litígio judicial ou extrajudicial), mas antes o próprio acordo ou a própria combinação para a realização de tarefas jurídicas que incumbem, em exclusivo, aos magistrados judiciais, nos termos constitucionais e legais.

    Nesta perspectiva, que é de rejeitar, a tutela da confiança estaria direccionada, não tanto para a factualidade dos casos concretos, para a protecção dos bens jurídicos relativos à relação material controvertida, mas essencialmente para o resguardo/encobrimento do próprio acordo destinado à execução de tarefas tipicamente jurisdicionais, que, sob a guarida do segredo de advogado, nunca poderia ser publicamente revelado.

    Numa palavra:

    Todos os factos atinentes a um acordo para a execução de actos tipicamente integrantes do munus da magistratura judicial (muito em particular, o estudo, a preparação, a pesquisa e a elaboração de acórdãos ou de projectos de acórdãos, no âmbito de processos judiciais, que se encontram pendentes para apreciação, em fase de recurso, num dos tribunais da Relação), ainda que praticados por advogado(s) e no seu escritório, não estão cobertos pelo segredo profissional consignado pelo disposto no artigo 87.º, n.ºs 1, 2, 3 e 7, do EOA.

    Nesta perspectiva fica igualmente englobada a apreciação das declarações prestadas em 8 de Maio de 2014 pela Advogada Joana Cardoso Sá Pereira em sede de interrogatório de arguida, constantes de fls. 816 a 823 do 3.º volume, e a que se reportam os artigos 14 e 15 do requerimento de abertura de instrução de AA.

    Como referia o Dr. Fernando de Castro em Parecer aprovado pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados, em 30 de Outubro de 1952, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 12.º, n.ºs 3 e 4, pág. 404: “Não é de invocar segredo profissional quanto a factos não relacionados com o exercício da profissão”. 

    O segredo profissional do advogado, como não pode deixar de ser, respeita única e exclusivamente ao exercício da advocacia (isto é, ao exercício de funções ou à prestação de serviços relacionados com os actos próprios do advogado: a saber, grosso modo, com a representação forense ou em acto negocial do mandante), não ao desempenho de quaisquer outras funções ou actividades, de cariz profissional (como poderão ser, v.g., arquitectura, engenharia, agricultura) ou de cunho lúdico, desportivo ou cultural.

    Como claro é, não compete à advocacia a execução das tarefas que se mostram descritas na acusação, muito em particular a preparação e a elaboração de projectos de acórdãos a proferir por um tribunal de recurso, o que inculca o exercício de alguma proximidade que não deveria existir, colocando em causa a incontornável e indefectível independência do juiz.

    Perante este enquadramento, salvo o devido respeito por adversa opinião, o cidadão advogado, visado pelos requerimentos de abertura de instrução fez, de modo singelo, uso da faculdade que lhe é conferida pelo artigo 244.º do CPP, ou seja, perante a notícia do que se lhe configurou ser a prática de um eventual crime, denunciou-o às autoridades judiciárias, que estão incumbidas de o investigar, o que veio, aliás, a merecer a concordância por parte do Ministério Público neste Supremo Tribunal.

    Nesta perspectiva, dir-se-á que, caso se configurasse realmente situação de sigilo profissional, ainda seria de colocar a questão de saber se o denunciante estaria perante a necessidade de observância de um dever prevalente.

    A este propósito, veja-se Carlos da Silva Campos, O sigilo profissional do Advogado e seus limites, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 48, Setembro 1988, Lisboa, Tomo II, págs. 471 a 510.

    Aliás, noutro diverso enquadramento, veja-se que a Lei n.º 11/2004, de 27 de Março, que estabeleceu o regime de prevenção e repressão do branqueamento de vantagens de proveniência ilícita, transpondo a Directiva n.º 2001/97/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Dezembro de 2001, publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, L 344, de 28 de Dezembro de 2001, que alterou a Directiva n.º 91/308/CEE, do Conselho, de 10 de Junho, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais, na enunciação dos deveres das entidades não financeiras, abrange sociedades, notários, conservadores de registos, advogados, solicitadores e outros profissionais independentes, que intervenham ou assistam, por conta de um cliente ou noutras circunstâncias, em operações descritas nos pontos i), ii), iii), iv), v) e vi) da alínea f) do artigo 20.º, prevendo o artigo 29.º o dever de exigir a identificação dos clientes dos advogados e solicitadores.

    A transposição da Directiva provocou viva polémica e até oposição dos advogados, como dá conta Vitalino Canas, O Segredo Profissional dos Advogados, 2005, a págs. 791, e ainda a revista Vida Judiciária, n.º 35, Abril de 2000, com interessante texto de Ana Montoya e Madalena Aguiar, a págs. 13 a 25, focando a proposta de alteração da Directiva 91/308/CEE, com audição de vários interessados, como diferentes grupos de advogados e do Ministério Público, expondo as respectivas perspectivas sobre o tema em equação; António Arnaut, Estatuto da Ordem dos Advogados, nota 15, pág. 103, dá conta de que o V Congresso da O. A. (realizada em Maio de 2000) aprovou uma resolução de “repúdio à aprovação de qualquer alteração à Directiva 91-308-EU, do Conselho das Comunidades Europeias, de 10-6-1991, que vá no sentido da colaboração de advogados na prestação de informações com interesse para a investigação de processos sobre branqueamento de capitais”, e pronunciando-se contra a ideia e solução veiculadas, veja-se Augusto Lopes Cardoso, O segredo profissional na advocacia e a proposta da Directiva sobre branqueamento de capitais, in ROA, Ano 60, Dezembro 2000, de págs. 1459 a 1471.

    O mesmo Bastonário pronunciou-se mais tarde sobre o tema em A Directiva sobre o branqueamento de capitais e o segredo profissional da advocacia, in Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 27, Jul-Ag. 2003, págs. 35/6.

    Vitalino Canas volta ao tema em 2008, após a Lei n.º 25/2008, de 5 de Junho (que estabeleceu as medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita e ao financiamento do terrorismo, transpondo para a ordem jurídica interna as Directivas n.º 2005/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Outubro de 2005 e 2006/70/CE, da Comissão, de 1 de Agosto, relativas à prevenção da utilização do sistema financeiro e das actividades e profissões especialmente designadas para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo, procedendo à segunda alteração à Lei n.º 52/2003, de 22-08 (Lei de combate ao terrorismo) e revogando a Lei n.º 11/2004, de 27-03), em As medidas de natureza preventiva contra o branqueamento e o financiamento do terrorismo, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 68, Lisboa, Set./Dez. 2008, págs. 811 a 900, abordando os traços essenciais, os sujeitos dos deveres; os deveres das entidades sujeitas; os deveres do Estado; a exclusão de responsabilidade e no ponto 5 “Em especial: os advogados /e os solicitadores), de págs. 888 a 897, as duas únicas categorias profissionais que podem em Portugal beneficiar do regime especial previsto pelo art. 23.º, n.º 2, da Directiva de 2005 para as profissões forenses.   

 

    Conclui-se assim que os advogados em causa não violaram o segredo profissional.

    Desta forma, sem necessidade de outras considerações, improcedem as questões prévias da prova proibida e da nulidade da prova, invocadas nos requerimentos em apreciação pelas arguidas AA e BB, na parte em que sustentam que a testemunha de acusação CC incorreu em grave violação do segredo profissional de advogado por ter colaborado com a investigação durante a fase processual de inquérito.

    O mesmo se dirá em relação à imputada desviante actuação por parte de EE, no singular conspecto adiantado apenas pela requerente AA nos artigos 14 e 15 do respectivo RAI, substanciado nas declarações prestadas por aquela advogada em inquérito, como arguida, em 8 de Maio de 2014 (fls. 816 a 823 do 3.º volume).

    Assim se concluindo, os actos praticados e as declarações prestadas pelo invectivado Advogado, bem como as declarações prestadas pela Advogada EE, podem fazer prova em juízo.

    Coisa diversa, obviamente, será o seu valor probatório.

                                                                *******

    Passemos à análise da

    

    Perspectiva da conduta do referenciado Advogado Dr. CC, como

    Agente provocador/Agente infiltrado

 

    Ainda na parte do requerimento instrutório respeitante à “Prova proibida”, a requerente AA, no artigo 6.º, a fls. 996, veio defender que o mencionado advogado, a testemunha de acusação CC, “aceitou ser contratado (…) para agir como agente infiltrado e provocador, sob a direcção da Polícia Judiciária, no interior de um escritório dele e de outros advogados com quem se encontrava associado e a quem deveria atrair ─ e trair ─ a ciladas mais ou menos astuciosas.

    E ao longo do inquérito, foi cumprindo a sua prestação contratual, denunciando, revelando, traindo”.

    Por seu turno, secundando o tema e argumentação subjacente, a requerente BB veio sustentar nos artigos 18.º e 19.º do seu requerimento de abertura da instrução, a fls. 1073, que este mesmo advogado “(…) aceitou passar de “colaborador «ad hoc» do PJ para assumir as funções de agente infiltrado nos termos do disposto no artigo 3.º n.º 3 da Lei 101/2001 de 25 de Agosto, tal como consta de folhas 94 (…)” e que “(…) no exercício das anteriores e destas funções, vasculhou os computadores dos seus pares, vasculhou as agendas pessoais dos mesmos, notas pessoais, vasculhou dossiers de clientes que não lhe pertenciam, fotografou (fantástico) o interior do escritório, a localização das secretarias, das pastas (…) fez croquis da localização dos processos nos armários, etc. e etc. (…)”.

    Face a estas alegações/imputações, cumpre averiguar se o mencionado Advogado teve alguma intervenção na fase de investigação deste processo que possa ser qualificada como actuando na qualidade de agente provocador ou de agente infiltrado, bem como se essa hipotética intervenção constitui um método proibido de prova, para efeitos do disposto no artigo 126.º, n.º 3, do CPP, se, por via disso, ocorre a apontada invalidade de toda a prova que teve origem na conduta desse Advogado, muito em particular dos depoimentos que prestou às autoridades judiciárias durante o inquérito na qualidade de testemunha e dos documentos em cuja obtenção teve intervenção, ou que se reportem à sua colaboração.

    O agente provocador e o agente infiltrado

    Como nota preambular da abordagem do tema proposto, importa, desde já, assinalar que a figura do agente infiltrado não se confunde com a do agente provocador, uma e outra figuras que não constituem modos sinónimos de autoria mediata/comparticipação na prática de um comportamento delituoso por parte de sujeito (órgão de polícia criminal ou terceiro, sob supervisão daquele) que se predisponha a colaborar com a investigação, ainda que, por muitas vezes, se levantem fundadas dificuldades práticas em delimitar cada uma destas duas expressões.

    A destrinça entre agente provocador e agente infiltrado (ou agente encoberto) assume incontestável relevância jurídica, na medida em que a intervenção do agente provocador em processo penal é rejeitada, de modo unânime, pela doutrina e pela jurisprudência nacionais, por consubstanciar um meio enganoso de obtenção de prova (e, como tal, proibido, à luz do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 126.º do CPP, na modalidade de perturbação da liberdade de vontade e de decisão através da utilização de meios enganosos), ao passo que as acções encobertas são legalmente admissíveis, uma vez observadas as condições estabelecidas pela Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto, que regula o regime jurídico das acções encobertas para fins de prevenção e de investigação criminal.

    A primeira referência legal no que respeita à investigação e prevenção do crime e destinada ao tratamento e regulamentação da actuação de agentes policiais actuando sem revelar a sua identidade e qualidade surge com o artigo 52.º do Decreto-Lei n.º 430 /83, de 13 de Dezembro, que teve como fonte o § 2.º do artigo 23.º da lei federal suíça de 3 de Outubro de 1951.

    Integrado no Capítulo VI, relativo a Regras especiais de processo, sob a epígrafe (Conduta não punível), estabelecia o artigo 52.º:

1 - Não é punível a conduta do funcionário de investigação criminal que, para fins de inquérito preliminar, e sem revelação da sua qualidade e identidade, aceitar directamente ou por intermédio de um terceiro a entrega de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas.

2 ‑ O relato de tais factos será junto ao processo no prazo máximo de 24 horas.

    Este preceito veio a ser substituído pelo artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que na sua versão original, em consonância com a alínea 52) do artigo 3.º da Lei de autorização legislativa n.º 27/92, de 31de Agosto de 1992, dispunha como segue:

    Artigo 59.º (Conduta não punível)

1 - Não é punível a conduta do funcionário de investigação criminal que, para fins de inquérito e sem revelação da qualidade e identidade, aceitar directamente ou por intermédio de um terceiro a entrega de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas.

2 ‑ O relato de tais factos é junto ao processo no prazo máximo de vinte e quatro horas.

    A este artigo 59.º foi dada nova redacção pela Lei n.º 45/96, de 3 de Setembro, que é a seguinte:

    Artigo 59.º (Condutas não puníveis)

1 - Não é punível a conduta de funcionário de investigação criminal ou de terceiro actuando sob controlo da Polícia Judiciária que, para fins de prevenção ou repressão criminal, com ocultação da sua qualidade e identidade, aceitar, detiver, guardar, transportar ou, em sequência e a solicitação de quem se dedique a essas actividades, entregar estupefacientes, substâncias psicotrópicas, precursores e outros produtos químicos susceptíveis de desvio para o fabrico ilícito de droga ou precursor.

2 - A actuação referida no n.º 1 depende de prévia autorização da autoridade judiciária competente, a proferir no prazo máximo de cinco dias e a conceder por período determinado.

3 - Se, por razões de urgência, não for possível obter a autorização referida no número anterior, deve a intervenção ser validada no primeiro dia útil posterior, fundamentando‑se as razões da urgência.

4 - A Polícia Judiciária fará o relato da intervenção do funcionário ou do terceiro à autoridade judiciária competente no prazo máximo de quarenta e oito horas após o termo daquela.

    O artigo 59.º, bem como o artigo 59.º-A. do Decreto-Lei n.º 15/93, veio a ser revogado pelo artigo 7.º, alínea a), da Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto (acções encobertas).

    A Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro, regulando sobre “Medidas de combate à corrupção e criminalidade económica e financeira” veio alargar a actuação do agente infiltrado a este domínio, através do artigo 6.º - Actos de colaboração ou instrumentais - que estabelecia:

1 – É legítima, com vista à obtenção de provas em fase de inquérito, a prática de actos de colaboração ou instrumentais relativamente aos crimes previstos no n.º 1 do artigo 1.º do presente diploma.

2 – Os actos referidos no número anterior dependem sempre da prévia autorização da autoridade judiciária competente.

    Com a figura legitimava-se a actuação daquele que praticasse actos de colaboração ou instrumentais relativamente aos crimes previstos no n.º 1 do artigo 1.º do diploma, com vista à obtenção de provas em fase de inquérito – n.º 1.

    O artigo 1.º define a competência para realização de acções de prevenção relativas a vários crimes, incluído o peculato, e o artigo 2.º prescreve sobre o dever de documentação e de informação, não podendo os procedimentos a adoptar pelo Ministério Público e pela Polícia Judiciária ofender os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

    Tratava-se de figura nova no nosso ordenamento jurídico e não recondutível aqueloutra do artigo 59.º do Decreto-Lei 15/93 – assim, Manuel Alves Meireis, O regime das provas obtidas pelo agente provocador em processo penal, 1999, pág. 134.

    O artigo 6.º veio a ser revogado pelo artigo 7.º, alínea b), da Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto (acções encobertas).    

     (Como se verá infra, o Tribunal Constitucional pelo Acórdão n.º 456/93, de 12 de Agosto de 1993, Plenário, processo n.º 422/93, publicado no Diário da República, I Série-A, de 9 de Setembro de 1993 e BMJ n.º 429, pág. 369, “chumbara” o Decreto n.º 126/VI da Assembleia da República relativo a “Medidas de combate à corrupção e criminalidade económica e financeira”).

    Com a Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto, é estabelecido o regime jurídico das acções encobertas para fins de prevenção e de investigação criminal.

    (Com a Lei n.º 60/2013, de 23 de Agosto, foi operada a primeira alteração, sendo pelo artigo 3.º alterada a redacção do artigo 2.º).

    Este diploma admite o recurso a acções encobertas para fins de prevenção e de repressão dos crimes (a maioria cabendo nas definições de criminalidade violenta, especialmente violenta e altamente organizada, constantes das definições das alíneas j), l) e m) do artigo 1.º do CPP) que se mostram enunciados nas várias alíneas do seu artigo 2.º (entre outros, na actual alínea n), permite-se a utilização deste meio quando estejam em investigação crimes de corrupção, peculato e participação económica em negócio e tráfico de influências), uma vez observada a sua fiscalização por parte das autoridades judiciárias competentes (juiz de instrução e Ministério Público), nos termos do artigo 3.º.

    As acções encobertas, definidas no artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 101/2001, como “aquelas que sejam desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiro actuando sob o controlo da Polícia Judiciária para prevenção ou repressão dos crimes indicados nesta lei, com ocultação da sua qualidade e identidade”, têm de ser autorizadas, consoante os casos, pelo magistrado do Ministério Público ou pelo juiz de instrução (cfr. artigo 3.º, n.º s 3 e 4, da Lei 101/2001), cabendo à Polícia Judiciária fazer o relato da intervenção do agente encoberto à autoridade judiciária competente no prazo máximo de quarenta e oito horas após o seu termo (n.º 6 do mesmo artigo 3.º).

    Vejamos a Doutrina sobre o tema.

    Na exposição seguir-se-á um critério cronológico quebrado quando um Autor tem mais do que uma intervenção distanciada no tempo.

    Eduardo Henriques da Silva Correia, in Direito Criminal (I - Tentativa e Frustração. II - Comparticipação criminosa. III - Pena conjunta e pena unitária), publicado na Colecção Studium, Coimbra, 1953, ao versar os problemas fundamentais da comparticipação criminosa, concretamente, o conceito de autoria mediata, aborda a figura do agente provocador, dizendo, a págs. 132/3:

    “Agente provocador. O chamado «agent provocateur», ou seja, aquele que procura provocar outrem a executar uma actividade criminosa, não porque a queira, mas só porque pretende arrastar aquele que determina para a punição, parece dever ser punível.

    Todavia, a opinião dominante conclui da necessidade de se referir o dolo ao evento que o «agent provocateur» só será punível quando a sua vontade tenha em vista a realização efectiva do facto, não quando visa uma mera tentativa; de modo que se o agente não quer o resultado, tendo até intenção de o evitar, não o conseguindo porém, pode, quando muito, responder por negligência. A tudo isto parece, entretanto, poder objectar-se que, para haver dolo não é necessária uma intenção directa, bastando antes que se tenha aceitado um evento criminoso como consequência necessária ou possível da actividade que se levou a cabo (dolo eventual), coisa que sucede as mais das vezes – senão sempre – no caso do «agent provocateur». Não há, aliás, nenhuma consideração de utilidade pública que justifique – sem, como diz Hafter, se cair em imoralidade crassa – a aceitação da impunibilidade do «agent provocateur», criação, segundo Singewald, do Estado polícia do absolutismo”.

    Imediatamente antes, na pág. 132, o Autor, ao abordar o requisito Causalidade, afirma ser sempre necessário que o agente mediato tenha causado, pela sua intervenção junto do autor material, a realização do facto, de tal modo que: “se o executor está já resolvido antes daquela intervenção a praticar um certo crime (omnimodo facturus), não se pode falar, relativamente a ele, em autoria mediata”.

   

   Em anotação ao artigo 52.º do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, Lourenço Martins, inDroga – Prevenção e Tratamento…”, 1984, págs. 154/5, dizia: «A figura do agent provocateur deve ser distinguida da figura do agente infiltrado. Existe um «agente provocador» no seu verdadeiro sentido, quando um funcionário (que tem por missão prevenir a prática do crime e descobrir os autores dos crimes já praticados) determina outrem, pela sua conduta, a praticar factos delituosos que, de outro modo, não seriam cometidos por aquele. O «agente infiltrado» (undercover agent) apenas procura descobrir crimes já praticados, coligindo informações ou recolhendo provas, para o que não pode igualmente denunciar a sua qualidade de funcionário.

   Com o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, o artigo 59.º reproduziu o texto e a epígrafe “Conduta não punível” daquele artigo 52.º.

   Lourenço Martins, Nova Lei Anti-Droga: um equilíbrio instável, Centro de Estudos Judiciários, 1993, publicado em Droga e Sociedade - O Novo Enquadramento Legal, Gabinete de Planeamento e de Coordenação do Combate à Droga  (GPCCD), Ministério da Justiça, Lisboa, 1994, págs. 58/9, afirmava:

   “Há que distinguir entre agente provocador e agente infiltrado. O primeiro é «aquele que induz outrem a delinquir com a finalidade de o fazer condenar», por recompensa ou «satisfação moral». O seu uso é antigo e renasce em épocas de poderes totalitários, quanto a crimes políticos.

   O segundo, designado na terminologia anglo-saxónica de «undercover agent», surge nas áreas dos designados crimes sem vítima, da corrupção, das organizações fechadas, ou em crimes de «trato sucessivo», como dizem os espanhóis”.

   O mesmo Autor volta ao tema em Droga e Direito, Colecção Commentarium, Aequitas, Editorial Notícias, 1994, em comentário ao artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 15/93, págs. 273 a 280, aludindo à jurisprudência nacional, ao acórdão do TEDH - Ludi c. Suíça – de 15-06-1992 e posições de Costa Andrade.

   De novo, Lourenço Martins, in Luta contra o tráfico de droga – necessidades da investigação e sistema garantístico, Revista do Ministério Público, Ano 28, Jul-Set 2007, n.º 111, págs. 37 a 55, refere: 

   “A doutrina e a nossa jurisprudência desenham com precisão a figura do agente provocador – aquele que induz outrem a delinquir com a finalidade de o fazer condenar, dando vida a uma intenção de delinquir que não existia – para catalogar como prova proibida a que se obtém através dele.

   Por seu turno, o agente infiltrado é definido como o polícia, ou terceiro por si orientado, que se insinua nos meios em que se praticam crimes, ocultando a sua qualidade, de modo a ganhar a confiança dos criminosos, com vista a obter informações e provas contra eles mas sem os determinar à prática de infracções”.

   Depois de referir que a figura do agente infiltrado foi introduzida no nosso país com o Decreto-Lei 430/83 – art. 52.º a partir do n.º 2 do artigo 23.º da lei federal suíça - transitando sem alteração para o DL 15/93, sendo alterada a redacção em 1996 com alargamento das hipóteses de sua actuação, permitindo-se a entrega de droga pelo infiltrado (a venda?), reporta a Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto, estendendo-se a possibilidade de acções encobertas a uma lista alargada de crimes graves, enfatizando o princípio da proporcionalidade no seu uso, sendo de realçar positivamente o controlo pela autoridade judiciária, pois ao apreciarem esta técnica investigatória, os tribunais têm procurado saber se houve provocação (proibida) ou mera infiltração, e se as regras de procedimento foram observadas.

   

    Manuel Costa Andrade, “Sobre as proibições de prova em Processo Penal”, Coimbra Editora, 1992, ora, 1.ª Edição (Reimpressão) Outubro de 2013, a págs. 220, ao abordar os métodos proibidos de prova e a intervenção dos chamados homens de confiança, adopta um conceito extensivo, abrangendo “todas as testemunhas que colaborem com as instâncias formais da perseguição penal, tendo como contrapartida a promessa da confidencialidade da sua identidade e actividade. Cabem aqui tanto os particulares (pertencentes ou não ao submundo da criminalidade) como os agentes das instâncias formais, nomeadamente da polícia (Untergrundfahnder, under cover agent, agente encoberto ou infiltrado), que disfarçadamente se introduzem naquele submundo ou com ele entram em contacto; e quer se limitem à recolha de informações (Polizeispitzel, detection), quer vão ao encontro de provocar eles próprios a prática do crime (Polizeiliche Lockspitzel, agent provocateur, entrapment).

    A propósito das dificuldades de distinção dos protagonistas, assinala o Autor, a págs. 221, que “ (…) as dificuldades começam logo a ganhar relevo quando se questiona a legitimidade ético-jurídica do procedimento (…)”, quando “(…) o homem de confiança se converte em agent provocateur, precipitando de algum modo o crime: instigando-o, induzindo-o, nomeadamente, aparecendo como comprador ou fornecedor de bens ou serviços ilícitos”.

    Para João Ramos Sousa, in Sub Judice, n.º 3, 1992, Maio/Agosto, Léxico, pág. 79, e n.º 4, 1992, Setembro /Dezembro, pág. 138, agente infiltrado é o agente policial que se insinua junto dos autores e cúmplices do crime, ocultando a sua qualidade e identidade e ganhando a confiança destes, a fim de obter informações e provas contra eles, mas sem os determinar à prática de novas infracções – também é chamado homem de confiança ou agente encoberto (V-Mann ou Vertrauens-Maan em alemão, undercover agent em inglês).

   Adianta “A admissibilidade ética e jurídica da prova obtida pelo agente infiltrado tem sido posta cada vez mais em causa, argumentando-se ser muito ténue a linha que separa o agente infiltrado do agente provocador, e que no fundo quando no processo surge um agente infiltrado, é certo e sabido que o que na realidade houve foi um agente provocador”.

    Por seu turno, agente provocador é o agente policial (ou colaborador) utilizado para induzir o suspeito à prática de actos ilícitos, pelos quais possa ser incriminado; é também instigador ou co-autor do crime, mas só o é para com isso conseguir provas contra o suspeito, sendo a intervenção do agente provocador exemplo de prova obtida por meios enganosos (artigo 126.º-2-a) do CPP).

    Para o Autor, as situações então previstas no artigo 52.º do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13/12 e na autorização legislativa da Lei n.º 27/92, de 31/8, enquadravam-se na figura do agente provocador e não na do agente infiltrado.

    Mais à frente, afirma: A actividade do agente provocador resvala frequentemente para situações de corrupção e de criminalidade organizada por agentes policiais.

    Dá conta de vários exemplos típicos conhecidos em Portugal e de três casos célebres, que envolveram desvios de droga e escândalos ocorridos em 1979 e 1980, que abalaram a PJ e o então CICD, organização policial especializada no combate à droga.

    O efeito à distância e entrega controlada são definidos a págs. 143.

 

    Ferreira de Sousa, na colectânea Decisões de Tribunais de 1.ª Instância, Comentários, 1994, publicado pelo Gabinete de Planeamento e de Coordenação do Combate à Droga (GPCCD), 1997, a págs. 157/8, a propósito da figura do agente provocador e do agente encoberto ou infiltrado, afirma ser necessário distinguir entre a criação de uma intenção/resolução criminosa até então inexistente, e aqueles casos em que o sujeito já está decidido a delinquir e a incitação apenas pôs em marcha uma decisão previamente tomada.

    Por outras palavras: importa distinguir entre a criação de uma oportunidade com vista à realização de uma intenção criminosa e a criação desta mesma intenção, sendo então legítimo questionar se a intenção de cometer a infracção tem a sua origem no espírito do suspeito ou no espírito do agente (provocador).

    Enquanto o agente provocador fez nascer ou reforçar a resolução criminosa, a acção do agente encoberto não suscitou infracção, limitando-se a «infiltrar» na organização, com objectivo de descobrir e fazer punir o criminoso, não actuando pois para dar vida ao crime, mas com uma pretensão de descoberta.

    Conclui que o ordenamento jurídico vigente entre nós não prevê a figura do agente provocador, mas reconhece e aceita a figura do agente infiltrado, nos precisos termos que o artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 15/93 especifica. (O comentário - relembre-se - é de 1997, incidindo sobre norma vigente em 1994 aplicada na decisão comentada, tendo o citado artigo 59.º sido alterado em 1996 pela Lei n.º 45/96, de 3 de Setembro).

    O agente infiltrado tem em comum com o agente provocador a ocultação da sua identidade e/ou da sua actuação, ou seja, estas testemunhas privilegiadas dos factos criminosos não deixam transparecer perante os sujeitos que estão a ser investigados a sua verdadeira identidade (a qualidade de órgão de polícia criminal ou de terceiro que se encontra a colaborar com as autoridades judiciárias), nem tão pouco deixam conhecer que estão no cumprimento de uma missão que se prende com a prevenção da criminalidade.

    Já se vê que o secretismo do agente (infiltrado ou provocador) constitui o primordial factor de sucesso da sua actuação: se não ocultar a sua identidade e/ou a sua actividade, não ganhará a confiança dos sujeitos que estão a ser alvo da investigação criminal e, se não for deste modo, não conseguirá recolher provas da actividade criminosa desenvolvida, nem tão pouco tomará conhecimento de hipotéticos factos que interessam à investigação criminal.

    Todavia, são distintos os traços caracterizadores destas duas figuras.

    Enquanto que a actuação do agente infiltrado consubstancia, por via da regra, a intromissão num grupo com predisposição criminosa, com o intuito de ganhar a confiança dos seus membros e de aguardar pela eventual prática de actos criminosos, por forma a recolher prova para os incriminar em juízo, o agente provocador caracteriza-se por assumir, de modo activo, o domínio do facto, por ser ele a desencadear a produção desses comportamentos delituosos e a determinar os sujeitos investigados a terem neles participação.

    O agente infiltrado insinua-se junto de grupos ou de organizações que se dedicam, de modo habitual, à prática de crimes, mas não desencadeia o processo tendente à prática do delito, ainda que nele possa vir a ter participação, ao passo que o agente provocador, de modo activo, induz os suspeitos em investigação a execução do crime, pondo em marcha o plano por si delineado, com a intenção de contra eles vir a obter elementos de prova.

    Mário Ferreira Monte, in A relevância da actuação dos agentes infiltrados ou provocadores no processo penal, publicado na Scientia Ivridica, Janeiro-Junho 1997 - Tomo XLVI - n.º 265/267, em anotação ao Relatório da Comissão Europeia dos Direitos do Homem, adoptado em 25-02-1997, relativo à queixa n.º 25829/94 contra Portugal, tendo como base o acórdão do STJ de 5 de Maio de 1994, infra referido (Caso Teixeira de Castro), a págs. 183 a 202, refere que o critério de delimitação da licitude de actividade dos homens de confiança “em regra é de aceitar o homem de confiança mas não o agente provocador. Excepcionalmente, porém, o agente provocador será de aceitar se respeitar certos pressupostos, quais sejam o da sua actuação ser necessária em concreto, justificada por razões de política criminal e teleologicamente fundada na prevenção, desde que inviolável o princípio da dignidade da pessoa humana”.

    A terminar, considera o Anotador não haver dúvidas que o artigo 126.º, n.º 2, alínea a), do CPP, apesar de proibir em geral a utilização de meios enganosos de prova, e de por via disso, fazer cair o agente provocador na sua previsão, não impede em absoluto a actuação de agentes encobertos, e por outro lado, não é por acaso que a actuação do agente encoberto está expressamente prevista e quase que excepcionalmente, justamente para o tráfico de estupefacientes no artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 15/93, como acontecia já com o artigo 52.º do Decreto-Lei n.º 430/83, apesar de aqui não estar feita a distinção entre agente infiltrado e provocador.

     Germano Marques da Silva, em “Bufos, infiltrados, provocadores e arrependidos”, in Direito e Justiça, Vol. VIII, Tomo 2 (1994), afirma a págs. 27 e ss. «Uma das técnicas usadas pelas polícias na investigação criminal é a de infiltração de agentes seus em grupos de criminosos para mais facilmente descobrirem o crime, os criminosos e as provas.

    Destacam-se os agentes provocadores e os agentes infiltrados ou encobertos e a disciplina de uns e outros é muito diversa».

    Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, 2.ª edição (determinada pelas alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto), Editorial Verbo, 1999, II volume, pág. 159, começa por referir que uma das técnicas usadas pelas polícias na investigação criminal é a de infiltração de agentes seus em grupos de criminosos para mais facilmente descobrirem o crime, os criminosos e as provas. Destacam-se os agentes provocadores e os agentes infiltrados ou encobertos e a disciplina de uns e outros é muito diversa.  

    Numa concepção não democrática da sociedade pode considerar-se a provocação ao crime como método legítimo para combater a criminalidade (…), que «a ocasião faz o ladrão» porque a pessoa já teria tendência para o mal e aproveitaria todas as oportunidades para praticá-lo.

    Não assim numa concepção democrática que, admitindo a fraqueza humana, considera que a ocasião, na forma de provocação, não revela apenas a apetência natural ou intrínseca para a criminalidade, mas pode fazer vacilar aquele que, como a grande maioria de nós, sendo capaz de roçar os limites do ilícito, não os ultrapassa espontaneamente, não comete o crime senão por causa da provocação. (…) É de excluir liminarmente como método de investigação criminal a provocação ao crime.

    É que a provocação não é apenas informativa, mas é formativa; não revela o crime e o criminoso, mas cria o próprio crime e o próprio criminoso. A provocação, causando o crime, é inaceitável como método de investigação criminal, uma vez que gera o seu próprio objecto. (págs. 159/160).

    E finaliza a págs. 161, dizendo: “A questão dos agentes informadores e infiltrados não tem, porém, a mesma tensão da dos agentes provocadores; estes são sempre inadmissíveis, porque agentes do próprio crime, e em circunstância alguma se pode admitir que a Justiça actue por meios ilícitos e que o combate à criminalidade se possa fazer por meios criminosos; agentes informadores e infiltrados não participam na prática do crime, a sua actividade não é constitutiva do crime, mas apenas informativa, e, por isso, é de admitir que, no limite, se possa recorrer a estes meios de investigação”, referindo ainda o princípio da lealdade para fundamentar a ilegitimidade do recurso aos agentes provocadores e consequente proibição da prova obtida por esse meio.

    Manuel Augusto Alves Meireis, O regime das provas obtidas pelo agente provocador em processo penal, 1999, Almedina, em Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, abordando o agente provocador no sistema português, conclui após análise das figuras previstas no artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 15/93 e no artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 36/94, que nem um nem outro são agentes provocadores.

    Analisados os acórdãos deste Supremo de 12-06-1990, 14-11-1991 e 5-05-1994, e a sentença de 5-03-1993, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Oeiras, a fls. 151, considera estar perante a figura do fictus emptor como modalidade do agente provocador. 

    O Autor entende – fls. 163/4 – o agente infiltrado como aquele agente da autoridade ou cidadão particular (mas que actue de forma concertada com a polícia) que, sem revelar a sua identidade ou qualidade e com o fim de obter provas para a incriminação do(s) suspeito(s), ou então simplesmente, para a obtenção da notitia criminis, ganha a sua confiança pessoal, mantendo-se a par dos acontecimentos, acompanhando a execução dos factos, praticando actos de execução se necessário for, por forma a conseguir a informação necessária ao fim a que se propõe.

    Quanto ao agente encoberto, figura mais afastada do agente provocador do que o agente infiltrado, o que o caracteriza, segundo o Autor – fls. 192 – é a sua absoluta passividade relativamente à decisão criminosa.

    É um agente da autoridade ou alguém que com ele actua de forma concertada, que sem revelar a sua identidade ou qualidade, frequenta os meios conotados com o crime na esperança de descobrir possíveis delinquentes; não provoca ao crime, nem conquista a confiança de ninguém. A sua presença e a sua qualidade é indiferente para determinar o rumo dos acontecimentos; naquele lugar e naquele momento poderia estar qualquer outra pessoa e as coisas aconteceriam da mesma forma; aqui o risco corre, no todo, por conta do delinquente.

    Invocando o princípio da dignidade da pessoa humana, pronuncia-se pela interdição absoluta, ou seja, independente do tipo de criminalidade em causa, da figura do agente provocador e consequentemente pela nulidade absoluta dos meios de prova por ele obtidos; as provas obtidas pelo agente provocador, em processo penal, são nulas, não podendo ser utilizadas, excepto para proceder criminalmente contra quem as produziu. Estar-se-á perante uma prova nula não recondutível a nenhuma das categorias de nulidade previstas no CPP, e a que por isso, chama nulidades de prova. O chamado efeito - à - distância das proibições de prova tem aqui a sua plena aplicação como forma de obstar a uma irreparável frustração das proibições de prova. (fls. 249/250).

    Relativamente à actuação do agente infiltrado, considera-a admissível, com base no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, desde que reunidos os pressupostos da legalidade, necessidade, proporcionalidade e não violação do núcleo essencial do direito.

    Como refere a págs. 193, “As provas obtidas pelo agente encoberto são válidas e trata-se de um método de obtenção de prova que não choca a consciência colectiva e não mancha a imagem do Estado; trata-se de uma verdadeira medida de profilaxia criminal”.

     

    Eduardo Maia Costa, Revista do Ministério Público, Ano 21, Jan/Mar 2000, n.º 81, págs. 155 a 174, em comentário à sentença de 9 de Junho de 1998 do TEDH no caso Teixeira de Castro contra Portugal, afirma:

    “A decisão do TEDH não deixa de se pronunciar, em tese geral, pela aceitação do agente infiltrado, mas não do agente provocador.

    Da análise do ordenamento português, retira duas conclusões. A primeira é que os meios enganosos de prova (e concretamente o agente provocador e mesmo o agente infiltrado) são em geral proibidos, face ao teor do art. 126.º do Código de Processo Penal.

    A segunda é que, em certos tipos de criminalidade, cuja danosidade é maior e onde o nível de organização e sofisticação da delinquência é mais elevado, poderão ser admitidos alguns desvios ao regime geral, na estrita medida em que forem necessários para reforçar a eficiência da investigação.

    Com um limite, porém: esse acréscimo de eficiência não pode em caso algum impor um sacrifício total ou intolerável dos direitos fundamentais.

    O critério de distinção entre o tolerável e o intolerável tem de se fundar na proscrição dos méis de prova que atentam frontalmente contra a dignidade da pessoa humana, manipulando a sua consciência e a sua vontade.

    A págs. 173, afirma: O agente provocador, entendido como aquele que determina o arguido à prática de um ilícito, com o objectivo de o incriminar precisamente pelo acto provocado, constitui um meio de prova absolutamente proibido.

    Já a conduta do agente infiltrado será constitucionalmente admissível, mau grado constituir um «meio enganoso» de prova, mas só perante certos pressupostos: aqueles que decorrem do princípio constitucional da proporcionalidade, em síntese, os de estrita necessidade, adequação e proibição do excesso de tal mecanismo.

    Fátima Mata Mouros in O agente infiltrado, em conferência proferida no III Seminário de Magistrados do Sul da Europa especializados na luta contra o tráfico de estupefacientes, a 10 de Novembro de 2000, in Revista do Ministério Público, Ano 22, Jan/Mar 2001, n.º 85, a págs. 105 a 120, aborda a problemática da necessidade do controlo heterónomo e controlo judicial da prova adquirida por homens de confiança.

    Susana Aires de Sousa, Agent provocateur e meios enganosos de prova. Algumas reflexões, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, págs. 1207 a 1235, aborda a prova obtida pelos chamados homens de confiança, expressão entendida na doutrina e na jurisprudência como um conceito extensivo que abrange «todas as testemunhas que colaboram com as instâncias formais de perseguição penal, tendo como contrapartida a promessa da sua confidencialidade da sua identidade e actividade».

    “O agente infiltrado é uma técnica de investigação que consiste essencialmente, na possibilidade de agentes da polícia criminal ou terceiros sob a sua direcção contactarem os suspeitos da prática de um crime com ocultação da sua verdadeira identidade, actuando de maneira a impedir a prática de crimes ou a reunir provas que permitam a efectiva condenação dos criminosos. O agente provocador é definido, invocando o acórdão do STJ de 13-01-1999, processo n.º 98P999, como o «membro da autoridade policial ou um civil comandado pela polícia, que induz outrem a delinquir por forma a facilitar a recolha de provas da ocorrência do facto criminoso».

    Ou seja o agente provocador induz, impulsiona o suspeito à prática de actos ilícitos, agindo, por exemplo, como comprador ou fornecedor de bens ou serviço ilícitos. O agente infiltrado limita-se a ganhar a confiança do suspeito, para ter acesso a informações, planos, confidências”. 

    Refere, a fls. 1223, o relativo consenso doutrinal e jurisprudencial quanto à admissibilidade processual das provas obtidas pelo agente infiltrado, contrariamente à reconhecida invalidade, sob a forma de nulidade, inerente à actividade probatória do provocador.

    E acrescenta, de seguida: “Entende-se que a provocação é um meio enganoso de obtenção de prova, como tal proibido pela parte final da alínea a) do n.º 2 do artigo 126.º do CPP e pelo n.º 2 do artigo 38.º da CRP, enquanto ofensiva da integridade moral das pessoas”.    

    Mais à frente, a págs. 1231, afirma que a corrente doutrinária dominante em Portugal é no sentido de enquadrar a figura do agente provocador nos métodos proibidos de prova, sub specie meios enganosos.

    Dentro do conceito extensivo de homens de confiança a doutrina tem procurado distinguir as figuras do agente provocador e do agente infiltrado de forma a considerar que a figura que o legislador tinha vindo a admitir, em legislação especial, desde 1983 é somente a do agente infiltrado, inclinando-se a jurisprudência firmada no sentido de considerar nulas as provas obtidas mediante provocação, por se tratar de um meio enganoso de prova, referindo a Autora o caso de Teixeira de Castro contra Portugal em que o TEDH condenou o Estado português por violação do artigo 6.º, § 1, da CEDH.

    (O citado acórdão do STJ de 13-01-1999, processo n.º 98P999 é mencionado na listagem infra, tendo “dado origem” ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 76/2001).

    Sandra Pereira, A recolha de prova por agente infiltrado, em estudo produzido pela Autora e inserto na colectânea de textos avulsos integrados in Prova criminal e direito de defesa. Estudos sobre teoria da prova e garantias de defesa em processo penal (obra colectiva com nove protagonistas, com coordenação de Teresa Pizarro Beleza e Frederico de Lacerda da Costa Pinto, publicada pela Almedina, em Janeiro, 2010), passa em análise a distinção dos conceitos de homens de confiança, agente provocador, agente infiltrado, agente encoberto, as posições doutrinais de Manuel da Costa Andrade em Sobre as proibições de prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 1992, de Germano Marques da Silva, em Bufos, infiltrados e arrependidos. Os princípios Democrático e da Lealdade em processo penal, in Direito e Justiça, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica, Volume VIII, II, 1994, de Manuel Augusto Alves Mereis, Homens de confiança, in II Congresso de Processo Penal, Almedina, Lisboa, 2006, e de Isabel Oneto, O agente infiltrado: contributo para a compreensão do regime jurídico das acções encobertas, publicado pela Coimbra Editora em 2005.

    Dos comentários feitos pelos Coordenadores da colectânea na “Nota de Apresentação” à introdução da obra colectiva, a fls. 8, consta: “A recolha de prova por agente infiltrado é analisada por Sandra Pereira que, partindo de uma análise segura do regime das acções encobertas, sublinha, entre outros aspectos, a necessidade de se proceder, por um lado, à rigorosa delimitação dessa actuação em relação à figura o agente provocador e, por outro, a importância de – na medida do possível – se acautelar no depoimento de agentes encobertos a proibição de valoração do depoimento indirecto. A amplitude da lei neste domínio específico do depoimento do agente infiltrado não é isenta de críticas, como refere a Autora”.

    A Autora entende, após exposição das diversas concepções doutrinais sobre a delimitação dos conceitos de agente infiltrado e afins (desde Costa Andrade a Germano Marques da Silva, passando por Manuel Augusto Alves Mereis e Isabel Oneto), a pág. 143, que “a distinção entre agente provocador e agente infiltrado terá de utilizar os critérios relativos ao grau de intervenção do agente no desenrolar dos factos e ao contributo do mesmo para a formação da vontade criminosa, ou seja, para a prática do crime.

    Assim - explicita a Autora - “no nosso entendimento, o agente infiltrado será aquele sujeito (agente da autoridade ou terceiro por si comandado) que não determina outrem à prática do crime, mantendo-se à margem da formação da vontade de cometer o ilícito criminal. Limitar-se-á a observar a eventual prática de crimes e, se necessário, acompanhará a execução dos mesmos. Já o agente provocador comportar-se-á, na essência, como um instigador, tendo um papel determinante na ocorrência do crime. A sua actuação, em maior ou menor medida, precipita a ocorrência do crime, pois sem a sua intervenção o mesmo não se teria verificado. Aliás, mesmo que a vontade criminosa possa já existir (algo, no mínimo, difícil de aferir), se o agente apoiar decisivamente essa vontade, fazendo com que ela se manifeste e se concretize efectivamente, então, nesse caso, estaremos perante um agente provocador”.

    Prossegue a Autora, a fls. 143: “Quanto à distinção entre agente encoberto e agente infiltrado, julgamos que ela não é de importância capital”, pois tal como Isabel Oneto, entende que a Lei n.º 101/2001 é aplicável a ambas as figuras, independentemente de elas serem autonomizáveis ou não. “Dito de outra forma, este regime jurídico abrange, quer as condutas identificadas como típicas de agente infiltrado, quer as características do agente encoberto”.

    Aborda ainda a Autora o regime legal das acções encobertas, crimes abrangidos, quem pode ser agente infiltrado, o relato do agente infiltrado, admissibilidade de depoimento em audiência de julgamento e valor probatório, referenciando, a fls. 150, o acórdão de 30 de Outubro de 2002 (e não, obviamente, de 30-02-2002, como consta por manifesto lapso de escrita da nota de rodapé n.º 32 de fls. 150), como se verá noutro local, tratando-se de acórdão analisado por Maia Costa (Revista do Ministério Público, Ano 94-2003, n.º 93, págs. 161 a 172) e por Ana Rita de Melo Justo (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 16 - 2006, n.º 3, págs. 497 a 512).

    José Luís Guzmán Dalbora, O delito experimental, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 18, n.º 1, Janeiro/Março 2008, págs. 7 a 31, define o crime experimental como o que serve de experiência, constituindo um grupo autónomo na tipologia dos crimes, tratando-se de uma realização de actividades que a lei penal descreve como criminosas, realizadas com o desígnio de demonstrar, comprovar ou simplesmente descobrir algum ponto de interesse para o artífice da experiência (págs. 13).

    A págs. 17, afirma que o agente provocador, também chamado instigador aparente, é sem dúvida a figura mais conhecida da experimentação, se bem que a dogmática jurídica ainda não aceite bem responder com segurança à pergunta sobre o juízo que merece esta intervenção nos factos que provoca, apoia ou co-executa, por outras palavras, se deve ou não responder penalmente por eles.

    Convoca as definições de agente encoberto e agente provocador descritas na Lei chilena n.º 20 000, de 16 de Fevereiro de 2005, sobre estupefacientes - pág. 27 -, sendo o primeiro “o funcionário policial que oculta a sua identidade oficial e se envolve ou introduz nas organizações criminosas [sic] ou em meras associações ou agrupamentos com propósitos criminais, com o objectivo de identificar os participantes, reunir informação e recolher antecedente relevantes para a investigação”; imediatamente a seguir, emprega o eufemismo de chamar agente «revelador» ao “funcionário policial que simula ser comprador ou adquirente, para si ou para terceiros, de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, com o propósito de conseguir a manifestação ou o apoderamento da droga”, e, finalmente, declara ambos “isentos de responsabilidade criminal por aqueles delitos em que incorram ou que não tenham podido impedir, sempre que sejam consequência necessária do desenvolvimento da investigação e mantenham a devida proporcionalidade com a finalidade, em si mesma”.

    Conclui - pág. 30 - não resultar lícito utilizar meios criminosos para demonstrar empiricamente um qualquer fim que proteja o autor da experiência.       

    No Código de Processo Penal, Comentários e notas práticas dos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora, Abril 2009, em anotação ao artigo 126.º, pág. 326, afirma-se ser hoje em dia praticamente unânime a admissibilidade/validade da prova adquirida pelo agente infiltrado, o mesmo não podendo dizer-se do agente provocador.   

       No Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 146/2001, datado de 16 de Maio de 2002, versando a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, adoptada pela Assembleia Geral da «Organização das Nações Unidas» (ONU) em 15 de Novembro de 2000 e aberta à assinatura numa Conferência que decorreu em Palermo, entre 12 e 15 de Dezembro de 2000, e os seus dois primeiros Protocolos Adicionais, relativos à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, e ao Tráfico Ilícito de Migrantes por via terrestre, marítima e aérea, abertos à assinatura na mesma Conferência de Palermo, pode ler-se no ponto 9.1.2. “Considera-se actuação de agente infiltrado ou encoberto a que é desenvolvida por funcionário de investigação criminal ou por terceiro sob controlo policial, com ocultação da sua qualidade e identidade, para prevenção ou repressão dos crimes abrangidos, mediante autorização prévia de autoridade judiciária”.

     Referindo-se à Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto, afirma-se: “Prevê esse diploma um regime de protecção do agente encoberto, que assenta na atribuição de identidade fictícia, isenção de responsabilidade penal e na utilização em certas condições da prova recolhida pela acção do infiltrado”.

    A distinção das figuras na jurisprudência

 

 

   A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem considerado, sem divergências de assinalar, ser legalmente inadmissível a prova obtida com recurso a(s) agente(s) provocador(es), por representar uma forma de investigação eticamente inaceitável num Estado de direito democrático, que se traduz no incentivo à prática de actividades delituosas, desencadeado pelas próprias autoridades judiciárias, com o primordial intuito de recolha de provas, de forma desleal, contra aquelas pessoas que sejam tidas por suspeitas ou que denotem predisposição para o cometimento de actos ilícitos.

 

   Vejamos as abordagens do agente provocador e infiltrado e conexão com métodos proibidos de prova na Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, do Tribunal Constitucional e deste Supremo Tribunal de Justiça.

    O Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 15 de Junho de 1992, Caso Ludi contra a Suíça, in Sub Judice, n.º 3, 1992, Maio/Agosto, págs. 163 a 172, concluindo pela violação dos parágrafos 1 e 3, alínea d) do artigo 6.º da Convenção dos Direitos do Homem, disse: “A infiltração de um agente policial ajuramentado numa suposta rede de tráfico de cocaína não viola a esfera da vida privada do suspeito, mesmo que tenha havido depois intercepção de comunicações telefónicas entre o agente e o suspeito. Todavia, para que os relatórios do agente infiltrado e a transcrição das comunicações telefónicas possam valer como prova, o arguido deverá ter depois a possibilidade de obter a comparência desse agente infiltrado em juízo, a fim de poder inquiri-lo como testemunha e eventualmente pôr em causa a credibilidade dos elementos probatórios por ele produzidos e obtidos. Sem isso, será violado o direito do arguido a um processo equitativo”. (Citado no acórdão de 15-01-1997, no processo n.º 870/96, in BMJ n.º 463, pág. 226, e na CJSTJ 1997, tomo 1, pág. 185).

    Lourenço Martins, em Droga e Direito, Aequitas, Editorial Notícias, 1994, págs. 275/6, comentou este acórdão, dando esta versão do que disse o acórdão: “A infiltração de um agente de polícia ajuramentado numa suposta rede de tráfico de cocaína, por meio de contactos que permitam conhecer uma conduta criminal que se produziria de maneira análoga ou semelhante mesmo sem a sua intervenção, não viola a esfera da vida privada do suspeito, no sentido do artigo 8.º da CEDH. (…)

    Os elementos de prova devem em princípio ser produzidos perante o acusado em audiência pública, com vista ao debate contraditório, criando-se a oportunidade ao acusado ou ao seu defensor de pôr em dúvida a credibilidade das declarações do agente infiltrado, sob pena de violação do direito a um processo equitativo – artigo 6.º, n.º 3 da Convenção – violação que se verificou no caso.

    O Tribunal Europeu entendeu que era possível tê-lo feito tomando em conta «o interesse legítimo das autoridades de polícia, numa investigação de tráfico de modo a preservar o anonimato do seu agente não só para sua protecção como também para o utilizar no futuro».

    O Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 9 de Junho de 1998 (Caso Teixeira de Castro contra Portugal), na sequência da queixa “Requête” n.º 25829/94 apresentada por M. Francisco Teixeira de Castro contra Portugal e da decisão contida no Relatório da Comissão Europeia dos Direitos do Homem, adoptado em 25 de Fevereiro de 1997 (anotado, como vimos, por Mário Ferreira Monte, in SCIENTIA IVRIDICA), concluiu pela violação do artigo 6.º § 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

    O recorrente fora condenado pelo Tribunal Judicial de Santo Tirso na pena de 6 anos de prisão pela prática de crime de tráfico de estupefacientes, confirmada pelo acórdão do STJ de 5 de Maio de 1994, proferido no processo n.º 46 385, CJSTJ 1994, tomo 2, pág. 215 (infra referenciado).

    O Tribunal Europeu afastou, por unanimidade, as alegadas violações dos artigos 3.º e 8.º da Convenção dos Direitos do Homem, uma e outra por oito votos contra um, e com base na violação do artigo 6.º, § 1.º, condenou o Estado Português a pagar em três meses a quantia de 10.000.000$00, por danos materiais e morais, acrescida de  juros de mora de 10% ao ano.

                                                              *******

    A utilização de meios enganosos de obtenção de prova previstos na alínea a) do n.º 2 do artigo 126.º do Código de Processo Penal tem sido abordada, em diferentes margens e perante diversos condicionalismos fácticos, pelo Tribunal Constitucional e Supremo Tribunal de Justiça.

    Tribunal Constitucional

 

    Acórdão n.º 456/93, de 12 de Agosto de 1993, Plenário, processo n.º 422/93, publicado no Diário da República, I Série-A, de 9 de Setembro de 1993 e BMJ n.º 429, pág. 369, teve em vista a apreciação preventiva da constitucionalidade do artigo 1.º, n.º 1, 2 e 3, alínea a) e artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto n.º 126/VI da Assembleia da República relativo a “Medidas de combate à corrupção e criminalidade económica e financeira”.

     Em causa, as acções de prevenção cometidas à iniciativa própria da Polícia Judiciária, no denominado pré - inquérito a realizar pela Polícia Judiciária.

     Foi entendido que as “acções de prevenção” previstas no diploma desequilibram desrazoavelmente a ponderação meio-fim ínsita na vertente apontada do princípio da proporcionalidade e susceptibilizam, no modo como estão concebidas, desproporcionadamente, a violação do núcleo essencial do direito fundamental que é o da reserva da intimidade da vida privada (…) excessivamente exposto na sua esfera pessoal íntima, por tempo indeterminado e à revelia de qualquer controlo judiciário ou jurisdicional.  

    O acórdão pronunciou-se pela inconstitucionalidade das disposições em causa, por violação do disposto no artigo 26.º, n.º 1, e do princípio da proporcionalidade da lei, decorrente das disposições dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2 e 272.º, n.º 3, todos da Constituição da República.

     (As acções de prevenção enquadradas nas medidas de combate à corrupção e criminalidade económica e financeira vieram a ser consagradas, mais tarde, na Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro).

    Sobre o princípio da liberdade de prova em processo penal e sobre a ideia de deslealdade que se pode ligar a esta ou àquela técnica de investigação, visando no concreto a actuação de agente infiltrado, tendo em vista a análise do conceito plasmado no artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 15/93, na versão inicial, pronunciou-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 578/98, de 14 de Outubro de 1998, proferido no processo n.º 835/98, da 3.ª Secção, publicado in Diário da República, II Série, de 26 de Fevereiro de 1998, pág. 2951 (e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 41.º volume).

    O recurso foi interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Julho de 1998, cumprindo decidir se a norma constante do artigo 59.º do Decreto‑Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com o sentido da não necessidade da existência prévia de inquérito a decorrer para efeitos da actuação do agente infiltrado, era ou não inconstitucional.

   Depois de se reconhecer que a diferença entre agente infiltrado e agente provocador “é, por vezes, bem ténue”, que é “inquestionável a inadmissibilidade da prova obtida por agente provocador, pois seria imoral que, num Estado de Direito, se fosse punir aquele que um agente estadual induziu ou instigou a delinquir”, e que uma “tal desonestidade seria de todo incompatível com o que, num Estado de Direito, se espera que seja o comportamento das autoridades e agentes da justiça penal, que deve pautar-se pelas regras gerais da ética”, acaba-se por aceitar “alguma excepcionalidade no modo de obter as provas”.

    “Não obstante os perigos que comporta a utilização de agentes infiltrados, e a dose de deslealdade que nela vai implicada, considera‑se hoje que, estando em causa certo tipo de criminalidade grave (terrorismo, tráfico de droga, criminalidade violenta ou organizada), é impossível renunciar ao serviço do undercover agent. Está‑se em domínios em que os interesses que se entrecruzam são de tal ordem, e os meios, de que os criminosos dispõem, tantos e tão sofisticados, que a sociedade quase se sente impotente para dar combate a tal criminalidade. E, por isso, aceita‑se aqui alguma excepcionalidade no modo de obter as provas”.

    Mais à frente refere o acórdão em citação: “Do ponto de vista da legitimidade constitucional da intervenção do agente infiltrado, é, assim, relativamente indiferente que, contra determinado sujeito, esteja ou não a correr termos um inquérito. O que verdadeiramente importa, para assegurar essa legitimidade, é que o funcionário de investigação criminal não induza ou instigue o sujeito à prática de um crime que de outro modo não praticaria ou que não estivesse já disposto a praticar, antes se limite a ganhar a sua confiança para melhor o observar, e a colher informações a respeito das actividades criminosas de que ele é suspeito. E, bem assim, que a intervenção do agente infiltrado seja autorizada previamente ou posteriormente ratificada pela competente autoridade judiciária”.

    Daí que não se tenha chegado a um juízo de inconstitucionalidade, na base essencial de que, na ânsia de dar combate ao crime grave, só “não podem legitimar-se comportamentos que atinjam intoleravelmente a liberdade de vontade ou de decisão das pessoas”.

    O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 102/2000, de 22 de Fevereiro de 2000, proferido no processo n.º 324/97, da 2.ª Secção, apreciou recurso interposto do acórdão deste Supremo Tribunal de 14 de Maio de 1997, processo n.º 46/97-3.ª, in CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 203, infra referido.

    Em causa estava a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 126.º, n.º 2, do CPP, em discussão estando a validade/nulidade de meio de obtenção de prova no âmbito do artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 15/93.

    O acórdão não tomou conhecimento do objecto do recurso, por o recorrente não ter suscitado a questão de constitucionalidade durante o processo.  

    No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 76/2001, 14 de Fevereiro de 2001, proferido no processo n.º 508/99, da 2.ª Secção, interposto do acórdão do STJ de 13 de Janeiro de 1999, proferido no processo n.º 999/98-3.ª, infra mencionado, em causa estava a apreciação da constitucionalidade da “interpretação restritiva do artigo 126.º, n.º 2, alínea a) do CPP, na expressão ‘meios enganosos’”, interpretação que, segundo o recorrente, teria sido feita no acórdão recorrido, na medida em que nele se não considerou meio enganoso para os efeitos daquela alínea a) a operação policial em causa (no caso tratava-se de crime de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelo artigo 373.º, n.º 1, do Código Penal.

    Invocando o acórdão n.º 578/98 e seguindo-o de perto, conclui que a interpretação feita no acórdão recorrido, mesmo que seja a “interpretação restritiva da expressão ‘meios enganosos’ por forma a dela excluir a operação policial que determinou a conduta do arguido”, não é contrária “à regra constitucional inscrita no art.º 32.º, n.º 8, da CRP”, assim negando provimento ao recurso.

    Deste acórdão o recorrente interpôs recurso para o Plenário, com a alegação de ter sido julgada a questão da constitucionalidade em sentido divergente do anteriormente adoptado nos acórdãos n.º 578/98, 102/00 e 456/93 do T.C. quanto à norma constante do artigo 126.º, n.º 2, do CPP, em violação do artigo 32.º, n.º 8, da CRP.

    O requerimento foi indeferido por despacho do relator, por não haver lugar a recurso para o Plenário, com fundamento em não haver divergência de julgamentos quanto à norma do artigo 126.º, n.º 2, do CPP, concretizando em relação a cada um dos acórdãos invocados.

    O recorrente apresentou reclamação desse despacho, que veio a ser aceite como reclamação para a conferência.

    Pelo acórdão n.º 264/2001, em Plenário, de 19 de Junho de 2001, foi indeferida a reclamação. 

    Antes de se avançar para a jurisprudência produzida pelo Supremo Tribunal de Justiça deixar-se-á nota de decisão de primeira instância em que pela primeira vez é afrontada directamente a figura do agente provocador, num caso que nada tinha a ver com tráfico de droga, domínio onde maioritariamente se coloca a questão.

    Trata-se da sentença de 5 de Março de 1993, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Oeiras, proferida no processo n.º 777/91, 2.ª Secção, em caso de crime p. e p. pelos artigos 195.º, 197.º e 199.º, do Código de Direito de Autor e dos Direitos Conexos, - Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de Março, com a redacção introduzida pela Lei n.º 45/85, de 17 de Setembro, publicada in SUB JUDICE, n.º 4, 1992, Setembro/Dezembro, dedicado ao tema Provas e Sinais, págs. 71 a 80. (Não há engano nas datas: a sentença é de 1993 e a publicação é feita naquela revista no n.º 4, de 1992. A sentença é citada em Droga e Direito de Lourenço Martins, Aequitas, Editorial Notícias 1994, na pág. 274).

    A decisão aprecia de forma muito completa e fundamentada a figura do agente provocador, nulidade da prova, efeito à distância, seguindo de perto Costa Andrade e Figueiredo Dias, convocando a sentença do TEDH de 15 de Junho de 1992, Caso Ludi c. Suíça e termina absolvendo o arguido.  

    Aí se considera: “É nula a prova obtida através da actuação de agente da Guarda Fiscal que, ocultando a sua identidade, se insinua junto de alguém e, após conquistar a sua confiança, o induz à prática de um crime.

    É igualmente insusceptível de valoração contra o arguido toda a restante prova que radique na actividade do agente provocador, designadamente a busca domiciliária destinada a comprovar a prática do crime induzido e as declarações em que o arguido descreve a actividade do agente provocador.

    O efeito-à-distância implica a extensão da invalidade do meio de prova proibido a outros, em princípio regulares, mas cuja descoberta só se tornou possível através do primeiro. A prova a que só se chegou em consequência do uso da prova nula, também é nula”.

    Conclui, afirmando: Só o desprezo pela figura e actividade do agente provocador, não premiando de forma alguma os resultados da sua missão, permitirá ao nosso sistema jurídico afirmar-se enquanto garante dos direitos individuais dos cidadãos e da comunidade em geral, demarcando-se nitidamente doutros onde tais práticas policiais acabam por merecer acolhimento, quando não aplauso.

    Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

    O Supremo Tribunal Justiça tem procurado distinguir as situações de provocação e o seu relevo em matéria de proibição de prova e precisar os traços distintivos entre o agente provocador e o agente infiltrado, praticamente sempre em casos de tráfico de estupefacientes. Mais raramente, em casos de lenocínio, tentativa de passagem de moeda falsa e corrupção passiva.

    A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a entender, de modo pacífico, que o recurso à figura do agente(s) provocador(es) consubstancia um método proibido de obtenção de prova, que dá lugar a provas nulas, em conformidade com o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 126.º do CPP, na medida em que esta prova é obtida mediante meios enganosos, ou seja, em que os suspeitos (ou arguidos) da investigação criminal, de modo astucioso, são chamados a executar e a participar em actos ilícitos, resultantes da própria iniciativa do agente provocador, que se apresenta com uma identidade falsa ou fictícia e/ou que não deixa conhecer essa sua qualidade, com a finalidade de os incriminar e de recolher provas que atestem a sua culpabilidade em juízo.

    Concretizando.

    Como se extrai do acórdão de 12 de Junho de 1990, proferido no processo n.º 40 983, publicado in BMJ n.º 398, pág. 282, o agente investigador que se introduz no circuito do tráfico de drogas – em via de regra, um tipo de criminalidade organizada – apenas com o propósito de captar a confiança do arguido, o que conseguiu, desvendando, sob aparência de comprador, que o mesmo detinha e traficava cocaína, heroína e haxixe, não viola regras legais, nomeadamente o disposto no artigo 32.º, n.º 6, da Constituição da República e 173.º do CPP de 1929 e ajusta-se ao preceituado no artigo 52.º do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro.

    Para o acórdão de 14 de Novembro de 1991, proferido no processo n.º 42 103 (citado em Droga e Direito, de Lourenço Martins, pág. 274), “A intervenção do particular que, agindo de forma concertada, se dirige, acompanhado de um soldado da GNR, à casa onde residem as arguidas, já depois de estas terem praticado o crime do artigo 23.º, n.º 1, através da mera detenção de estupefacientes, e lhes manifesta o propósito de adquirir meia dose de heroína (que uma das arguidas lhe vendeu então recebendo o respectivo pagamento, e só não vendendo a outra arguida ao mesmo soldado outra meia dose de heroína por apenas vender doses de um grama) é permitida pela lei, assim como é a do referido soldado – art. 52.º do DL 430/83”.

    No acórdão de 5 de Maio de 1994, proferido no processo n.º 46 385, in CJSTJ 1994, tomo 2, pág. 215 e no BMJ n.º 437, pág. 362, versando o disposto no artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 15/93, segundo o qual a lei considera não punível a conduta do funcionário de investigação criminal que, para fins de inquérito e sem revelação da sua qualidade e identidade, aceitar directamente ou por intermédio de um terceiro a entrega de estupefacientes; porém, o relatório destes factos tem de ser junto ao processo no prazo máximo de 24 horas.

    Na fundamentação, consta: “Nas diligências de investigação dos crimes de narcotráfico e para descoberta dos seus autores, a lei considera excepcionalmente como lícitas certas condutas de agentes de autoridade com essas atribuições, as quais fora desse estreito condicionalismo são punidas em conformidade com o disposto nos arts. 21 e segs. do DL n.º 15/93, independentemente da qualidade e identidade de quem o pratica”.

    Deste acórdão foi interposto recurso para o TEDH, que, como vimos, por acórdão de 9 de Junho de 1998, considerou ter sido violado o artigo 6.º, § 1, da Convenção dos Direitos do Homem e condenou o Estado Português no pagamento de indemnização por danos.

    O acórdão de 22 de Junho de 1995, proferido no processo n.º 47 997, publicado in CJSTJ 1995, tomo 2, pág. 238, tratou um caso em que agentes da Polícia Judiciária, previamente combinados com um indivíduo referenciado em tráfico de cocaína, acompanharam o contacto a estabelecer por este com outros indivíduos com vista à sua transacção, detendo-os durante o encontro a tal destinado, podendo ler-se no sumário: “A lei considera plenamente legal como meio de prova a actuação do agente infiltrado, quer actue por si quer actue por intermédio de terceiro.

    O acórdão de 6 de Julho de 1995, prolatado no processo n.º 47 221, publicado in CJSTJ 1995, tomo 2, pág. 261, versou um caso em que agentes da Polícia Judiciária se apresentaram como compradores de heroína, assim levando os vendedores, enganados, a aparecer com a substância pedida. A actuação de agentes informadores (homens de confiança) e agentes policiais encobertos, no domínio dos crimes de tráfico de estupefacientes, acha-se prevista no art. 59.º do DL 15/93 e o seu anonimato não infringe os princípios do processo penal, nem o direito constitucional. No caso, considera-se que uns e outros em nada contribuíram para a formação do propósito criminoso dos arguidos, pois estes estavam manifestamente determinados à prática do crime de narcotráfico. Limitaram-se a inserir-se numa situação criminosa em desenvolvimento, agindo com fins e propósitos preventivos no combate ao tráfico e disseminação da droga, que era desígnio já formado pelos arguidos e existente antes da intervenção do homem de confiança.  

    O acórdão de 2 de Novembro de 1995, proferido no processo n.º 47 738, e publicado in CJSTJ 1995, tomo 3, pág. 218, versou um caso em que agentes policiais propuseram ao arguido, enganosamente, comprarem-lhe heroína.

    Acompanhando de perto o acórdão de 12-06-1990, considera: A utilização de agente investigador que se introduz no circuito do tráfico de drogas, apenas com o propósito de captar a confiança dos arguidos, desvendando, sob a aparência de comprador, que eles detinham e traficavam as drogas, não viola regras legais.

    O acórdão de 21 de Março de 1996, prolatado no processo n.º 2796, publicado in CJSTJ 1996, tomo 1, pág. 236, tendo em vista o artigo 59.º do DL 15/93, distingue: O “agente infiltrado” usa o anonimato para recolher os indícios da execução de um actividade criminosa que o seu autor já está anteriormente determinado a praticar, enquanto o “agente provocador” mais não é do que um simples autor mediato do crime, isto é, a pessoa que, dolosamente, determina outrem à comissão, o qual não seria cometido sem a sua intervenção; induz ou determina o agente material a cometer o crime e é, por isso, um elemento necessário e indispensável na formação da resolução da prática do acto ilícito pelo seu autor material.  

    Para o acórdão de 17 de Outubro de 1996, processo n.º 690/96-3.ª, in Sumários de Acórdãos do STJ, Gabinete de Assessoria, n.º 4, Outubro de 1996, a págs. 85, diz: “Não constitui prova proibida, violadora do art.º 126.º do CPP, a deslocação de elementos da GNR a uma “casa de passe” para aí manterem relações sexuais a troco de dinheiro fornecido pelo respectivo Comando, a fim de detectarem a existência de tal ilícito e apurarem os seus intervenientes e responsáveis. Não se pode falar de “vida privada”, na perspectiva do art.º 26 da CRP, acerca de actividades que decorrem num estabelecimento comercial de porta aberta, como seja uma “casa de passe”, nem das revelações que os agentes das mesmas façam a seus clientes verdadeiros ou fictícios.

    Rompendo com tal orientação, o acórdão de 15 de Janeiro de 1997, proferido no processo n.º 870/96, publicado in BMJ n.º 463, pág. 226 e na CJSTJ 1997, tomo 1, pág. 185, invocando o acórdão Ludi, de 15 de Junho de 1992, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, afirma:

    A alínea a) do n.º 2 do artigo 126.º do CPP proíbe a utilização de meios enganosos na obtenção das provas, de que é exemplo máximo a hipótese em que o delinquente é levado a agir por pressão ou sugestão de pessoa que julga ser um seu comparticipante, ou nos casos de crimes de tráfico, uma pessoa interessada em adquirir o que ele se dispõe a vender, mas que é simplesmente um membro de entidade investigadora que age com o objectivo de arranjar elementos conducentes à sua punição.

    Tem de distinguir-se entre o provocar uma ocasião para descobrir um crime que já existe, daquela em que se suscita uma intenção criminosa que ainda não existia, como sucede quando, não havendo qualquer elemento que referenciasse o arguido a anteriores actividades de tráfico, foi a actividade policial que o impeliu enganosamente a uma actividade pontual e desgarrada.

    A actuação policial foi nula e os seus resultados não podem ser considerados. A Justiça não pode ser feita à custa da Moral; se o for, é uma falsa Justiça.

    No sumário constante da CJSTJ pode ler-se:

    A lei permite que um funcionário de investigação criminal, para fins de inquérito e sem revelação da sua qualidade e identidade, aceite a entrega de estupefacientes; é o chamado “agente infiltrado” ou “agente investigador”.

    Mas tal permissão apenas pode existir em relação a uma actividade criminosa em curso, já que não é tolerada uma conduta de impulso ou instigação dessa actividade.

    Por isso, é ilícita a actuação policial e nulas as provas obtidas, quando os agentes se acercam do arguido, em relação ao qual não era referida qualquer conotação como consumidor ou traficante, lhe perguntam se tem droga para vender e perante a resposta de que não tinha mas sabia onde a poderiam adquirir, acedeu a ir com eles até a um local onde, ficando eles no automóvel, o arguido foi junto de pessoa desconhecida trazendo consigo 6 embalagens, uma das quais para ceder a esses agentes.

    Acórdão de 5 de Março de 1997, proferido no processo n.º 1125/96, in BMJ n.º 465, pág. 407 – Não actua como agente provocador, porque não determina os arguidos à prática do crime, a vítima que, depois de ameaçada, lhes promete entregar no dia seguinte uma soma em dinheiro que não era devida, e combina com os superiores hierárquicos dos arguidos, ambos agentes da PSP, fotocopiar duas notas de banco, que são de facto entregues aos arguidos, e após a revista destes as recupera, diante de testemunhas.

   No acórdão de 14 de Maio de 1997, proferido no processo n.º 46/97-3.ª, in CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 203 e BMJ n.º 467, pág. 299 – consta do sumário: Não é actuação de “agente provocador” ou “agente infiltrado” a actuação do agente da PSP que se abeira do arguido e lhe pergunta se “tinha para ele”, ao que ele respondeu que “naquele momento não tinha, mas que ia a casa buscar”, após o que regressou, trazendo 4 embalagens de heroína. Isto porque ele não determinou o arguido à prática de qualquer crime já que, antes de ser interpelado, já tinha ilicitamente a heroína em sua casa. Não é exigível que as autoridades policiais se façam anunciar, previamente, aos delinquentes, para depois os “surpreenderem” nas suas actividades criminosas, designadamente no que respeita ao tráfico de estupefacientes.

    Deste acórdão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional dando origem ao acórdão n.º 102/2000, de 22 de Fevereiro de 2000, proferido no processo n.º 324/97, da 2.ª Secção, supra referido.

    Acórdão de 8 de Janeiro de 1998, proferido no processo n.º 1208-3.ª, in CJSTJ 1998, tomo 1, pág. 155 – Consta do sumário: “Não é nula a prova obtida por autoridades policiais que, sob disfarce, ou ocultas perante o suspeito, o surpreendam ou encaminhem para espaços ou tempos em que a sua actividade criminosa pudesse ser revelada”.

    Na fundamentação, versando o artigo 126.º do CPP, pode ler-se: “Os meios enganosos para a obtenção de provas em Processo Penal não serão proibidos desde que não perturbem a liberdade de vontade ou de decisão do agente”.

   Do acórdão de 15 de Janeiro de 1998, proferido no processo n.º 1188/97-3.ª, in CJSTJ 1998, tomo 1, pág. 160, consta: “A actuação do 1.º Sargento da GNR, que, na investigação, instigou um arguido a contactar telefonicamente um outro arguido, com o fim de simular uma entrega de haxixe, não está abrangido no art. 126.º do CPP; é lícita e, por isso, os meios de prova dela resultantes não podem haver-se como proibidos.

    Extrai-se do acórdão de 11 de Março de 1998, proferido no processo n.º 1133/97-3.ª, in CJSTJ 1998, tomo 1, pág. 220: “Não é meio de prova proibida a colaboração de uma pessoa, ainda que arguida, posterior à prática dos factos e no estrito âmbito de uma investigação policial já em curso, e que nada tenha a ver com a figura do “agente provocador”.

    Do acórdão de 13 de Janeiro de 1999, proferido no processo n.º 999/98-3.ª, consta do sumário:

 I – É característico do meio enganoso de prova – artigo 126.º, n.º 2, alínea a), do CPP – a figura do agente provocador em que um membro da autoridade policial, ou um civil comandado pela polícia, induz outrem a delinquir por forma a facilitar a recolha de provas da ocorrência do acto criminoso.

II – Diferente da figura do agente provocador é a do agente infiltrado, caracterizando-se esta por o agente se insinuar junto dos agentes do crime, ocultando-lhes a sua qualidade, de modo a ganhar as suas confianças, a fim de obter informações e provas contra eles mas sem os determinar à prática de infracções.

III – Commummente vêm-se aceitando as provas obtidas através do agente infiltrado, porque se a utilização do agente provocador representa sempre um acto de deslealdade que afecta a cultura jurídica democrática e a legitimação do processo penal que a acolhe, tal não ocorre naquela figura em que tais valores não se revelam afectados.

    O acórdão versava caso de crime de corrupção para acto ilícito, p. e p. pelo artigo 373.º, n.º 1, do Código Penal.

    Interposto recurso para o Tribunal Constitucional, pelo Acórdão n.º 76/2001, de 14 de Fevereiro de 2001, proferido no processo n.º 508/99, da 2.ª Secção, foi, como vimos, negado provimento ao recurso.

    Deste acórdão o recorrente interpôs ainda recurso para o Plenário, pretensão que veio a ser indeferida por acórdão do Plenário de 19 de Junho de 2001.

    (Este acórdão do STJ de 13-01-1999 é convocado na contribuição para a definição de agente provocador, por Susana Aires de Sousa, em Agent provocateur e meios enganosos de prova, publicado em Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, a págs. 1222, e nota de rodapé, n.º 54, como “o membro da autoridade policial ou um civil comandado pela polícia, que induz outrem a delinquir por forma a facilitar a recolha de provas da ocorrência do facto criminoso”).

   Do acórdão de 13 de Dezembro de 2000, proferido no processo n.º 2752/00-3.ª, in CJSTJ 2000, tomo 3, pág. 248, consta no sumário, no que ora interessa:

   “A actuação de terceiro, que actua sob o controlo da PJ, é admissível pelo actual artigo 59.º do DL n.º 15/93 (na redacção da Lei n.º 45/96, de 3 de Setembro), sempre que a mesma não assuma a natureza de provocação ao crime de tráfico e se enquadre nos limites daquele preceito”.

   Na fundamentação, a págs. 255, pode ler-se: “A questão dos presentes autos prende-se com a utilização dos meios enganosos por parte dos chamados “homens de confiança” em sentido amplo, nos quais se incluem os agentes provocadores, agentes infiltrados e agentes encobertos. O agente provocador convence outrem ao crime, determina a vontade para o acto ilícito; o agente infiltrado opera no sentido de ganhar a confiança do suspeito e, na base dessa confiança, mantém-se a par dos comportamentos daquele, praticando actos de execução se for necessário em integração do seu plano, mas não assume o papel de investigador; o agente encoberto aparece com uma posição exterior ao crime e ao criminoso, ou seja, nem provoca nem se insere no âmbito das relações de confiança do investigado”. 

   “Essas três categorias de “agentes”, embora em medida decrescente, utilizam meios enganosos, sendo, por isso, reconhecido pela doutrina e jurisprudência haver necessidade de uma interpretação restritiva dos meios enganosos como proibição de prova”.

   E, na mesma página, após citar Costa Andrade em “Sobre as proibições de prova …, a fls. 234/5/6, distinguindo entre o engano e astúcia permitida, conclui:

   “Das três categorias de “agentes” referidos, é de concluir que apenas a dos agentes provocadores se deve incluir nos meios enganosos a que se refere a al. a) do n.º 2 do art. 126.º do CPP, por ser ela a que atenta por forma insuportável para um Estado de Direito contra a dignidade da pessoa humana, convertendo o arguido de sujeito processual em objecto, com o decorrente cerceamento profundo da liberdade de formação e expressão de vontade”. 

   E depois de referenciar o disposto no artigo 59.º, n.º 1, do DL 15/93 de 22-01, na redacção da Lei n.º 45/96, de 3 de Setembro, afirma: “Desde que a actividade descrita na norma não assuma a natureza de provocação ao crime e se cumpram os restantes pressupostos legais, estar-se-á em face de actividade lícita, não punível, e vista pelo lado do arguido e do processo penal, fora do limite das proibições de prova, na modalidade de métodos proibidos de prova.”

   E conclui, a págs. 256: “Como no acórdão recorrido, também agora se julga o comportamento da Polícia e dos seus dois colaboradores como não integrando perturbação da liberdade de vontade ou de decisão do arguido através de meios enganosos subsumível na al. a) do n.º 2 do artigo 126.º do CPP, muito embora isso não queira significar que tal comportamento apareça como isento de engano, na medida em que, nos agentes infiltrados, como nos referidos “colaboradores”, ele também existe.

 

   No acórdão de 30 de Outubro de 2002, proferido no processo n.º 2118/02-3.ª Secção, em apreciação estavam os recursos de dois arguidos condenados por tráfico de estupefacientes, invocando nulidade da prova, nos termos do artigo 126.º do CPP, e também recurso do Ministério Público junto do Tribunal da Relação, que confirmara a condenação, sustentando ser nula a prova inicial obtida através de agente provocador, bem como a posteriormente adquirida por violação do artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 15/93, e artigos 32.º, n.º 8, da CRP e 126.º, n.º 1 e 2, alínea a), do CPP.

   Considerou o acórdão: “Uma pessoa que, colaborando espontânea, voluntária e desinteressadamente com a PSP, por sugestão desta, encomenda uma determinada quantidade de droga ao arguido – que no seu meio social já constava estar ligado ao tráfico de estupefacientes e que satisfez tal encomenda com grande rapidez – não pode ser havida como agente provocador ou infiltrado”.

    (O acórdão teve um voto de vencido expresso no sentido da anulação do acórdão para esclarecimento do tipo de relacionamento existente entre a PSP de Vila Franca de Xira e o arguido JP, e por outro lado, o papel desenvolvido na acção pela interveniente APA).

   O acórdão é comentado por Maia Costa, in Revista do Ministério Público, Ano 24, Jan/Mar 2003, n.º 93, págs. 161 a 172, onde é retomada a análise feita em anterior texto publicado na mesma Revista, no n.º 81, a págs. 162 a 174 (comentário ao acórdão do TEDH de 1998), mantendo todas as considerações então produzidas.

    A Lei 101/2001 não adoptou os conceitos de agente provocador e infiltrado, introduzindo o novo conceito de «acções encobertas», caracterizadas pela ocultação da identidade do agente policial ou do homem de confiança agindo sob direcção da polícia, vedando muito claramente que os agentes se constituam como instigadores ou autores mediatos de infracções criminais.

    Comentando, considera que a interveniente APA agiu como instigadora de um crime que o arguido não teria cometido sem tal instigação, constituindo a sua conduta uma verdadeira provocação, excluída do âmbito de protecção do art. 6.º, n.º 1, da Lei n.º 101/2001, concluindo que o acórdão confunde liberdade de acção com vontade livremente formada, agindo o arguido sob instigação.

    (Afigura-se-nos que as referências no comentário à Lei n.º 101/2001 devem ser entendidas apenas como instrumento argumentativo, por claramente não terem aplicação concreta no caso, visto os factos terem sido praticados em 8 e 9 de Abril de 1999).

    O acórdão é mais tarde, de novo, comentado, agora por Ana Rita de Melo Justo, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 16.º, n.º 3, Julho/Setembro 2006, págs. 497 a 512, que manifesta a sua discordância com o decidido, que se enquadra na problemática dos «crimes de trato sucessivo», considerando ter havido uma actuação provocatória, parecendo que o artigo 59.º do Decreto - Lei n.º 15/93 não se queria aplicar a situações em que o agente simula a compra de droga para, em seguida, deter o suspeito (conduta provocatória).

    Entende que em consequência desta conduta provocatória, as provas obtidas deveriam considerar-se nulas, de acordo com a alínea a) do n.º 2 do artigo 126.º do CPP e com o n.º 8 do art. 32.º da CRP, estando-se perante uma nulidade sui generis, susceptível de ser conhecida oficiosamente, falando ainda de um “efeito - à - distância”, pois a nulidade não deve ficar pelas provas iniciais, mas estender-se às subsequentes. Considera nula a prova directamente obtida, bem como a obtida por causa da utilização de um meio enganoso, recondutível à categoria dos métodos proibidos de obtenção de prova.

    Este mesmo acórdão é reportado ainda mais tarde, em 2010, por Sandra Pereira, in A recolha de prova por agente infiltrado, em Prova criminal e direito de defesa, 2010, págs. 150-1, julgando a Autora mais correcta entender a interveniente como agente provocadora.

    No acórdão de 20 de Fevereiro de 2003, proferido no processo n.º 4510/-02-5.ª Secção, in CJSTJ 2003, tomo 1, págs. 210/8, considera-se:

    Agente provocador é o membro da autoridade policial ou um terceiro por esta controlado que dolosamente determina outrem à comissão de um crime o qual não seria cometido sema sua intervenção movido pelo desejo de obter provas da prática desse crime ou de submeter esse outrem a um processo penal e à condenação, podendo também estar subjacente no caso de tráfico de droga, o intuito da respectiva apreensão. Já o agente infiltrado – Polícia ou terceiro por si comandado – é o que se insinua nos meios em que se praticam crimes com ocultação da sua qualidade de modo a ganhar a confiança dos criminosos com vista a obter informações e provas contra eles mas sem os determinar à prática das infracções.

    No nosso quadro legal a actuação do agente provocador é normalmente tida como ilegítima, admitindo-se em certas circunstâncias a figura do agente infiltrado.  

    Se o tribunal recorrido – colectivo da 1.ª instância – teve como inválida a prova produzida mas o Supremo, em recurso, entendeu o contrário, validando-a, ao mesmo tribunal recorrido incumbe agora levar a cabo a conveniente subsunção jurídica, e sendo caso disso, fixar as penas aplicáveis, apesar de aquele ser um tribunal de revista e não de cassação pura.

    O acórdão de 6 de Maio de 2004, processo n.º 1138/04 - 5.ª Secção, in CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 188, em caso de crime de passagem de moeda falsa, na forma tentada, seguindo de perto o anterior, afirma que o cerne da distinção entre agente provocador e agente infiltrado situa-se no seguinte plano: o agente provocador incita, instiga outrem à prática de um facto, o agente infiltrado apenas acompanha ou, no limite, põe em marcha a decisão de um sujeito que já tomou a decisão de delinquir.

    Importa distinguir “entre a criação de uma intenção criminal e a criação de uma oportunidade com vista à efectivação duma intenção criminal existente”. Importa distinguir os casos em que se cria ou determina uma intenção criminal até então inexistente, dos casos em que o indivíduo já está implícita ou potencialmente inclinado a cometer uma infracção, a praticar factos de determinada natureza e características, e a acção do agente infiltrado se limita a por em marcha a intenção preexistente. Nestes termos, a provocação, só existe se as actuações visam incitar outra pessoa à prática de um crime que, sem essa intervenção, não teria lugar.  

   

    No acórdão de 29 de Junho de 2005, processo n.º 1015/05 - 3.ª Secção, em caso de transporte intercontinental de 97 embalagens de cocaína com mais de 1000 Kg, foi considerado que perante a envergadura da operação, a colaboração do agente infiltrado foi necessária, adequada e proporcionada. Argumentou que “É certo que graças à acção de infiltração, a PJ vigiava a droga esperando poder detê-los quando a fossem levantar. Mas esse é o objectivo lícito da actuação do agente infiltrado”. Pondera ainda que, face aos factos provados “o agente infiltrado não induziu ninguém a praticar um crime de importação de cocaína para Portugal com envio para Espanha e daí pela Europa pois esse projecto já estava em marcha quando aquele que viria a ser agente infiltrado foi contactado, como nunca deixaram de ter os seus autores o domínio do facto.   

    Como se lê no acórdão de 30 de Novembro de 2005, proferido no processo n.º 3349/05 - 3.ª Secção: “(…) é preciso distinguir os casos em que a actuação do agente provocador cria uma intenção criminosa até então inexistente, dos casos em que o sujeito já está implícita ou potencialmente inclinado a delinquir e a actuação do agente apenas põe em marcha aquela decisão. Isto é, importa distinguir entre a criação de uma oportunidade com vista à realização de uma intenção criminosa, e a criação dessa mesma intenção”.

   

    Como se pode ler no acórdão de 27 de Junho de 2012, proferido no âmbito do processo n.º 127/10.0JABRG.G2.S1 - 3.ª Secção: “(…) a fronteira entre agente encoberto e agente provocador pode parecer ténue, mas é inultrapassável. Prevenir e provar um crime ou desencadeá-lo em nome de uma possibilidade futura são realidades diversas (…) o agente provocador convence outrem ao crime, determina a vontade para o acto ilícito; o agente infiltrado opera no sentido de ganhar a confiança do suspeito e, na base dessa confiança, mantém-se a par do comportamento daquele, praticando, se necessário, actos de execução em integração do seu plano, mas não assume o papel de instigador; o agente encoberto aparece com uma posição exterior ao crime e ao criminoso, ou seja, nem provoca nem se insere no âmbito das relações de confiança do investigado (…)”

    Como se extrai do acórdão de 5 de Julho de 2012, processo n.º 911/10.5TBOLH.E1.S1-5.ª “Os recursos não servem para discutir questões novas, isto é, as questões que não foram invocadas perante o tribunal recorrido, pois os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo desse tribunal e não constituem novos julgamentos, cuja finalidade fosse a de apurar matéria anteriormente não considerada.

    Todavia, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que as provas produzidas pela intervenção do agente provocador são provas obtidas com o uso de um método proibido, já que são enganosas e, como tal, ofensivas da integridade moral das pessoas, mesmo que com consentimento delas (cf. art. 126.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CPP).

    Por isso, como as provas adquiridas por esse método são nulas e não podem ser usadas no processo, a invocação pelo arguido condenado de que, contra si, foram usados métodos proibidos de prova deve ser decidida pelo tribunal de recurso, ainda que se trate de questão nova, pois da resposta que for dada irá depender a validade da matéria de facto estabelecida através de tal uso indevido e ilegal. Isto é, a nulidade das provas que decorre do uso de métodos proibidos pode e deve ser conhecida a qualquer tempo.

    Contudo, há que ressalvar que no recurso de revista perante o STJ, este Tribunal tem exclusivamente poderes de cognição em matéria de direito (art. 434.º do CPP). Ora, pelos factos provados, o arguido X não foi um «agente provocador» e essa é a matéria de facto que o STJ tem de levar em conta, pois é a que já está definitivamente assente no processo.

    De igual sorte, em idêntico sentido, decidiu-se no acórdão de 11 de Julho de 2013, proferido no processo n.º 1690/10.1JAPRT.L1.S1 - 5.ª Secção: “Agente infiltrado é aquele que, sem revelar a sua identidade nem os objectivos da sua actividade, se introduz no meio frequentado pelo suspeito/arguido de forma a tentar ganhar a sua confiança, integrando até, eventualmente, a organização criminosa, ou, pelo menos, acompanhando as actividades ilícitas, obtendo informações, recolhendo indícios ou elementos de prova das infracções investigadas, que tanto podem estar já consumadas, como estar ainda em fase de execução ou mesmo de preparação.”.

    Segundo o acórdão de 11 de Dezembro de 2014, proferido no processo n.º 33/06.3JAPTM.E2.S1-5.ª, “Nada impede que o relato da acção encoberta ou que os documentos dela constantes não possam servir como meio de prova, ou seja, a lei não obstaculiza esse objectivo, prevendo a junção do relato, se se reputar absolutamente indispensável em termos probatórios”. (…) “Como os arguidos praticaram actos qualificados como tráfico, não é a circunstância de na execução do crime terem intervindo agentes encobertos que altera a criação deste perigo”.

    Abrir-se-á aqui um parêntesis para uma breve nota.

 

    O acórdão de 29-11-2006, publicado na CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 240, que é citado como sendo do STJ e como tal, inclusive, sendo publicado (!), é na realidade acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, como se alcança pelos nomes dos respectivos subscritores.

    No Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 2.ª edição, 2011, de Vinício Ribeiro, o acórdão surge com as duas proveniências, a págs. 339 e 343.

    Perante este enquadramento, e traçados os contornos destas figuras, é tarefa difícil senão impossível integrar a conduta da testemunha de acusação CC, como tendo actuado como agente infiltrado e muito menos como agente provocador, pois o processo de elaboração de projectos de acórdãos já estava em marcha, em nada tendo contribuído para a sua génese ou mesmo continuação, pelo que, também nesta parte, não existem fundamentos para que este tribunal decrete que o Ministério Público fez uso de “prova proibida” ou que se verifica uma “nulidade da prova oferecida na acusação”.

    A nosso ver, mostra-se incorrecto afirmar, quer do ponto de vista formal, quer do ponto de vista substancial, que essa testemunha tenha assumido funções de agente infiltrado durante a fase de investigação.

    A requerente BB aponta o documento de fls. 94, como comprovativo dessa actuação do advogado CC.

    O documento de fls. 94 destes autos insere-se na parte final de uma exposição de Inspectora da Polícia Judiciária dirigida ao Coordenador de Investigação Criminal, onde após referir a utilidade da imprescindível colaboração da testemunha CC, sugere “que seja ponderada a possibilidade de ser devidamente autorizada ao mesmo, a prática de actos de execução, como forma de colaborar com esta Polícia na recolha de prova indiciária”.

    Na sequência, é feita uma proposta dirigida pela Polícia Judiciária ao Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto, Coordenador no Supremo Tribunal de Justiça, para que, para além do mais, fosse concedida “4. Autorização para CC, já identificado nos autos, actuando sob o controlo da Polícia Judiciária, praticar actos de colaboração ou instrumentais tomando a iniciativa de marcação de encontros com os suspeitos e neles participando, formulando questões que se entenda pertinentes, declarando o seu interesse em participar nas condutas em investigação, recebendo e transportando objectos ou documentos que lhe sejam entregues pelos suspeitos, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto”.

    Acontece que, conforme resulta dos autos, esta proposta da Polícia Judiciária não mereceu acolhimento por parte do Senhor Procurador-Geral Adjunto que, mediante promoção datada de 26-04-2013, a fls. 95 e 96, solicitou única e exclusivamente ao Senhor Juiz Conselheiro, que então exercia as funções de Juiz de Instrução, que este processo ficasse sujeito a segredo de justiça ao abrigo do n.º 3 do artigo 86.º do CPP e que autorizasse a intercepção e a gravação de determinadas comunicações, e do registo de voz e imagem de encontros que viessem a ocorrer envolvendo a suspeita AA e ainda BB e FF que, em parte, veio a ser autorizado, conforme resulta do despacho de 8 de Maio de 2013, constante de fls. 100 a 113, sendo denegado o pedido de registo de voz e imagem.

    Certo é que a proposta constante do ponto 4 não foi acolhida pelo Ministério Público, nem foi obviamente apreciada sequer no despacho do juiz de instrução.

    Se formalmente não foi proposta pelo Ministério Público nem autorizada a realização de qualquer acção encoberta, ao abrigo do disposto artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 101/2001, também materialmente não se pode considerar que o advogado em causa tenha actuado como agente infiltrado (ou como agente encoberto), ou seja, que sem revelar a sua identidade, nem os objectivos da sua actividade, se tenha introduzido, de modo confidencial, no escritório da arguida BB, por forma a ganhar a confiança desta e da arguida AA, com o intuito de recolher informações, indícios ou elementos de prova dos crimes de peculato em referência nestes autos.

    Como resulta, quer da prova produzida em sede de inquérito, quer inclusive da versão dos factos apresentada pela acusação e pela defesa, o advogado CC vinha trabalhando, desde há vários anos (segundo o auto de inquirição de testemunha de fls. 7 a 11, desde o ano de 2008), no escritório da advogada BB, o que fez, dando a conhecer a sua verdadeira identidade, até que a dado momento, de forma ocasional, tomou conhecimento dos factos, que mais tarde decidiu transmitir às autoridades de investigação criminal.

    Na realidade, nada aponta que esta testemunha se tenha insinuado e inserido neste escritório de advocacia, com identidade fictícia e com actuação concertada com as autoridades policiais ou judiciárias, por forma a ganhar a confiança das duas arguidas e com o intuito de proceder à recolha de informações, de indícios ou de elementos de prova, por existirem suspeitas de que nesse local se desenvolvia a prática de comportamentos delituosos, muito menos ainda que tenha tido um papel activo, que tenha sido ele a incentivar a prática dos crimes de peculato imputados em co-autoria às duas arguidas.

    Esta testemunha, sem que aparentemente tenha tido qualquer participação nos factos (seja a título principal, seja a título acessório), deles tomou conhecimento por também exercer funções de advogado no escritório em causa, ou seja, ocasionalmente, a partir de dado momento deparou-se, segundo as suas próprias palavras, com o seguinte: “(…) A Dra. AA, enquanto Juíza Desembargadora do Tribunal --- já teve processos disciplinares pendentes contra si, motivados por questões de pendência processual. Para obviar a este seu problema, a Dra. EE terá chegado a acordo com a Dra. BB que chega a ser a própria a, em contactos com os processos do Tribunal da Relação, formular Acórdãos, como se da Dra. EE se tratasse (…)” e que “(…)  é sua convicção que o facto de recentemente (desde 19 de Outubro de 2012) a Dra. BB receber uma avença mensal no valor de mil e quinhentos euros por parte da Cruz Vermelha, não passa de uma forma de assim se ver ressarcida dos trabalhos que presta para a Dra. Joana, na elaboração de Acórdãos (…)” – vide auto de fls. 7 a 11.

    Isto significa que o advogado CC, sem ter a qualidade de agente encoberto, muito menos a de agente provocador, limitou-se enquanto simples testemunha dos factos a colaborar com a investigação, tendo, com particular destaque, relatado à Polícia Judiciária, em sede de inquérito, tudo aquilo de que tomou conhecimento no escritório de advocacia em causa, onde vinha a desenvolver a sua actividade profissional (vide maxime autos de inquirição de fls. 7 a 11 e de fls. 15 a 20), mas sem ofensa, pelos motivos acima expostos, do segredo profissional do advogado consignado pelo disposto no artigo 87.º, n.ºs 1, 2, 3 e 7, do EOA.

    Por isso, nada indiciando que tenha servido como agente provocador de qualquer um dos crimes de peculato imputados em co-autoria às arguidas, nem também nada apontando que tenha agido no âmbito de uma acção encoberta desenvolvida à margem do condicionalismo legal previsto pela Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto, resta concluir que não se vislumbra a utilização por parte da investigação, com base neste alegado fundamento, de qualquer método proibido de obtenção de prova (artigo 126.º do CPP).

    Em face do exposto, também nesta parte, improcedem as excepções da prova proibida e da nulidade da prova invocadas pelas arguidas AA e BB.

                                                 *******

    Intervenção correctiva

    Antes de entrarmos na análise da prova, importa desde já proceder à correcção de alguns lapsos de escrita presentes na peça acusatória ora questionada, o que se fará oficiosamente, e por outro lado, analisar o texto em ordem a avaliar da verificação de eventuais contradições e sobreposições e neste sentido apreciar, aqui e agora, as questões suscitadas pela requerente AA no requerimento de fls. 1271 a 1277, apresentado no dia em que foi ouvida em sede de instrução, a propósito da atribuição de autoria de projectos de acórdãos a BB, EE e FF, concretamente, nas alíneas a), b), c), d), e) e i), a fls. 1273/4/5/6 do 5.º volume.    

    Como primeiro passo, importa corrigir a numeração dos artigos da acusação a partir do artigo 47.

    Efectivamente, verifica-se que a partir do artigo 47, a numeração volta ao artigo 45, repetindo o anterior 45 (fls. 851 do 3.º volume), duplicando-se os artigos 46 e 47, e prosseguindo até ao 52, procedendo-se à rectificação no texto final, de modo a que figure o artigo 48 em vez do segundo artigo 45 e assim sucessivamente até ao artigo 55 (e não artigo 52).

 

    No texto dos artigos 7 e 9 consta a data de 2 de Agosto de 2012 como tendo sido o início da acumulação com a Delegação do Porto, quando teve início em 6 do mesmo mês, como se retira do email de 5 de Agosto de 2012 enviado por AA a BB, a fls. 248 do Apenso III, Anexo B.

 

    No artigo 45 da acusação (primeiro artigo 45) afirma-se que EE, como sócia da sociedade e na execução do contrato, procedeu, desde Março de 2013 e até Outubro de 2013, à elaboração de projectos de acórdãos e resumos (…).

    A requerente AA em Outubro de 2013 não estava a desempenhar funções no Tribunal ---, devendo ter-se por certo que o desempenho de EE teve lugar entre Março e 28 de Junho de 2013.

 

    Há que efectuar correcção no artigo 45 da acusação (primeiro artigo 45), no que respeita a localização dos documentos apontados relativos a dois processos, ou seja, erro na indicação das folhas onde constam no Apenso III, Anexo C

4/11.8TBTBC.P1 - Documento de fls. 3 a 17 (e não de fls. 302 a 317) do Apenso III, Anexo C;

7600/10.9TBMAI.P1 - Documento de fls. 302 a 317 (e não de fls. 3 a ) do Apenso III, Anexo C

    (Estes dois projectos revelam-se anódinos para efeitos de imputação criminal, pois que elaborados em 15 de Abril e em 24 de Junho de 2013, não tendo sido pagos).

    Erro no n.º do processo

   

    No mesmo artigo 45, o n.º 7218/11.0TBMTS-A.P1 está incorrecto, pois trata-se do n.º 7128/11.0TBMTS-A.P1, como consta da listagem enviada pelo Tribunal ---, a fls. 612 do 3.º volume e ainda do print screen da pasta Tribunal da Relação EE, a fls. 2 do Apenso III, Anexo C, colocado em 9.º lugar e de fls. 147 a 160 do mesmo Anexo.

    No mesmo artigo 45, no que respeita ao processo n.º 1327/11.1JAPRT.P1, a acusação está incompleta, pois não contém qualquer menção, para além do número indicado.

    Tal processo consta do print screen de fls. 2 do Apenso III Anexo C, colocado no sétimo lugar.

    O acórdão figura como Doc. 20 do Apenso V (Cópias dos acórdãos remetidos pelo Tribunal ---), estando datado de 4 de Abril de 2013, o que é compatível com a data de 1 de Abril de 2013, como consta  - em primeiro lugar - na listagem apresentada por EE no email de 6 de Junho de 2013, dirigido a AA, junto a fls. 15 e 16 do Apenso III, Anexo D e ainda a fls. 33 e 34  do Apenso I.

    Do mesmo artigo 45 será de excluir a referência ao processo n.º 515/06. 5TVPRT.P1, pelas razões que melhor se explicarão no segmento seguinte. 

    Referência a projectos de acórdãos cuja atribuição é questionada por AA no requerimento de fls. 1271 a 1277

    A requerente refere-se a seis processos, a saber:

 

    Processo 1853/10.OTBPFRA.P1

    No requerimento apresentado em 6 de Março de 2015, a fls. 1273, alínea a), a requerente AA anota que este processo é referido na acusação por três vezes, o que na realidade acontece deste modo:

No artigo 22, a fls. 845, no § 3.º;

No artigo 22, a fls. 846, no § 4.º;

No artigo 31, a fls. 848.

    Nos dois primeiros, sendo imputada a elaboração de projecto a BB e no último a FF.

    Datado de 26-11-2012 há email de BB para AA onde, referenciando o processo em causa, se diz “Aqui vai. Bjs” - fls. 78 Apenso II, Anexo D Pasta de arquivo CVP Diversos - desconhecendo-se o que terá ido.

    No entanto, é de concluir que o projecto foi feito por BB, em cuja posse se encontravam os preparatórios, como decisão de 1.ª instância, como se vê de fls. 107 a 114, repetidas a fls. 455 a 462, do Apenso III - Anexo B.

    Conforme anotação manuscrita de BB, o processo foi-lhe entregue com outro (n.º 347/09.0) em 13/2/2013, conforme fls. 18 do Apenso II, Anexo D - Pasta de arquivo CVP Diversos.

    Em 19-02-2013, AA envia preparatórios, conforme email de fls. 432 do Apenso III, Anexo B, o que está em consonância com o índice de emails, a fls. 223, n.º 20, deste mesmo Apenso.

    No email do dia 1 de Março de 2013, BB envia projectos dos processos n.º 2997/06.8 e 5546/11.2 e diz faltar o envio das “apelações n.º 347/09.0TBMAI.P1 e 1853/10.0OTBPFR-A.P1, entregues no dia 13/02/2013” e 464/08.4 entregue anteriormente, acrescentando: “Durante o fim de semana irei tentar terminar os restantes” - fls. 33 do Apenso II, Anexo D – Pasta de arquivo CVP Diversos.

    O projecto é enviado em 7 de Março de 2013, dizendo BB: “Tenho algumas dúvidas acerca da decisão em si. Pf verifica”, como consta de fls. 19 da mesma Pasta de arquivo, seguindo-se o resumo do processo de fls. 20 a 26.

    (O projecto do outro processo entregue em 13-02-2013, com o n.º 347/09.0, seguiu em 2 de Abril, conforme fls. 17 da mesma Pasta de arquivo CVP Diversos).

    Este processo consta como elemento apreendido no artigo 48 da acusação (ex-segundo artigo 45).

    No que respeita à menção constante do artigo 31 e intervenção de FF, certo é que este processo figura na listagem de processos constantes na pasta DR AA localizados no computador de FF, a fls. 3 do Apenso IV.

    Acontece que de fls. 77 a 87 do mesmo Apenso IV (e não 77 v a 58, como consta da acusação) se encontra um projecto, como se alcança do final, a fls. 87, onde se diz destacado a negrito:

    “Na minha opinião isto não é suficiente. A Apelada deveria ter recorrido do despacho de aperfeiçoamento, em vez de responder ao aperfeiçoamento do requerimento executivo. Agora não sei se deverá ser assim”.

    Seja como for, anota-se que a última adjunta surge como sendo TT, o que significa que estaremos em data anterior a Setembro de 2012, quando passou a intervir como segundo adjunto o Desembargador II.

    Concluindo. 

    É de retirar a menção a este processo constante do § 3.º a fls. 845 e no artigo 31 da acusação, mantendo a referência no § 4.º de fls. 846, corrigindo apenas fls. 20 a 26 e não fls. 20 a 32, como consta da acusação.

    O acórdão encontra-se na divisória 25.ª do Apenso V, datado de 4 de Abril de 2013, o que é compatível com o envio dos preparatórios de 19 de Fevereiro e envio do projecto a 7 de Março de 2013.

    Processo n.º 464 /08.4TBCHV.P1

    AA refere no mesmo requerimento, a fls. 1273, alínea b), que é imputada a elaboração de projecto neste caso a BB (artigo 22 da acusação, a fls. 846, § 3.º (na realidade, 2.º) e a FF (artigo 31, a fls. 848).

    No email de 1 de Março de 2013, a fls. 33 do Apenso II, Anexo D – Pasta de arquivo, CVP Diversos, é referido este processo como tendo sido entregue antes de 13-02-2013.

    Pelo email de 4 de Março de 2013 BB envia projecto não completo por o recorrente pretender a reapreciação da prova, conforme fls. 27 do Apenso II, Anexo D- Pasta de arquivo CVP Diversos e resumo de fls. 28 a 32 da mesma Pasta e ainda elementos de trabalho na sua posse, de fls. 42 a 46 Apenso III, Anexo B.

   No que respeita a FF, certo é que igualmente este processo figura na listagem de processos constantes na pasta DR AA, localizados no computador de FF a fls. 3 do Apenso IV e depois há apenas elementos de trabalho e apenas isso de fls. 4 a 13 do mesmo Apenso IV, sendo seguro que não fez projecto.

   Concluindo: será de manter o que consta da acusação no § 2.º de fls. 846, apenas precisando que fls. 28 a 32 são do Apenso II, Anexo D, e não do “referido apenso”, referência potencialmente geradora de confusão face ao que imediatamente antecede, sendo de excluir a referência a este processo no artigo 31.

   O acórdão encontra-se na divisória 13 do Apenso V, datado de 9 de Maio de 2013, tendo havido reclamação não explicitada (ausência de elementos clarificadores da situação), mas não havendo razões para não dar por certo o envio de 4 de Março do projecto não acabado por pretensão de audição da prova testemunhal.

   Processo n.º 5546 /11.2TBNTS.P1

   AA refere no mesmo requerimento, a fls. 1273/4, alínea c), que é imputada a elaboração de projecto neste caso a FF e também a BB (a fls. 846, § 1.º).

   Na verdade, o processo consta do artigo 31, a fls. 848, como sendo atribuído a FF e igualmente no artigo 22 a fls. 846 § 1.º, a BB.

   No que respeita a FF, é igualmente certo que este processo figura na listagem de processos constantes na pasta DR AA, localizados no computador de FF a fls. 3 do Apenso IV e depois há projecto de fls. 50 a 58, intervindo como segundo adjunto o Desembargador UU - fls. 58.

   Em email de 1 de Março de 2013 proveniente de BB consta envio de projecto deste processo e de outro – fls. 33 – seguindo-se um resumo de fls. 38 a 41, como aquele do Anexo II Apenso D - Pasta de  arquivo CVP Diversos e documento de  fls. 201/2 do Apenso III, Anexo B.

   Na divisória 24.ª do Apenso V o acórdão está datado de 21 de Março de 2013, o que é compatível com a data de envio do projecto.

   Dando-se por certo o envio de projecto por BB é de excluir a referência a este processo no artigo 31 como tendo o projecto sido elaborado por FF.

   Processo n.º 8560/08.1TBMTS-B.P1

   AA refere no mesmo requerimento, a fls. 1274, alínea d), que é imputada a elaboração de projecto neste caso a FF, mas que o acórdão foi por si integralmente elaborado, sendo adjuntos HH e VV, sendo publicado na sessão de 10 de Março de 2011.

   Adianta-se que neste particular assiste inteira razão à requerente.

   Na verdade o processo consta do artigo 31 da acusação, a fls. 848, como sendo atribuído a FF, sendo igualmente certo que este processo figura na listagem de processos constantes na pasta DR AA, localizados no computador de FF, a fls. 3 do Apenso IV, mas neste caso essa presença só pode significar um elemento para estudo, um “modelo de acórdão” como se expressa a acusação nos artigos 26, 27 e 29, pois conforme se vê de fls. 96 a 113 do Apenso IV, está datado de 10 de Março de 2011 e com a menção dos referidos adjuntos, os quais efectivamente assinaram o acórdão, conforme consta do acórdão colocado na divisória 35 do Apenso V. 

   É pois de excluir esta referência no artigo 31 da acusação.

   Processo n.º 516/06.5TVPRT.P1

 

   Na alínea e) do mesmo requerimento, a fls. 1274, alega a requerente ter sido integralmente elaborado por si este acórdão, que se encontra na divisória 36.ª do Apenso V, referindo que o projecto é atribuído na acusação a BB (§ 2.º de fls. 845) e também a EE no ponto 45 da mesma acusação. 

   Liminarmente, se dirá que é de excluir do artigo 45 da acusação a referência a este processo, sem qualquer outra menção.

   A inclusão dever-se-á a lapso, pois que foi BB quem elaborou o projecto, como claramente se retira do email de fls. 75 do Apenso II - Anexo D a) – Pasta de arquivo CVP Diversos, entregue por aquela aquando da busca, tendo-lhe  sido entregue o processo em 19 de Outubro  de 2012, como se alcança de fls. 86 (foi um dos primeiros quatro processos a serem entregues), a que se seguiram entregas de elementos de trabalho, conforme se alcança de fls. 76 (folha manuscrita), em conjugação com o email de AA para BB em 23-10-2012, a  fls. 77 do mesmo Apenso, e fls. 223, n.º 10, do Apenso III - Anexo B, tendo o projecto sido enviado em 20 de Novembro de 2012 (“Aqui vai”, conforme email de fls. 75 já citado), antes pois, da participação de EE.

   Ademais isso mesmo claramente resulta do descritivo do artigo 22 da acusação em que o processo em causa surge em quarto lugar com a indicação de 20 de Novembro de 2012, e do artigo 48 da acusação (corrigido, surgindo na acusação como “segundo” artigo 45), referindo-se expressamente este processo como constando da pasta de arquivo apreendida a BB em 15 de Outubro de 2013.

   Por outro lado, BB tinha em seu poder cópias do acórdão proferido no mesmo processo em 15 de Dezembro de 2010, relatado por XX, sendo Adjuntos AA e HH, o qual muito possivelmente terá sido revogado - cfr. fls. 53 a 82 e repetido de fls. 254 a 283 do Apenso III, Anexo B.

   A data do acórdão constante da divisória 36.ª do Apenso V – 19 de Dezembro de 2012 – é compatível com a referida data de envio de projecto.

   Processo n.º 7823/10.0TBMTS.P1

   Este processo figura no artigo 31 da acusação, a fls. 848, como tratando-se de projecto atribuído a FF.  

   A requerente invoca este processo na alínea i), a fls. 1275, num contexto diferente, incluindo-o a par de todos os cinco mencionados no artigo 30 da acusação, para concluir que todos eles foram inteiramente elaborados pela arguida.

   Incorre a requerente neste particular em manifesto equívoco.

   Vejamos porquê.

   Este processo figura igualmente na listagem de processos constantes na pasta DR AA, localizados no computador de FF, a fls. 3 do Apenso IV, mas aqui sem dúvida, funcionando como mero processo exemplo, como “modelo de acórdão”, pois que, como se vê de fls. 59 a 66 do mesmo Apenso, estamos perante acórdão, sem data, elaborado pela requerente, mas tendo por adjuntos --- e ---, pelo que se tratará de acórdão mais antigo, completamente fora do quadro temporal em apreciação.

   Assim sendo, será de excluir esta referência do artigo 31 da acusação.

   Concluindo: dos processos indicados no artigo 31 da acusação não há projectos de acórdãos elaborados por FF, apenas se tendo por indiciado que o então estagiário detinha elementos destes processos no seu computador, como ressalta de fls. 3 do Apenso IV.

   No que respeita aos cinco processos referidos no artigo 30 da acusação a que a requerente se reporta na alínea i) do requerimento em apreciação, remete-se para o que consta dos emails de fls. 133, 146, 147 e 277 do Apenso IV, abordados infra a propósito da intervenção deste advogado então estagiário, sendo evidente que teria de ser a requerente a dar a formulação final, até pelas dificuldades (naturais) apresentadas na fixação da matéria de facto, como emerge da correspondência trocada, maxime, a fls. 133 e 146.

     Fundamentação da decisão sobre a fixação da matéria de facto a nível indiciário, ou seja,

     Da exposição de razões porque a decisão instrutória vai num sentido e não noutro

     Neste plano importa averiguar o que está indiciado, ou não, a nível de elaboração de projectos de acórdãos em processos distribuídos a AA e levados a cabo por BB e EE e ainda por FF, se bem que apenas as duas primeiras se revistam de interesse prático, atendendo a que foram as únicas pagas (sendo a segunda de forma parcial), inexistindo conduta delituosa no que tange à colaboração do então advogado estagiário.

 

    Quando AA, na concretização de ideia do então e ainda hoje, Exmo. Senhor Ministro da Defesa Nacional, assumiu a coordenação conjunta das Delegações da Cruz Vermelha de ... e do ---, em 6 de Agosto de 2012, estava em curso um processo disciplinar contra si instaurado, conforme consta do artigo 5.º da acusação, tendo sido procurada a via de requisição, de que deu conta o Presidente Nacional quando ouvido em instrução, e como dava conta AA em e-mail emitido em 1 de Outubro de 2012, pelas 23:34, dirigido ao Eng.º YY, tendo por assunto “Comissão administrativa da CVP ---”, no qual refere o processo disciplinar que lhe foi instaurado para dar explicação sobre processos que tinha em atraso, e aludindo a projectada requisição sua em comissão de serviço por um ministério ou outro - fls. 2 do Apenso III, Anexo D, que contém listagem de e-mail´s, localizados no computador da supra referenciada Adjunta executiva, Dra. SS.

     A intervenção de BB

 

     A intervenção imputada a esta arguida/requerente consta dos artigos 15 a 22 da acusação, tendo a mesma procedido a elaboração de projectos de acórdãos em processos descritos no artigo 22, ao todo dezoito, e não dezanove, pois que o n.º 1853/10.0TBPFR-A.P1, aparece referido por duas vezes, a fls. 845, no § 3.º e a fls. 846, no § 4.º, valendo apenas a última referência, reportada a 7 de Março de 2013, como explicado ficou a págs. 114 a 116 desta decisão – cfr. infra, fls. 166 e 167.

     Esta intervenção ter-se-á dado ao abrigo de uma avença jurídica, questão que será debatida infra.

     A invocação da avença jurídica concita a necessidade de uma abordagem dupla, sendo uma centrada na intervenção imputada na acusação, consistente na elaboração de projectos de acórdãos e uma outra trazida pela requerente BB no sentido de apresentar documentos comprovativos de trabalhos por si desenvolvidos para a Cruz Vermelha, Delegação do Porto, que justificariam em seu entendimento a referida avença, o que veio a ser “reforçado” com a apresentação superveniente de outros, muitos, documentos trazidos por AA já em 6 de Março de 2015.

     Sendo assim, começar-se-á pela

     Análise do conteúdo dos documentos referentes a trabalhos feitos por BB para a Cruz Vermelha, Delegação do ---

     Proceder-se-á à análise crítica do conteúdo dos documentos apresentados pela requerente BB com o requerimento de abertura de instrução, bem como os apresentados por AA com o requerimento de fls. 1271 a 1277, já na fase final da instrução, em 6 de Março de 2015, mas respeitantes a BB, em número de trinta e um, os quais estão integrados no Anexo 3 [Documentos 22 a 39], no Anexo 4 [Documento 40], Anexo 5 [Documentos 41, 42, 43 e 44], Anexo 6 [Documento 45 (A)], Anexo 7 [Documento 45 (B)], Anexo 8 [Documentos 45 (C) e 45 (D)], Anexo 9 [Documentos 46 e 47], Anexo 10 [Documento 48] e Anexo 11 [Documento 49].

     Análise dos documentos apresentados pela requerente BB com o requerimento de abertura de instrução

     A requerente BB, com o requerimento de abertura de instrução, juntou cinco documentos, de fls. 1083 a 1115, do 4.º volume, a saber:

1 – Documento 1 – fls. 1083 a 1087;

2 – Documento 2 – fls. 1088;

3 – Documento 3 – fls. 1089 a 1111;

4 – Documento 4 – fls. 1114/5;

5 – Documento 5 – fls.1112/3.

    (A numeração da paginação nos documentos 4 e 5 está trocada).

    O primeiro documento é composto por 5 folhas (sendo a primeira em papel timbrado de --- & Associados, sociedade de advogados, que trabalhou pro bono para a CVP do --- durante algum tempo) e que constitui uma listagem de oito assuntos pendentes da CVP Porto em 17 de Setembro de 2012, dia em que terá havido uma reunião (todas as folhas em baixo contêm a menção “Reunião de 17/09/2012”).

    O primeiro processo é dado por concluído e encerrado em Janeiro de 2013.

     (A questão é versada no Documento 42, de fls. 1325 a 1386 – Anexo 5, remetendo-se para o que se diz sobre a intervenção da requerente BB – informação/parecer de 25-10-2012 a fls. 1325).

 

    O segundo processo é dado por concluído e encerrado em Novembro de 2013.

     (A este propósito nada é concretizado a nível de intervenção da mesma requerente neste caso de simulação de preço de obra).

    O terceiro processo foi concluído e encerrado em Abril de 2010.

     (Nada existe sobre eventual intervenção de BB no processo de inventário em causa, anotando-se que o mesmo é dado por concluído em 2010).

    O quarto processo é dado por processo concluído e encerrado em Julho de 2013.

     (Sobre o Proc. ambulância, sendo sinistrada --, foi dado parecer em 12-11-2012, a fls. 845/6 do Documento 40, integrado no Anexo 4 - fls. 845 a 1224).

    O quinto processo estava em curso, tendo sido entregue um dossier completo ao Dr. --- – Sede Nacional, constando “Este assunto será tratado directamente pela CVP”.

    (Não há notícia de qualquer intervenção de BB neste caso).

    O sexto – processo disciplinar – foi dado por concluído e encerrado em Julho de 2013, dizendo-se no texto que aguarda tramitação de recurso pendente e referindo-se --- como advogada que acompanha o assunto.

    (A questão do despedimento de --- é versada no Documento 41, de fls. 1225 a 1324 do mesmo Anexo 5, concretamente, o parecer de 29-11-2012, a fls. 1225/6, remetendo-se para o que consta da abordagem por nós feita).

 

    O sétimo processo é dado por concluído e encerrado em Março de 2013.

    (A referência a esta acção de impugnação de despedimento de ---, antes colaboradora da CVP Porto, está no Documento 43, de fls. 1387 a 1497, do mesmo Anexo 5, com parecer datado de 3 de Dezembro de 2012, a fls. 1387/8).

      

    O último processo respeitante a um legado estava em curso, constando que a Dra. AA estaria a tratar directamente do processo com a Sede Nacional.

    (Não há qualquer indício de intervenção de BB neste processo).

    As referências a 2013 inculcam que se trata de óbvios aditamentos posteriores, desconhecendo-se a sua autoria.

    Valor probatório do documento 1.

    O documento é, como se viu, completamente inócuo, no que toca aos processos indicados em 2.º, 3.º, 5.º e 8.º lugares, já que a apresentante não terá tido intervenção em qualquer deles.

    No que concerne ao valor probatório dos restantes quatro, remete-se para as considerações que tecemos na abordagem a cada um dos casos, ao versar os documentos 40, 41, 42 e 43, todos integrados no Anexo 5.

    O segundo documento é uma listagem dos trabalhadores/prestadores de serviços da CVP ---, que cessaram funções de Setembro de 2012 a 16 de Junho de 2014.

    O terceiro documento é constituído por fls. 1089 a 1111, respeitantes às cessações de contratos enunciadas no documento 2.

    A análise será assim conjunta, reportando cada caso da lista ao documento que segue.

    Concretizando.

    Em causa cessação de funções de 16 trabalhadores da CVP ---, sendo uma por transferência para a Delegação de ..., duas por acordo e 13 rescisões, sendo duas por iniciativa do trabalhador (fls. 1106 e 1107).

    Os acordos celebrados em 17 e 31 de Outubro de 2012 foram tratados por AA, conforme fls. 1091/3 e 1095/6.

    Das rescisões, a primeira é anterior à fusão, datando a carta de 23 de Julho de 2012 e assinada pela então Presidente da Comissão Administrativa, Dra. --- – fls. 1089.

    Na segunda a comunicação foi assinada pelo Presidente Nacional (fls. 1090), o que aconteceu em outros casos, como os de fls. 1094, 1097, 1098, 1099, 1100 e 1105.

    E por AA, a de fls. 1108, já em 25-11-2013.

    Dos prestadores de serviços, duas rescisões foram por iniciativa do prestador, sendo uma tratada por AA (fls. 1109) e a outra por reforma da ama (fls. 1111). A rescisão de 30-08-2012 foi assinada por AA (fls. 1110).

    Anota-se que atentos os fins visados com a junção dos documentos, estes só teriam virtualidade de prova desde que compreendessem o período visado na acusação, de 19 de Outubro de 2012 a Fevereiro de 2013, sendo que 11 cessações de contrato estão fora desse quadro temporal.

    Da listagem elaborada já em 16 de Junho de 2014 e dos documentos que seguem nada se retira no sentido de que a Dra. BB tivesse tido qualquer tipo de intervenção a nível de contencioso.

    O documento 4 é constituído por Mapa 2 – Utentes saídas 2012, contendo menção do n.º de processo individual e dados relativos a utentes da Casa Abrigo ---.

     Nada de pertinente se pode retirar deste mapa no sentido de atribuir qualquer tipo de intervenção de BB.

     O documento 5 é constituído por Mapa 2 – Utentes saídas 2013, contendo menção a n.º de processo individual e dados relativos a utentes da Casa Abrigo ---.

     Tal como no anterior, nada se retira relativamente a qualquer desempenho jurídico por parte da Dra. BB.

     Valor probatório dos documentos 2, 3, 4 e 5.

     Concluindo: O valor probatório dos documentos 2, 3, 4 e 5 é nulo.

                                                        *******

     Ainda no que respeita à actuação de BB

 

     Análise do conteúdo dos documentos apresentados por AA, respeitantes a BB    

     Segue-se a análise dos documentos juntos por AA, em 6 de Março de 2015, no requerimento de fls. 1271 a 1277, mas respeitantes a BB, procurando demonstrar o tipo de trabalho feito para a Delegação da Cruz Vermelha do ---, no período compreendido entre 19 de Outubro de 2012 e finais Fevereiro de 2013, alegadamente abrangido pela avença jurídica paga pela Delegação da Cruz Vermelha de ....

     Em causa os documentos 22 a 49, contidos nos Anexos 3 a 11.

     Os documentos 22 a 39 encontram-se todos no ANEXO 3

                                                  Documento 22

    Em causa documentos (fls. 648 a 660), provenientes do Serviço do Ministério Público de ..., extraídos do processo de inquérito n.º 1606/12.0PHMTS, relativo a violência doméstica e constituídos pelas seguintes peças;

Despacho de arquivamento de 9-01-2013 (fls. 648/9);

Requerimento de intervenção hierárquica suscitada em 5-03-2013 (fls. 650 a 652);

Despacho de revogação do arquivamento, de 3-04-2013 (fls. 654 a 660);

Notificação emitida em 11-04-2013 (fls. 653).

Valor probatório – Não se retira qualquer intervenção de BB.

                                                Documentos 23 e 24

Em causa intervenção no processo-crime n.º 1136/11.8PBMTS - (fls. 661 a 667).

      Na acta de audiência de julgamento em 18-10-2012 (doc. 24, a fls. 663/7) consta como mandatário do arguido DD, tendo comparecido com substabelecimento a Dra. BB e na acta de leitura de sentença, a 15-11-2012 (doc. 23, a fls. 661/2), consta BB como mandatária da demandante.

      (Possivelmente haverá lapso na indicação de defesa do arguido, mas em ambos os casos está presente o mandatário).

Valor probatório - O documento revela-se inócuo para os fins pretendidos.

                                                Documento 25

     Em causa o já referido inquérito n.º 1606/12.0PHMTS, fls. 668 a 680, repetindo-se tudo quanto se contém no documento n.º 22, o que se poderá ficar a dever a mero lapso.

A repetição não tem o condão de alterar o juízo formulado.

Relevo probatório nulo.

                                               Documento 26

    Em causa (fls. 681 a 684), processo n.º 1277/03.5TBCHV-A, com requerimento feito por MMO ao Juiz de Chaves, seguindo-se despacho deste, datado de 14-11-2012, a indeferir o requerido.

O que se pretenderá provar é algo que se não enxerga.

                                                Documento 27

O inquérito n.º 1606/12.0PHMTS está de volta, agora de fls. 685 a 705.

      Desta vez torna-se a repetir despacho de arquivamento (fls. 686/7), requerimento de intervenção hierárquica (fls. 688 a 690), notificação de 11-04-2013 (fls. 681) e despacho de 3-04-2013 (fls. 692 a 698), já presentes nos documentos 22 e 25.

      Como elementos novos são agora juntos: notificação de 7-2-2013, a comunicar o arquivamento no inquérito (fls. 685) e uma outra de 12-07-2013 para notificação de acusação (fls. 699), bem como a peça acusatória deduzida em 9-07-2013 (fls. 700 a 702) e pedido de indemnização civil (fls. 704/5).

Os dados novos nada adiantam.

                                                  

                                                 Documento 28

     De fls. 706 a 728, mostra-se junta uma petição inicial de insolvência de pessoa singular (Apresentação) e exoneração do passivo restante assinada por DD.

      A fls. 706, encontra-se comprovativo de entrega de peça processual, em 14-12-2012, por DD, mandatário subscritor, conforme fls. 708.

      A sentença de insolvência foi notificada a DD, na qualidade de mandatário.

      Segue-se decisão de admissão do pedido de exoneração do passivo restante, de 21-02-2013, sem outra indicação.

       Valor probatório - Não se vislumbra qualquer indício de intervenção processual de BB em processo falimentar.

                                                 Documento 29

      De fls. 729 a 733, encontra-se junta uma petição inicial de acção de regulação das responsabilidades parentais assinada por DD.

      A fls. 729, encontra-se comprovativo de entrega de peça processual, em 16-01-2013, por DD, mandatário subscritor, conforme fls. 730.

Valor probatório - Não se enxerga qualquer indício de intervenção de BB.

                                                 Documento 30

     De fls. 734 a 742, encontram-se juntas alegações nos termos do artigo 178.º da OTM – a cópia não está assinada.

     A fls. 734, encontra-se comprovativo de entrega de peça processual, em 14-01-2013, por DD, mandatário subscritor, conforme fls. 736.

Valor probatório - Não há qualquer indício de intervenção de BB.

                                                 Documento 31

     De fls. 743 a 752, mostra-se junto requerimento nos termos do artigo 182.º da OTM – a cópia não está assinada.

     A fls. 743, encontra-se comprovativo de entrega de peça processual, em 21-02-2013, por DD, mandatário subscritor, conforme fls. 744.

Valor probatório - Não há qualquer indício de intervenção de BB.

                                                   Documento 32

     A fls. 753/4, de novo em causa intervenção no processo comum n.º 1136/11.8PBMTS, tratando-se da acta de leitura de sentença de 15-11-2012 (doc. 23), onde consta BB como mandatária da demandante.

     Trata-se de mera repetição do documento 23 supra referido, repetindo-se fls. 661/2, ou seja, a acta de leitura de sentença de 15-11-2012.

                                                    Documento 33

     A fls. 755 a 759, de novo intervenção no processo-crime n.º 1136/11.8PBMTS, sendo junta de novo a acta de audiência de julgamento de 18-10-2012.

      Trata-se agora de mera repetição do documento 24, supra referido, repetindo-se fls. 663 a 667, ou seja, de novo, a acta de audiência de julgamento de 18-10-2012.

                          

                                                    Documento 34

    De fls. 760 a 772, referindo-se ao inquérito n.º 1606/12.0PHMTS, relativo a violência doméstica, são juntos em mera repetição os documentos já juntos com o documento 22, como se passa a demonstrar:

Despacho de arquivamento de 9-01-2013 (fls. 648/9) – Agora, a fls. 760/1;

    Requerimento de intervenção hierárquica suscitada em 5-03-2013 (fls. 650 a 652) – Agora, a fls. 762 a 764;

    Despacho de revogação do arquivamento, de 3-04-2013 (fls. 654 a 660) – Agora, a fls. 766 a 772;

    Notificação emitida em 11-04-2013 (fls. 653) – Agora a fls. 765.

    Relembra-se que no documento 27 já havia repetição de despacho de arquivamento (fls. 686/7), requerimento de intervenção hierárquica (fls. 688 a 690), notificação de 11-04-2013 (fls. 681), despacho de 3-04-2013 (fls. 692 a 698).

    Donde, estes elementos são apresentados por quatro (4) vezes de forma absolutamente escusada.

    Após estes elementos, de fls. 773 a 776, surgem certamente por engano, documentos relativos ao processo n.º 1277/03.5TBCHV-A, repetindo-se os que constam do documento n.º 26 (fls. 681 a 684).

                                                    Documento 35

    O inquérito n.º 1606/12.0PHMTS está de volta, agora de fls. 777 a 797.

    Este documento é a repetição absoluta, folha a folha, de tudo quanto constitui o documento 27. (fls. 685 a 705).

     Foram novamente juntos estes cinco elementos:

     Despacho de arquivamento de 9-01-2013 – Agora, a fls. 778/9;

     Requerimento de intervenção hierárquica suscitada em 5-03-2013 – Agora, a fls. 780 a 782;

Despacho de revogação do arquivamento, de 3-04-2013 – Agora, a fls. 784 a 790;

Notificação emitida em 11-04-2013 – Agora a fls. 783.

Daqui se retira que estas peças foram juntas por cinco (5) vezes (!).

                                                   Documento 36

     De fls. 798 a 820, este documento repete na íntegra o documento 28, tudo o que consta, folha a folha, de fls. 706 a 728.

                                                   Documento 37

   De fls. 821 a 825, de novo a petição inicial de acção de regulação das responsabilidades parentais assinada por DD.

   Este documento repete na íntegra o documento 29, tudo o que consta, folha a folha, de fls. 729 a 733.

                                                   Documento 38

      De fls. 826 a 835, é junto de novo, requerimento nos termos do artigo 182.º da OTM, encontrando-se junto comprovativo de entrega de peça processual, em 21-02-2013, por DD, mandatário subscritor.

      Este documento repete na íntegra o documento 31, tudo o que consta, folha a folha, de fls. 743 a 752.

                                                    Documento 39

     De fls. 836 a 844, encontram-se juntas alegações nos termos do artigo 178.º da OTM, encontrando-se junto comprovativo de entrega de peça processual, em 14-01-2013, por DD, mandatário subscritor.

    Este documento repete na íntegra o documento 30, tudo o que consta, folha a folha, de fls. 734 a 742.

                                                     *******

      No Anexo 4 encontra-se o

 

                                                         Documento 40

     Este documento faz fls. 845 a 1224, começando por um parecer elaborado por BB, a fls. 845/6, com seis parágrafos, a propósito de uma acção de condenação pendente proposta por --- sobre cuja cabeça caiu uma bala de oxigénio, quando era transportada numa ambulância da Cruz Vermelha.

      Este processo é exactamente o referenciado no Documento 1 – fls. 1083 a 1087 do 4.º volume – junto por BB com o RAI, concretamente o referido a fls. 1084/5 com a referência “IV - --- (Proc. Ambulância)”, o qual aguardava realização de audiência em 18-12-2012.

     Parecer de 12 de Novembro de 2012

     Referência: Processo n.º 2041/09.3TVPRT, 2.ª Vara Cível do Porto

    Analisado o processo reputa de particular interesse para a CVP Porto a celebração de acordo antes da data do julgamento, tentando-se imputar à seguradora a totalidade da responsabilidade ou parte dela, inequivocamente devendo evitar-se o julgamento.

     De fls. 847 a 1224 mostram-se juntos papéis tendentes a demonstrar a carga de trabalho dispendido para formular o parecer.

     Começar-se-á por dizer que, datando o parecer de 12-11-2012, não fará grande sentido e muito menos terá qualquer utilidade, a junção de papéis de 2013, como acontece com os juntos a fls. 847 a 866 e 873 a 879.  

     Por outro lado, verifica-se que a advogada --- da sociedade de advogados RR pronuncia-se sobre o processo em 13 a 16 de Dezembro de 2012, dizendo em email de 16-12-2012 dirigido a Paula Ferreira que concorda que a CVP deve mostrar disponibilidade para pagar uma parte do prejuízo que a senhora sofreu com a situação.

    Esta advogada acompanhou o processo desde o início, como se vê de fls. 887, 891, 894, 923, 1017, 1041, 1042, 1058, 1072, 1078, 1091, 1097 a 1099, 1106, 1116, 1118, e procuração de fls. 1058, repetida a fls. 1175, estando certamente em condições de opinar como o fez já em Dezembro de 2012, como se alcança dos emails de fls. 867 a 870.

    Como se verá na abordagem ao documento 42, aí se encontram emails a comprovar a sua presença em Dezembro de 2012 – cfr. fls. 1335 do Doc. 42, no Anexo 5.

    A fls. 871 está email de 11-12-2012 emitido por JJ onde se dá conta de que estará presente em julgamento o Dr. DD, em representação da DL Porto da CVP.

    Interveio igualmente a advogada da mesma sociedade ---, como se retira de fls. 1031 a 1040 verso, 1070, 1071, 1074, 1075, 1076, 1077, 1087 a 1090 e procuração de fls. 1058, repetida a fls. 1175.

    Por outro lado, interveio na fase de julgamento e na transacção efectuada a advogada ---, aliás constituída por AA, conforme se alcança de fls. 850 e 851 (repetido a fls. 858 e 859!), 857, 865, 866 (procuração) e 877.

    Noutra perspectiva, são juntos muitos papéis sem qualquer interesse (fls. 881 a 885, 888, 889, 890, 892, 1005, 1010, 1015, 1016, 1091, 1117 a 1125) e a exemplo de outras situações verifica-se a junção de vária documentação respeitante ao foro pessoal da ofendida que faz sentido numa acção de condenação por danos para prova dos alegados prejuízos, de dano corporal, mas que não fazem sentido no presente contexto. Referimo-nos a exames de sangue em hemocultura, fls. 928, 929 e 930, diário de internamento no Hospital de Santo António no Porto, fazendo fls. 935 a 945 e até fotos tiradas no hospital, a fls. 1666 verso a 1067 verso, apresentando-se uma exposição da situação clínica de fls. 927 a 997 e até extracto de remunerações, a fls. 1093/5. 

    Foram igualmente juntos vários documentos referentes a peças processuais de 2009 e 2010, acontecendo que em alguns casos há repetição das peças, o que demonstra alguma falta de cuidado na arregimentação da documentação. Assim ocorreu com:

- a petição inicial, apresentada pelo advogado ---, a fls. 1108 a 1114, repetida a fls. 1182 a 1190, e de novo repetida de fls. 1204 a 1212, o mesmo acontecendo com os documentos juntos, da 2.ª e 3.ª vezes, de fls. 1191 a 1202 e repetidos de fls. 1213 a 1224;

- a contestação, apresentada pelo escritório da sociedade RR, a fls. 1042 a 1057, repetida a fls. 1159 a 1174;

- o despacho saneador /condensação fls. 1017 a 1027, repetido de fls. 1078 a 1083 verso.

                                                         *******

      O Anexo 5 contém os documentos 41, 42, 43 e 44.

                                                       Documento 41

    Este documento, fazendo fls. 1225 a 1324, começa por um parecer elaborado por BB, a fls. 1225/6, com nove parágrafos, a propósito de uma acção de impugnação de despedimento da funcionária da CVP Porto, ---.

     Este processo é exactamente o referenciado no Documento 1 – fls. 1083 a 1087 do 4.º volume – junto por BB com o RAI, concretamente, o referido a fls. 1085/6 como assunto VI - Processo disciplinar ---, onde se dá nota da intervenção da advogada Benedita Gonçalves.

     Parecer de 29 de Novembro de 2012

     Referência: Processo n.º 160/11.5TTPRT, 4.ª Secção do Tribunal de Trabalho do Porto

    O processo à data aguardava tramitação subsequente do recurso interposto da decisão de 1-06-2012, favorável à funcionária, sendo que esta também recorreu.

   É proposto imediato acordo, uma vez que tendo interposto também recurso, a CVP Porto corre o risco de aumentar o montante da condenação já fixada, defendendo que a falta ao trabalho no dia da visita do Papa à cidade do Porto era manifestamente insuficiente para sustentar um despedimento com justa causa.

    Uma vez mais, datando o parecer de 29-11-2012, são juntos papéis posteriores, de 2013 (até fls. 1248), desde logo contactos por email com a advogada --- e acordo de 26-07-2013, a fls. 1228 a 1230, repetido de seguida a fls. 1235 a 1237 e de novo repetido de fls. 1241 a 1243.

   O processo terá sido tramitado para além do mais, pela citada ---, encontrando-se referências à sociedade de advogados RR, v.g., a fls. 1240, 1246, 1249, 1250, 1251, 1252 e 1256.

   Foi junto despacho saneador/condensação de fls. 1263 a 1301, cuja utilidade é de questionar, quando já havia uma sentença, voltando a base instrutória a ser junta de fls. 1303 a 1322, na sequência de email de --- para ---, como base de trabalho para a acção, mas cuja junção neste contexto não faz absolutamente qualquer sentido.

                                                       Documento 42

    Este documento, fazendo fls. 1325 a 1386, começa por um parecer elaborado por BB, a fls. 1325, com cinco parágrafos, a propósito de um requerimento da CVP --- contra a --- Seguros SA, por ter recusado a indemnização de um acidente de viação.

    Este processo é exactamente o referenciado no Documento 1 – fls. 1083 a 1087 do 4.º volume – junto por BB com o RAI, concretamente, o referido a fls. 1083 como assunto I – Geral (15004.1).

      Parecer de 25 de Outubro de 2012

     Referência: Processo n.º A -2012-002116-JT -CIMPAS

    Dá conta da existência de requerimento contra a seguradora no tribunal arbitral do Porto, para pagamento de 1 625,62€, tendo sido rejeitada a contestação e a prova apresentadas pela seguradora, pelo que considera que não deve ser celebrado qualquer acordo com a seguradora face à previsível condenação daquela.

     De novo, datando o parecer de 25-10-2012, começa-se pela junção de papéis de 2013 e Novembro e Dezembro de 2012 - fls. 1326 a 1338, 1340 a 1350. 

   O processo foi tramitado pela advogada ---, conforme fls. 1326 a 1331, 1336, 1340 a 1348, 1351, 1353, 1359, 1360, 1376 verso, 1377, 1380, 1382, 1383.

    Anotam-se as várias referência a intervenções da sociedade RR, como a fls. 1346/7/8, 1354, 1359, 1360, 1376, 1378, 1380, 1383/6, sendo algumas posteriores ao parecer e à alegada cessação de actuação daquela sociedade que teria ocorrido no Verão de 2012, maxime, a fls. 1331, 1342, 1344 a 1348.

     Verifica-se de novo erro de casting, pois a fls. 1335, encontram-se emails de JJ e de --- para AA e JJ, que não respeitam a este assunto, mas ao caso de Maria Celeste Cerqueira, a sinistrada com a bala de oxigénio na cabeça, tratado no documento 40.

                                                       Documento 43

    Este documento, fazendo fls. 1387 a 1497, começa por um parecer elaborado por BB, a fls. 1387/8, com sete parágrafos, a propósito de uma acção de impugnação de despedimento de ---, antes colaboradora da CVP ---.

       Este processo é exactamente o referenciado no Documento 1 – fls. 1083 a 1087 do 4.º volume – junto por BB com o RAI, concretamente, o referido a fls. 1086 como assunto VII - ---.

Parecer de 3 de Dezembro de 2012

     Referência: Processo comum n.º 142/12.0TUMTS, 2.º juízo do Tribunal do trabalho de ...

    Considerando a documentação junta conclui pela grande probabilidade de condenação da CVP --- por os sucessivos contratos de prestação de trabalho não poderem encapotar a relação laboral, concluindo pela desejável celebração de um acordo.

     Mais uma vez, a junção de documentos de 2013 a evidenciarem a intervenção da advogada --- associada da sociedade RR, nomeadamente na audiência de 7 de Março de 2013 em que é conseguida a conciliação das partes a fls. 1397 e outros elementos anteriores do processo.

    A contestação com 226 artigos foi elaborada pelo escritório da RR e mostra-se junta de fls. 1400 a 1441 e a p. i., de fls. 1443 a 1453, contratos de prestação de serviços, de fls. 1457 a 1463 e documentos relativo a IRS, ilegíveis para além desta indicação, a fls. 1469 a 1477, 1480/1/2/4/5/6/7/8.

     Sendo o processo acompanhado por Advogada colocar-se-á a questão de saber se não poderia esta concluir como se conclui no parecer.

                                                     Documento 44

     Este documento é constituído por fls. 1498 a 1514, com oposição a injunção com 15 artigos apresentada por Delegação do Porto da --- contra PT, Comunicações SA., assinada electronicamente por BB, datando de 23-11-2012, constando validade desconhecida a fls. 1514.

                                                          *******

       O Anexo 6 contém o documento 45 (A)

                                                     Documento 45 (A)

 

      Inicia-se com parecer elaborado por BB a propósito de quatro trabalhadores da Delegação da CVP ---, sendo que este documento, de fls. 1517 a 1768, aborda a situação da trabalhadora da referida Delegação da CVP Porto, ---, correspondendo os documentos 45 B, 45 C e 45 D aos outros três trabalhadores contemplados no parecer.

      Parecer de 30-10-2012, com seis parágrafos, a fls. 1515/6.

     Assunto: Contratos de trabalho da CVP ---.

     Tendo sido solicitada uma avaliação da legalidade dos contratos de trabalho dos trabalhadores da CVP --- BB procedeu à análise de todos os contratos de trabalho dos trabalhadores que constavam de relação para o efeito facultada.

      Propõe que em conformidade com o regime do contrato de trabalho, os trabalhadores ---, ajudante familiar; ---, ajudante familiar; ---, auxiliar de limpeza e ---, assistente operacional, passem a fazer o horário semanal de 40 horas, ao invés do actual horário de 35 horas, alertando para a necessidade de prévio acordo.

      Propõe ainda a uniformização de todos os contratos de trabalho da CVP Porto com o modelo utilizado em ..., tendo por referência o modelo divulgado pela Sede Nacional.

     Seguem-se elementos referentes a ---, ajudante familiar, trabalhadora da instituição desde 1-04-2003, compreendendo fls. 1517 a 1768.

     O acervo documental vertido compõe-se dos mais variados papéis, como curriculum vitae, certificado de participação da trabalhadora em acções formativas, presenças em colóquios/encontros/debates, frequência de cursos, participação em conferência e em seminário, participação na “Maratona Cidade do Porto 2005”, diploma, sendo estes documentos relativos a 2003, 2004 e 2005 e alguns a 2002, antes de se efectivar na CVP Porto, fotocópias de carta de condução e do BI, conta bancária, e várias justificações de ausências determinadas por exemplo, por presença no Sindicato - fls. 1624/9, 1639, 1678/9 - em escola – fls. 1625/1675, 1702 - em clínica – fls. 1626 e 1631/2/4/5/7, 1640/2/5/6, 1654/9, 1667, 1676, 1685/6/9, 1690/1/3/4/5, 1700/3/4/5, 1711/5/6/9, 1723/5/6/7, 1730/1/3/4/6 - em loja do cidadão – fls. 1628 - em centro de saúde - fls. 1636/8, 1641/3/4/7, 1655/6/7/8, 1662/4/5/6/8/9, 1670/4/7, 1683/4/8, 1692/6/9, 1701/7/9, 1710/2/3, 1722, 1732/5 – na Conservatória do Registo Civil de Vila Nova de Gaia - fls. 1661/3 – em consulta jurídica - fls. 1708 – e consulta de Psicologia - fls. 1724.

     Por outro lado, datando o parecer de 30-10-2012, verifica-se a presença de um conjunto de documentos de 2014 e 2013 e mesmo Novembro e Dezembro de 2012, que inexistiam à data do parecer e que fazem fls. 1559 a 1623.

     Este conjunto começa com troca de correspondência entre AXA e CVP Porto, iniciada em 14-10-2014, a propósito de um sinistro de que terá sido vítima a trabalhadora em 15-09-2014, como consta de fls. 1559 e 1560.

     A fls. 1561, encontra-se junto pedido de autorização para ausência de serviço por motivo de acompanhar a mãe a uma consulta no dia 6-10-2014 e a fls. 1562 está a declaração de presença no Centro de Saúde de Campanhã naquele dia por acompanhar o filho ---.

     Juntas a fls. 1563/4/5/6 estão declarações de incapacidade temporária absoluta da trabalhadora em causa emitidas, respectivamente, em 3-10-2014, 25-09-2014 e em 19-09-2014 e relacionadas com o sinistro de 15-09-2014.  

     A fls. 1567, encontra-se email de 16-09-2014, relacionado com o acidente de trabalho e participação do acidente a fls. 1568/9 e fls. 1570/1 e comunicação escrita do acidente, a fls. 1572.  

     A fls. 1574, mostra-se junto pedido de autorização para ausência de serviço por motivo de acompanhar o filho a uma consulta no dia 3-09-2014 e a fls. 1575 declaração de presença nesse dia na Clínica Saúde Atlântica, no Estádio do Dragão.

     Ainda datados de 2014 estão os documentos de fls. 1577 a 1592.

     Datados de 2013, são os documentos de fls. 1576 - marcação de férias em 2013; e fls. 1593 a 1619 e 1622.

     Datados de Novembro /Dezembro de 2012 são os documentos de fls. 1620/1/3.   

     Estes elementos nada têm a ver com a questão de horário sobre a qual BB emitiu parecer em 30 de Outubro de 2012.  

     Acresce que os documentos com data posterior contribuem para o volume, mas não foram objecto de estudo e análise para a formulação do parecer de 30-10-2012, sendo certo que para além do mais, os posteriores a Fevereiro de 2013 sempre estariam fora da cobertura da avença jurídica, porque posteriores ao seu termo.

 

                                                           *******

        O Anexo 7 contém o documento 45 (B).

    

                                                     Documento 45 (B)

 

     Este documento, de fls. 1769 a 2022, contém apenas elementos referentes à trabalhadora da Delegação da CVP Porto, ---, ajudante familiar desde 1-10-2000, conforme consta de fls. 1950, 1982, 1995 e 2012.

     Começa com a ficha individual e pessoal, cópias de documentos pessoais, certificado de ter concluído curso de formação profissional em língua espanhola, a fls. 1784, outro sobre idosos, a fls. 1796, uma participação em acção de sensibilização, a fls. 1786/7/8, nas XXIV Jornadas Nortenhas de Geriatria e Gerontologia, a fls. 1793, de frequência de acção formativa, a fls. 1794/5, presença em eventos, a fls. 1797/8/1801, em acção de formação e cursos, a fls. 1799/1800/2/3/6/7/8/9,1810/1/2/3/4, diplomas e certificados de qualificações, a fls.1815/6/7/8, curriculum vitae, a fls. 1826 a 1838.

     Como ocorreu no caso anterior também aqui se mostram juntos documentos relativos a factos ocorridos em 2014, 2013 e finais de 2012.

     Datam de 2014 - certificado de incapacidade temporária, faltas, consultas, declarações de presença, a fls. 1845/6/7/8/9, 1850/1/4/5/6/7. 

     Datados de 2013 - de Janeiro de 2013 - fls. 1819-20; mapa de férias em 15-03-2013, a fls. 1852; mail de 30-12-2013, a fls. 1853, 1863/4/5/9, 1872; falta, a fls. 1858,1861, 1878, 1888; declaração de presença, a fls. 1859, 1862, 1879, 1889; ficha de aptidão, a fls. 1860; acidente de trabalho de 28-10-2013, a fls. 1866/7/8,1871/3/4/5/6; acidente de trabalho em 3-06-2013, a fls. 1880/1/2/3/4/5/6/7.

     De Dezembro de 2012 estão datados os documentos de fls. 1890/1/2/3/5.

     E de Novembro de 2012, os de fls. 1894/6/7.

     A esmagadora maioria dos papéis é composta por consultas, atestados, declarações de presença em unidades de saúde, vacinas, estudos médicos, meios complementares de diagnóstico, incluindo uma apresentação de condolências, declaração de falecimento (fls. 1952 e 1953), licenças de férias, a fls. 1960/6, 1974/5/7,1981/4/5/6/7/9,1991/3/6/7, 2004/5, 2010/7 e 2021.

     Fica-se a saber que no dia 19 de Janeiro de 2011 ficou a trabalhadora impedida de exercer a sua actividade profissional devido a uma extracção dentária, com consequente risco de hemorragia, conforme declaração de médica dentista de Ílhavo, de fls. 1915.

     Transpõe-se para este caso tudo o que se afirmou quanto ao primeiro, em termos de volume de análise e ultrapassagem do tempo da avença, cumprindo deixar uma nota.

     A junção de documentos que respeitam à vida das pessoas deve fazer-se com alguma parcimónia. 

     Trata-se no caso de uma exposição da vida das pessoas que para os fins em vista de todo se não justifica.

     Por último.

     Certamente por erro de casting foi junta a declaração de fls. 1927 com o Tribunal Judicial de ... em 18-05-2010, a declarar a presença de uma tal “---”, a fim de intervir como testemunha num divórcio sem consentimento do outro cônjuge de uma tal --- e de um tal ---. 

     Não se enxerga motivo para o papel estar no processo individual desta trabalhadora.

     Dir-se-á que visto o Doc. 45 D, respeitante a ---, a fls. 2297 consta referência a “---”, como sendo ajudante familiar…

                                                          *******

      O Anexo 8 contém os documentos 45 (C) e 45 (D)

                                                    Documento 45 (C)

         Este documento, de fls. 2023 a 2199, alberga a situação da trabalhadora da CVP Porto, ---, auxiliar de limpeza, admitida em 1-07-1993.

    O acervo documental respeitante a esta trabalhadora compreende dados desde 1993, como termo de posse e documentos de identificação, elementos reportados a faltas, presenças em consultas, exames e serviço de urgência, declarações de presença, baixas, certificados de IT - fls. 2070/1/3/4/7/8/9, 2080, 2082 a 2114/6/9, 2121/3/8, 2138, 2147, 2153/4/7/8, 2160/3/4/6/7, 2171/2/5/6, 2180/1/2/3/7/8, 2193/4/5 - licenças para férias - fls. 2117, 2120/5/6, 2130/2/9, 2140/2/3/5/9, 2150/5, 2161/2/9, 2178, 2184/5, 2189 a 2192/6/7/8/9.

    Compreende ainda uma mensagem de parabéns pelo aniversário, em 15-05-2011, a fls. 2072, repetida, mas com mais assinaturas de elementos da Comissão Administrativa, a fls. 2081, e um louvor, a fls. 2136.

    Consta ainda presença em trasladação e funeral de familiares, a fls. 2105 e 2170.

    Tal como nos dois casos anteriores, também aqui há elementos reportados a 2014, a 2013 e finais de 2012, fora do quadro do parecer que antecede a junção destes elementos.

    Estão datados de 2014: ficha de aptidão - fls. 2039 – faltas, consultas, declarações de presença, certificados de incapacidade temporária - fls. 2040/1/4/5/6/7/8/9, 2050 a 2057

    Datados de 2013 - mapa de férias - fls. 2042/3 - consultas - fls. 2058, 2060 a 2066.

    De Dezembro 2012 - fls. 2067/8/9.

    Transpõe-se para aqui o já referido a propósito dos dois trabalhadores antecedentes, continuando a exposição de faltas e de doenças.

                                                    Documento 45 (D)

       Este documento, de fls. 2200 a 2347, aborda a situação do trabalhador da Delegação da CVP ---, assistente operacional, telefonista,. admitido em 1-06-1997.

    Constam elementos pessoais até fls. 2214 - Faltas por doença e IT - fls. 2262/5 a 2269, 2275, 2294/8 a 2300, 2304 a 2308, 2316 - Férias - fls. 2271/7/8, 2292/5, 2301, 2315/8, 2322/3/8, 2334/5/9, 2342/3/4/5 - Processo disciplinar - fls. 2284 a 2289 - Presença em quatro funerais - fls. 2309/2310; fls. 2317; fls. 2327 e fls. 2337 - Proposta de louvor e louvor - fls. 2311/2/3 - Licença de casamento - fls. 2347.

     Como nos precedentes três casos há igualmente referência a factos ocorridos já em 2014, 2013 e finais de 2012.

     Estão datados de 2014 - participação de acidente de trabalho em 31-10-2014, a carregar madeira no edifício de Massarelos - fls. 2218 a 2229 – Faltas e declarações relacionadas com acidentes de trabalho anteriores - fls. 2230 a 2233, 2236/8/9, 2240/1/2/3/4 - férias - fls. 2235.

     De 2013 estão datados os documentos: mapa de férias - fls. 2234 - acidente de trabalho - fls. 2245/6/7/8 a 2253.

     De Novembro e Dezembro de 2012 – fls. 2254 a 2260.

     Transpõem-se para o presente caso as considerações expostas supra, como a rotunda imprestabilidade de tudo quanto se refere a documentação produzida fora do período temporal da avença.

                                                            *******

         O Anexo 9 contém os documentos 46 e 47.

                                                    Documento 46

       Este documento, de fls. 2348 a 2712, tal como o Documento 45 (A), inicia-se com parecer elaborado por BB a propósito da situação da trabalhadora da Delegação da CVP Porto, ---, assistente social na CVP Porto.

    Parecer de 07-01-2013, com quatro parágrafos, a fls. 2348/9.

    Referência: Rescisão de contrato de trabalho.

    No parecer afirma-se que a trabalhadora não mostra aptidão nem interesse no desenvolvimento das funções que lhe foram cometidas após a reestruturação dos serviços e pretendendo-se a não renovação do contrato de trabalho a termo, anota informações retiradas do processo individual de trabalho, que expõe em nove pontos, contendo a sucessão de contratos entre Setembro de 2008 e 2012.

   Refere a possibilidade de denunciar o contrato a termo certo em 14 de Abril de 2013 e aconselha uma conversação com a trabalhadora em questão.

   Segue-se a junção de documentos relacionadas com a trabalhadora em causa, de fls. 2350 a 2545, como declarações de presença em cursos de formação profissional e outros; Documentos com riscos, a significar a sua falta de interesse, de fls. 2377 a 2391; Contratos de prestação de serviços, a fls. 2423 a 2426 e 2528/9, 2532/3, 2536/7.

   Tal como nos casos anteriores foram juntos documentos posteriores à data em que foi emitido o parecer, como os de fls. 2376 – 2392 – 2415 a 2418 (ilicitude de despedimento e respectiva compensação em Novembro de 2013) – 2429 a 2455.

                                                    Documento 47

   Este documento reporta a situação de ---, responsável da área administrativa e financeira da CVP Porto, de fls. 2546 a 2742.

   Tal como nos Documentos 45 (A) e 46, este começa com um parecer elaborado por BB. 

    Parecer de 17-12-2012, com seis parágrafos, a fls. 2546/7.

    Referência: Rescisão de contrato de trabalho

    Refere-se que por força da fusão deixou de ser necessária a existência do seu posto de trabalho, estando a trabalhadora a coberto da resolução do contrato de trabalho até ao fim do período de aleitação, propondo transferência para ... e a cessação da isenção de horário.

   Anota-se que esta trabalhadora é de novo referenciada no Doc. 48

   Mostram-se igualmente juntos documentos riscados, a fls. 2572/3/4.

   De novo documentos posteriores à data do parecer, como em:

   2014 – fls. 2575 -  revogação por mútuo acordo em 10 de Abril de 2014, a fls. 2576 /7 – 2579 a 2586 – 2601 a 2623 – 2627 a 2637 – 2640 a 2649 – 2651.

   2013 – fls. 2569 – 2570 – 2591 – 2624/5/6 – 2638 – 2650/2/3/4.

                                                       *******

         O Anexo 10 contém o documento 48

                                                    Documento 48

   

    Este documento, de fls. 2743 a 3185, reporta a situação de ---, --- e ---, todas trabalhadoras da Delegação da CVP ---.

   Este documento começa igualmente com um parecer elaborado por BB.

   Parecer de 29-01-2013, com dois parágrafos, a fls. 2743.

   Assunto: Contratos de trabalho da CVP Porto – técnicos.

   Implementada a fusão de Porto e ..., tendo em vista a uniformização dos horários dos técnicos e dos administrativos, BB propõe que passem a fazer o horário de 35 horas semanais, as trabalhadoras ---, ---, --- e ---.

   Com o devido respeito, estando em causa tão só a uniformização de horários não se justifica para comprovação de tal proposta o acervo documental junto.

   A situação de --- foi abordada no Documento 47.

   Daí que neste Documento 48 estejam em causa apenas as situações das outras três trabalhadoras. 

 ----, assistente social – fls. 2744 a 2847.

 Começa com ficha individual de trabalhadora, datada de 7-11-2014.

 Juntos documentos riscados - fls. 2758 a 2768.

 Como nos anteriores casos, também há documentos posteriores à data de emissão do parecer, como segue: 

   2013 – fls. 2754/5/6 – 2769 – 2770/1 – 2787 a 2791 – 2794 a 2807.

   2014 – fls. 2777 a 2086 – 2792/3.

  ---, animadora social - fls. 2848 a 2992.

   De novo são juntos documentos riscados na origem - fls. 2869 a 2872.

   Mais uma vez se juntam documentos produzidos em datas posteriores à do parecer, como segue:

  2013 – fls. 2852 – 2865/6/7 – 2873 – 2892 a 2919.

  2014 – fls. 2888 a 2891.

   ---, administrativa – fls. 2993 a 3185

   Mais uma vez são juntos documentos riscados na origem - fls. 3009 a 3012-3038.

   Juntos diplomas legais e regulamento com 7 anexos, de fls. 3128 a 3164, ou seja, uma quantidade imensa de papéis que nenhum relevo assume para a questão versada no parecer, que teve em conta apenas os diferentes horários semanais. 

   Também aqui foram juntos, escusadamente, documentos com datas posteriores à data do parecer, a saber:

2014 – fls. 3013 – 3026/7/8 – 3035/6 – 3039 a 3044.

2013 – fls. 3014/5 – 3029 a 3034 – 3045 a 3053.

                                                             *******

        O Anexo 11 contém o documento 49

                                                    Documento 49

   Este documento, de fls. 3186 a 3480, reporta a situação da trabalhadora da Delegação da CVP --- ---.

   Este documento começa da mesma forma com parecer elaborado por BB.

   Parecer de 22-10-2012, com um único parágrafo, a fls. 3186.

   Referência: Rescisão de contrato de trabalho.

   No parecer, após análise do contrato da trabalhadora em questão, propõe se proceda a rescisão por mútuo acordo, devendo tentar-se reduzir a 4.000,00 Eur a quantia líquida a pagar à trabalhadora.

    Regista-se a junção de documentos sem qualquer interesse, como os de fls. 3339/3340 - despacho de 27-01-2007 proferido em processo executivo do 1.º Juízo Cível de Lisboa e elementos relacionados com o processo fls. 3341 a 3349-3353/4/5/6/7/8-3362/3/4/5/6/7/8-3371 a 3389 – outra penhora, agora fiscal – fls. 3395 a 3400 – outra execução no Porto – fls. 3402 a 3418-3421 a 3428 – uma outra ainda no Porto – fls. 3457 a 3463; licenças de férias – fls. 3351/2 - 3360/1/9 - 3401 - 3435/9 – 3440.

    Uma vez mais são juntos documentos produzidos com data posterior à do parecer:

    2014 – fls. 3203 a 3207 - notificação de penhora do vencimento quando já não era trabalhadora. 

    Dez 2012 – fls. 3208 a 3219.

 

    Pergunta-se qual o interesse de expor a vida da ex-trabalhadora, juntando os papéis relativos aos processos de execução, sabido que o proveito é nulo.

    

    Concluindo.

    Da análise dos documentos 22 a 39, já se fez constar o nulo valor probatório dos mesmos, não podendo deixar de se anotar as repetições de dados, por vezes exageradas, o que só se pode ficar a dever a falta de atenção.

    No que tange aos documentos 40, 41, 42, 43, 44, 45 (A), 45 (B), 45 (C), 45 (D), 46, 47, 48 e 49, retira-se que BB, para além de ter deduzido oposição à injunção posta pela PT Comunicações, SA, em 23-11-2012 (documento 44), elaborou nove informações/pareceres, a saber:

Em 22 de Outubro de 2012 – Anexo 11 – Documento 49

Em 25 de Outubro de 2012 – Anexo 5 – Documento 42

Em 30 de Outubro de 2012 – Anexo 6 – Documento 45 (A)

Em 12 de Novembro de 2012 – Anexo 4 – Documento 40

Em 29 de Novembro de 2012 – Anexo 5 – Documento 41

Em 3 de Dezembro de 2012 – Anexo 5 – Documento 43

Em 17 de Dezembro de 2012 – Anexo 9 – Documento 47

Em 07 de Janeiro de 2013 – Anexo 9 – Documento 46

Em 29 de Janeiro de 2013 – Anexo 10 – Documento 48

     Alguns dos processos assinalados, então em curso, eram acompanhados por advogada, como a Dra. ---, e tiveram intervenções coevas da advogada --- do escritório da RR.

    Coloca-se a questão de saber se tal tipo de trabalho justifica o valor da avença jurídica pago pela Delegação de ... para retribuir trabalho que tinha única e exclusivamente a ver com a Delegação do ---, pois todos os trabalhadores pertenciam ou tinham pertencido aos quadros da Delegação do Porto, pois temos três intervenções no mês de Outubro de 2012; duas em Novembro, para além da oposição à injunção, duas em Dezembro, outras duas em Janeiro de 2013 e nenhuma em Fevereiro.

     De realçar que dantes BB colaborava como voluntária que era.

               

                                                        *******

    A intervenção de BB na elaboração de projectos de acórdãos

    Na análise da intervenção de BB ter-se-á em conta o modus faciendi, tendo em consideração os projectos feitos, e outros elementos adjuvantes, como as folhas manuscritas com apontamentos relativos a processos, os trabalhos preparatórios que constituíam a base da decisão, os variadíssimos e-mails trocados com AA e os que respeitam a pagamentos, estes trocados com a Adjunta executiva Dr.ª SS.

    

     Folhas com anotações manuscritas por BB 

     Em ponderação, aqui e agora, as folhas manuscritas, contendo notas apostas pelo punho de BB, relativas a processos do Tribunal ---, distribuídos a AA e por esta entregues a BB, para elaboração de projectos de acórdão. 

     Tais folhas constam do Apenso II - Anexo B, a), Pasta de arquivo CVP Diversos, entregue voluntariamente por BB, como consta do auto de busca realizada em 15 de Outubro de 2013, conforme fls. 363 – cfr. fls. 332 e 335 do 2.º volume.

     As folhas em equação são as que figuram a: 

Fls. 18 – “Proc. 347/09.0TBMAI.P1 e Proc. 1853/10.0TBPFR-A.P1 - Entregues dia 13/2/2013”;

    Antes, a fls. 17, e a seguir, a fls. 19, encontram-se emails relativos a estes dois processos e o resumo do processo n.º 1853/10.0TBPFR-A, de fls. 20 a 26.

     Estes dois processos são referidos depois em email de 1 de Março de 2013 (fls. 33).

Fls. 43 e verso – notas sobre o processo n.º 1933/09.4TBPFR.P1, referido em email a seguir, a fls. 44.

Fls. 67 e verso – apontamentos sobre o processo n.º 477/10.6TBVPA.P1. 

Fls. 69 – notas sobre o processo n.º 2292/05.0TBAMT, referido no email de fls. 68.

Fls. 71 – anotações sobre o processo n.º 2315/10.0TBPNF-A.P1, referido no email de fls. 70.

Fls. 76 – notas sobre o processo n.º 516/06.5TVPRT.P1, com nota a vermelho “Dia 23/10/12”, referido no email de fls. 77.

Fls. 80 – anotações sobre o processo n.º 70/12.9TBSJP-E.P1, a seguir a email de envio de projecto de acórdão de fls. 79.

Fls. 83 – apontamentos relativos ao processo n.º 3612/10.0TBMTS.P1, a seguir a email  de envio de projecto de acórdão de fls. 82.

Fls. 85 – notas relativas ao processo n.º 10407/05.1TBMTS.P1, a seguir a email de envio de projecto de projecto de acórdão de fls. 84.

Fls. 86Lista de processos entregues em 19/OUT/2012 (por AA a BB), a saber:

        Proc. 10407/05.1TBMTS.P1 – 3.ª Secção Rel. Porto (4 volumes)

        Em anotação a vermelho, consta, aposto pelo punho de BB: “Expropriação - Terminado em 30/OUT enviado no mm dia”.

        Proc. 1389/07.6TBVLG.P1 – 3.ª Secção R. Porto (2 volumes)

        A vermelho, consta, nas mesmas condições: “P. ordinário condenação”

        Proc. 3612/10.0TBMTS.P1

        A vermelho consta, com a mesma autoria: “Barclays Condenação”

        Proc. 516/06.5TVPRT.P1 (4 volumes). Tem revista

        A vermelho, consta, do mesmo modo e com a mesma autoria: “ Condenação”.

      A fls. 139 e verso (no verso de folha com texto de peça processual do TRP) constam notas sobre forma de processamento, referindo “Preparatórios – base da decisão” e “vamos colocar os docus da Disket”.

     Outras referências como: “Times New Roman” – “Relatório” – “Valores a negrito” – “Identificação” – “Referir a decisão, até às custas” – “Alterada a decisão temos q alterar a decisão qto às custas” – “14 - p/ o que dissermos” – “12 - p/transcrição e itálico” . 

      A fls. 140 encontra-se folha contendo notas manuscritas sobre recursos e revista e referência a nulidades do art. 668.º e 716.º.

    

     Os E-mails

     Os E-mails constantes dos autos, atendendo a que constituem veículo de conteúdo informacional, tratando-se de uma comunicação à distância levada a cabo por meios informáticos, revestem-se de primordial importância por exporem o que, em determinado contexto temporal, rigorosamente marcado, incluindo dia de semana, hora, minuto, segundo, umas pessoas transmitiram às outras.

    Neste domínio há que, obviamente, distinguir, tendo em conta os respectivos objectivos, o conteúdo das mensagens, respectivos emitentes e destinatários.

    Ao todo foram trocados e-mails entre AA e BB e vice-versa, e entre AA e EE e vice-versa, todos tendo por conteúdo a elaboração de projectos de acórdãos.

  

    De permeio de anotar ainda um e-mail de SS de 26-10-2012 dirigido a BB, tendo por assunto “avença jurídica” e um mais abrangente, de AA, de 25-10-2012, sobre patrocínio judiciário, abrangendo leque mais amplo de destinatários, como MM, DD, BB, JJ e LL, todos colaboradores da CVP ....

    Num primeiro lote serão referidos os e-mails de Outubro de 2012, que têm a ver com o início do processo de colaboração, com a invocada avença jurídica.

    Depois, serão referenciados os e-mails que têm a ver com troca de correspondência tendo por objecto os projectos de acórdãos.

     Anota-se que os sublinhados que constam dos textos dos e-mails foram por nós apostos.

    Analisando.

E-mail de AA para JJ, com conhecimento a BB.

De acordo com fls. 3 do Apenso III – Anexo D (E-mail`s de JJ).

E igualmente a fls. 302 do Apenso III – Anexo B, respeitante a material apreendido no escritório de BB.

E ainda, a fls. 14 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos – entregue voluntariamente por BB, aquando da busca realizada em 15 de Outubro de 2013, no seu escritório, como consta do auto de busca de fls. 363 e a fls. 335 do 2.º volume.

 

                                            25 de Outubro de 2012, pelas 00:42

Assunto: avença jurídica

Texto:

«Exma. Sra. Dra. JJ,

Em função das imensas tarefas que implica a fusão das Delegações de .../..., designadamente pelas rescisões de contratos de trabalho que se avizinham e inúmeras questões laterais de natureza jurídica, como sejam os contratos de arrendamento das lojas e garagens do Porto, e a consolidação das questões litigiosas ali existentes, determino que se contrate em regime de avença, pela verba mensal de € 1500,00 (mil e quinhentos euros) a Dra. BB, advogada.

Mais determino que esta contratação seja efectuada através da Delegação de ..., exactamente para não suscitar alarde nem alarme entre trabalhadores e colaboradores da Delegação do ....

As tarefas que serão distribuídas à Dra. BB, apenas e exclusivamente, por mim própria, sendo meu desejo manter a maior confidencialidade desta colaboração em avença.

O contrato tem efeito a partir de 19 de Outubro, visto que a Sra. Dra. BB já está a executar tarefas desde essa data, devendo, neste mês de Outubro, ser-lhe pago o proporcional ao tempo de serviços jurídicos prestados.

Solicito pois que proceda às necessárias diligências para o efeito.

Cumprimentos

AA».

                                                                  *

Dez minutos decorridos,

E-mail de AA para MM, DD, BB, JJ e LL (fls. 303 do Apenso III – Anexo B, respeitante a material apreendido no escritório de BB.)

                                            25 de Outubro de 2012, pelas 00:52

Assunto: patrocínio judiciário

Texto:

«Caros colaboradores,

depois da já vasta experiência do 1º Passo e da ---, e em função dos relatos que me têm sido feitos pelo Coordenador e pela Vice – Presidente, considero que devemos restringir a nossa área de apoio jurídico, limitando-a à informação e acompanhamento, devendo ser solicitada para todas as utentes o apoio judiciário com nomeação de patrono por forma a salvaguardar a nossa capacidade de resposta e menorizar as imensas responsabilidades que advêm para o Coordenador  e para a Vice-Presidente, sempre que nos processos intervêm como advogados;

com efeito, as utentes têm muita tendência para imputar aos advogados e à própria CVP o que lhes puder correr mal, a maior parte das vezes por culpa delas próprias, e devemos abster-nos de correr esses riscos;

deve pois ser alterada a nossa linha de intervenção, mesmo com os atrasos que disso possa resultar para as utentes, sem prejuízo de o Coordenado[r] considerar essencial a sua intervenção por alguma situação cuja urgência o justifique.

Cordiais saudações

AA».

   No Auto de Visionamento relativo ao endereço de e-mail ... @gmail.com, utilizado por BB, a fls. 539 do 2.º volume, consta referência a este concreto e-mail, sob a designação “Regra para patrocínio judiciário”.

   E de igual modo, figura no índice constante do Apenso III, Anexo B, a fls. 223.

 

                                                                 *

De JJ para BB - Apenso III - Anexo D (E-mail`s de JJ – fls. 10)

                                                       26 Outubro de 2012, pelas 16:21

Assunto: FW: avença jurídica

Texto:

«Alexandra,

Tendo em conta a comunicação referida no email infra (de 25-10-2012, pelas 00:42) solicito envio do recibo electrónico referente ao mês de Outubro assim como copia do comprovativo do numero de identificação bancária de forma a regularizar o debito.»

    O texto apresenta liquidação, referindo o início da prestação de serviços a 19 de Outubro de 2012, do modo seguinte:

    «A liquidar = 650,00 (Base) + 149,50 (Iva) - 139,75 (IR) = 659, 75 euros».

 

                                                              *

BB responde a JJ no mesmo dia 26 de Outubro de 2012, pelas 16:39, enviando o recibo emitido e informando o NIB para a transferência do valor em causa - fls. 13 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos (o recibo verde electrónico encontra-se a fls. 15).

                                                                      *

    Os “preparatórios” na posse de BB

    Em causa estão elementos dos processos a decidir – cópias das peças relevantes dos processos em recurso – fornecidos por AA a BB, respeitantes a peças processuais necessárias à elaboração de projecto de acórdão. 

    Os “Preparatórios” foram localizados no disco rígido IOMEGA de BB, como consta de fls. 1 do Apenso III - Anexo B, encontrando-se juntos de fls. 10 a 221, 254 a 283 (este repetindo fls. 53 a 82), 286 a 301, 305 a 318, 320 a 330, 333 a 356, 417 a 426, 433 a 470 do mesmo Anexo.

    Na folha manuscrita junta a fls. 139 e verso do Apenso II - Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, são referidos os preparatórios como sendo a base da decisão.

                                                               *

    Da elaboração por BB dos projectos de acórdão

    A execução das tarefas por parte de BB foi-se desenrolando de acordo com o que consta das mensagens por e-mail enviadas por BB dirigidas a AA e incorporadas no Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue voluntariamente por BB, aquando da busca efectuada no seu escritório em 15 de Outubro de 2013 (fls. 332 e 363).

    Nesta mesma pasta, encontram-se recibos referentes a pagamentos, que fazem sentido reportados como contrapartida destes trabalhos - fls. 4, 7, 9, 11 e 15.

    Igualmente encontram-se mensagens de correio electrónico no Apenso III - Anexo B (constituído em 21-11-2013, ut fls. 531/532 do 2.º volume), contendo listagem de processos e listagem de e-mail`s e respectivos anexos constantes na pasta “CONTA CORREIO BB_GMAIL.COM” - cfr. fls. 1 do Apenso III -Anexo B.

 

    A sequência de remessa de projectos de acórdãos elaborados por BB e dirigidos a AA foi a seguinte:

De BB para AA – (fls. 84 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue por BB).

                                              30 de Outubro de 2012, pelas 16:01

Assunto: “Acórdão 10407/05.1TBMTS.P1”.

Contém um anexo identificado como “ac apel 10407/05.1TBMTS.P1 expropriação).

Texto:

«Olá Joana,

Pode parecer que está a demorar muito, mas estou ainda a habituar-me a este novo trabalho. Com certeza que compreenderás. Finalmente terminei a expropriação e, claro que independentemente das correcções que serão inevitavelmente necessárias fazer, atingi um objectivo – terminar sem ficar louca. Nunca acreditei que conseguisse. Conto com a tua benevolência e compreensão para alguns erros que possam existir.

Aqui vai.

Pf diz quando poderei ir entregar o suporte papel.

Bjs,

Xana».

    Segue-se uma folha manuscrita contendo apontamentos sobre o processo (fls. 85).

    A seguir, a fls. 86, encontra-se folha manuscrita por BB com apontamentos de que se retira que a entrega dos primeiros quatro processos ocorreu em 19 de Outubro de 2012, data indicada por AA no e-mail de 25 de Outubro de 2012, como sendo o início dos trabalhos relacionados com a avença jurídica.

    Consta na dita folha manuscrita: 

                                                  Proc. entregues em 19/OUT/2012

Proc. 10407/05.1TBMTS.P1

Proc. 1389/07.6TBVLG.P1

Proc. 3612/10.0TBMTS.P1

Proc. 516/06.5TVPRT.P1

    À frente do primeiro processo consta “Expropriação” e “Terminado em 30/OUT enviado no mm dia”, o que condiz com o e-mail supra referido.

    Os outros três projectos foram enviados pelos e-mail que seguem.

    De fls. 87 a 118 da mesma pasta de arquivo de BB consta o acórdão proferido no processo n.º 10407/05.1TBMTS.P1, impresso em papel timbrado do Tribunal ---.

    Relativamente a este processo, BB recebeu alegações em formato Word em 24-10-2012, conforme se alcança de fls. 223 do Apenso III - Anexo B.

                                                                 *

De BB para AA – (fls. 82 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue por BB).

                                             12 de Novembro de 2012, pelas 15:40

Assunto: “Apelação 3612/10.0TBMTS (4 anexos).

    Começando por pedir desculpas pelo atraso e depois de referir alguns desabafos, diz:

    «Se calhar temos que conversar acerca do acórdão que agora segue e de outras coisas».

      Segue-se folha manuscrita, a fls. 83, com apontamentos sobre o processo.

 

                                                                 *

De BB para AA – (fls. 81 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos entregue por BB, em 15-10-2013).

                                                 19 de Novembro de 2012, pelas 12:25

Assunto: “Ap 1389/07.6TBVLG.P1- Excepção de não cumprimento” (4 anexos).

Texto:

«Boa tarde.

Aqui vai.

Bjs

...».

                                                                 *

De BB para AA – (fls. 75, 76 e 77 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue por BB, em 15-10-2013).

                                                20 de Novembro de 2012, pelas 10:38

Assunto: “Ap 516/06.5TVPRT.P1 - acidente de viação”, com anexo identificado com aquele n.º de processo.

Texto:

«Aqui vai.

Bjs».

     A seguir, a fls. 76, encontra-se folha manuscrita com apontamentos sobre o processo e a seguir, a fls. 77, está impressão de mensagem de correio electrónico remetida por AA dirigida a BB a respeito do mesmo processo, anotando-se que a data desse e-mail - 23 de Outubro de 2012 - coincide com a data aposta a vermelho na dita folha manuscrita de fls. 76, ao canto superior direito.

      Cfr. o Auto de Visionamento relativo ao endereço de e-mail .... @gmail.com utilizado por BB, constando referência a este processo e a esta data de envio, a fls. 538 do 2.º volume.

     Idêntica referência se encontra a fls. 223 do Apenso III, Anexo B, ao alto.

     Anota-se que este processo foi um dos quatro entregues em 19 de Outubro de 2012, conforme fls. 86 da mencionada Pasta de arquivo.

                                                                 *

De BB para AA – (fls. 79 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos (entregue, aquando da busca ao escritório, por BB, em 15-10-2013).

                                                   26 de Novembro de 2012, pelas 11:16

Assunto: “apel. 70-12.9TBSJP-E.P1

Envio de projecto, com cinco anexos.

Texto: 

«Aqui vai.

Bjs».

     A fls. 80 encontra-se folha manuscrita, contendo apontamentos respeitantes ao processo.

 

                                                                 *

 De BB para AAfls. 78 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue voluntariamente por BB).

                                                26 de Novembro de 2012, pelas 11:31

Assunto: “apel. 1853/10.0TBPFR-A.P1”.

Texto: 

«Aqui vai.

Bjs».

    “Preparatório” na posse de BB, a fls. 107 a 114 do Apenso III - Anexo B.

    Este envio não consta do índice de fls. 223 do Apenso III - Anexo B.

    A propósito deste e-mail e deste processo remete-se para o que ficou exposto a fls. 114 a 116 supra, e ainda fls. 121, concluindo-se pela retirada da menção a este processo constante do artigo 22 da acusação, no § 3.º a fls. 845, e ainda para fls. 166 e 167 infra.                 

                                                                 *

De BB para AA – (fls. 74 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue por BB aquando da busca realizada em 15-10-2013 – Igualmente no Apenso III, Anexo B, a fls. 304 e referido ainda no índice a fls. 223 do mesmo Apenso (n.º 14).

                                                  2 de Dezembro de 2012, pelas 12:54

Assunto: “Apel. 587/11.2TBGDM.P1-Acessão imobiliária”.

Texto:

«Bom dia AA.

Segue em anexo projecto de ac. para tua verificação.

Ainda antes do almoço termino outro acerca de uma oposição à execução.

Estou a privilegiar os mais antigos.

Sem presunção acho que durante a tarde faço o outro que tenho comigo. Se conseguir, apenas fica por fazer um outro que deixei no escritório.

Temos que “reabastecer”, trocando os que tenho por outros».

   O projecto encontra-se junto de fls. 305 a 318 e os “preparatórios” na posse de BB, de fls. 83 a 95, do mesmo Apenso III, Anexo B.

                                                           *

De BB para AA – (fls. 72 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue por BB).

                                                  7 de Dezembro de 2012, pelas 18:55

Assunto: “Acórdãos já feitos”

Envio de projectos nas apelações n.º 85/09.TBBGC-A.P1 – oposição execução; n.º 587/11.2TBGDM.P1 – acessão imobiliária e n.º 1666/11.1TBSTS.P1 – responsabilidade banco-factos-direito.

      Anota-se que a referência ao processo n.º 587/11.2TBGDM.P1, versando acessão imobiliária, dever-se-á a lapso manifesto, pois que fora já enviado no dia 2 de Dezembro, como consta imediatamente acima referido, constando no índice a fls. 223 do Apenso III, Anexo B (n.º 14).

      Quanto ao n.º 1666/11.1TBSTS.P1 afirma:”O relatório está feito mas é necessário ouvir a prova. Quando estiveste aqui no escritório disseste que teríamos (sic) que o fazer tu. Caso queiras alterar o procedimento avisa”.

        E no que toca ao n.º 85/09.TBBGC-A.P1, afirma: “Está o relatório feito e a fundamentação também, mas tenho uma dúvida existencial quanto à decisão em si, ou seja consigo arranjar argumentos para as duas soluções”.

       Informa ainda que vai fazer o processo n.º 1933/09.4TBPFR.P1 no fim de semana.

       No mesmo dia – 7 de Dezembro de 2012 –, pelas 18:58, envia os “preparatórios do mail anterior”, ou seja, os relativos aos três referidos processos (e-mail de fls. 73 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos).

      No Apenso III, Anexo B, a fls. 319, consta e-mail de AA dirigido a BB, de 18 de Dezembro de 2012, pelas 20:51, tendo por assunto “P. 85/09”, com o texto:

«Olá BB,

Só para veres uma versão final e ficares com a ideia dos caminhos que eu percorro.

Bjs e mto ob

AA».

    Este email está referenciado no índice do Apenso III - Anexo B, a fls. 223 (n.º 15).

    A versão final, datada de 19 de Dezembro de 2012, consta de fls. 320 a 330.

                                                                 *

De BB para AA – (Apenso III - Anexo B, a fls. 332. E igualmente a fls. 68 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue por BB).

                                             19 de Janeiro de 2013, sábado, pelas 20:19

Assunto: “Ac apelação 2292/05-0TBAMT-A.P1 - oposição execução sentença estrangeira”.

       BB envia projecto de acórdão e no final do texto diz:

       «Estava quase a terminar um outro mas os documentos preparatórios estão em PDF e não estou a conseguir converte-los».

      Segue o texto do projecto, de fls. 333 a 341, afirmando BB no final: “Não sei o que colocar nas custas”; de fls. 390 a 400, consta o acórdão na versão final (cfr. e-mail de 18-02-2013, infra) dada por AA, datado de 21-02-2013, onde se lê: “Custas do recurso pelo apelado”.

     A fls. 69 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos encontra-se folha manuscrita com dados referentes ao processo.

    “Preparatório” na posse de BB, a fls. 156/8, do Apenso III - Anexo B.

     Este e-mail está presente no índice de fls. 223 do mesmo Apenso (n.º 18).

 

                                                                 *

De BB para AA – Apenso III, Anexo B, a fls. 416. E igualmente a fls. 70 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue por BB em 15-10-2013.

                                               19 de Janeiro de 2013, sábado, pelas 22:41

Assunto: “AC 2315/10.0TBPNF-A.P1, título executivo fotocópia de documento particular”.

Contém anexos relativos ao mesmo processo.

Texto:

«Boa noite novamente,

Aqui vai mais um que terminei agora.

Bjs

BB».

    Segue projecto de fls. 417 a 426 do Apenso III, Anexo B, podendo ver-se a fls. 420, na enumeração dos factos provados o seguinte: “a numeração fui eu que coloquei porque como podes ver na sentença está apenas em texto”.

    Depois no texto definitivo enviado por AA, junto de fls. 358 a 369, explicado no e-mail de 18-02-2013, pode ler-se:“ (na sentença os factos não estão numerados)” - fls. 360, última linha.

    O envio do projecto consta do índice a fls. 223 (n.º 17), do Apenso III, Anexo B.

    Os “Preparatórios” na posse de BB constam de fls. 159 a 168 do mesmo Apenso.

    A fls. 71 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, encontra-se folha manuscrita por BB, com dados referentes ao processo.

                                                                        

                                                                 *

De BB para AA – (fls. 66 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue por BB).

                                                    27 de Janeiro de 2013, pelas 19:16

Assunto: “Ac 477-10.6TBVPA.P1”.

Contém anexos relativos ao mesmo processo.

Texto:

«Boa tarde AA:

Segue em anexo o projecto de AC, mantendo as duvidas quanto à decisão em si, mas está lá no texto a amarelo as minhas preocupações.

Um abraço,

BB».

    Segue-se folha manuscrita com elementos referentes a este processo - fls. 67 e verso.

    AA abordará o texto a amarelo em e-mail de 18 de Fevereiro de 2013, conforme infra fls. 165/6.

                                                                 *

De BB para AA – (fls. 46 do Apenso II, Anexo D a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue pela buscada BB).

                                                    29 de Janeiro de 2013, pelas 21:19

Assunto: “proc. 25-12.3TBMAI.P1Acção Sumária”

Texto:

«Boa noite AA,

No processo supra identificado o CD apenas contém a gravação da prova. É possível obteres as peças?

Obrigada,

um beijo,

BB».

                                                                 *

Como consta do mesmo documento (fls. 46 do Apenso II, Anexo D a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos) AA responde a BB em

                                                 30 de Janeiro de 2013,  pelas 14:52

Texto:

«Olá BB,

Já pedi à Secção; vamos aguardar.

jinhos.

AA».

    Ao fundo do documento consta a anotação manuscrita por BB “Falta a decisão”, o que está em consonância com a referência a falta de sentença de que fala no e-mail de 31 de Janeiro, a fls. 48 da mesma pasta de arquivo, a que nos referiremos de seguida.

     A fls. 47 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue por BB, consta mensagem em que se dá notícia de seguirem em anexo os articulados do processo n.º 25/12.3TBMAI.P1 fornecidos por ... (...@tribunais.org.pt), os quais são reencaminhados por AA para BB no mesmo dia 30 de Janeiro de 2013, pelas 17:44.

      A fls. 48 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, ainda a respeito deste processo n.º 25/12.3TBMAI.P1, nova mensagem é dirigida por BB a AA em 31 de Janeiro de 2013, pelas 09:46, com o seguinte

Texto:

«Bom dia outra vez,

Neste processo enviaste ontem as peças mas exprimi-me mal, preciso claro da sentença que também não está.

Desculpa,

Bjs,

BB».

     Seguem-se os “preparatórios”, compostos por “alegações” de fls. 49 a 55 e sentença de fls. 56 a 65.

                                                                 *

De BB para AA – (fls. 44 do Apenso II, Anexo D a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue em 15-10-2013, aquando da busca ao seu escritório por BB).

                                                 31 de Janeiro de 2013, pelas 09:19

Assunto: “Ac 1933/09.4TBPFR.P1 Simulação

Texto:

«Bom dia AA,

No Ac acima indicado, um colega meu, Dr. ---, com o mail ...@adv.oa.pt mandou a PI, a Réplica e as Alegações em PDF mas sem possibilidades de copiar. É possível pedires-lhe que as mande com essa possibilidade?

Agradecida, bjs

BB”.

                                                          

                                                                 *

De BB para AA – (fls. 45 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue por BB).

                                               6 de Fevereiro de 2013, pelas 18:23

Assunto: “Ac. 25/12.3TBMAI.P1”.

Contém anexos com documentos relativos ao processo.

Texto:

«Boa tarde AA,

Segue o projeto de acórdão supra identificado.

Beijos,

BB”.

     Os preparatórios na posse de BB constam de fls. 10 a 19 e o acórdão de fls. 401 a 415 do Apenso III - Anexo B.

                                                                 *

De BB para AA – (fls. 42 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos).

 

                                                15 de Fevereiro de 2013, pelas 17:01

Assunto: “Ac 1933/09.4TBPFR.P1

Contém anexos com documentos relativos ao processo.

Texto:

«Boa tarde AA,

Segue o projeto do acórdão acima identificado, bem as restantes peças. A gravação da prova para tu aferires do erro na apreciação não consigo enviar, mas está no CD. 

Um abraço.

BB”.

     Segue-se folha manuscrita com dados sobre o processo - fls. 43.

     Os “preparatórios” na posse de BB constam de fls. 115 a 155 do Apenso III - Anexo B.

                                                                 *

De AA para BB – (Apenso III - Anexo B, a fls. 357).

                                              18 de Fevereiro de 2013, pelas 16:09

Assunto: “P 477/10; 2292/05; 2315/10 e 25/12

Contém anexos com documentos relativos aos quatro processos.

Texto:

«Olá BB

junto envio os acórdãos depois de concluídos para ficarem na tua base de dados;

quanto ao acórdão da casa de morada de família na união de facto considero que fizeste muito bem em deixar a matéria a decidir em branco, digo amarelo, embora já haja jurisprudência sobre o assunto;

quanto aos processos 2315 e 25, tive que os fazer todos, na fundamentação jurídica, porque só tinhas escrito o que estava nas sentenças da 1.ª instância e sem mencionar que é citação, o que não se pode fazer;

aliás no processo 25/12 revoguei a decisão da 1.ª instância;

um abraço

AA».

   Este e-mail consta do índice a fls. 223 (n.º 19) do Apenso III – Anexo B.

   Seguem-se os acórdãos definitivos referidos de fls. 358 a 369; 370 a 389; 390 a 400 e 401 a 415, do mesmo Apenso e Anexo.

    A referência à parte em “amarelo” está no e-mail de 27 de Janeiro de 2013, em que BB envia projecto do processo n.º 477-10.6TBVPA.P1” – cfr. fls. 162 supra.

                                                           *

De AA para BB – (Apenso III - Anexo B, a fls. 432)

                                           19 de Fevereiro de 2013, pelas 18:42

Assunto: “P. 1853/10”. (Processo 1853/10.10.0TBPFR-A.P1)

Contém cinco anexos com documentos relativos ao processo.

Texto:

«Olá BB

tens aí este processo e envio-te agora os preparatórios que estavam em disquete (…)”

    Seguem-se peças de fls. 433 a 470.

    Este envio consta do índice de fls. 223 (n.º 20).

    Como se viu supra, consta e-mail de 26-11-2012 com referência a este processo, em que se diz “Aqui vai”, conforme fls. 78 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos.

    A este propósito, remete-se para o que foi exposto a fls. 114 a 116, 121 e 158 supra.

     

      A sentença que consta de fls. 455 a 462 do Apenso III - Anexo B, repete a de fls. 107 a 119, já estando na posse de BB este “preparatório”.

      No entanto, da listagem enviada pela Relação do Porto, a fls. 617 do 3.º volume, consta decisão final a 04-04-2013, o que estará em consonância com o e-mail de 7-03-2013.

                                                           *

De BB para AA – (fls. 33 do Apenso II, Anexo D a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue por BB aquando da busca realizada ao seu escritório em 15 de Outubro de 2913).

                                                1 de Março de 2013, pelas 16:58

Assunto: “Apelações 2997/06.8TBVCD-D.P1 e 5546/11.2TBMTS.P1”.

Contém anexos com documentos relativos ao processo.

Texto:

«Boa tarde AA,

Seguem em anexo os projetos de acórdãos supra mencionados.

Faltam as apelações n.ºs 347/09.0TBMAI.P1 e 1853/10.0TBPFR-A.P1, entregues no dia 13-02-2013 e 464/08.4TBCHV.P1 entregue anteriormente.

Durante o fim de semana irei tentar terminar os restantes. 

Um abraço.

BB”.

     Segue-se um texto relativo ao processo n.º 2997/06.8TBVCD-D.P1, de fls. 34 a 37 e um outro respeitante ao processo n.º 5546/11.2TBMTS.P1, de fls. 38 a 41.

     (A data indicada como sendo a de entrega/recebimento dos processos 347/09.0TBMAI.P1 e 1853/10.0TBPFR-A.P1, ou seja, o dia 13-02-2013, é exactamente a data mencionada na folha manuscrita de fls. 18).

                                                               *

De BB para AA – (fls. 27 do Apenso II, Anexo D a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue por BB).

                                                   4 de Março de 2013, pelas 18:16

Assunto: “Projecto 464/08.4TBCHV.P1”.

Contém anexos com documentos relativos ao processo.

Texto:

«Boa tarde AA,

Segue em anexo o projeto supra identificado sendo que não se encontra completo uma vez que o recorrente pretende a reapreciação da prova, ou seja a audição da prova testemunhal.

Um abraço.

BB”.

     Segue-se um texto relativo ao processo, de fls. 28 a 32.

                                                                *

De BB para AA – (fls. 19 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos entregue por BB).

                                                   7 de Março de 2013, pelas 14:35

Assunto: “Ac Apelação 1853/10.0TBPFR-A.P1”.

Contém anexos com documentos relativos ao processo.

Texto:

«Bom tarde AA

Segue em anexo o projecto do AC supra identificado.

Tenho algumas dúvidas acerca da decisão em si. Pf verifica.

Um abraço.

BB”.

     Segue-se o resumo do processo n.º 1853/10.0TBPFR-A, de fls. 20 a 26.

                                                               *

De BB para AA – (fls. 17 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos).

                                                  2 de Abril de 2013, pelas 10:18

Assunto: “Apelação n.º 347/09.0TBMAI.P1”.

Contém anexo com documento relativo ao processo.

Texto:

«Bom dia AA,

Segue o projecto do acórdão supra identificado, sendo que mais uma vez na minha opinião deve ser ouvida a prova.

Bjs.

BB”.

                                                               ***

    Muito embora a intervenção de BB tenha tido lugar até finais de Fevereiro de 2013, tendo sido paga até então a avença, a verdade é que se projectou algo mais, em ordem a satisfazer o seu compromisso, terminando os casos que tinha em mãos.

    Como refere no e-mail de 1 de Março de 2013, em que envia os projectos de acórdãos das apelações 2997/06.8TBVCD-D.P1 e 5546/11.2TBMTS.P1, dá nota de que faltam as apelações n.ºs 347/09.0TBMAI.P1, 1853/10.0TBPFR-A.P1 e 464/08.4TBCHV.P1.

    E assim procedeu aos envios seguintes:

    Em 4 de Março - 464/08.4TBCHV.P1

    Em 7 de Março - 1853/10.0TBPFR-A.P1

    Em 2 de Abril - 347/09.0TBMAI.P1.

    Como se verá de seguida, ao abordarmos os pagamentos a BB, a adjunta executiva SS por e-mail de 27 de Fevereiro de 2013, pelas 13:38, com referência ao “recibo Fevereiro”, comunicava que “de acordo com instruções da Dra. AA a liquidação do recibo só será efectuada após entrega dos restantes processos” – cfr. infra, fls. 175.

                                                                ***

    Desta sucessão de e-mails retira-se que efectivamente BB terá elaborado projectos de acórdão, não se ficando a sua intervenção pela elaboração da “parte administrativa” dos projectos de acórdãos, como referiu aquando da busca realizada ao seu escritório em 15 de Outubro de 2013, conforme consta do “Auto de busca e apreensão”, a fls. 363 do 2.º volume.

    

    Como refere no e-mail de 7 de Dezembro de 2012, a propósito do processo n.º 85/09.TBBGC-A.P1: “Está o relatório feito e a fundamentação também, mas tenho uma dúvida existencial quanto à decisão em si, ou seja consigo arranjar argumentos para as duas soluções” – cfr. supra fls. 159.

    Coloca dúvidas quanto a custas na apelação 2292/05-0TBAMT-A.P1, que versava oposição a execução de sentença estrangeira, cujo projecto foi enviado pelo e-mail de 19 de Janeiro de 2013, pelas 20:19, manifestando as dúvidas no próprio projecto, que se encontra a fls. 333 a 341 do Apenso III, Anexo B, surgindo a solução a final (fls. 400 do mesmo Anexo) de custas pelo apelado, como explicado foi a fls. 160 supra.

    No e-mail de 27 de Janeiro de 2013, ao enviar o projecto do processo n.º 477-10.6TBVPA.P1, afirma: “Segue em anexo o projecto de AC, mantendo as duvidas quanto à decisão em si, mas está lá no texto a amarelo as minhas preocupações” – cfr. fls. 162 e 165/166 supra.

    E no e-mail de 7 de Março de 2013, ao enviar o projecto elaborado na apelação 1853/10.0TBPFR-A.P, afirma: “Tenho algumas dúvidas acerca da decisão em si. Pf verifica”. – cfr. supra, fls. 168/169.

        Pelo e-mail de 19 de Janeiro de 2013, BB envia projecto do processo n.º 2315/10.0TBPNF-A.P1, podendo ver-se a fls. 420 do projecto, que se encontra no Apenso III, Anexo B, na enumeração dos factos provados o seguinte: “a numeração fui eu que coloquei porque como podes ver na sentença está apenas em texto”.

    No texto definitivo enviado por AA, junto de fls. 358 a 369, explicado no e-mail de 18-02-2013, pode ler-se: “(na sentença os factos não estão numerados)” - fls. 360, última linha – cfr. fls. 161 supra.  

    Nos casos em que havia que apreciar prova gravada faz menção da especificidade, como nos processos n.º 1666/11.1TBSTS.P1 (seria AA a ouvir a prova); n.º 1933/09.4TBPFR.P1; n.º 464/08.4TBCHV.P1 e n.º 347/09.0TBMAI.P1, todos versados nos e-mails supra, de 7-12-2012; de 15-02-2013; de 4-03-2013 e de 2-04-2013.

    Os pagamentos efectuados a BB

 

    Nas primeiras declarações prestadas em 15-10-2013, a fls. 384, a Adjunta Executiva SS, a pergunta feita respondeu que “a decisão de passar a efectuar pagamentos à Dra. BB foi tomada em conjunto, com a Dra. AA, a depoente e outros técnicos, que entenderam estar justificado o pagamento do trabalho/colaboração que a Dra. BB prestava em termos jurídicos”.

    Esta decisão conjunta não se coadunava com a maior confidencialidade da colaboração que AA desejava manter, como disse no e-mail de 25-10-2012, pelas 0:42.

    Mais tarde, em 25-11-2013, a fls. 553, refere que recebeu uma comunicação da Dra. AA, dando conta que as funções seriam exclusivamente por si determinadas (o que está de acordo com o e-mail) e que o valor da avença mensal foi definido exclusivamente pela Dra. AA.

 

    Abordando os pagamentos feitos a BB a título de “avença jurídica”, releva a consideração da sequência da troca de e-mails entre BB e a Adjunta Executiva SS, a partir de elementos presentes em:

Apenso III - Anexo D (E-mail`s JJ) visionados, conforme Auto de visionamento do conteúdo do computador de JJ – Pasta enviados - fls. 542 do 2.º volume; e

Apenso II - Anexo D, a) – composto por uma Pasta de Arquivo CVP Diversos, entregue voluntariamente por BB, aquando da busca realizada no seu escritório, em 15-10-2013, como consta do auto de busca de fls. 363 e a fls. 335 do 2.º volume.

 

    Vejamos essa sequência (anotando-se que ora se repete a referência aos e-mails de 26-10-2012, já feita, apenas para melhor enquadramento da sequência).

De JJ para BB (Apenso III - Anexo D – fls. 10)

                                                26 Outubro de 2012, pelas 16:21

Assunto: FW: avença jurídica

Texto:

«BB,

Tendo em conta a comunicação referida no email infra (de 25-10-2012, pelas 00:42) solicito envio do recibo electrónico referente ao mês de Outubro assim como copia do comprovativo do numero de identificação bancária de forma a regularizar o debito.»

 

    JJ apresenta a liquidação, referindo o início da prestação de serviços ao dia 19 de Outubro de 2012, do modo seguinte:

      «A liquidar = 650,00 (Base) + 149,50 (Iva) - 139,75 (IR) = 659, 75 euros».

 

                                                              *

BB responde a JJ no mesmo dia 26 de Outubro de 2012, pelas 16:39, enviando o recibo emitido e informando o NIB para a transferência do valor em causa - fls. 13 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos.

   (O recibo verde electrónico referente a 659, 75 € encontra-se a fls. 15).

 

                                                              *

De BB para JJ - fls. 10 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos

                                               3 de Dezembro de 2012, pelas 15:55

Assunto: Recibo Novembro 2012

Envio de recibo

Mostra-se junto original no valor de 1522,50 €, a fls. 11.

O documento de transferência interbancária relativa a Novembro de 2012 encontra-se junto a fls. 12.

                                                                    *

De BB para JJ - fls. 8 do Apenso II, Anexo D a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos

                                                     2 de Janeiro de 2013, pelas 14:30

Assunto: Recibo Dez. 2012

Envio de recibo

  Mostra-se junto o original, no valor de 1522,50 €, a fls. 9.

                                                                    *

De BB para JJ - fls. 5 do Apenso II, Anexo D a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos

                      

                                                   28 de Janeiro de 2013, pelas 15:51

Assunto: RE: Atualização de dados

Anexo: Janeiro 2013

Envio de recibo em anexo.

                                                                    *

De JJ para BB (Apenso III - Anexo D - fls. 12 e fls. 3 do Apenso II - Anexo D, a)

                                                  26 de Fevereiro de 2013, pelas 14:55

Assunto: recibo Fevereiro

Texto:

«BB, podes pf enviar o recibo? Beijopcf».

                                                              *

De BB para JJ, em resposta (fls. 3 do Apenso II - Anexo D, a) e fls. 12 do Apenso III – Anexo D)  

                                                  26 de Fevereiro de 2013, pelas 18:54

Assunto: RE: recibo Fevereiro

Texto:

«Boa noite JJ

Segue e anexo o recibo pretendido.

Beijos.

BB»

     Mostra-se junto o duplicado de Factura – Recibo, no valor de 1470,00 €, a fls. 4.

                                                             *

De JJ para BB (fls. 12 do Apenso III - Anexo D – e-mails de JJ)

                                                  27 de Fevereiro de 2013, pelas 13:38

Assunto “RE: recibo Fevereiro”

Texto:

«Ok, BB, obrigada.

Mas de acordo com instruções da Dra. EE a liquidação do recibo só será efectuada após entrega dos restantes processos.

Beijos, pcf».

    (Referimo-nos já a este e-mail supra, a fls. 170).

                                                             *

    No final da prestação/colaboração de BB (ponto 32 da acusação) não faria qualquer sentido fazer depender a liquidação do recibo de Fevereiro (o último a satisfazer) da entrega dos restantes processos, pois se fossem processos a seguir nos tribunais relacionados com casos pendentes da Delegação da Cruz Vermelha do --- não se justificaria a imposição da condição, não iria AA pedir a “entrega dos processos”. 

    O contrato de “Avença jurídica”

   Como já referido, a designação surge no e-mail de 25 de Outubro de 2012, emitido pelas 0:42, dirigido por AA à Directora executiva Dr.ª SS, com conhecimento a BB, junto a fls. 3 do Apenso III - Anexo D (E-mails de JJ) e igualmente, a fls. 302 do Apenso III - Anexo B (elementos apreendidos a BB em 15 de Outubro de 2013).

   

    Compulsado o Lello Universal (Lello e Irmão, Porto), 1, consta: Avença - s.f., latim advenientia, sendo definida como “Ajuste. Conciliação entre litigantes. Concórdia, contrato entre o Estado e certas empresas ou indivíduos pelo qual se substitui o pagamento variável e normal de impostos fiscais, franquias de correio, etc. pelo pagamento de uma quantia fixa, calculada pela média anual do que deveriam pagar.

    Avençar - fazer contrato de avença; obrigar-se por avença; ganhar a avença.

    No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, 2001, I Volume, coordenado por Malaca Casteleiro, pág. 437, pode ler-se:

    Avença – contrato ou convenção pelo qual uma parte se obriga a prestar um serviço durante um certo período.

    Avençar – estabelecer um contrato de prestação de serviços, mediante o pagamento regular de determinada quantia.

    O contrato de avença jurídica pode ser definido, em termos básicos, como um contrato de prestação de sucessivos serviços jurídicos (cfr. artigo 1154.º do Código Civil), mediante uma remuneração mensal certa.  

    Este tipo de contrato é usual, sobretudo, entre empresas e advogados e visa, no fundo, permitir que estas entidades tenham um acompanhamento jurídico contínuo, dentro de várias áreas do Direito e tendo em conta as necessidades específicas de cada entidade.

    A avença jurídica é uma das modalidades mais usuais na relação entre os advogados e empresas/empresários, uma vez que tem a virtualidade de facilitar o desenvolvimento da relação de confiança e trabalho entre ambos e permitir uma poupança para ambas as partes (englobando nos serviços a prestar, consulta jurídica; celebração de contratos (nacionais e internacionais); cobranças; pré-contencioso e contencioso; participação em reuniões).

    O Supremo Tribunal de Justiça tem apreciado questões relativas a avença, de que são exemplos os que seguem. 

    Como dizia o acórdão de 17 de Junho de 1998, revista n.º 533/98, da 2.ª Secção “Com o estabelecimento de uma avença, as partes – a autora advogada e a ré sociedade anónima – celebraram um contrato de prestação de serviço a que deve ser aplicável o regime do mandato”.

    Segundo o acórdão de 7 de Outubro de 2003, revista n.º 2760/03, da 6.ª Secção “O contrato de avença é um contrato de prestação de serviços que se caracteriza por ter como objecto prestações sucessivas no exercício de profissão liberal mediante remuneração certa mensal”.

    O acórdão de 2 de Outubro de 2008, revista n.º 2408/08, da 2.ª Secção, reporta avença mensal com contrapartida do advogado contratado com prestação de consultoria jurídica, não incluindo patrocínio judiciário nem procuradoria.

    No acórdão de 12 de Dezembro de 2001, revista n.º 2462/01, da Secção Social, em causa estava acordo celebrado ao abrigo do Decreto-Lei n.º 41/84, de 3 de Fevereiro, na redacção do Decreto-Lei n.º 299/85, de 29 de Julho, caracterizando o contrato celebrado entre o autor e a Direcção Geral de Viação como contrato de trabalho subordinado, por não ter ficado provado que o Autor fosse advogado, provado ficando apenas ser jurista, concluindo:

    “Só os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados podem, em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar actos próprios da profissão e, designadamente, exercer as funções de consulta jurídica em regime de profissão liberal remunerada que caracterizam os “contratos de tarefa e de avença” previstos no art. 17.º, do DL n.º 41/84”.  

    No acórdão de 29 de Setembro de 2009, revista n.º 6458/04.1TVLSB.S1, da 6.ª Secção, avença é tomada no sentido de remuneração mensal fixa devida por uma empresa a um advogado.

    O acórdão de 30 de Outubro de 2012, proferido na revista n.º 3313/06.4TVLSB.L1.S1, da 1.ª Secção, começa por afirmar:

    “A par das três modalidades típicas de prestação de serviços (mandato, depósito e empreitada), importa acrescentar o contrato de prestação de serviços atípico, não regulado especialmente, que abrange uma enorme variedade de vínculos jurídicos, designadamente vários contratos de prestação de serviços desempenhados por profissionais liberais, incluindo advogados. Nestes casos, aplica-se ao contrato de prestação de serviços atípico o regime do mandato, como resulta do disposto no art. 1156.º do CC.

    Relativamente ao contrato de prestação de serviços remunerado, por tempo certo, celebrado entre um advogado e uma sociedade, traduz um contrato de avença. Esse contrato não se mostra directamente contemplado na legislação civil. É, por isso, um contrato atípico.

    O contrato de avença, enquanto modalidade do contrato de prestação de serviços, não directamente regulado na legislação civil, tem um regime legal que se tem de procurar, relativamente àqueles aspectos que as partes não regularam especificamente e não estiverem abrangidos pelas normas que regem o contrato de prestação de serviços, em especial o mandato, analogicamente, na demais legislação existente no ordenamento jurídico português, designadamente na regulação do contrato de avença prevista no regime de vinculação de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas, ex vi dos arts. 10.º e 11.º, este a contrario, do CC., sendo tal regime, fundamentalmente, o estatuído no art. 17.º do DL n.º 41/84, de 3-02.

    Analisando a legislação indicada neste acórdão.

    O Decreto-Lei n.º 41/84, de 3 de Fevereiro (Diário da República, I Série, n.º 29, de 3 de Fevereiro de 1984), que regulava o ordenamento jurídico da função pública em matéria de política de gestão dos seus recursos humanos, designadamente quanto à sua efectiva mobilidade, distinguia entre contrato de tarefa e de avença.  

    O artigo 17.º, sob a epígrafe (Contrato de prestação de serviço), depois de n.º 2 definir o contrato de tarefa, no n.º 3 define o de avença, nestes termos:

3 – O contrato de avença caracteriza-se por ter por objecto prestações sucessivas no exercício de profissão liberal, apenas podendo os serviços recorrer a tal tipo de contrato quando no próprio serviço não existam funcionários ou agentes com as qualificações adequadas ao exercício das funções objecto de avença.

4 – Os serviços prestados em regime de contrato de avença serão objecto de remuneração certa mensal.

    Foi dada nova redacção pelo Decreto-Lei n.º 299/85, de 29 de Julho (Diário da República, I Série, n.º 172, no que respeita à epígrafe, que passa a ser (Contratos de tarefa e de avença), e altera a definição do contrato de tarefa, mantendo-se na íntegra as disposições dos n.º s 3 e 4, respeitantes ao contrato de avença.

  

    O Decreto-Lei n.º 41/84 veio a ser revogado pela Lei n.º 12-A/2008 (Diário da República, I Série, n.º 41, de 27 de Fevereiro de 2008), a qual estabelece os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas (artigo 116.º, alínea l)).

    Inserto no Capítulo IV “Contratos de prestação de serviços”, estabelece o artigo 35.º, com a epígrafe “Âmbito dos contratos de prestação de serviços”, depois de no n.º 5 referir-se ao contrato de tarefa:

    6 – O contrato de avença tem como objecto prestações sucessivas no exercício de profissão liberal, com retribuição certa mensal, podendo ser feito cessar a todo o tempo, por qualquer das partes, mesmo quando celebrado com cláusula de prorrogação tácita, com aviso prévio de 60 dias e sem obrigação de indemnizar.

    Esta Lei foi revogada pelo artigo 42.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho (Diário da República 1.ª série, n.º 117, de 20 de Junho), que aprovou a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP), publicada em anexo.

    A avença está prevista no artigo 10.º, com a epígrafe “Prestação de serviço”, constando do n.º 2:

    2 – O contrato de prestação de serviço para o exercício de funções públicas pode revestir as seguintes modalidades:

a) Contrato de tarefa (…)

b) Contrato de avença, cujo objecto é a execução de prestações sucessivas no exercício de profissão liberal, com retribuição certa mensal, podendo ser feito cessar, a todo o tempo, por qualquer das partes, mesmo quando celebrado com cláusula de prorrogação tácita, com aviso prévio de 60 dias e sem obrigação de indemnizar.

    Revertendo à invocada avença.

 

    A avença jurídica alegadamente contratada entre a Delegação de ... da Cruz Vermelha e a Dra. BB não foi estabelecida a favor da Cruz Vermelha.

   Após o e-mail de 25 de Outubro de 2012, emitido pelas 0: 42, em que anuncia a avença jurídica, AA, dez minutos depois, pelas 00:52, envia novo email a propósito de patrocínio judiciário (fls. 303 do Apenso III - Anexo B) a colaboradores directos da CVP, dando nota da necessidade de restringir a área de apoio jurídico de modo a menorizar as imensas responsabilidades do Coordenador e de BB como advogada, devendo ser solicitada para todas as utentes o apoio judiciário com nomeação de patrono com recurso a patrocínio judiciário. (O texto integral deste e-mail encontra-se acima, a fls. 151/2).

    A data do início de funções da Advogada BB, indicada por AA no âmbito do acordo estabelecido entre ambas e não propriamente de um contrato de avença jurídica celebrado com a CVP, coincide inteiramente com o início da actividade de elaboração por parte da mesma Advogada BB, de projectos de acórdãos distribuídos à Desembargadora AA, concretamente, é nesse exacto dia - 19 de Outubro de 2012 - que são entregues à Advogada BB, então Vice- Presidente e voluntária na Delegação da CVP de ..., quatro processos, conforme a própria anotou em folha por si manuscrita, que se encontra junta a fls. 86  do Apenso II - Anexo D - a), Pasta de arquivo CVP Diversos, tratando-se dos processos n.º s 10407/05.1TBMTS.P1 (4 volumes); 1389/07.6TBVLG.P1 (2 volumes); 3612/10.0TBMTS.P1 e 516/06.5TVPRT.P1 (4 volumes), todos da 3.ª Secção do Tribunal --- e distribuídos à Desembargadora AA, conforme listagem de fls. 611 a 619 do 3.º volume.

    O início dos trabalhos cujo pagamento estava a coberto da “avença jurídica” (termo avançado por AA como “assunto” no e-mail emitido pelas 00:42 do dia 25 de Outubro de 2012) coincide com a entrega a BB da primeira tranche de processos, cujos projectos de acórdão lhe competia realizar.

    E de tal modo assim foi, que BB, em 30 de Outubro de 2012, em e-mail dirigido a AA, enviando o projecto de acórdão elaborado no processo n.º 10407/05.1TBMTS.P1 (expropriação), conforme fls. 84 do Apenso II, Anexo D, a) - Pasta de Arquivo CVP Diversos, afirma estar a habituar-se ao novo trabalhoPode parecer que está a demorar muito, mas estou ainda a habituar-me a este novo trabalho”. Ora, o novo trabalho nada tinha, obviamente, a ver certamente com os conhecidos processos do escritório por si trabalhados como Advogada, defendendo as posições das partes representadas, ou mesmo processos em que fosse interessada directamente a CVP, ou processos relacionados com violência doméstica e igualdade de género, mas antes nas novas vestes de “assessora”, a contribuir para a formulação da decisão de manutenção ou revogação do decidido em primeira instância.

    Aliás, é com referência à data de 19 de Outubro de 2012 que é calculado o montante a pagar a BB, como se alcança do e-mail de JJ de 26 de Outubro de 2012, conforme fls. 10 do Apenso III - Anexo D (E-mails de JJ) e igualmente a fls. 13 do Apenso II Anexo D, a) - Pasta de arquivo CVP Diversos.    

    Não há prestação de serviços à CVP; este tipo de trabalho desenvolvido por BB não se engloba em prestação de serviços à CVP.

    Se o trabalho acrescido de BB advém da fusão da Delegação de ... com a Delegação do ---, no Verão de 2012, se é esta Delegação que tem 61 funcionários contra os 34 funcionários que cumpriam em ..., conforme e-mail de 5 de Agosto de 2012, emitido pelas 15:21 por AA e dirigido a BB, junto a fls. 248 do Apenso III - Anexo B, se conforme e-mail emitido igualmente por AA em 1 de Outubro de 2012, pelas 23:34, há que proceder a deslocação da Delegação de ... para o Porto de recursos humanos capazes para ensinarem os outros a trabalhar (fls. 2 do Apenso III - Anexo D, que contém listagem de e-mail´s localizados no computador de JJ), se é a Delegação do --- a que demanda trabalho com maior amplitude, valor acrescido de custos, numa perspectiva de actuação com transparência, o que seria expectável era que fosse esse encargo, esse novo valor acrescido, imputado e suportado a expensas da Delegação do --- e não pela Delegação de ..., que até funcionava bem, e por outro lado, não num registo de confidencialidade (não fosse o Porto ficar alarmado) e ser ela, AA,

Presidente da dupla Delegação, a comandar a distribuição de trabalho, como se vê da passagem “As tarefas que serão distribuídas à Dra. BB, apenas e exclusivamente, por mim própria, sendo meu desejo manter a maior confidencialidade desta colaboração em avença”.

    Afigura-se-nos que a Delegação do --- teria de assumir as suas responsabilidades próprias, pela sua especificidade, com a presença de maior número de processos e de outra dimensão e natureza, agindo em suprimento da actividade desenvolvida pro bono pela sociedade de advogados RR, algo que se não verificava em ....

    Nesse quadro teria de se questionar, porque seria a Delegação de ... a pagar a conta da Delegação do ---?

    Se o problema que demandava urgente solução não era da Delegação de ..., porque seria ... a pagar a factura?

    Algo que não faz sentido.

    Se a Delegação do ---, com todas as suas idiossincrasias, emergentes da peculiar actuação da precedente Comissão Administrativa (determinante, ao que parece, da fusão a partir de 6 de Agosto de 2012), era o que era, porquê o sigilo, porquê a confidencialidade, o resguardo, a actuação a coberto, desta Delegação, a final, a responsável única e última pela necessidade da nova intervenção?

    Sendo a avença conhecida do Presidente Nacional fica por explicar a razão da exigência de confidencialidade, como também falece explicação por ser a Delegação de ... a pagar os encargos de outra Delegação, que continuou durante algum tempo com comissão administrativa.

    Como se alcança do e-mail de 5 de Agosto de 2012, emitido pelas 15:21 por AA e dirigido a BB, junto a fls. 248 do Apenso III - Anexo B, a partir de 6 de Agosto iriam “avançar com todos os procedimentos necessários e adequados à fusão de delegações, de modo a que no ano de 2013 já haja um só plano de actividades, um só orçamento e uma só contabilidade…”.

    Como declarou AA em 6 de Março de 2015 a unificação apenas se veio a concretizar em 2014.

    Continuavam com autonomia a nível de contabilidade, pelo que mal se entende que fosse ... a pagar.      

    Era a Delegação de ... a pagar, em regime sigiloso, e da forma determinada pela Presidente para não alarmar, não alardear o Porto.

    Mas – insiste-se – se os processos que demandavam acrescida actuação na barra eram da responsabilidade da Delegação do --- porque deveria ser a Delegação de ... a pagar?

    Para mais, num quadro que nada tinha a ver com a peculiar situação da Delegação de ..., que praticamente não tinha que suportar litigiosidade a esse nível.

    Cremos não poder deixar de reconhecer-se encerrar alguma contradição afirmar-se em 25 de Outubro de 2012 a necessidade de avença face ao avolumar de trabalho e dez minutos volvidos em novo e-mail dar-se conta da necessidade de restringir a área de apoio jurídico como forma de libertar o Dr. DD e BB e dar instruções de que a partir dali deveriam recorrer ao patrocínio judiciário, mesmo com os atrasos que daí pudessem resultar para as utentes [e-mail enviado por AA pelas 00:52, do mesmo dia 25 de Outubro de 2012, a colaboradores directos da CVP, a propósito de patrocínio judiciário, que se encontra a fls. 303 do Apenso III - Anexo B)].

    O início dos trabalhos coincide precisamente com a entrega dos quatro primeiros processos identificados como entregues em 19 de Outubro de 2012, como consta de fls. 86 do Apenso II - Anexo D - a), Pasta de arquivo CVP Diversos, entregue por BB em 15-10-2013, aquando da busca realizada ao seu escritório.

    No mesmo sentido vai a anotação a vermelho, aposta por BB na folha manuscrita relativa ao processo n.º 516/06.5TVPRT.P1 – “Dia 23/10/12” – tendo AA, nesse mesmo dia, pelas 17:38, enviado mensagem a BB, tendo por tema o mesmo processo, como se alcança do texto: “xana MD apel 516-06.5TVPRT.P1 acidente de viação.doc”, tudo como consta de fls. 76 e 77 do Apenso II - Anexo D, a) - Pasta de arquivo CVP Diversos. (O negrito é nosso).

    O processo n.º 516/06.5TVPRT.P1 é um dos quatro processos entregues por AA e recebidos por BB em 19 de Outubro de 2012, conforme fls. 86 da mesma Pasta.

    Daqui se retira que tendo este processo sido entregue em 19 de Outubro de 2012, quatro dias depois foi enviado a BB um “preparatório”.

    No auto de análise ao material apreendido na Delegação de ... da CVP, a fls. 519/520, a investigação dá conta de que «não se logrou identificar mais nenhum documento (contrato, avença, protocolo) onde se justifique o pagamento de verbas a juristas/advogados; não tendo sido, de igual forma, identificada mais nenhuma valência onde esteja enquadrada a existência destas categorias profissionais.

    Por outro lado, constata-se que incumbe a BB, na qualidade de Vice- Presidente, cargo não remunerado, a responsabilidade do Centro de Atendimento a Vítimas de Violência – “---”». 

A intervenção da Dr.ª EE

    Diz EE que só aceitou o trabalho por lhe ter sido garantido por AA que o acordo era do conhecimento do Presidente Nacional da Cruz Vermelha. 

    Segundo a acusação – artigo 45 – EE, na execução do contrato, procedeu, desde Março de 2013 e até Outubro de 2013, à elaboração de projectos de acórdãos e resumos, nos processos indicados que se encontravam distribuídos à arguida AA.

    A abordagem a EE teve lugar em Março de 2013 e segundo a acusação – artigos 38, 39 e 40 – foi AA a contactá-la.

    Nesta contratação não interveio por qualquer forma a arguida BB, como pretende a acusação, do que transparece do texto dos artigos 48, 49 e 51, quando lhe imputa responsabilidade pela totalidade dos dinheiros pagos, abrangendo os 861,00 € que foram pagos a EE. 

    CC, em depoimento de 16-09-2013, a fls. 259, referiu que tendo perguntado a BB como teria AA resolvido o problema dos acórdãos depois de si e do contacto com FF, a BB disse-lhe ter sido informada, através de um funcionário da Cruz Vermelha que não nomeou, que as decisões e a respectiva fundamentação jurídica dos processos distribuídos à AA estariam a ser preparadas por outra advogada, de nome EE. 

    O nome foi escolha directa de AA, conforme a adjunta executiva SS, em declarações de 25-11-2013, que a fls. 554 afirma: “Quanto à contratação da Dr.ª EE, reitera as suas anteriores declarações, clarificando que o nome desta advogada foi indicado pela Dr.ª AA, e que a mesma viria assumir tarefas que estariam a ser desempenhadas pela Dr.ª BB”.

    EE, aquando do interrogatório como arguida em 8 de Maio de 2014, a fls. 817/8, claramente afirma ter sido contactada telefonicamente por AA em meados de Março de 2013, seguindo-se uma reunião entre ambas em 18 do mesmo mês no Centro de atendimento de apoio à vítima da Delegação de ... da Cruz Vermelha.

    E AA, na audição de 6 de Março de 2015, confirmou o contacto directo e referiu que as duas advogadas não se falavam, dando-se mal de há muito. “Não se entendem. Cortaram relações”, disse.

    A colaboração de EE não se prolongou até Outubro de 2013, como consta da acusação, mas até finais (dia 28) de Junho de 2013, havendo que ter em conta, inclusive, que apenas o primeiro lote de projectos foi pago, abrangendo os serviços prestados até 12 de Abril de 2013.

    (Este ponto do termo final da prestação de EE foi já abordado no segmento “ Intervenção correctiva”, a fls. 113 supra).

    Projectos elaborados por EE

    Ao todo foram 17 os projectos elaborados por EE, constantes do Apenso III, Anexo C, constituído em 21-11-2013, de acordo com auto de constituição de apenso de fls. 531/2, do 2.º volume, contendo listagem de processos que constam da pasta Tribunal --- e listagem de ficheiros (Acórdãos e outros relatores) da pasta JS, uma e outra armazenadas no computador ASUS, cujo conteúdo foi apreendido a EE.

    Os 17 processos trabalhados são os que constam do print screen da pasta Tribunal --- - EE, junto a fls. 2 do Anexo C e referido nas declarações prestadas por aquela em 8 de Maio de 2014, a fls. 822 do 3.º volume, penúltimo parágrafo, ao explicar a existência na sua pasta de dropbox de sub-pastas relacionadas com este trabalho, dizendo: “ao mesmo nível da sub-pasta designada de JS constam 17 pastas identificadas pelo número do processo do Tribunal da Relação. Foi só nestes últimos que a arguida trabalhou”.

    Tais processos são exactamente os 17 elencados no Auto de Visionamento do conteúdo do computador ASUS apreendido a EE, a fls. 540 e 541 do 2.º volume, de que foram impressas, como referido a fls. 541, as peças processuais existentes e pertencentes a cada um, que se encontram no Apenso III, Anexo C.

    De fls. fls. 3 a 132 e de fls. 135 a 317 constam as impressões de 16 projectos.

    Relativamente ao processo n.º 1327/11.1JAPRT-A.P1 não se encontra impressão de projecto, mas decisão a decretar arresto e indeferimento liminar de embargos de terceiro, a fls. 133/4 do referido Apenso.

    O acórdão proferido neste processo constitui o Doc. 20 do Apenso V (Cópias dos Acórdãos remetidos pelo Tribunal ---), encontrando-se datado de 4 de Abril de 2013.

    É de ter por certo ter sido EE a elaborar o projecto, pois que este número de processo é o primeiro da lista de facturação constante do e-mail enviado por EE a AA em 6 de Junho de 2013, constando como data de entrega do projecto o dia 01-04-2013 [fls. 15 do Apenso III - Anexo D (E-mails de JJ)].

    Aliás, este projecto foi incluído na factura 1012 referente aos serviços prestados até 12 de Abril de 2013, no valor de 700,00 €, acrescido de IVA, que foi pago.

    A acusação no ponto 45 inclui 18 processos, mas o n.º 516/06.5TVPRT.P1 foi trabalhado pela arguida BB.

    (A exclusão deste processo do âmbito do trabalho realizado por EE foi explicada acima, no segmento “Referência a projectos de acórdãos cuja atribuição é questionada por AA no requerimento de fls. 1271 a 1277”, e consta a fls. 118 – cfr. ainda fls. 114 supra e infra, nesta folha 186).

    Os projectos foram elaborados e entregues entre 25 de Março de 2013, o que aconteceu com o processo n.º 62-I/1999.P1 - fls. 33 a 47 do Apenso III, Anexo C - e 28 de Junho de 2013, o que ocorreu com o processo n.º 57/11.9TBVLP-A.P1 - fls. 203 a 213 do mesmo Apenso e Anexo.

  

    Os processos foram levados ao escritório de EE, como a mesma reporta nas declarações prestadas a fls. 823, quando refere que “Os processos físicos do Tribunal da Relação, que presume eram os originais, foram entregues por 2 ou 3 vezes no escritório da Sociedade de Advogados acima mencionada por alguém a mando da Dra. AA”.

    Em consonância com estas declarações estão as produzidas por ---, motorista da CVP, a fls. 489 e 490, esclarecendo ter ido ao escritório de advogados da Dra. EE, antes do Verão de 2013, levar e buscar sacos contendo processos, o que aconteceu por duas vezes.

    Por outro lado, a advogada ---, trabalhando no escritório de EE, no final do depoimento prestado a fls. 828 refere ter feito entrega de uma saca com processos do Tribunal da Relação do --- a um senhor cujo nome desconhece, mas que referiu ter combinado com a secretária a entrega de um saco.

    Passa-se a enumerar os 17 projectos de acórdãos elaborados por EE conforme constam do Apenso III, Anexo C, constituído a partir de elementos extraídos do computador daquela, indicando-se o lugar que ocupam na respectiva listagem, o n.º de documento que a cada um corresponde na pasta de acórdãos enviados pelo Tribunal ---, no Apenso V, bem como as datas de projecto ou sua entrega e do acórdão definitivo, colocando-se em negrito os que foram pagos pela factura n.º 1012, ou seja, os efectuados até 12 de Abril de 2013.

    (Apenas estes 17 projectos foram elaborados por EE, como resulta do ponto 45 da acusação - excluído o citado n.º 516/06.5TVPRT.P1 - sendo de excluir a referência a “pelo menos”, locução que introduz indeterminação, que é de afastar).

4/11.8TBTBC.P1 – Documento de fls. 3 a 17 (e não fls. 302 a 317) do Apenso III, Anexo C – Doc. 23 do Apenso V (15-04-2013 / 2-05-2013)

57/08.6TBRSD-A.P1 – Documento de fls. 18 a 32 do Apenso III, Anexo C – Doc. 28 do Apenso V (02-04-2013 / 2-05-2013)

62-I/1999.P1 – Documento de fls. 33 a 47 do Apenso III, Anexo C – Doc. 37 do Apenso V (25-03-2013 / 11-04-2013)

177/06.1TBTMC.P1 – Documento de fls. 48 a 87 do Apenso III, Anexo C – Doc. 26 do Apenso V (02-04-2013 / 4-04-2013)

781/08.3TJVNF.P1 – Documento de fls. 88 a 109 do Apenso III, Anexo C – Doc. 1 do Apenso V (17-06-2013 / 28-06-2013.

812/11.0TJPRT.P1 – Documento de fls. 110 a 132 do Apenso III, Anexo C – Doc. 7 do Apenso V (13-05-2013 / 6-06-2013)

1327/11.1JAPRT.P1 – não consta projecto no Apenso III, Anexo C – Doc. 20 do Apenso V  (01-04-2013 / 4-04-2013). [Cfr. explicação supra, a fls. 185].

6168/05.2TBVNG.P1 – Documento de fls. 135 a 146 do Apenso III, Anexo C – Doc. 5 (8-05-2013 / 30-05-2013)

7128/11.0TBMTS-A.P1 – Documento de fls. 147 a 160 do Apenso III, Anexo C – Doc. 27 do Apenso V (8-04-2013 / 2-05-2013) [O número foi corrigido a fls. 113].

193/11.1TBAMT.P1 – Documento de fls. 161 a 202 do Apenso III, Anexo C – Doc. 4 do Apenso V (10-05-2013 / 30-05-2013)

57/11.9TBVLP-A.P1 – Documento de fls. 203 a 213 do Apenso III, Anexo C – Doc. 10 do Apenso V (28-06-2013 / 10-07-2013)

148/10.3TBMCD.P1 – Documento de fls. 214 a 231 do Apenso III, Anexo C – Doc. 8 do Apenso V ( 5-06-2013 / 28-06-2013) 

452/08.0TBARC-A.P1 – Documento de fls. 232 a 243 do Apenso III, Anexo C – Doc. 2 do Apenso V (9-04-2013 / 9-05-2013)

1110/12.7TBVFR.P1 – Documento de fls. 244 a 262 do Apenso III, Anexo C – Doc. 6 do Apenso V ( 28-05-2013 / 6-06-2013)

1349/12.5TBVFR-A.P1 – Documento de fls. 263 a 280 do Apenso III, Anexo C – Doc. 3 do Apenso V – apenas 1.ª parte de fls. 229 a 238 (10-04-2013 / 9-05-2013).

4681/09.1TBVFR.P1 – Documento de fls. 281 a 301 do Apenso III, Anexo C – Doc. 12 do Apenso V (2-05-2013 / 16-05-2013).

7600/10.9TBMAI.P1 – Documento de fls. 302 a 317 do Apenso III, Anexo C – Doc.9 do Apenso V (24-06-2013 / 28-06-2013)

    Pagamentos a EE /AAA & Associados

    Para satisfazer o pagamento dos serviços de assessoria jurídica prestados por EE existia na CVP - Delegação de ..., uma conta corrente em nome da sociedade AAA & Associados – 22110048-507611039 – conforme fls. 94 do Apenso II (Buscas) - Anexo C e fls. 405 do 2.º volume.

    Como confirmou a Adjunta executiva Fernanda Paula Ferreira, a fls. 384, foi “devidamente formalizado e registado contabilisticamente um pagamento à Sociedade de Advogados de EE, em Abril de 2013”.

    A factura n.º A 1012

    A factura n.º A 1012, datada de 12-04-2013, foi dirigida à CVP – Delegação de ..., no valor de 700,00 € + IVA, no total de 861,00 €, ut fls. 118 e 121 do Apenso II (Buscas) - Anexo C (respeitante à busca realizada na sede da Delegação de ... da CVP) e fls. 231 do Anexo E do mesmo Apenso II (Buscas), sendo o pagamento relevado contabilisticamente a débito da conta 622106, conforme “Extracto de conferência” e por conta de “Acessoria jurídica” (fls. 117) e “Extracto Fornecedor”,   fls. 119, lançada e paga pelo Núcleo de ... da CVP em 30-04-2013, conforme fls. 120 e 122 do Apenso II (Buscas) – Anexo C, e ainda fls. 230 e 232 do Apenso II (Buscas), Anexo E.

    Elucidativo o quadro de processos facturados a fls. 37 do Apenso I.

    A factura n.º A 1035

    Foi emitida uma segunda factura – n.º A 1035 – datada de 17 de Junho de 2013, dirigida à CVP – Delegação de ..., com a descrição “Honorários por serviços jurídicos prestados”, com referência a quantidade – 8 (oito) – e preço unitário – 100,00 € –, no valor de 800,00 € + IVA, no total de 984,00 € (assim consta, a fls. 233 do Apenso II (Buscas), Anexo E, respeitante a material apreendido em busca realizada em 15 de Outubro de 2013, relativa ao escritório de EE).

    Tendo em conta o preço unitário acordado por projecto de acórdão – 100,00 € – por peça (cfr. acusação artigo 42), teremos na 1.ª factura o pagamento de sete projectos e na 2.ª factura, o de oito projectos, o que está de acordo com a mensagem de correio electrónico de 21 de Agosto de 2013, de Paula Ferreira para AA, com o “Assunto 148/10.3TBMCD.P1”, a fls. 14 do Apenso III, Anexo D (cfr. infra, fls. 194).

 

    O não pagamento desta segunda factura foi explicado por SS nas declarações de 25 de Novembro de 2013, que, a fls. 554/5, refere que estranhou o teor das mensagens provenientes de EE e falou pessoalmente com a Dra. AA.

    “Assim, refere que se apercebeu que a informação que provinha da Dra. EE e os processos ali identificados, não tinha qualquer relação com serviço da Cruz Vermelha Portuguesa. Antes de providenciar pelo pagamento da respectiva fatura, conversou com a Dra. AA, questionando se não haveria alguma confusão. Esta disse então para “deixar estar” este assunto, não tendo sido esta segunda fatura paga”.

    Esclareceu ainda que o documento não foi registado contabilisticamente e desconhece se a segunda fatura foi devolvida à Dra. EE, ou se ficou nas mãos da Dra. AA.

     “Certo é que a mesma não foi localizada, após a realização de buscas pela Polícia Judiciária nas instalações da delegação de ...”, adiantou então.

    EE, nas declarações prestadas a fls. 821, esclarece que foi emitida uma segunda e última factura que não foi paga, a qual foi precedida do e-mail constante de fls. 33 do Apenso I, o qual enviou para justificar o motivo pelo qual a primeira factura não compreendia um trabalho reportado ainda ao mês de Abril de 2013.

    A fls. 822 explica então de forma clara que a factura pretendeu cobrar serviços efectuados em processos trabalhados no período que mediou entre 12/4/2013 (data da factura 1012) e 17/6/2013 (data daquela factura 1035).

    Deste claro esclarecimento decorre que foram efectivamente 17 (dezassete) os projectos elaborados por EE, a saber:

     Sete, constantes da factura 1012, pagos em 30-04-2013;

     Oito, constantes da factura 1035, com cuja emissão se pretendeu cobrar trabalho realizado por EE, em data posterior a 12 de Abril de 2013 e até 17 de Junho de 2013, mas que terá ficado por pagar.

     Como sete mais oito somam quinze, restam, pois, dois projectos.

     Os quais não foram abrangidos em qualquer das facturas apresentadas pela referida sociedade de advogados, pela razão singela de que são ambos posteriores à data da última factura que, como vimos, era de 17 de Junho de 2013.

 

     Assim aconteceu com o projecto de acórdão elaborado no processo n.º 7600/10.9TBMAI.P1 – Documento de fls. 302 a 317 do Apenso III, Anexo C – feito em 24 de Junho de 2013 – cfr. Doc. 9 do Apenso V (sendo o acórdão final datado de 28 de Junho de 2013), o que se mostra compatível com os dados em discussão.

     E o elaborado no processo n.º 57/11.9TBVLP-A.P1 – Documento de fls. 203 a 213 do Apenso III, Anexo C – feito em 28 de Junho de 2013 – cfr. Doc. 10 do Apenso V (sendo o acórdão final datado de 10 de Julho de 2013), o que do mesmo modo compatível se mostra com os parâmetros em equação.

 

     A propósito desta segunda factura, não paga, até pelas naturais dúvidas suscitadas no contexto do relacionamento entre AA e EE, foram trocados e-mails entre JJ e BBB, inspectora da Polícia Judiciária.

     Daquela para esta, em 27 de Novembro de 2013, a fls. 644, a dar conta de ter sido encontrado o registo de entrada da factura 1035, tendo dado entrada na Delegação de ... em 1 de Agosto de 2013 e registada com o número 00606.

     De BBB para JJ, em 30 de Novembro de 2013, a fls. 645, solicitando envio de cópia digitalizada de apontamento relativo ao registo de entrada da factura, caso existisse, respondendo JJ em 2 de Dezembro de 2013, a fls. 646, informando que existia em suporte informático, envio pdf do registo de Agosto.

     A entrada da factura 1035, datada de 17-06-2013, registada com o n.º 00606 na Delegação de ... da Cruz Vermelha, consta a fls. 648.

Pelo que consta dos autos esta factura não terá sido paga.

     A segunda factura não foi paga, como se vê do quadro da síntese de fls. 406 e 563, o que de resto foi confirmado por AA, aquando da audição de 6 de Março de 2015.

     Troca de e-mails relevantes para a situação de EE

    Extraídos do Apenso III - Anexo D (E-mail`s JJ):

De JJ para EE (fls. 13).

                                                 23 de Abril de 2013, pelas 21:33

Assunto: Honorários

Texto:

«Boa noite Dra. EE,

Conforme indicação da Dra. AA existem montantes a entregar à Dra. EE.

Peço-lhe que envie a(s) fatura(s) recibo(s) de forma a proceder à sua liquidação.

Eu sei que não vai fugir! Mas realmente prefiro “ir liquidando parcelas” do que ficar em dívida em montantes materiais

Obrigada

JJ».

 

                                                            *

De AA para JJ (fls. 5).

                                                6 de Junho de 2013, pelas 0:35

Assunto: processos

Texto:

«Só para te dizer que a JSP tem que passar recibo de 4 processos respeitantes a Maio

Jinho

AA».

                                                            *

De EE para AA (fls. 15/6. E igualmente a fls. 33/34 do Apenso I, localização esta reportada por EE nas declarações a fls. 821).

                                                6 de Junho de 2013, pelas 15:55

Assunto: RE: proc. 148.10.3TBMCD.P1

Texto:

«Joana

(…)

Acredite que os projectos que tenho feito para si, são o que mais me satisfaz, porque não quero, nem posso, decepcionar.

(…)

Quanto á facturação, aqui vão para sua superior e douta sindicância as minhas “contas”.

Segue-se a enumeração de dez processos a saber:

(Seguem-se o n.º do processo, tribunal de origem e data do projecto)

 

1 - 1327/11.1JAPRT.P1                   Valongo  2.º Juízo                                    01-04-2013

2 - 62-I /1999.P1                              Peso da Régua  1.º Juízo                          01-04-2013

3 - 177/06.1TBTMC.P1                   Torre de Moncorvo SU                            01-04-2013

4 - 57/08.6TBRSD-A.P1                  Porto   2.º Juízo – 1.ª Secção                   09-04-2013

5 - 7218/11.0TBMTS-A.P1             ...  3.º Juízo                               09-04-2013

 6 - 452/08.0TBARC-A.P1              Arouca  -  SU                                           12-04-2013

7 - 1349/12.5TBVFR-A.P1              Santa Maria da Feira - 1.º Juízo              12-04-2013

8 - 4/11.8TBTBC.P1                        Tabuaço SU                                             15-04-2013

9 - 4681/09.1TBVFR.P1                  Santa Maria da Feira - 2.º Juízo                2-05-2013

10 - 6168/05.2TBVNG.P1               Vila Nova de Gaia

    A razão de ser deste e-mail numa data em que já tinham sido pagos sete projectos feitos até 12 de Abril de 2013 é explicada por EE nas declarações de fls. 821, dizendo que o enviou para justificar o motivo pelo qual a primeira factura não compreendia um trabalho reportado ainda ao mês de Abril de 2013.

    (Assim, supra, a fls. 190)

    Nestas condições reportaria o projecto datado de 15 de Abril de 2013 (processo n.º 4/11.8TBTBC.P1), único de Abril posterior à data da factura 1012 que, como se viu, é de 12 de Abril de 2013.

                                                                  *

De AA para JJ (fls. 14-2.º)

                                                 11 de Junho de 2013, pelas 17:26:52

Assunto: FW: proc. 148.10.3TBMCD.P1

Texto:

«Olá Paula,

Aqui reenvio as contas apresentadas pela Dra. JSP, que estão certas.

Vou-lhe dizer que emita o recibo correspondente aos processos 8 a 14 

Bjs».

                                                                  *

De JJ para AA (fls. 14-1.º)

                                               21 de Agosto de 2013, pelas 19:21

Assunto: FW: proc. 148.10.3TBMCD.P1

Texto:

«Dra. AA, recebemos a factura da Dra. EE, a facturar 8 processos.

De acordo com o seu email (infra) só teriam de ser facturados 7 processos (processos 8 a 14).

Falo com ela, ou a Dra. AA prefere falar?

Bpcf».

(Cfr. supra, fls. 189).

                                                   *******

     Assim, será de concluir ter-se por suficientemente indiciada a elaboração por EE de 17 (dezassete) projectos de acórdãos, tendo sido pagos apenas sete efectuados até 12 de Abril de 2013, únicos abrangidos na fractura 1012.  

    Aquando da audição neste Supremo Tribunal AA explicou os trabalhos de EE como sendo consultas sobre questões sigilosas de violência doméstica e outras relacionadas com trabalhadores, tendo mandado pagar a factura, porque achou razoável o preço em função do tempo gasto e da utilidade das consultas.

   Confirmou que JJ falou-lhe da segunda factura por estranhar a referência a processos que aí constavam, e como já referido, confirmou o não pagamento da segunda factura.

    Os indícios recolhidos apontam no sentido vertido na acusação, com as correcções apontadas.

    A requerente AA mostrou ter conhecimento de e-mail em que EE falava do estado de saúde de sua Mãe e desta ter partido o nariz em queda no hospital e do Pai, que estava bem, sendo certo que de permeio nesse e-mail EE refere “Acredite que os projectos que tenho feito para si, são o que mais me satisfaz, porque não quero, nem posso, decepcionar”.

     E termina apresentando as contas para sua superior e douta sindicância (E-mail de 6 de Junho de 2013 a fls. 15/16 do Apenso III - Anexo D (E-mail`s Paula Ferreira) e fls. 33/34 do Apenso I.

     Por outro lado, o recurso a consultas prestadas por EE e pagas pela Delegação de ... não se coaduna, de todo, com a orientação traçada por AA no e-mail de 25 de Outubro de 2012, enviado pelas 0:52, aos colaboradores MM, DD, BB, JJ e LL, com o assunto «patrocínio judiciário» (fls. 303 do Apenso III – Anexo B), em que invocando a vasta experiência do 1.º Passo e da ---, entende que devem restringir a área de apoio jurídico, com a solicitação para todas as utentes de apoio judiciário com nomeação de patrono, devendo ser alterada a linha de intervenção, mesmo com os atrasos que disso possa resultar para as utentes.

      

     A intervenção do Dr. FF 

     A intervenção do então advogado estagiário Dr. FF, referida nos artigos 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 34, 35, 36 e 37 da acusação, não foi remunerada, não constituindo a sua prestação qualquer ilícito criminal.

     A referência a este advogado estagiário que estagiava no escritório de BB e DD justifica-se como modo de enquadramento factual e sequencial na passagem da colaboração de BB para EE, sendo certo que quanto a ele não houve qualquer pagamento e recusou proposta de remuneração, como consta expressamente do artigo 37 da acusação.

     O Apenso IV, constituído em 21-11-2013, conforme fls. 533 do 2.º volume, contém listagem dos processos constantes na pasta DR. AA - fls. 3 - , localizados no computador de FF e listagem dos e-mail`s com interesse para os autos trocados entre AA e FF agrupados na pasta “luis­_ campos 13_hotmail.com”.

     A colaboração de Luís Campos efectuando projectos, relatórios e resumos nos processos 5500/12.7YYPRT.P1; 594/11.5TBMCN.P1; 96/12.2TBVCD-A.P1; 1982/11.2TBVFR.P1 e 479/08.2TBLSD.Pl, como consta do artigo 30 da acusação, teve lugar entre 23 de Novembro de 2012 e 11 de Fevereiro de 2013, como se alcança pela troca de e-mails com a requerente AA.

     No que respeita aos processos n.º 464/08.4TBCHV.P1; 5546/11.2TBMTS.P1; 7823/10.0TBMTS.P1; 1853/10.0TBPFR-A.P1 e 8560/08.1TBMTS-B.P1, constantes do artigo 30 da acusação, certo é que FF não elaborou qualquer projecto, tendo em seu poder apenas “modelos de acórdão”, como de forma especificada se referiu no segmento “Referência a projectos de acórdãos cuja atribuição é questionada por AA no requerimento de fls. 1271 a 1277”, de fls. 114 a 119 supra.

   

        A troca de emails entre FF e AA

De FF para AA – fls. 277 do Apenso IV

23 de Novembro de 2012 – 12:43:10

Envio de resumos do processo e relatório do acórdão nos processos 5500/12.7YYPRT.P1 e 594/11.5TBMCN.P1 e parte da fundamentação no primeiro.

 

                                                                 *

De FF para AA – fls. 147 do Apenso IV

12 de Dezembro de 2012 – 14:29:58

Com o assunto “Acórdãos” e sem qualquer especificação de processos, diz: “Envio-lhe os projectos de acórdão que me tinha comprometido a fazer”.

                                                                *

De AA para FF – fls. 146 do Apenso IV

18 de Dezembro de 2012 – 04:42:00

Pedido de entrega de processos “ao DD para ele mos trazer que eu tenho que os verificar e entregar na 4.ª feira” (…).

                                                                *

De FF para AA – fls. 146 do Apenso IV

18 de Dezembro de 2012 – 11:17:42

Envio de 10 anexos relativos aos processos 96/12.2TBVCD-A.P1 e 1982/11.2TBVFR-A.P1, sendo dois deles resumos, que se encontram de fls. 233 a 236, podendo ler-se a final: “Não conseguindo encontrar o fundamento legal que permitiria sustentar a minha posição, não elaborei a fundamentação quanto a este ponto” e fls. 275/6, do Apenso IV.

                                                                *

De AA para FF – fls. 133 do Apenso IV

30 de Janeiro de 2013 – 14:43:57

Envio de um acórdão para base do 479, bem como as alegações e a sentença do 479.

                                                                *

De FF para AA – fls. 133 do Apenso IV

11 Fevereiro de 2013 – 12:40:49

Envio de trabalho realizado na apelação 479/08.2TBLSD até à apreciação jurídica e resumo do processo, que seguem de fls. 134 a 142 e fls. 143/5. 

                                                           *******

      Análise documental – Continuação

     Documentos apresentados por AA

     Com o requerimento de abertura de instrução AA não juntou qualquer documento, vindo a apresentar documentos com o requerimento de fls. 1271 a 1277, em 6 de Março de 2015, os quais foram integrados em Anexos (11), identificados como Anexo a que se segue numeração árabe para não estabelecer confusão com os já existentes com numeração romana, abrangendo documentos próprios (1 a 21) e outros (22 a 49), respeitantes a BB.

     A requerente indicou a junção de 49 documentos, mas na realidade são 52, atenta a numeração no documento 45, abrangendo os n.º s 45 (A), 45 (B), 45 (C) e 45 (D).

      Os documentos juntos por AA mas respeitantes exclusivamente a BB, integrados, como já referido, no Anexo 3 [Documentos 22 a 39], no Anexo 4 [Documento 40], Anexo 5 [Documentos 41, 42, 43 e 44], Anexo 6 [Documento 45 (A)], Anexo 7 [Documento 45 (B)], Anexo 8 [Documentos 45 (C) e 45 (D)], Anexo 9 [Documentos 46 e 47], Anexo 10 [Documento 48] e Anexo 11 [Documento 49], foram já referidos no segmento “Análise do conteúdo dos documentos referentes a trabalhos feitos por BB para a Cruz Vermelha, Delegação do Porto”, a fls. 121, e foram objecto de apreciação, de forma desenvolvida e especificada, no subsegmento “Análise do conteúdo dos documentos apresentados por AA, respeitantes a BB”, de fls. 125 a 147.

     Documentos juntos por AA

 

     Cópias de vinte e um acórdãos contidos nos Anexo 1 (Documentos 1 a 7), Anexo 2 (Documentos 8 a 15) e Anexo 3 (Documentos 16 a 21).

    Análise do conteúdo dos documentos relativos a AA

    Das razões da junção

    A requerente justifica a junção dos três primeiros acórdãos – Documentos 1, 2 e 3 – em função do depoimento do Desembargador HH, que referiu votos de vencido.

    Como exemplos de acórdãos por si relatados em 2012 e 2013, todos confirmados pelo Supremo Tribunal de Justiça, fls. 1272/3, junta os Documentos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12.

     Com o referido na alínea h), a fls. 1275, junta Documento 13 – redacção final do acórdão lavrado no processo 587/11.2TBGDM.P1.

     Por último, na alínea j), a fls. 1276, justifica a junção dos – Documentos 14, 15, 16, 17, 18, 19, 120 e 21 – como respeitando a acórdãos que não constam do Apenso V.

 

     Trata-se de cópias de vinte e um acórdãos elaborados por AA, mencionando-se o número do processo, a indicação da data do acórdão, de voto de vencido (sempre do Desembargador HH) e de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, indicando-se data do acórdão e sentido da decisão.

ANEXO 1 Contém os Documentos 1 a 7

Documento 1 – Fls. 1 a 14 – Processo n.º 10269/10.7TBVNG.P1 – 9-02-2012 – com voto de vencido – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-11-2012, concordando com o acórdão recorrido e negada a revista.  

Documento 2 – Fls. 15 a 20 – Processo n.º 4328/09.6TBMAI.P1 – 31-03-2011 – com voto de vencido.

Documento 3 – Fls. 21 a 45 – Processo n.º 1666/11.1TBSTS.P1 – 11-04-2013 – com voto de vencido.

Documento 4 – Fls. 46 a 117 – Processo n.º 660/1999.P1 – 13-09-2012 – acórdão do STJ de 30-05-2013, sendo negada a revista interposta pelos Réus.

Documento 5 – Fls. 118 a 139 – Processo n.º 1007/05.7TBVLG.P1 – 5-07-2012 – acórdão do STJ de 22-01-2013, sendo negada a revista interposta pela Autora.

Documento 6 – Fls. 140 a 208 – Processo n.º 110/2000.P3 – 12-04-2012 – acórdão do STJ de 22-11-2012, sendo negada a revista interposta pela demandada.

Documento 7 – Fls. 209 a 271 – Processo n.º 353/07.0TBARC.P1 – 14-02-2013 – acórdão do STJ 6-02-2014, sendo negada a revista interposta pela Autora.

     (Anota-se que neste documento na passagem de fls. 225 para 226, nas contra-alegações dos apelados faltam as conclusões L) e M), estando incompleta a anterior, faltando ainda texto a fls. 265).

ANEXO 2 – Contém os Documentos 8 a 15

    (Continuação do anterior, mantendo-se a sequência de cópias de acórdãos elaborados por AA, seguindo-se as mesmas indicações).

Documento 8 – Fls. 272 a 326 – Processo n.º 2733/05.6TBAMT.P1 – 10-07-2013  – acórdão do STJ de 26-06-2014, sendo negada a revista interposta pelos  AA.

Documento 9 – Fls. 327 a 394 – Processo n.º 960/03.0TBPVZ.P1 – 13-07-2011, sendo reforma de decisão anulada por acórdão do  STJ de 13-04-2011 – acórdão do STJ de 21-03-2012, sendo confirmado o acórdão recorrido.

Documento 10 – Fls. 395 a 435 – Processo n.º 3687/03.9TVPRT.P1 – 25-03-2010 – interposto recurso pela A, por acórdão do STJ de 13-09-2012 foi deliberado não se aplicar o regime de revista excepcional previsto no artigo 721.º-A do CPC, e ordenar a notificação da recorrente para apresentar as conclusões de recurso, sob pena de não conhecimento do objecto do recurso.

Documento 11 – Fls. 436 a 497 – Processo n.º 1310/07.1TBLSD.P2 – 08-11-2012 – acórdão do STJ de 22-05-2013, sendo negada a revista interposta pelos RR.

Documento 12 – Fls. 498 a 530 – Processo n.º 9962/05.0TBVNG.P1 – 11-07-2011 – acórdão do STJ de 12-03-2013, sendo negada a revista interposta pelo Réu.

Documento 13 – Fls. 531 a 543 – Processo n.º 587/11.2TBGDM.P1 – 19-12-2012

Documento 14 – Fls. 544 a 554 – Processo n.º 1389/07.6TBVLG.P1 – 19-12-2012

Documento 15 – Fls. 555 a 569 – Processo n.º 25/12.3TBMAI.P1 – 21-02-2013

ANEXO 3 – Contém os Documentos 16 a 21

Documento 16 – Fls. 570 a 578 – Processo n.º 5500/12.7YYPRT.P1 – 28 - 02 - 2013

Documento 17 – Fls. 579 a 593 – Processo n.º 594/11.5TBMCN.P1 – 14 - 02 - 2013

Documento 18 – Fls. 594 a 619 – Processo n.º 96/12.2TBVCD-A.P1 – 19 - 12- 2012

Documento 19 – Fls. 620 a 627 – Processo n.º 1982/11.2TBVFR-A.P1 – 19 - 12 - 2012

Documento 20 – Fls. 628 a 637 – Processo n.º 479/08.2TBLSD.P1 – 11 - 04 - 2013

Documento 21 – Fls. 638 a 647 – Processo n.º 7823/10.0TBMTS.P1 – 21 - 02 - 2013

     Na justificação para junção dos documentos 4 a 12 refere a requerente tratar-se de acórdãos por si relatados em 2012 e 2013 (fls. 1272 do requerimento entrado em 6 de Março de 2015), mas dessa lista há três acórdãos anteriores, de 2010 e 2011.

     Assim: 

Documento 9 – Processo n.º 960/03.0TBPVZ.P1 – o acórdão data de 13-07-2011.

Documento 10 – Processo n.º 3687/03.9TVPRT.P1 – o acórdão data de 25-03-2010 e não houve conhecimento do objecto do recurso.

Documento 12 – Processo n.º 9962/05.0TBVNG.P1 – o acórdão data de 11-07-2011. 

    No que concerne ao que se pretende demonstrar com o documento 13, dir-se-á não se entender na alínea h), a fls. 1275, a referência ao processo n.º 2997/06, cujo projecto foi enviado por BB em 1 de Março de 2013, como se referiu supra a fls. 167.

    O projecto relativo ao processo n.º 587/11.2TBGDM.P1 foi enviado por BB em 2 de Dezembro de 2012, conforme se referiu a fls. 158, sendo que a data de 19-12-2012, constante do acórdão que se encontra na divisória 18.ª do Apenso V é compatível com tal data.

   A justificação para a junção dos documentos 14 a 21 foi o facto de não constarem no Apenso V (alínea j), a fls. 1276).

 

   No que tange ao Documento 14 referente ao processo n.º 1389/07.6TBVLG.P1, é um dos primeiros quatro processos entregues a BB em 19 de Outubro de 2012, tendo sido remetido o projecto por e-mail de 19-11-2012, como melhor se explica a fls. 149, 156 e 180 supra, mostrando-se compatível com a data de envio a data do acórdão de 19-12-2012.

   No que respeita ao Documento 15 relativo ao processo n.º 25/12.3TBMAI.P1, houve elaboração de projecto de BB, em 6 de Fevereiro de 2013,conforme fls. 163, 164/5 supra, sendo que o acórdão final está datado de 21-02-2013.

    Os acórdãos que fazem os documentos 16 a 20 tiveram projecto de FF, conforme artigo 30 da acusação e se referiu de fls. 196 a 198 supra.

    O Documento 21 relativo ao processo n.º 7823/10.0TBMTS.P1 nada tem a ver com o acórdão referido no artigo 31 da acusação, atribuído a FF e afastado a fls. 119 supra. O acórdão agora apresentado é de 21-02-2013, podendo ter acontecido o anterior ter sido revogado.

    Concluindo.

    Os votos de vencido, que constam dos documentos apresentados pela requerente AA, tiveram lugar nos seguintes casos:

Processo n.º 10269/10.7TBVNG.P1, sendo confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça a solução proposta pela arguida – Anexo 1 – Documento 1;

Processo n.º 4328/09.6TBMAI.P1 – Anexo 1 – Documento 2;

Processo n.º 1666/11.1TBSTS.P1 – Anexo 1 – Documento 3.

    Os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça com confirmação de acórdãos elaborados entre 12-04-2012 e 10-07-2013 são os seguintes:

Processo n.º 10269/10.7TBVNG.P1 – Anexo 1 – Documento 1 (com voto de vencido);

Processo n.º 660/1999.P1 – Anexo 1 – Documento 4;

Processo n.º 1007/05.7TBVLG.P1 – Anexo 1 – Documento 5;

Processo n.º 110/2000.P3 – Anexo 1 – Documento 6;

Processo n.º 353/07.0TBARC.P1 – Anexo 1 – Documento 7;

Processo n.º 2733/05.6TBAMT.P1 – Anexo 1 – Documento 8;

Processo n.º 1310/07.1TBLSD.P2 – Anexo 1 – Documento 11.

    Os restantes três, constantes dos documentos 9, 10 e 12 são anteriores, de 2010 e 2011, como já referido:

Processo n.º 960/03.0TBPVZ.P1 – o acórdão data de 13-07-2011 – Documento 9;

Processo n.º 9962/05.0TBVNG.P1 – o acórdão data de 11-07-2011 – Documento 12; 

Processo n.º 3687/03.9TVPRT.P1 – o acórdão data de 25-03-2010 – e o recurso não foi conhecido – Documento 10, todos do Anexo 1.

  

                                                                *******

    Analisada toda a prova documental, conclui-se apresentarem-se como cruciais os documentos apreendidos nas buscas de 15 de Outubro de 2013, como os projectos de acórdãos, as folhas manuscritas, os trabalhos preparatórios, os e-mails, os dados extraídos de computadores, a Pasta de arquivo CVP Diversos entregue voluntariamente por BB, que constitui o Apenso II, Anexo D, a), bem como os e-mails de SS no Apenso III, Anexo D, e os trocados entre AA e BB e EE, bem como o quadro dos processos facturados por EE com a factura 1012, a fls. 37 do Apenso I, referido supra a fls. 189.

     

                                                                *******

    Análise da prova testemunhal

 

    A prova testemunhal no caso presente assume um peso relativo face à pujança da força probatória emergente dos documentos apreendidos nas buscas, como os projectos de acórdãos, os “preparatórios” e sobretudo, as folhas manuscritas e os e-mails, cuja autoria, genuinidade e exactidão não foi impugnada, nem arguida de falsa, não tendo sido tão pouco questionado o seu modo de obtenção, bem como o seu valor e alcance enquanto meio de obtenção de provas substanciadas nas declarações recipiendas emitidas e recebidas, no que tange aos últimos (cfr. artigos 362.º, 363.º, n.º 1, 368.º, 372.º, 374.º e 376.º do Código Civil).
    A prova testemunhal, adrede arrolada, não tem a virtualidade de destruir, contrariar, infirmar, abalar, minimizar ou sequer beliscar a força probatória dos e-mails, que traduzem a revelação das comunicações que entre as 00:42 horas de 25 de Outubro de 2012 e as 15:55 horas do dia 6 de Junho de 2013 (fls. 193/194 supra), foram sendo estabelecidas entre AA, BB e EE, as intervenientes neste exercício de que resultou a formulação de questionados projectos de acórdãos e que se prolongou ainda por 11 de Junho e 21 de Agosto de 2013 entre AA e a adjunta executiva SS, a propósito da factura n.º 1035, que ficou por pagar (fls. 194 supra).  
    Os diálogos estabelecidos entre AA e BB, veiculados por e-mails, ora como emitentes ora como destinatárias, e do mesmo modo entre AA e EE, estabelecem um circuito comunicacional que escapa, como é óbvio, às demais testemunhas.
    A única excepção vai para SS, destinatária única do e-mail de 25 de Outubro de 2012, emitido por AA, decorridos iam 42 minutos do dia e em conjunto com outros destinatários, todos colaboradores da CVP ... da emitida dez minutos depois, sendo a interlocutora que interage ao nível da comunicação por e-mail com AA, BB e EE, incluindo quanto a estas tratamento de questões relacionadas com pagamentos.
    Nenhuma das outras testemunhas entrou neste circuito comunicacional e portanto, como óbvio é, qualquer delas desconhecia o texto e o contexto em que foram produzidas as sucessivas declarações, nenhuma das testemunhas arroladas para instrução poderia depor sobre a questão da elaboração de projectos, com excepção única dos adjuntos Desembargadores quanto aos efectivamente apresentados, mas aqui há que dizer que a apreciação da questão não passa pela avaliação do que é apresentado como produto final, como é evidente e afirmá-lo seria estultícia e injúria, pois nunca a requerente AA iria apresentar na sessão como projectos acabados seus, o projecto feito sem a sua autoria, sem a necessária revisão. Isto é evidente e assim esses dois depoimentos só podem ser entendidos com esta reserva. É óbvio que foram apreciados e discutidos projectos com formulação final dada pela relatora. Daí o Exmo. PGA no final do depoimento do Desembargador HH ter dito “não é essa a tese da acusação”, passava o minuto 22:50.  
    Em relação aos e-mails, ao demais material apreendido, como projectos, trabalhos preparatórios, folhas manuscritas, pouco poderia adiantar a prova testemunhal, o seu poder de contra reacção, de afirmação de sinal contrário ao que de forma exuberante emerge da prova documental, era nulo.
    Apenas o motorista da CVP de ..., ---- (fls. 486) e a advogada do escritório de EE, Dr.ª --- (fls. 827), tiveram de alguma forma contacto com os processos entregues a EE, como se explicou supra a fls. 187.

     Antes de analisarmos os depoimentos prestados, dir-se-á que a requerente AA foi ouvida em 6 de Março de 2015, tendo reafirmado a tese da avença celebrada com o acordo do Presidente Nacional, com BB, como forma de responder a questões colocadas com o acréscimo de trabalho resultante da fusão e justificando os pagamentos a EE como forma de retribuição de consultas sobre casos de violência doméstica, confirmando a interpelação de Paula Ferreira e não ter sido paga a segunda factura, de que aquela se terá desinteressado, remetendo-se no mais para o que ficou gravado e para o que ficou consignado supra a fls. 190 e 195.
 

    Apreciando os depoimentos.


    Como se mencionou supra, a fls. 23, o Juiz Desembargador no Tribunal da Relação do ---, II, exerceu a prerrogativa de depor por escrito, conforme fls. 1150, juntando o depoimento, a fls. 1151, do que se deu nota ali, pelo que ora apenas se remeterá para o local.
   
    O Presidente Nacional da Cruz Vermelha Portuguesa, Dr. GG, referiu-se à unificação das delegações de ... e ---, à projectada requisição de AA para que ficasse em regime de exclusividade na CVP, contactos que estabeleceu com o então Presidente do STJ e com o Governo, através da Secretária de Estado --- (minutos 8 e 27), que não foram avante, à avença, como forma de responder ao aumento de trabalho resultante da fusão, referindo ao minuto 17 que AA pôs o problema de precisar de ajuda e que tinha que remunerar alguém por esse trabalho.
    Questionado pelo Exmo. PGA disse que deu adesão e crédito às razões que lhe deram para contratar (minuto 25), esclarecendo que a proposta de contratação partiu da delegação local, mais propriamente de AA, dando como justificação o trabalho acrescido resultante da unificação das duas delegações.
    Instado ainda no sentido de saber se tinha conhecimento de que BB fizesse trabalhos para AA, se a assistência jurídica abrangia a sua actividade de juíza desembargadora, disse não saber. Segundo disse, respondendo ao Ministério Público - minuto 38:24 - o apoio seria só para tarefas da CVP.
    No fundo, o Presidente nacional aceitou como boas as razões apresentadas por AA (minuto 29). Esclarecendo ao minuto 30 que a ajuda seria “nos aspectos da Cruz Vermelha”.
    Afirmou desconhecer o concreto trabalho desenvolvido por BB por não conseguir acompanhar pormenores, pois a CVP tem 180 delegações.
    No que respeita a EE avançou que a proposta do seu nome foi feita por AA (minuto 31).
    Reportou (minuto 28) o aumento da intervenção da CVP em matéria de violência doméstica, cada vez mais complexa e mais detalhada, com serviço de teleassistência, entrega de um pequeno telemóvel às vítimas, que são referenciadas por GPS, como forma de acorrer mais rapidamente a vítimas em situação de perigo, tendo a CVP alargado a sua intervenção a todo o País, efectuando transporte de vítimas e actualmente funcionado com centros de acolhimento por 8 dias, solução que se tem revelado útil e eficiente (minuto 29).
    Referiu a subvenção do Estado, no montante de 1.400.000,00 €, sendo destinada a maior parte (900.000,00 €) para o Lar Militar, que acolhe militares deficientes profundos provocados pelas guerras em África, acolhendo actualmente cerca de trinta (minuto 19).
    A partir do minuto 11:33, esclarece ter a Segurança Social resolvido passar vários infantários que eram por si geridos para a Cruz Vermelha, como o caso de Valbom, que passou a ser gerido pela Delegação do ---, a par de outras, como Santo Tirso e Crestuma, esclarecendo que é retribuído parcialmente como as creches das IPSS, com um sistema misto. Para cada criança é necessária a quantia de 400,00 €/mês, podendo os pais, quando podem, chegar no máximo aos 190,00 €, sendo o restante suportado pelo Estado.

    Analisando o depoimento de SS, que ingressou na CVP como voluntária, em 1998, depois passou a trabalhadora independente e a partir de Maio de 2010, como trabalhadora dependente, funcionária, sendo adjunta executiva e TOC, interlocutora entre a Direcção e os diversos serviços prestados pela CVP de ... e a partir de 6 de Agosto de 2012 igualmente do Porto, por quem passam os pagamentos.
    Referiu a actividade de DD como focada no Centro de atendimento.
    Referiu-se a trabalhos de BB, como acompanhamento de processos, mas especificamente o que fez não sabe (minuto 6), aludindo à avença e dizendo que se destinaria a pagar trabalho feito para a CVP Porto, afirmando que a Dr.ª AA e o Presidente nacional chegaram a acordo para a celebração de um contrato de assessoria jurídica.
    Referiu que já antes de Outubro de 2012 BB dava apoio no Centro de atendimento e na Casa Abrigo.
    Reafirmou não ter BB tido qualquer ligação com a contratação de EE, referindo ter esta elaborado regulamentos e tratado de questões laborais, sendo o trabalho sempre de acordo com o estipulado por AA.
    Em inquérito havia afirmado terem-lhe surgido dúvidas quanto ao teor do e-mail, que será o enviado por EE em 6 de Junho 2013, a que aludirá a requerente AA nas declarações prestadas em 6 de Março de 2015.
    Por outro lado, a testemunha prestou depoimento esclarecedor no que toca à vertente de intervenção social da CVP, como a Casa de Abrigo com 25 utentes (dez mulheres e quinze crianças) e a passagem da Segurança Social para a CVP através de um contrato de gestão (minuto 18), competindo “gerir o espaço e as pessoas” da creche de Valbom, com três componentes, como a creche, a creche familiar (em casa de amas com quatro crianças por ama) e o pré-escolar, tendo 127 crianças, assim distribuídas respectivamente: 70, 32 e 25, e alterado o quadro à data do depoimento, para 145 crianças, com, respectivamente, 42, 28 (com a saída de uma ama) e 75 crianças.
    Depôs quanto às razões porque BB deixou de trabalhar na CVP em Fevereiro de 2013 e o seu empenhamento nas autárquicas.
    Afirmou que EE foi contratada por AA (minuto 20), dizendo caber-lhe a feitura de regulamentos e análise de contratos de trabalho, afirmando que BB nada teve a ver com isso, que desconhecia tal contratação (minuto 30).
    Quanto a EE quem designava o que era necessário fazer era AA (minuto 14).
    Explicou que o que afirma quanto a prestações quer de BB, quer de EE foi por “ouvir dizer”.
   
    O Desembargador HH trabalhou cerca de quatro anos com a requerente AA, sendo seu adjunto.
    Pelo minuto 5:30 afirmou ter feito vários votos de vencido em acórdãos relatados por AA.
    Pelo minuto 13 disse conhecer o estilo e a substância dos acórdãos relatados pela requerente referindo-se ainda a uma apreciação crítica e aprofundada.
    Se não houvesse fidedignidade na origem ter-se-ia apercebido, esclareceu.  
   
    ----, psicóloga, Directora de serviços, desde 1999, estando mais na operacionalização de serviços na parte técnica de psicologia nos casos de violência doméstica, é também a coordenadora do serviço de apoio domiciliário (minuto 16).
    Reportou o acréscimo brutal de trabalho resultante da unificação, sendo uma herança pesada, passando a deslocar-se ao Porto.
    Referiu ter BB acompanhado as utentes das respostas sociais a violência doméstica, como a Casa de Abrigo e o Centro de atendimento à vítima, prestando serviços forenses antes de Outubro de 2012 (minuto 13).
    Sobre contenciosos laborais disse nada saber.
    Sabia que havia uma avença e respectivo valor (minuto 9).
    A propósito de EE, referiu que teria sido ouvida a respeito de regulamentos, sendo a actividade definida por AA (minuto 12), não sabendo se o seu trabalho foi pago. 

    No que respeita a CC, advogado que trabalhou no escritório da ---, com BB e DD, desde 2011 até final do Verão de 2013, sendo um dos contitulares do contrato de arrendamento do escritório, tendo sido a esposa fiadora do mesmo, a gravação ficou com dois segmentos, abarcando o primeiro apenas a resposta ao artigo 5.º do RAI de AA com cerca de 10 minutos e depois um segundo com cerca de 34 minutos.  
    Respondendo à matéria do artigo 6.º, disse refutar (minuto 2 do segundo segmento de gravação) o que aí se diz por não corresponder à realidade, referindo o seu relacionamento com o inspector da Polícia Judiciária QQ, seu colega de curso na Faculdade de Direito do Porto.
    Agiu – disse – num espaço comum que também era seu (minutos 4 e 28), porque considerou que actos que presenciou poderiam consubstanciar condutas que poderiam indiciar a prática de ilícitos criminais e não poderia ter conivência com tais factos (minuto 5).
    Ao minuto 5:50 referiu não ter sido contratado por nenhum órgão de polícia criminal.
    Ao minuto 6:50, disse: “Gosto muito da Dr.ª BB. Fez-me evoluir como Advogado”, dizendo ainda sentir a maior gratidão e amizade.
    Soube que AA tinha problemas com as pendências na Relação, referindo a presença de processos --- no escritório (minuto 8 a 12:50).
    Afirmou desconhecer sugestão ou diligência para ser contactado como agente infiltrado, refutando tal ideia, afirmando que isso nunca lhe foi dito e não conhecer o processo (minuto 31).
    Por último temos o depoimento de DD, advogado do escritório de BB e à época CC, desempenhando as funções de jurista no Centro de Atendimento às vítimas da CVP de ..., ex-marido e actual companheiro de AA, tendo sido feita a advertência legal (minuto17), dispôs-se a falar.
    Começou por referir a vida no escritório, afirmando que CC era desleixado, limitando-se a receber 1/3 do que faziam.
     Tendo sido prescindida a sua audição aos artigos 15 a 19 do RAI de BB, respondeu a partir do minuto 20 às matérias dos artigos a que foi oferecido, referindo a actividade da requerente na CVP de ... e a posterior participação na campanha eleitoral das autárquicas de Setembro de 2013.  
     Tendo ainda declarado que BB e EE tinham sido colegas num escritório em tempos e que tinha havido um desentendimento não mantendo relações (minuto 27).

     Os depoimentos prestados no que têm a ver com trabalhos realizados por BB para a CVP --- são difusos, sem grande concretização, sendo certo que naturalmente tudo quanto dito seja tem de reportar alguma correspondência com os documentos juntos, quer pela requerente, quer por AA; a esse nível a prova testemunhal não pode substituir ou suprir o que consta ou não consta dos documentos oferecidos, remetendo-se para tudo o que resultou da análise desses documentos, donde se extrai que as participações em tribunal foram levadas a cabo por DD, para além de terem sido juntos muitos papéis que não diziam respeito ao período temporal em causa, pois foram juntos vários com datas posteriores a Fevereiro de 2013 e mesmo muitos datados de 2014, como de resto assinalado foi a propósito de cada um dos documentos quando era caso disso.

     Essa análise detalhada de todos e cada um dos documentos consta, de fls. 122 a 125 no que respeita aos documentos apresentados pela requerente BB no RAI e de fls. 126 a 147, no que tange aos documentos juntos por AA em 6 de Março de 2015 – Anexos 22 a 49.

     Noutra perspectiva não pode deixar de assinalar-se o importantíssimo contributo que dos depoimentos do Presidente Nacional, da adjunta executiva SS e de LL, emerge, no que respeita à definição e amplitude das concretas competências e intervenções protagonizadas pela Cruz Vermelha Portuguesa no terreno de respostas sociais, que competem em primeira linha ao Estado, sendo paradigmático o caso da transferência de creches da Segurança Social para a Cruz Vermelha Portuguesa, como aconteceu com Valbom, Santo Tirso e Crestuma, a gestão do Lar Militar, com actualmente cerca de 30 militares deficientes profundos provenientes das guerras em África, bem como o acompanhamento de casos de violência doméstica ou a prestação de apoio domiciliário, o que significa o desempenho de funções de cariz público.

   Em suma, tudo traduzindo a conformação da Cruz Vermelha Portuguesa como pessoa colectiva a integrar na categoria das pessoas colectivas de direito privado de utilidade pública administrativa especiais, o que assume grande importância na questão da conformação do conceito de funcionário para efeitos da lei penal, definido no artigo 386.º do Código Penal, no caso, de integração ou não do crime de peculato, que vem imputado a ambas as requerentes.

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       Ultrapassado o plano da averiguação da existência dos indícios a nível fáctico e da análise crítica de todos os elementos probatórios carreados pela acusação e pelas requerentes da instrução, devidamente conjugados e relacionados, passemos ao plano do enquadramento jurídico-criminal.

                               

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       Fundamentação de direito

       O crime de Peculato e o indissociável conceito de Funcionário

  

      Neste particular, de aproximação a estas duas figuras criminais, com historial remoto no direito português - previstas, actualmente, e desde 1 de Outubro de 1995, nos artigos 375.º e 386.º do Código Penal, mantendo aquele a versão originária -, umbilicalmente associadas, indissociavelmente ligadas, porque uma, proveniente do foro extra penal e por isso definida para efeitos da lei penal, é pressuposto da compreensão da outra, intrínseca e geneticamente do foro penal, ter-se-ão em consideração a evolução legislativa, na sucessiva formulação dos contornos de uma e outra, desde o Código Penal de 1852 até ao presente, as concepções da Doutrina, a respeito igualmente, de uma e outra das aludidas expressões de normatividade, e as formulações de enquadramento, necessariamente casuístico, por parte da Jurisprudência, tendo em conta as respostas formuladas, de forma adequada, em tempo útil, às diferentes/sucessivas definições legais, estas com grande/constante mutação, sobretudo, ao nível da conformação do “elástico” e sempre cuidado (desde 1852) reformulado conceito de “funcionário”, que, por mor disso mesmo, traz associada uma acrescida, maior compreensividade da autoria ou comparticipação no crime de peculato, da definição, ao nível do destinatário da previsão normativa, o que é dizer, da conformação do sujeito activo – o funcionário é/o funcionário será – o que a lei ordinária, a cada momento histórico, designa(rá) como tal, pois estamos perante uma figura em permanente mutação, mas por outro lado, com a constante característica, não de restrição, mas de adição, sempre no sentido do alargamento do campo da destinação da norma, do recrutamento de novos actores, ou seja, de novos autores, de novos sujeitos activos, como hialinamente se alcança das reformulações punitivas aditivas de 2001, de 2007 e de 2010, no que toca ao artigo 386.º do Código Penal.

    A evolução legislativa

     Colocar-se-ão neste segmento, a par e passo, as indissociáveis figuras do específico crime de peculato e do específico conceito de sujeito activo, que começou por ser o “empregado público”, com definição desde logo rigorosa, que depois evoluiu para o conceito de “funcionário”, este com estrutura cada vez mais alargada, abrangente, expansiva, e sobretudo, compreensiva, intrometendo-se ligeiras notas nas formulações mais antigas.

     Depois, serão as mesmas figuras objecto de consideração separada.

     Código Penal de 1852

     Aprovado pelo Decreto de 10 de Dezembro de 1852 “confirmado pela lei de 1 de Junho de 1853 (D. do G. n.º 128), que lhe deu, do mesmo modo que a outros decretos da dictadura, chamada da regeneração, a indispensável força de lei”.

    

     O crime de peculato, em termos sistemáticos, integrava-se então no Livro Segundo – “Dos crimes em especial” – no Título III – “Dos crimes contra a ordem e tranquilidade pública” – no Capítulo XIII – “Dos crimes dos empregados públicos no exercício das suas funções” – e na Secção VI – “Peculato e concussão”, abrangendo os artigos 313.º a 317.º, estabelecendo então o

                                                          Artigo 313.º

 

     «Todo o empregado publico que, em razão de suas funcções, tiver em seu poder dinheiro, titulos de créditos, ou effeitos móveis pertencentes ao estado ou a particulares, para guardar, despender ou administrar, ou lhes dar o destino legal, se alguma cousa d´estas furtar, maliciosamente levar, ou deixar levar, ou furtar a outrem, ou applicar a uso proprio ou alheio, faltando á applicação ou entrega legal, será condemnado a trabalhos publicos temporarios:

    1.º Se a cousa levada ou furtada exceder ao valor de seiscentos mil reis;

    2.° Se igualar, ou exceder o terço da receita ou deposito, tratando-se de dinheiros ou effeitos, uma vez recebidos ou depositados;

    3.° Se igualar ou exceder a fiança, quando o emprego for sujeito a ella;

    4.° Se igualar, ou exceder ao terço do producto ordinario de receita de um mez, tratando-se do receitas, provenientes de entradas successivas, e não sujeitas a fiança.

    § 1.° Quando o valor for inferior aos declarados neste artigo, a pena será a de prisão maior temporaria.

    § 2.° Em todos os casos enumerados neste artigo e paragrapho, será o réu condemnado tambem a multa de um a tres annos.

    § 3.º Se der o dinheiro a ganho, ou emprestar, ou pagar antes do vencimento; ou, se estando encarregado da arrecadação, ou cobrança de alguma cousa pertencente ao estado, der espaço ou espera ao devedor, será punido com a prisão de um a tres annos e multa correspondente.

    § 4.° Se der ao dinheiro publico um destino para uso publico differente daquelle para que era destinado, será suspenso até seis mezes e condemnado em multa de sessenta mil réis.

    § 5.º As disposições deste artigo e seus paragrafos comprehendem quaesquer pessoas, que, pela auctoridade legitima, forem constituidas depositarios publicos, cobradores ou recebedores, relativamente ás cousas de que forem depositarios publicos, cobradores, ou recebedores».

     Integrada no referido Capítulo XIII, relativo a “Dos crimes dos empregados públicos no exercício das suas funções”, agora na Secção VII, tendo por epígrafe “Disposições Geraes”, albergando os artigos 324.º a 327.º, rematava com este, estabelecendo o

 

                                                           Artigo 327.º

 

    Para os effeitos do disposto neste capitulo, considera-se empregado publico todo aquelle que, ou auctorisado immediatamente pela disposição da lei, ou nomeado por eleição popular, ou pelo rei, ou por auctoridade competente, exerce, ou participa no exercicio de funcções publicas civis de qualquer natureza.

    (Textos extraídos do Código Penal Approvado por Decreto de 10 de Dezembro de 1852, Edição Official, Lisboa, Imprensa Nacional, 1853, págs. 93/4 e 99, da Oitava Edição Official, 1882, págs. 90 e 95, e igualmente, presentes em Código Penal Portuguez Annotado por Antonio Luiz de Sousa Henriques Secco, Lente de Prima, Decano e Director da Faculdade de Direito, 6.ª edição, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1881, págs. 171 a 173 e 180).

    Nova Reforma Penal

    A Nova Reforma Penal foi aprovada por Decreto de 14 de Junho de 1844 e publicada por Carta de Lei da mesma data.

    Diploma constituído por 91 artigos, os primeiros noventa estabeleceram novos princípios relativamente a toda a matéria do Livro I do Código, tendo o artigo 91.º dado diferente redacção a 123 artigos (incluído o artigo 313.º e parágrafos) do Livro II, o qual, como vimos, tinha a epígrafe “Dos crimes em especial”. 

    O crime de peculato e o conceito de empregado público continuaram sediados nos mesmos preceitos, tendo o artigo 313.º sofrido nova redacção, passando a dizer:

                                                             Artigo 313.º

    «Todo o empregado publico que em razão das suas funcções tiver em seu poder dinheiro, titulos de crédito, ou effeitos moveis pertencentes ao estado, ou a particulares, para guardar, despender ou administrar, ou lhes dar o destino legal, e alguma cousa d`estas furtar, maliciosamente levar, ou deixar levar ou furtar a outrem; ou applicar a uso proprio ou alheio, faltando á applicação ou entrega legal, será condemnado a prisão maior temporaria:

    1.° Se a cousa levada ou furtada exceder ao valor de réis 600$000, quando o emprego não for sujeito a fiança ou caução ou não tenha sido ainda prestada, ou se a cousa levada ou furtada exceder a mais de 600$000 réis o valor da fiança ou caução quando tenha sido prestada;

    2.° Se igualar ou exceder ao terço da receita ou deposito, tratando-se de dinheiros ou effeitos, uma vez recebidos e depositados;

    3.° Se igualar ou exceder ao terço do producto ordinario da receita de um mez, tratando-se de receitas provenientes de entradas successivas e não sujeitas a fiança.

    § 1.° Quando o valor for inferior aos declarados n`este artigo a pena será a de degredo temporario, a qual será sempre applicada no seu minimo, se o valor da fiança ou caução, havendo-a, exceder ou igualar o da cousa levada ou furtada.

    § 2.° Em todos os casos enumerados n`este artigo e paragrapho, será o réu condemnado tambem a multa de um a dois annos.

    § 3.º Se der o dinheiro a ganho, ou o emprestar ou pagar antes do vencimento, ou se, estando encarregado da arrecadação ou cobrança de alguma cousa pertencente ao estado, der espaço ou espera ao devedor, será condemnado a prisão correccional não inferior a um anno e multa correspondente.

    § 4.° Se der ao dinheiro publico um destino para uso publico differente d`aquelle para que era destinado, será suspenso até seis meses e condemnado em multa de 60$000 réis.

    § 5.º As disposições d`este artigo e seus paragraphos, comprehendem quaesquer pessoas que pela auctoridade legitima forem constituidas depositarios, cobradores ou recebedores, relativamente às cousas do que foram depositarios públicos, cobradores ou recebedores.

    (Texto extraído do citado Código Penal Portuguez Annotado por Antonio Luiz de Sousa Henriques Secco, Segunda Parte, contendo a Nova Reforma Penal, 1884, e os noventa artigos da Parte Geral e as alterações introduzidas na Parte Especial, incluído o artigo 313.º e seus §§ - págs. 45 e 46).

    O artigo 327.º é o preceito do Código Penal de 1852, não tendo sido alterado pela Nova Reforma Penal, apenas sendo introduzidos ligeiríssimos retoques, ficando com a redacção que segue:

                                                          Artigo 327.º

    Para os effeitos do disposto neste capitulo, considera-se empregado público todo aquelle que, ou auctorisado immediatamente pela disposição da Lei, ou nomeado por eleição popular ou pelo Rei, ou por auctoridade competente, exerce ou participa no exercicio de funcções publicas civis de qualquer natureza.

    (Texto extraído do Código Penal Approvado por Decreto de 10 de Dezembro de 1852, Edição Official, Lisboa, Imprensa Nacional, 1853, pág. 99, e da Oitava Edição Official, 1882, pág. 95, e presente em texto actualizado na obra Notas ao Código Penal Português, por Luís Osório da Gama e Castro de Oliveira Baptista, então Juiz de Direito, 2.ª edição, Volume Segundo, Coimbra Editora, Limitada, 1923, pág. 715).

    Código Penal de 1886

    Pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886, usando da autorização concedida ao Governo pelo artigo 5.º da Carta de Lei de 14 de Junho de 1884 (Nova Reforma Penal), foi aprovada a nova publicação oficial do Código Penal, inserindo as disposições da mesma Lei, ou seja, as da Nova Reforma, continuando o crime de peculato previsto no artigo 313.º e o conceito de funcionário, continuando plasmado no artigo 327.º

   

    Estabelecia o artigo 5.º da Nova Reforma Penal: “É auctorisado o governo a fazer uma nova publicação official do codigo penal, na qual deverão inserir-se as disposições da presente lei”.

    A redacção fundamental do Código Penal vigente até 31 de Dezembro de 1982 (artigos 2.º e 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, que aprovou o Código Penal de 1982) é assim a do Código de 1852 com a nova publicação oficial de 1886, em que foram introduzidos os princípios da Nova Reforma Penal de 1884 (a que se juntaram reformas parciais posteriores, como a de 1931 – Decreto-Lei n.º 20 146, de 1 de Agosto – e a de 1954 – Decreto-Lei n.º 39 688, de 5 de Junho).

    Vejamos o que se passou com a definição do crime de peculato.

   

    O artigo 313.º na nova publicação passou a estabelecer:

                                                       Artigo 313.º

    «Todo o empregado publico que em rasão das suas funcções tiver em seu poder dinheiro, titulos de credito, ou effeitos moveis pertencentes ao estado, ou a particulares, para guardar, despender ou administrar, ou lhes dar o destino legal, e alguma cousa d`estas furtar, maliciosamente levar, ou deixar levar ou furtar a outrem; ou aplicar a uso proprio ou alheio, faltando á aplicação ou entrega legal, será condemnado a prisão maior celular de dois a oito annos, ou, em alternativa, a prisão maior temporaria:

    1.° Se a cousa levada ou furtada exceder ao valor de 600$000 réis, quando o emprego não for sujeito a fiança ou caução, ou não tenha sido ainda prestada, ou se a cousa levada ou furtada exceder a mais de 600$000 réis o valor da fiança ou caução quando tenha sido prestada;

    2.° Se igualar ou exceder ao terço da receita ou depósito, tratando-se de dinheiros ou effeitos, uma vez recebidos e depositados;

    3.° Se igualar ou exceder ao terço do producto ordinário da receita de um mez, tratando-se de receitas provenientes de entradas successivas e não sujeitas a fiança.

    § 1.° Quando o valor for inferior aos declarados n`este artigo, a pena será a de prisão maior cellular de dois a oito annos, ou, em alternativa, a de degredo temporario, a qual será sempre applicada no seu minimo, se o valor da fiança ou caução, havendo-a exceder ou igualar o da cousa levada ou furtada.

    § 2.° Em todos os casos enumerados n`este artigo e paragrapho, será o réu condemnado também a multa de um a dois annos.

    § 3.º Se der o dinheiro a ganho, ou o emprestar ou pagar antes do vencimento, ou se, estando encarregado da arrecadação ou cobrança de alguma cousa pertencente ao estado, der espaço ou espera ao devedor, será condenado a prisão correccional não inferior a um anno e multa correspondente.

    § 4.° Se der ao dinheiro público um destino para uso publico differente d`aquele para que era destinado, será suspenso até seis mezes e condemnado em multa de 60$000 réis.

    § 5.º As disposições d`este artigo e seus paragraphos, comprehendem quaesquer pessoas, que pela auctoridade legitima forem constituidas depositários, cobradores ou recebedores, relativamente ás cousas do que forem depositários publicos, cobradores ou recebedores.

    (Texto extraído do Código Penal Approvado por Decreto de 16 de Setembro de 1886, Edição Official, Lisboa, Imprensa Nacional, 1886, págs. 84 e 85, sendo presente igualmente com actualização de escrita em Notas ao Código Penal Português por Luís Osório da Gama e Castro de Oliveira Baptista, 2.ª edição, Volume Segundo, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1923, págs. 668/9 e presente igualmente em Código Penal Português Anotado, de Duarte Faveiro e Laurentino Araújo, 7.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, 1971, págs. 548/9).

    Conforme dão nota Vítor António Duarte Faveiro e Laurentino da Silva Araújo, Código Penal Português Anotado, 7.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, 1971, pág. 548, e Maia Gonçalves, Código Penal Português na Doutrina e na Jurisprudência, 4.ª edição, Almedina, Janeiro de 1979 e na 5.ª edição actualizada, 1980, a págs. 505 (em ambas as edições), a redacção que segue (actual à data das publicações) foi introduzida pelo Decreto n.º 20.146, de 1 de Agosto de 1931, rectificado em 17 do mesmo mês.

    O crime de peculato continuou, em termos sistemáticos, a estar integrado no Livro Segundo – “Dos crimes em especial”, Título III – “Dos crimes contra a ordem e tranquilidade pública”, Capítulo XIII – “Dos crimes dos empregados públicos no exercício das suas funções”, e Secção VI – “Peculato e concussão”.

    Sob a epígrafe “Peculato”, o artigo 313.º do Código Penal, passou a estabelecer:

    

                                                          Artigo 313.º

    «Todo o empregado público que em razão das suas funções tiver em seu poder dinheiro, títulos de crédito, ou efeitos móveis pertencentes ao Estado, ou a particulares, para guardar, dispender ou administrar, ou lhes dar o destino legal, e alguma coisa destas furtar, maliciosamente levar, ou deixar levar ou furtar a outrem, ou aplicar a uso próprio ou alheio, faltando à aplicação ou entrega legal, será condenado na pena correspondente ao crime de roubo, nos termos do artigo 437.º.

    § 1.º - Se der o dinheiro a ganho, ou o emprestar ou pagar antes do vencimento, ou se, estando encarregado da arrecadação ou cobrança de alguma coisa pertencente ao Estado, der espaço ou espera aos devedores, será condenado na pena correspondente ao crime de furto, segundo o valor. 

    § 2.º - Se der ao dinheiro público um destino para uso público diferente daquele para que era destinado, será suspenso até seis meses e condenado em multa de 500$00 a 3 000$00.

    § 3.º - As disposições deste artigo e seus parágrafos compreendem quaisquer pessoas que pela autoridade legítima forem constituídas depositários, cobradores ou recebedores, relativamente às coisas de que forem depositários públicos, cobradores ou recebedores».

    (Em registo completamente diverso, a espécie e modo da definição da pena; a pena agora passa a ser definida por remissão para a pena correspondente aos crimes de roubo e de furto).

 

                                                              *******

    Vejamos agora o conceito de “empregado público”, expressão presente no Código Penal de 1886.

    Inserto na Secção VIII do Capítulo XIII – “Dos crimes dos empregados públicos no exercício das suas funções”, com a epígrafe “Disposições gerais”, estabelecia o  

    

                                                            Artigo 327.º

    «Para os effeitos do disposto n`este capitulo, considera-se empregado publico todo aquelle que, ou auctorisado immediatamente pela disposição da lei, ou nomeado por eleição popular ou pelo Rei, ou por auctoridade competente, exerce ou participa no exercicio de funcções publicas civis de qualquer natureza».

    (Texto extraído do Código Penal Approvado por Decreto de 16 de Setembro de 1886, Edição Official, Lisboa, Imprensa Nacional, 1886, pág. 89).

    (Corresponde, sem grandes alterações ao artigo 327.º do Código Penal de 1852).

    Beleza dos Santos, na Revista de Legislação e Jurisprudência (RLJ), Ano 75.º (1942/1943), pág. 205, nota 2, ao comentar o artigo 313.º, considerava que “a palavra furtar está usada no preceito em sentido impróprio, mostrando que a lei a emprega considerando como seu elemento a apropriação”.

    Como dá nota Manuel Lopes Maia Gonçalves, Código Penal Português na Doutrina e na Jurisprudência, 4.ª e 5.ª edição, pág. 505, a este tempo, para as “Operações de tesouraria” regia o Decreto n.º 22 257, de 25 de Fevereiro de 1933, maxime, o artigo 35.º e § único, onde se estabelecia que:

    “Além da responsabilidade para com o Estado ficam sujeitos às penas do peculato os que procederem em contravenção do disposto neste artigo”.

    Procurando responder a previsíveis desvios causadores de prejuízos, o legislador tomou avisada medida cautelar, relativamente a uma já afirmada/reconhecida realidade preexistente e assim surgiu a Lei n.º 1922, de 14 de Julho de 1935 (situando-nos, tal aconteceu no período entre guerras mundiais, após o Crash da Bolsa de Nova York, dia 26 de Outubro de 1929, que originou a Grande Depressão, de que são incontornáveis referências o presidente Delano Roosevelt, Maynard Keines e Bretton Woods, e antes da Guerra Civil de Espanha de 1936-1939), a qual criou na Administração Geral dos C.T.T. um Fundo de Cauções, destinado a indemnizar quaisquer prejuízos provenientes de alcance ou de peculato dos exactores e demais funcionários que tenham à sua responsabilidade dinheiro, correspondência ou materiais.

    As disposições dos artigos 313.º a 327.º eram aplicáveis aos funcionários dos Serviços de Fiscalização da Inspecção Geral das Actividades Económicas, conforme estabeleciam o artigo 19.º, § 3.º, do Decreto-Lei n.º 35.809, de 16-08-1946 e artigo 54.º do Decreto-Lei n.º 41.204, de 27-07-1957. 

    Código Penal de 1982

    Neste novo Código, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, entrado em vigor em 1 de Janeiro de 1983 (artigo 2.º), o crime de peculato surge inserto no Livro II – Parte Especial – Título V – Dos crimes contra o Estado – Capítulo IV – Dos crimes cometidos no exercício de funções públicas.

    Neste capítulo, imediatamente a seguir à Secção I, versando “Da corrupção”, surge a Secção II, com a epígrafe “Do peculato”, abrangendo o peculato, peculato de uso, peculato por erro de outrem e participação económica em negócio (artigos 424.º, 425.º, 426.º e 427.º).   

    Sob a epígrafe “Peculato” estabelecia o

                                                            Artigo 424.º

1. O funcionário que, ilicitamente, se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer outra coisa móvel, pública ou particular, que lhe foi entregue, estiver na sua posse ou lhe for acessível em razão das suas funções, será punido com prisão de 2 a 8 anos e multa até 100 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2. Se o funcionário der de empréstimo, empenhar, ou, de qualquer forma, onerar quaisquer objectos referidos no número anterior, com a consciência de prejudicar ou poder prejudicar o Estado ou o seu proprietário, será punido com prisão até 3 anos e multa até 50 dias.

    Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, 3.ª edição, 1986, pág. 558 e 4.ª edição, 1988, pág. 739, dizia: “Trata-se de um crime qualificado, de furto ou de abuso de confiança. Além de ter necessariamente como agente um funcionário, o objecto do crime tem de estar na posse deste, ou ser-lhe acessível em razão das suas funções”.

    Do mesmo modo na anotação ao artigo 375.º, na 12.ª edição, 1998, pág. 948 e mais recentemente, na 17.ª edição, 2005, pág. 1058.

    O conceito de “funcionário” no novo Código Penal de 1982

    Como se colhe das Actas das Sessões da Comissão Revisora do Projecto da Parte Especial do Código Penal, concretamente, na Acta da 24.ª relativa à sessão de 24-06-1966, in BMJ n.º 290, págs. 96/97, estando em discussão o artigo 466.º, com a epígrafe “Conceito de funcionário”, disse o Autor do Anteprojecto curar-se no artigo de dar um conceito de funcionário público. Em vez de a respeito de cada tipo de crime se acrescentar uma definição conceitual de funcionário público, achou-se melhor técnica legislativa estabelecer num artigo final tal conceito. Assinalou que “Como base deve admitir-se que o conceito válido para o Código Penal não tem de decalcar ou sequer assentar noutros conceitos estabelecidos para outros domínios de direito. A Comissão terá sobretudo de precaver-se contra a existência de eventuais lacunas”.

    Após intervenção do Prof. Afonso Queiró, por sugestão do Autor do Anteprojecto, por se levantar a questão de saber se o n.º 1 abrangia os membros dos organismos corporativos e das actividades económicas, foi proposta nova redacção para a alínea c), sendo aprovada por unanimidade a seguinte:

    c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntário ou obrigatoriamente, tenha sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhe funções em organismos corporativos ou instituições de previdência ou nelas participe.

    Na Secção VI, relativa a “Disposições gerais”, o conceito de funcionário é delineado no único artigo 437.º, inspirado no artigo 327.º do Código Penal de 1886, o qual, sob a epígrafe (Conceito de funcionário), dando uma definição ampla de funcionário para efeitos penais, estabelecia:

                                                         Artigo 437

                                             

    1. Para efeitos da lei penal, a expressão funcionário abrange:

    a) O funcionário civil;

    b) O agente administrativo;

    c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tenha sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhe funções em organismos de utilidade pública ou nelas participe.

     2. A equiparação a funcionário, para efeitos da lei penal, de quem desempenhe funções políticas, governativas ou legislativas, será regulada por lei especial.

    O Código Penal de 1982, como se viu, entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1983, mas face a críticas tecidas relativamente à incriminação e à punição dos actos de corrupção, o legislador procurou alterar algumas disposições e colmatar algumas lacunas.

    Assim, pela Lei n.º 12/83, de 24 de Agosto (Diário da República, I Série, n.º 194, de 24 de Agosto), foi conferida ao Governo autorização para alterar os regimes em vigor em quatro áreas, de que ora importa destacar a da alínea b) do artigo 1.º que dizia:

    “Em matéria de delitos de corrupção, tráfico de influências e outras fraudes que ponham em causa a moralidade da Administração Pública”

    e a da alínea d) do mesmo artigo 1.º, que dizia:

    “Em matéria de responsabilidade dos membros dos órgãos do Estado, dos agentes da administração central, regional e local e dos órgãos das empresas do sector empresarial do Estado”.

    O sentido da autorização nestes dois planos era dado em bloco no artigo 4.º, que na alínea b) dizia:

   b) Quanto aos delitos de corrupção, tráfico de influências e outras fraudes que ponham em causa a moralidade da Administração Pública, bem como a efectivação da responsabilidade dos agentes públicos, combater em geral a fraude e moralizar os comportamentos, efectivando a responsabilidade penal e civil dos agentes administrativos em adequação ao grau da sua responsabilidade funcional”.

    Emergindo desta autorização legislativa, o Decreto-Lei n.º 371/83, de 6 de Outubro, “na linha de uma política de pragmático combate à corrupção e outras fraudes e de moralização dos comportamentos administrativos” alargou o conceito estrito de funcionário dado pelo Código Penal a funções cujo paralelismo, do ponto de vista da política criminal, o legislador entendeu ser de todo o ponto evidente.

    

    Depois de no n.º 1 do artigo 4.º estabelecer que “Para efeitos do presente diploma, a expressão funcionário tem o alcance fixado pelo n.º 1 do artigo 437.º do Código Penal”, o n.º 2 dispõe:

    “Para os mesmos efeitos, e ainda para os efeitos dos artigos 420.º a 423.º do Código Penal, são equiparados a funcionários, os titulares dos órgãos e os funcionários da administração autárquica regional e local ou de institutos públicos e os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público, e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos”.

    Estabelece o Artigo 5.º:

    A equiparação prevista no n.º 2 do artigo antecedente faz igualmente incorrer os equiparados: (…)

    e) Nos crimes de peculato previstos e punidos pelos artigos 424.º, 425.º e 426.º do Código Penal. (…).

    O Tribunal Constitucional veio a pronunciar-se pela inconstitucionalidade do diploma pelo Acórdão n.º 864/96, de 27 de Junho de 1996, proferido no processo n.º 439/94, da 2.ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, n.º 260, de 9 de Novembro de 1996 e BMJ n.º 458, pág. 74, decidindo: “Julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 4.º, n.º 1 e 2, e 5.º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 371/83, de 6 de Outubro, por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição”.

    Foi considerado não estar o Governo legitimado a abranger nas novas normas incriminadoras os trabalhadores das empresas públicas, como era então a Caixa Geral de Depósitos (a equiparação feita no diploma a funcionário público não estava abrangida pela autorização administrativa).

    Este acórdão do Tribunal Constitucional é convocado no acórdão do STJ de 12-02-1998, chamado à colação pela arguida, ora requerente, BB no artigo 8.º do requerimento para abertura de instrução, a fls. 1017. (O acórdão está publicado na CJSTJ 1998, tomo 1, pág. 206).

    Já antes, nos acórdãos de 9 de Abril de 1997, proferido no processo n.º 161/96-3.ª, in BMJ n.º 466, pág. 380, e de 16 de Outubro de 1997, proferido no processo n.º 365/97-3.ª, in CJSTJ 1997, tomo 3, pág. 206, não fora aplicado o diploma face à declarada inconstitucionalidade orgânica.

    Este diploma de 1983 veio a constituir a fonte do n.º 2 do artigo 386.º no Código Penal revisto de 1995. 

    Código Penal de 1995

   

    Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março (rectificado pela Declaração de rectificação n.º 73-A/95, Diário da República, I Série-A, n.º 136, de 14 de Junho de 1995, que no concreto e no que ora interessa, limitou-se a substituir na parte final do n.º 1 do artigo 375.º, “forca” por “força”), que procedeu à terceira alteração ao Código Penal, entrado em vigor em 1 de Outubro de 1995 (artigo 13.º).

    O peculato ficou integrado no Livro II – Parte especial, Título V – Dos crimes contra o Estado, Capítulo IV – Dos crimes cometidos no exercício de funções públicas, Secção II – Do peculato, abrangendo o peculato (artigo 375.º), o peculato de uso (artigo 376.º) e participação económica em negócio (artigo 377.º).

    E na Secção VI – Disposição especial – ficou apenas o conceito de funcionário no artigo 386.º.

    Estabelece o

 

                                                        Artigo 375.º:

 

    1 - O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

    2 - Se os valores ou objectos referidos no número anterior forem de diminuto valor, nos termos da alínea c) do artigo 202.º, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

    3 - Se o funcionário der de empréstimo, empenhar ou, de qualquer forma, onerar valores ou objectos referidos no n.º 1, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

    (O preceito tem-se mantido inalterado nas subsequentes 31 alterações, que entretanto, até 30 de Dezembro de 2014 – Lei n.º 82/2014 – foram sendo introduzidas no Código Penal).

    Os n.º s 1 e 3 correspondem, com alterações ligeiras ao artigo 424.º do Código Penal de 1982 (no n.º 1, substituição do advérbio “ilicitamente” por “ilegitimamente”; a pena deixou de ser compósita e a prisão baixa no mínimo de 2 anos para 1 ano e no n.º 3, acrescento da referência a “valores”; as penas de prisão e multa surgem agora em alternativa, para além da exclusão dolo específico, com a eliminação da referência à “consciência de prejudicar ou poder prejudicar o Estado ou o seu proprietário”, contendo o n.º 2 matéria nova.

    Estabelece o

 

                                                        Artigo 386.º

    1 – Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:

    a) O funcionário civil;

    b) O agente administrativo; e

    c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.

    2 – Ao funcionário são equiparados os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos.

    3 – A equiparação a funcionário, para efeito da lei penal, de quem desempenhe funções políticas é regulada por lei especial.

    (O preceito foi entretanto alterado por três vezes, em 2001, 2007 e 2010).

    A inovação consistiu na introdução do n.º 2.

    A sua fonte, como já referido, foi o artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 371/83, de 6 de Outubro (concretamente, segunda parte do preceito, a partir de “gestores (…) serviços públicos”), o qual, ao tempo da publicação do Decreto-Lei n.º 48/95, em 15 de Março de 1995, ainda não fora declarado inconstitucional, o que se verificou, como vimos, em 27 de Junho de 1996, mas certo é que subsistiu e ainda se mantém na redacção actual.

    O sucessivo alargamento da expressão “funcionário”.

    O artigo 386.º do Código Penal (originário de 1995) foi alterado por três vezes, sempre numa lógica de acrescentamento, alargamento, de adição, extensão das noções precedentes.

                                                Primeira alteração – 2001

 

    A primeira alteração foi introduzida pela Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro (publicada no Diário da República, I Série - A, n.º 276, de 28 de Novembro de 2001), entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2002 (11.ª alteração ao Código Penal, alterando os artigos 335.º, 372.º, 373.º e 386.º e ainda primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 34/87, de 16 de Julho e sétima alteração ao Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, aqui introduzindo no regime das infracções anti-económicas a previsão de corrupção no sector privado – artigos 41.º-B (passiva) e 41.º-C (activa), entretanto revogados pelo artigo 11.º da Lei n.º 20/2008, de 21 de Abril).

    Esta Lei surgiu na sequência da Acção Comum 98/742/JAI, de 22 de Dezembro de 1998, adoptada pelo Conselho com base no artigo K.3 do TUE, relativa à corrupção no sector privado, tendo em conta o protocolo à Convenção relativa à Protecção dos Interesses Financeiros das Comunidades Europeias, de 27 de Setembro de 1996, do segundo protocolo à mesma Convenção de 19 de Junho de 1997 e a Convenção relativa à Luta contra a Corrupção de Funcionários das Comunidades ou dos Estados-membros da União Europeia, adoptada pelo Conselho em 26 de Maio de 1997, que definiu a corrupção passiva - artigo 2.º - e activa - artigo 3.º - no sector privado e da ratificação da Convenção Penal sobre a Corrupção, do Conselho da Europa, feita em Estrasburgo em 27 de Janeiro de 1999, e assinada a 30 de Abril de 1999 (aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 68/2001, de 20 de Setembro de 2001, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 56/2001, assinado em 16 de Outubro de 2001 e referendado no dia seguinte, publicados no Diário da República, I – A Série, n.º 249, de 26 de Outubro de 2001), alterando o regime jurídico dos crimes de tráfico de influência e de corrupção.

    (A referida Acção Comum viria a ser revogada pelo artigo 8.º da Decisão-Quadro 2003/568/JAI do Conselho, de 22 de Julho de 2003).

    Como se alcança do relatório da Proposta de Lei n.º 91/VIII (Diário da Assembleia da República, Série II-A, de 18-07-2001) “Por força do disposto na Convenção Relativa à Luta contra a Corrupção de Funcionários das Comunidades dos Estados Membros, adoptada pelo Conselho em 26 de Maio de 1997, amplia-se o conceito de funcionário de modo que ele passe a abranger os magistrados do Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas, todos os funcionários da União Europeia e, ainda, os funcionários dos outros Estados Membros, quando o crime apresenta alguma conexão com o direito penal português, por ter sido cometido total ou parcialmente no território português”.

    A Lei, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2002, conforme o artigo 4.º, procedeu à décima primeira alteração ao Código Penal – artigos 335.º, 372.º, 373.º e 386.º –, primeira alteração à Lei n.º 34/87, de 16 de Julho – artigos 3.º, 16.º, 17.º, 18.º e 19.º – e

o Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, introduzindo no regime das infracções anti-económicas a previsão de corrupção no sector privado – artigos 41.º - B (passiva) e 41.º - C (activa), entretanto revogados pelo artigo 11.º da Lei n.º 20/2008, de 21 de Abril.

    O preceito passou a estabelecer:

                                                                   Artigo 386.º

1 – ………..………………………………………………………………………………

2 – ……..………………………………………………………………………………….

3 – São ainda equiparados ao funcionário, para efeitos do disposto nos artigos 372.° a 374.º:

    a) Os magistrados, funcionários, agentes e equiparados da União Europeia, independentemente da nacionalidade e residência;

    b) Os funcionários nacionais de outros Estados membros da União Europeia, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português;

    c) Todos os que exerçam funções idênticas às descritas no n.º 1 no âmbito de qualquer organização internacional de direito público de que Portugal seja membro, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português;

4 – (Anterior n.º 3).

    Esta nova equiparação, com resulta do texto do n.º 3, não abrange o peculato, sendo feita apenas para os crimes de corrupção passiva e activa.

    A mesma Lei n.º 108/2001, modificando o Código Penal, alterou a redacção dos artigos 372.º (corrupção passiva para acto ilícito) e 373.º (corrupção passiva para acto lícito), depois alterados em 2010.

                                               A segunda alteração - 2007

     A Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro (23.ª alteração ao Código Penal e republicação), aditou uma nova alínea ao n.º 3alínea d) – passando o preceito a estabelecer:

                                                         Artigo 386.º

 

1 – ………………………………………………………………………………………..

2 – ………………………………………………………………………………………...

3 – São ainda equiparados ao funcionário, para efeitos do disposto nos artigos 372.º a 374.º:

     a) ………………………………………………………………………………………

     b) ……..……………………………………………………………………..…………

     c) …………..…………………………………………………………………………..

     d) Todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos.

4 – …..…..…………………………………………..……………………………………

     A equiparação atinge igualmente apenas os crimes de corrupção.

                                                A terceira alteração – 2010

     A Lei n.º 32/2010, de 2 de Setembro (Procedeu à 25.ª alteração ao Código Penal – alterando os artigos 111.º, 118.º, 372.º, 373.º, 374.º e 386.º e aditando os artigos 278.º-A, 278.º-B, 374.º-A, 374.º- B e 382.º-A do Código Penal e revogando o artigo 9.º-A da Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro), entrando em vigor em 1 de Março de 2011, aditou uma nova alínea ao n.º 1, passando a estabelecer:

                                                         Artigo 386.º

1 – …………………………..…….………………………………………………………

   a) …………………….………………………………………………………………….

   b) ……………………………….……………………………………………………….

   c) Os árbitros, jurados e peritos;

   d) [Anterior alínea c)].

2 – ……..…….……………………………………………………………………………

3 – ………………………………….……………………………………………………..

4 – ………………………………………………………………..……………………..

    É a seguinte a redacção actual, com as extensões de 2001, 2007 e 2010:

 

                                                         Artigo 386.º

                                               (Conceito de funcionário)

1 – Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:

a) O funcionário civil; (1982)

b) O agente administrativo; (1982)

c) Os árbitros, jurados e peritos; (2010)

d) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar. (1982)

2 – Ao funcionário são equiparados os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos. (1995)

3 – São ainda equiparados ao funcionário, para efeitos do disposto nos artigos 372.° a 374.º: (2001)

a) Os magistrados, funcionários, agentes e equiparados da União Europeia, independentemente da nacionalidade e residência;

b) Os funcionários nacionais de outros Estados membros da União Europeia, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português;

c) Todos os que exerçam funções idênticas às descritas no n.º 1 no âmbito de qualquer organização internacional de direito público de que Portugal seja membro, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português; (2001)

d) Todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos. (2007)

4 – A equiparação a funcionário, para efeito da lei penal, de quem desempenhe funções políticas é regulada por lei especial. (1982/1995)

    O intróito do n.º 1 e alíneas a), b) e d) e o n.º 4 actual correspondem ao artigo 437.º do Código Penal de 1982, com ligeiras alterações introduzidas em 1995.

    O n.º 2 foi introduzido em 1995, tendo por fonte o aludido Decreto-Lei n.º 371/83.

    O n.º 3 e alíneas a), b) e c) foram introduzidas em 2001.

    A alínea d) do n.º 3 foi aditada em 2007.

    E a alínea c) do n.º 1 foi aditada em 2010.

     

    De anotar a nova redacção dada aos artigos 372.º (Recebimento indevido de vantagem), 373.º (Corrupção passiva) e 374.º (Corrupção activa) e o aditamento dos artigos 374.º-A (Agravação) e 374.º B (Dispensa ou atenuação de pena) introduzidas pela Lei n.º 32/2010, de 2 de Setembro.

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    Vista a evolução legislativa respeitante à definição dos conceitos de peculato e funcionário, vejamos a

 

    Legislação avulsa onde é reportado o crime de peculato.

    A Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, definiu os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, dando cumprimento ao previsto no n.º 2 do artigo 437.º, na versão originária do Código Penal de 1982.

    Furtado dos Santos, Código Penal (Anotado), Petrony, 1983, perguntava porque não fora feita a equiparação a que aludia o n.º 2 do artigo 437.º, acrescentando: “E quando virá a legislação especial?”.

    Como afirmámos em despacho proferido em 29 de Abril de 2011, no âmbito do processo de única instância n.º 7/10.0YGLSB.S1, em que era denunciado o então Primeiro-Ministro, à data no exercício de funções, e em que se declinou a competência funcional deste Supremo Tribunal de Justiça para conhecimento do objecto de processo movido por uma jornalista de um canal de televisão, por alegado crime de difamação por factos ocorridos em 21 de Abril de 2009, considerando competente para o efeito a primeira instância:

    “O diploma em causa constitui a solução tardia, volvidos onze anos, sobre a imposição legiferante de 1976, contida no n.º 3 do artigo 120.º da CRP, cumprindo-se então a obrigação de elaboração da tutela normativa dos crimes de responsabilidade, evitando a continuação de um problema de inconstitucionalidade por omissão, pelo não cumprimento de um dever concreto jurídico-constitucionalmente imposto.

    A injunção cumpriu-se com a definição de cargos políticos, criação de catálogo de crimes de responsabilidade, definição de sanções que lhes são aplicáveis e os respectivos efeitos, para além de normas adjectivas e definição de responsabilidade civil emergente do novo tipo criminal.

    Mas com a lei em causa resolveu-se uma outra lacuna existente há mais de quatro anos.

    Efectivamente, com a lei deu-se cumprimento a uma necessidade de regulação imposta pelo n.º 2 do artigo 437.º do Código Penal, logo na versão originária de 1982, que cometia a equiparação a funcionário de titulares de funções políticas.

    De acordo com o artigo 437.º (actual artigo 386.º) do Código Penal, define-se o âmbito da expressão funcionário para efeitos da lei penal.

    Especificava o n.º 2 que “A equiparação a funcionário, para efeitos da lei penal, de quem desempenhe funções políticas, governativas ou legislativas, será regulada por lei especial”.

    E estabelece o actual n.º 4 do artigo 386.º que “A equiparação a funcionário, para efeitos da lei penal, de quem desempenhe funções políticas é regulada por lei especial”.

    A remissão que este n.º 4 faz refere-se à citada Lei n.º 34/87, de 16-07”.

    O peculato é um crime de responsabilidade dos titulares de cargos políticos.

    Nesta lei especial, o crime de peculato está previsto no artigo 20.º, sendo necessário nos termos do n.º 2, actuar “com consciência de prejudicar ou poder prejudicar o Estado ou o seu proprietário”, segmento, como vimos, abolido, não presente, no texto do actual artigo 375.º desde 1 de Outubro de 1995.

    Donde poder concluir-se que o crime de peculato, em sede de crime de responsabilidade, é mais restrito que o comum, o que não faz sentido, privilegiando-se o cometimento do crime punido pela lei especial, com a exigência de dolo específico.

    Veja-se, a propósito, Crime de peculato, de José António Barreiros (2013), a págs. 129/130, com referência ao acórdão --- de 28-05-2008, que levou a absolvição.

    O diploma especial de 1987 foi alterado por cinco vezes, sendo a primeira alteração operada pela Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2002 (introduziu a 11.ª alteração ao Código Penal, alterando o artigo 386.º, e ainda o Decreto-Lei n.º 34/87 e operando a sétima alteração ao Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, que modificou pelo artigo 2.º, os artigos 3.º, n.º 2, 16.º, 17.º, 18.º e 19.º).

 

    A Lei n.º 30/2008, de 10 de Julho, pelo artigo 24.º, alínea a), procedeu à 2.ª revisão, revogando as disposições da Lei de 1987, na parte respeitante aos Ministros da República (nomenclatura substituída por Representante da República), e pelo artigo 10.º, prevendo a sujeição do Representante da República, como titular de cargo político, ao respectivo regime jurídico para efeitos de crimes de responsabilidade.

 

    Pela Lei n.º 41/2010, de 3 de Setembro, entrada em vigor 180 dias após a data da publicação, foram alterados os artigos 1.º, 16.º, 17.º, 18.º e 19.º (agravação) e aditados os artigos 3.º-A (definição de Altos cargos públicos), 18.º-A (Violação de regras urbanísticas) e 19.º-A (dispensa ou atenuação de pena). 

    Pela Lei n.º 4/2011, de 16 de Fevereiro, foi alterado o artigo 19.º, n.º 2.

    Finalmente, a Lei n.º 4/2013, de 14 de Janeiro, alterou o artigo 17.º, n.º 2.

    Na versão actual, dada pela Lei n.º 41/2010, de 3 de Setembro, estabelece o artigo 1.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho: «A presente lei determina os crimes da responsabilidade que titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos cometam no exercício das suas funções, bem como as sanções que lhes são aplicáveis e os respectivos efeitos».

 

    Na «Definição genérica» do artigo 2.º da mesma Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, «Consideram-se praticados por titulares de cargos políticos, no exercício das suas funções, além dos como tais previstos na presente lei, os previstos na lei penal geral, com referência expressas a esse exercício ou os que se mostrarem terem sido praticados, com flagrante desvio ou abuso das funções ou com grave violação dos inerentes deveres».

    Sendo o agente do crime titular de cargo político rege para o crime de peculato o artigo 20.º, para o crime de peculato de uso, o artigo 21.º e para o peculato por erro de outrem, o artigo 22.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho.

    Entretanto, a Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro, que estabeleceu medidas de combate à corrupção e criminalidade económica e financeira, abrangeu no artigo 1.º, n.º 1, alínea a), o crime de peculato nas acções de prevenção previstas no diploma, presumindo-se deferida à Polícia Judiciária em todo o território a competência exclusiva para a respectiva investigação – então, artigo 4.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de Setembro, na redacção dada pelo artigo 10.º daquela Lei.

  

    A Lei n.º 21/2000, de 10 de Agosto, que aprovou a Lei da organização da investigação criminal, incluiu o crime de peculato – artigo 4.º, alínea s) – nos casos de investigação da competência reservada da Polícia Judiciária. (Alterada pela Lei n.º 305/2002, de 13 de Dezembro, mas sem influência quanto ao concreto ponto).

 

    Na Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto, que estabelece o regime jurídico das acções encobertas para fins de prevenção e investigação criminal, o crime de peculato constava do artigo 2.º, alínea m).

   Com a primeira alteração introduzida pela Lei n.º 60/2013, de 23 de Agosto, o crime de peculato passou a constar da alínea n).

    A Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económica financeira (entretanto alterada pela Lei n.º 19/2008, de 21-04, Decreto-Lei n.º 317/2009, de 30-10, Decreto-Lei n.º 242/2012, de 07-11 e Lei n.º 60/2013, de 23-08), no artigo 1.º estabelece um regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado, incluindo na alínea d) o crime de peculato.

    Com a Lei n.º 11/2004, de 27 de Março, que introduziu no Código Penal o crime de branqueamento (artigo 368.º-A), o peculato passou a integrar um dos vários ilícitos típicos antecedentes previstos no n.º 1, em função da expressão “e demais infracções referidas no n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro”, sendo que tal Lei, como vimos, no artigo 1.º, n.º 1, alínea a), inclui o crime de peculato.

 

    A Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto, que em cumprimento da Lei-Quadro de Política Criminal – Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio – definiu os objectivos de política criminal para o biénio 2007/2009, entre os crimes de prevenção prioritária e os crimes de investigação prioritária, incluiu, respectivamente, nos artigos 3.º, alínea e) e 4.º alínea e) o crime de peculato.

    O mesmo aconteceu na sucessora Lei n.º 38/2009, de 20 de Julho, que definiu os objectivos de política criminal para o biénio 2009-2011, igualmente incluindo nos artigos 3.º, alínea e) e 4.º, alínea e), o crime de peculato.

    A Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto (Diário da República, I Série, n.º 165, de 27-08), que aprovou a Lei de Organização da Investigação Criminal incluiu a investigação do peculato nos casos de competência reservada da Polícia Judiciária, não podendo ser deferida a outros órgãos de polícia criminal - artigo 7.º, n.º 2, alínea j).

    Noutra perspectiva, a já referida Lei n.º 32/2010, de 2 de Setembro, que procedeu à 25.ª alteração ao Código Penal, alterou o artigo 118.º, n.º 1, alínea a), alargando o prazo de prescrição do procedimento criminal de 15 anos a vários crimes, entre os quais o do artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal.

    A nível processual, o crime de peculato integra o elenco dos crimes que determinam a elevação dos prazos de duração máxima da prisão preventiva – artigo 215.º, n.º 2, alínea d) do CPP, com a redacção introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.

    A nível de direito internacional, refere o peculato a Convenção contra a Corrupção, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 31 de Outubro de 2003, aprovada em 19-07-2007 pela Resolução da Assembleia da República n.º 47/2007 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 97/2007, de 21 de Setembro, in Diário da República, I Série, n.º 183, de 21 de Setembro de 2007, aí se definindo no artigo 2.º, alínea c), o «Funcionário de uma organização internacional pública», como um funcionário internacional ou qualquer pessoa autorizada por essa organização a agir em seu nome. 

    No Capítulo III dedicado a “Criminalização, detecção e repressão”, com a epígrafe “Peculato, apropriação ilegítima ou outro desvio de bens por um agente público”, estabelece o

                                                             Artigo 17.º

    Cada Estado Parte deverá adoptar as medidas legislativas e outras que se revelem necessárias para classificar como infracções penais, quando praticados intencionalmente por um agente público, em proveito próprio, de outra pessoa ou entidade, a apropriação ilegítima ou o uso, para fins alheios àqueles que se destinam, de quaisquer bens, fundos ou valores públicos ou privados, ou qualquer outra coisa de valor que lhe foram entregue em razão das suas funções.

    E sob a epígrafe “Peculato no sector privado”, estabelece o

 

                                                             Artigo 22.º

 

    Cada Estado Parte deverá considerar a adopção de medidas legislativas e de outras que se revelem necessárias para classificar como infracções penais, quando praticadas intencionalmente no decurso de actividades económicas, financeiras ou comerciais, a apropriação ilegítima por parte de uma pessoa que, a qualquer título, dirija uma entidade do sector privado ou nele trabalhe, de quaisquer bens, fundos ou valores privados ou qualquer outra coisa de valor que lhe foram entregues em razão das suas funções.

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     DOUTRINA

     Vejamos os contributos da Doutrina relativamente aos contornos dos conceitos de peculato e funcionário, a par das sucessivas formulações legais, começando pelo crime de peculato.

     No domínio do Código Penal de 1886

     Luís Osório da Gama e Castro de Oliveira Baptista, em Notas ao Código Penal Português, segunda edição, volume II, Coimbra Editora, Limitada, 1923, analisa este crime, numa primeira abordagem, no intróito do Capítulo XIII, a págs. 575/6, e depois, mais à frente, a págs. 668 a 678.

     Afirma a págs. 575: “Elementos comuns a estes crimes [dos empregados públicos no exercício das suas funções] são: a violação do dever de regular desempenho da função por parte do encarregado de função pública e o dano ou perigo daquela violação resultante para um interesse que a lei julgou digno de protecção”.

     O interesse ofendido ou ameaçado por meio daquela violação pode referir-se a uma relação entre o empregado e o Estado, o que acontece, i.a., no caso do artigo 313.º.

     Tais crimes podem dividir-se em crimes próprios e impróprios. Crimes próprios são aqueles que protegem um interesse que só pelo empregado pode ser ofendido – prevaricação, corrução, etc. – Crimes impróprios são aqueles que protegem um interesse que pode ser violado por qualquer pessoa, mas que assumem um carácter de especial gravidade quando cometidos por empregado público no exercício das suas funções – assim a concussão e o abuso dos empregados públicos.

     Esta distinção tem importância para o caso de no mesmo crime cooperarem particulares e empregados públicos.

     Na formação das diversas secções do Capítulo o legislador tomou por base não o interesse especial ofendido ou ameaçado pela violação do dever do funcionário, mas a qualidade do dever que o funcionário ofendeu.

    E assim – pág. 576 – o dever de honestidade foi o fundamento dos crimes de peculato e concussão.

 

     A Secção VI intitulada como “Peculato e concussão” compreendia os seguintes crimes:

     Desviar coisas confiadas – artigo 313.º

     Extorquir dinheiro para si – artigo 314.º

     Impor ou receber contribuições ilegais – artigo 315.º

     Levar emolumentos ou salários não devidos – artigo 316.º

     Ter interesse em negócio de que estiver encarregado – artigo 317.º

     Os crimes previstos na presente secção ligam-se porque todos têm por fim assegurar a honestidade dos empregados públicos.

     Citando P. Sousa, dizia, a págs. 668, que “Peculato é propriamente o crime daqueles que desviam e desencaminham os dinheiros públicos”.

     É o crime previsto no art. 313.º. Ele pressupõe que a coisa está na posse do agente do crime ou que tem um direito a havê-la. O crime consiste em desencaminhar.

     A págs. 670, refere ainda Luís Osório: “Este artigo protege o interesse do Estado em que os seus empregados e encarregados sejam honestos, não abusando, descaminhando-as, das coisas que lhes são confiadas naquelas qualidades.

     Objecto específico da tutela penal com respeito ao delito de peculato é o interesse público relativo  à segurança da entrega fiduciária de bens móveis públicos ou privados, feita a empregados públicos em razão das suas funções; e não o mero interesse económico da administração pública que o peculato pode não lesar.

     Este crime corresponde ao crime de abuso de confiança e, em parte, é uma espécie dele, espécie punida mais severamente, por se ofender o sobredito interesse do Estado na honestidade dos seus empregados.

     Nestas condições o crime foi bem colocado neste capítulo, mas o artigo pune ainda no § 5.º um crime que não é cometido por empregado público e por isso acha-se ele deslocado neste capítulo”.

     As fontes do artigo foram a Ordenação, os Códigos Penais Brasileiro, Francês e das Duas Sicílias (o § 4.º foi copiado do artigo 217.º deste último).

     A págs. 672 afirma ser indiferente que o dinheiro, títulos de crédito, ou efeitos móveis, que constituem o objecto da acção, pertençam ao Estado ou a particulares.

      

     Ao tempo o conceito de empregado público estava definido no artigo 327.º, anotando-se que o § 3.º do artigo 313.º alargava para efeito de aplicação do corpo do artigo a noção de empregado público, de maneira a abranger as pessoas que forem constituídas pela autoridade legítima, depositários, cobradores e recebedores. 

     Isto mesmo foi tido em conta no acórdão do STJ de 6 de Janeiro de 1971, processo n.º 33 304, BMJ n.º 203 (e não 209), pág. 119, onde se decidiu que a previsão do artigo 313.º do Código Penal abrange dinheiro, títulos de crédito ou efeitos móveis pertencentes a serviços públicos ou a corpos administrativos. O conceito de empregado público, para efeitos penais, é o que está contido no artigo 327.º do Código Penal, abrangendo os cobradores dos transportes colectivos explorados pelas câmaras municipais, adiantando que “mesmo que assim não seja entendido, sempre cairíamos no artigo 313.º, através do § 3.º, que o torna aplicável «a quaisquer pessoas», desde que constituídas pela autoridade legítima depositários, cobradores ou recebedores, relativamente àquilo de que precisamente forem depositários, cobradores ou recebedores.

 

     Cavaleiro Ferreira, Revista da Ordem dos Advogados (ROA), Ano 4.º, 1944, n.º 3 e 4 (3.º e 4.º trimestres), Natureza do crime de peculato. O peculato como crime patrimonial e como violação dos deveres de função. Eficácia do caso julgado de decisões não penais em processo penal, correspondendo a resposta a consulta em caso em que em questão estava o disposto no § 3 do artigo 313.º, começa por afirmar:

     “Semelha, por um lado, um abuso de confiança ou furto. Tem, por outro lado, semelhança com um crime de abuso de funções públicas. E a verdade é que participa de ambos. Não basta, porém, defraudar ou delapidar o património alheio, mesmo o património do Estado, para cometer o crime de peculato. É preciso que o agente do furto ou abuso de confiança se encontre, quanto ao objecto material do crime, e perante o Estado, em certa posição jurídica.

     E não basta também abusar das próprias funções públicas, cometer qualquer facto punível no exercício destas, para que surja a incriminação por peculato. É indispensável que o abuso ou falta de cumprimento das obrigações funcionais seja meio ou forma de proceder, conducente a determinado resultado: a violação de um direito do Estado sobre cousas móveis”.

     Distingue os dois elementos ou aspectos, entre si correlacionados, em que se desdobra o peculato: o peculato, enquanto crime patrimonial, e o peculato enquanto abuso duma função pública. 

     No seu conteúdo patrimonial o peculato reconduz-se ao furto ou abuso de confiança. (…) As coisas, objecto do crime, devem encontrar-se em poder do infractor, em razão, precisamente, das suas atribuições legais, da sua função dentro da Administração. É a salvaguarda do direito do Estado que este confia ao empregado e é esse o direito do Estado sobre a coisa que ele ofende com o peculato.

     Enquanto violação dos deveres de função observa: “A ofensa dum interesse patrimonial do Estado, quer consista na propriedade, quer na posse do Estado sobre coisas particulares, não constitui o crime de peculato se não for realizado por meio da violação dum dever funcional. Será antes e ainda abuso de confiança ou furto. É a violação da relação de serviço público que deve constituir o modo de execução da lesão do interesse do Estado. E não se trata de violação de qualquer dever de serviço. A obrigação de serviço está em íntima ligação com o objecto do crime. Quer dizer, há-de tratar-se duma obrigação de serviço que tenha por conteúdo precisamente o direito ou o interesse do Estado sobre a coisa, objecto do crime. O Estado exerce os seus direitos através dos seus órgãos ou funcionários. O exercício da função que directamente diz respeito à tutela do direito do Estado é que especifica o modo de execução do crime patrimonial de peculato.

     Se se tratar da violação dum dever de função que não tenha essas características, não integra os elementos da incriminação do art. 313.º.

     O objecto jurídico do peculato é duplo: interesse patrimonial do Estado, por um lado, sob a forma de ofensa à propriedade do Estado ou ofensa à posse legítima do mesmo Estado sobre coisas particulares (que o Código Penal Italiano denomina de «malversazione»); interesse do Estado, por outro lado, à fidelidade dos seus funcionários.

     Este último interesse é um interesse instrumental em relação ao primeiro.

     Constitui objecto jurídico, autonomamente considerado, de vários crimes de abuso de funções, «verbi gratia» da desobediência. Constitui mero interesse-meio no peculato.

     Este último crime, como crime patrimonial, assenta na lesão do interesse patrimonial do Estado, seja qual for a forma que ele revista: propriedade ou posse legítima. A violação deste interesse patrimonial, por si, só dá lugar ao furto ou abuso de confiança.

     A mesma violação realizada por meio da ofensa duma relação de serviço directamente ligada à tutela daquele primeiro interesse constitui o crime de peculato.

     Conclui, a págs. 69: “O crime de peculato é um crime patrimonial porque lhe é essencial a ofensa dum direito do Estado sobre coisas móveis, quer se trate do direito de propriedade do próprio Estado, quer dum direito de posse sobre coisas dos particulares.

     O elemento essencial que caracteriza o peculato, no seu confronto com os demais crimes patrimoniais, consiste na violação duma específica relação de obrigação e precisamente na violação duma obrigação de serviço em que se exterioriza o exercício pelo empregado público do direito do Estado.

     E assim, não haverá peculato se as coisas objecto do crime forem particulares e sobre elas não incidir qualquer direito do Estado.

     E não existirá crime de peculato se o agente não for empregado público ou a ele equiparado; ou sendo-o, não cometer o crime em razão das suas funções, isto é, violando directamente a relação de serviço, em virtude da qual o agente, em nome do Estado, exerce sobre a coisa alheia dos particulares qualquer direito de administração, de guarda ou posse legítima. Esta posse não é a mera detenção material. É a exteriorização dum interesse legítimo do Estado. Não há crime de furto quando a subtracção é de coisa que pertença a outrem. Não há peculato quando a ofensa patrimonial não fira um interesse do Estado às coisas que são objecto do crime”.

     Acrescenta ainda: “Desta forma, não subsistirá o peculato, podendo verificar-se porventura qualquer outro crime patrimonial, se faltar o objecto jurídico específico da tutela patrimonial do Estado. Não basta abusar das próprias funções públicas lesando o património alheio, desde que sobre este não tenha quaisquer direitos a Administração.

     Verificar-se-á em tal hipótese um crime de furto ou de abuso de confiança agravado pela qualidade do agente, no qual o ofendido é o proprietário das coisas. No peculato o ofendido tem de ser sempre, também, no aspecto patrimonial, o próprio Estado.

     Mais à frente, pág. 71, diz: “O peculato é sempre um crime patrimonial que inclui a ofensa dum direito do Estado sobre coisas próprias ou alheias. Doutra maneira nem se compreenderia a sua punição em função do crime de roubo, cuja pena se gradua pelo valor do objecto do crime”.

     Serafim Fernandes Neves, Responsabilidade penal do infiel depositário, em 15-06-1957, Scientia Iuridica, Tomo VIII, 1959, n.º 42/43, págs. 446/9, versa o problema de determinar a norma aplicável ao dono de várias coisas penhoradas que é seu fiel depositário por mandado de justiça e os veio a desencaminhar, maxime, as normas do § 3 do artigo 313.º e artigo 422.º, 2.ª parte.

     Segue de perto a doutrina de Cavaleiro Ferreira, afirmando que a coisa objecto do crime tem de estar necessariamente em poder do infractor e em razão das funções deste dentro da Administração; esta mesma coisa tanto pode pertencer ao Estado, como a particulares, mas neste último caso encontra-se sujeita a um direito do próprio Estado, concluindo que o caso previsto no § 3 do artigo 313.º distingue-se do previsto na segunda parte do artigo 422.º pelo facto de neste último ser o próprio dono da coisa nomeado depositário desta, e naquele ser nomeado depositário da coisa um terceiro, consequentemente uma pessoa que não seja o proprietário desta.

     Eduardo Correia, versando “O depósito de bens judicialmente penhorados, arrestados ou apreendidos e os crimes de peculato e de abuso de confiança”, na Revista de Legislação e Jurisprudência (RLJ) Ano 92 (1959-1960) n.º 3157, págs. 244 a 248; n.º 3158, págs. 260 a 264 e n.º 3159, págs. 276 a 280, começa por afirmar, na pág. 144, que o crime de peculato – ao menos na maioria das suas formas – configura-se como um delito especial em relação ao abuso de confiança, sendo nesta medida um delito patrimonial.

     Abordando a questão de saber em que consiste o seu elemento especializador relativamente ao tipo fundamental de abuso de confiança, que lhe está na base, refere o Autor que no primitivo direito romano, foi justamente a qualidade da coisa objecto da acção criminosa: o ela ser «publica aut sacra». Mas logo se evoluiu, no sentido, geralmente recebido pelos direitos modernos, de o reconduzir à consideração da qualidade da pessoa que o leva a cabo. Cita, neste sentido, Chaveau et Hélie, Garraud e Manzini. (Os sublinhados são nossos).

     Adianta: “E compreende-se: As coisas públicas são normalmente entregues a certas pessoas por força das funções que desempenham e que, por via disso, têm de inspirar uma especial confiança (publica fiducia). Mas desta forma, a apropriação indevida, que em tal caso tenha lugar, além de violar os interesses patrimoniais do Estado ofende também aquela especial confiança pública. E isto bastava para particularizar o peculato relativamente ao abuso de confiança simples”.

     Mesmo nos casos em que aquelas pessoas recebam coisas pertencentes a particulares, a ilegítima apropriação destes bens privados, além do dano patrimonial que causa, viola aquela fé pública. Um denominador comum assimila esta hipótese à figura do peculato, pelo que nesse conceito, ou noutro paralelo (como a chamada malversazione, prevista no artigo 315.º do Código Penal italiano) devia ser integrado.  

     Refere - pág. 245 - que “tradicionalmente, a função pública caracteriza-se não só pelo lado objectivo da actividade correlativa (interesse público), mas ainda pelo aspecto subjectivo da própria actividade (órgão público)”.

     Prossegue a págs. 246/7: “Por isso nem toda a actividade que se desenvolve com vista a um interesse público ou cuja realização seja considerada indispensável pelo Estado para a realização de um interesse público é, só por isso, função pública. Importa ainda que o Estado, em todos os casos ou normalmente, a reserve a órgãos públicos.

     E como, por seu lado, a criação de órgãos, condição da existência de uma função pública, está ligada à necessidade de actividades permanentes ou potencialmente permanentes, exigindo profissionalização e, porventura remuneração, há-de lhe corresponder um cargo ou lugar público, com essas características e polarizando esse tipo de direitos e deveres, no qual há-de ser investido um funcionário ou empregado público.

     Refere ainda a págs. 246: “Embora, não criando, por incompleta estruturação administrativa – que certas concepções estaduais, considerações financeiras, ou puramente pragmáticas podem justificar – certas funções ou empregos públicos, pode, todavia, o Estado ser forçado, para realizar determinados fins públicos, a recorrer a determinados estabelecimentos ou profissões. E por isso os regula mais ou menos, vindo até a lei ou a autoridade a qualificar alguns ou algumas, em vista do interesse de ordem geral que visam, de públicos.

    Mas nem por disso lhe correspondem funções públicas – falta-lhes o necessário órgão ou emprego público – nem, portanto, os respectivos titulares se podem dizer funcionários ou empregados públicos”.

    Versando o corpo do artigo 313.º diz, a págs. 247, que, em vez da fórmula casuística do artigo 169.º do Código Penal francês de 1810, o legislador aponta a qualidade de funcionário público, como pressuposto do crime que descreve, aceitando um conceito rigoroso de empregado ou funcionário público. Repete mais à frente, pág. 276: “O nosso legislador em vez de uma fórmula casuística, aponta a qualidade de empregado público como necessária para individualizar a autoria do crime de peculato”.

    Simplesmente, a conjugação desta fórmula com a definição que dá de empregado público no artigo 327.º, logo, todavia, mostra que, reduzindo-se às pessoas investidas de tal qualidade, a prática de peculato, deixar-se-iam fora da sua punição, hipóteses que prementemente a impõem”.

     E isto porque o referido artigo 327.º liga a noção de empregado público ao exercício de funções públicas, conceito que supõe: a) a prossecução de um interesse público, b) um órgão que a sirva, exigindo ainda uma investidura ou nomeação.

     Face à existência de profissões que, servindo embora o fim de cobrança, e recebimento de impostos, dinheiros ou valores do Estado ou das autarquias locais, não correspondiam a lugares ou empregos públicos, como os chamados cobradores e recebedores que dessa forma não podiam considerar-se funcionários públicos, o que acontecia igualmente com os encarregados dos depósitos públicos, depositários públicos ou gerais nomeados e afiançados pela Câmaras, o legislador, não querendo seguir o critério inteiramente casuístico do legislador francês, integrou a tipicidade, descrita no corpo do artigo 313.º, com uma enumeração complementar daquelas hipóteses que mereciam enquadrar-se no respectivo delito e daí justamente o § 3.º do artigo 313.º (o Autor volta ao ponto a págs. 277).

     Todos eles tinham como funções - a que o Estado ou as autarquias locais davam crédito público - receber dinheiros ou valores do Estado ou dos particulares, o que assemelhava evidentemente a sua situação à dos empregados públicos, que preenchiam as qualidades exigidas para a configuração do crime de peculato e, portanto, nele também se deveriam fazer caber.   

    Com esta solução o crime de peculato deixou substancialmente de se poder enquadrar na categoria dos delitos contra a função pública, reconduzindo-se, antes, no nosso sistema, como no francês, a uma infracção contra a particular confiança, suposta no exercício permanente de certas funções, normalmente exercidas por empregados públicos, mas também, por vezes, por particulares.

     Conclui o Autor por ter por excluída a possibilidade de enquadrar o depositário judicial na autoria do peculato pelo caminho da fórmula geral utilizada pelo legislador ao descrever o tipo legal, como fora estava igualmente da referência complementar do § 3.º do artigo 313.º do Código Penal.

     No Código Penal brasileiro comentado pelo Ministro Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal (Dec.- lei n.º 2.848, de 7 de Dezembro de 1940), Volume IX, arts. 250 a 361, Companhia Editora Forense, Rio de Janeiro, 2.ª edição, 1959, o crime de peculato, com nítida génese histórica no direito romano, encontrava-se previsto no artigo 312.º (e o peculato mediante erro de outrem no artigo 313.º) integrado no Capítulo I - Dos crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral (artigos 312.º a 327.º) – do Título XI - Dos crimes contra a administração pública.

     O crime era definido no corpo do artigo 312.º assim: “Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio”.

     No § 1.º está previsto o peculato impróprio (pág. 335) - “Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se da facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário”.

     Abordando a “conceituação” e elementos do crime, afirma o Autor a págs. 334: “O peculato, na sua configuração central, não é mais do que a apropriação indébita praticada por funcionário público ratione officii. É a apropriação indébita qualificada pelo fato de ser o agente funcionário público, procedendo com abuso do cargo ou infidelidade a este. É o crime do funcionário público que arbitrariamente faz sua ou desvia em proveito próprio ou alheio que possui em razão do cargo, seja ela pertencente ao Estado ou apenas se ache sob sua guarda ou vigilância. Tal como a apropriação indébita, o peculato pressupõe no agente a preexistência da legítima posse precária, ou em confiança, da res mobilis, de que se apropria, ou desvia do fim a que era destinada.

     A posse antecedente da coisa e a infidelidade do agente ao seu dever funcional são elementos tradicionalmente incluídos no conceito do peculato. Pode este, no seu tipo fundamental, ser assim definido: é o fato do funcionário público que, tendo, em razão do cargo, a posse de coisa móvel pertencente à administração pública ou sob a guarda desta (a qualquer título), dela se apropria, ou a distrai do seu destino, em proveito próprio ou de outrem”.

     Para o Código comentado são equiparados os casos de coisa pertencente ao Estado e de a coisa apenas se achar sob a guarda deste (e confiada ao agente ratione officii), configurando este o que o Código italiano apelida de “malversação”. 

     A págs. 345/6, afirma o Autor: “Convergem no peculato a violação do dever funcional e o dano patrimonial. Poderá dizer-se que é punido o peculato menos porque seja patrimonialmente lesivo do que pela quebra de fidelidade ou pela inexação no desempenho de cargo público; mas é absolutamente indispensável à sua configuração o advento de concreto dano patrimonial. O dano material, indeclinável no peculato, não é outra coisa que um desfalque patrimonial sofrido pela administração pública, seja como damnum emergens, seja como lucrum cessans, ou como ressarcimento a que estará obrigada, no caso de malversação.

     Especifica a págs. 348: “Com a apropriação ou malversação do dinheiro, valor ou outro bem móvel pertencente ao Estado ou sob a guarda deste é que se realiza a violação do dever funcional. Uma e outra são como corpo e alma, como esmeralda e cor verde, como fel e amargor. Sem esses dois elementos, que se conjugam incindivelmente, não pode haver o summatum opus do peculato. O momento consumativo é, aqui, a efectiva apropriação sine jure do dinheiro, valor ou outra coisa móvel, e nesse momento está necessariamente inserto o dano patrimonial, isto é, o desapossamneto ou perda de disponibilidade do Estado (ou outra entidade de direito público) relativamente ao bem de que se trate, servindo-se dele o agente como se fosse o dono”.

   

     No domínio do Código Penal de 1982

     Figueiredo Dias, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 121.º, 1988-1989, n.º 3777, págs. 379 a 384, Coimbra editora, Ld.ª, 1989, em anotação a acórdão do Tribunal Colectivo da Comarca de Braga, de 20 de Janeiro de 1989, versando crime de participação económica em negócio, p. p. pelo artigo 427.º do Código Penal de 1982, integrando então a II Secção, que englobava as três figuras de peculato, do Capítulo IV – “Dos crimes cometidos no exercício de funções públicas”, afirma, a págs. 380/1:

     “Com efeito, uma nota característica – ou mesmo, essencial – dos chamados «crimes cometidos no exercício de funções públicas» (arts. 420.º e segs. do Código Penal) consiste, a par de outras circunstâncias, no facto de todos eles traduzirem sempre um «desvio» no exercício dos poderes conferidos pela titularidade do cargo que, desse modo, em vez de usados na prossecução dos fins públicos a que se destinam, são deslocados para a satisfação de puros interesses privados do agente ou de terceiro(s).

     Quer dizer, mesmo quando visam a tutela de outros bens jurídicos específicos, todos os delitos compreendidos naquele capítulo do Código Penal integram cumulativamente a nota comum de significarem, também, uma utilização indevida das faculdades inerentes ao cargo para fins que, não só se encontram fora das respectivas atribuições legais, mas sobretudo assumem natureza particular ou privada.

     Cavaleiro de Ferreira, Direito e Justiça, volume IV - 1989/1990, editado em Janeiro de 1992 (Depósito legal n.º 53259/92), Parecer, relativo a Abuso de confiança, peculato, falsificação e furto de documentos, descaminho – Problemas de autoria material e de autoria moral, de continuação criminosa, de prescrição e de concurso, págs. 239 a 281.

     O parecer incide sobre factos constantes de um processo de querela, reportando conduta de despachante oficial encarregado da desalfandegagem de café que a partir de certa data de 1979, não pagou com o dinheiro recebido a taxa adicional pela importação do café, desviando-a do fim a que se destinava.

     Versa os elementos essenciais do crime de abuso de confiança e de peculato à luz do artigo 313.º do Código Penal de 1886, mas não só.

     Refere a págs. 245 que a nitidez da delimitação do crime de abuso de confiança e de peculato, foi de algum modo conturbada pela redacção do Código Penal de 1982.

    Explica: “É que, segundo o art. 300.º deste último Código, se dispõe na alínea b) do nº 2 que «quando o agente recebeu a coisa em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial», o crime de abuso de confiança será agravado nos termos que o citado artigo indica. Como o Código Penal de 1982, porém, considera como peculato o abuso de confiança cometido, quer em relação ao Estado quer em relação aos particulares, no exercício da função pública pelo funcionário, parece dar-se uma sobreposição das duas disposições legais.

    A razão parece estar na diversa origem, no novo Código, da incriminação por abuso de confiança e da incriminação por peculato. A incriminação por peculato é tradicional nos povos latinos e provém já do direito romano, como também se encontra prevista nas Ordenações do Reino; e veio a constar tanto do Código Penal de 1852 como do Código Penal de 1886. Consistia e consiste numa espécie dos crimes cometidos no exercício da função pública e mais propriamente na violação do dever de respeitar a propriedade do dinheiro ou coisas móveis na sua posse, em razão do exercício da própria função pública. O Código Penal de 1886 não contém, por isso, qualquer disposição equivalente à alínea b) do n.º 2 do art. 300.º do Código Penal de 1982.

    A solução dada por este último preceito legal era e é a solução legal no direito alemão no qual não é especialmente incriminado o crime de peculato.

    No antigo direito germânico multiplicaram-se as incriminações por crimes cometidos no exercício da função pública, entre os quais avultavam os crimes de corrupção; mas não está particularmente previsto o crime de peculato, que, por isso mesmo, constitui um crime de abuso de confiança agravado pela qualidade do funcionário (ou outra qualidade relevante) em razão da qual lhe é confiado dinheiro ou coisas móveis.

    O crime de peculato, no Código Penal de 1982 teve, porém, a sua origem na antiga legislação portuguesa, e também latina, e daí a sobreposição dos dois preceitos legais, respectivamente sobre abuso de confiança cometido quanto a valores confiados em razão das funções e sobre peculato enquanto é também abuso de confiança qualificado pela qualidade do funcionário que tenha recebido o objecto do crime em razão e no exercício das suas funções (Código Penal de 1982, art. 424.º).

    Não há que empolar a dissonância.

    Há tão somente que ajustar correctamente os dois preceitos.

    No domínio do Código Penal de 1886 esse ajustamento era mais fácil: se o dinheiro ou coisas móveis fossem entregues para fim ou uso determinado que coubesse nas funções do funcionário público e em cujo exercício fosse cometido o abuso de confiança, tratar-se-ia de peculato; se o dinheiro ou coisas móveis fossem entregues a funcionário público para fim ou uso determinado que não respeitasse directamente ao exercício das suas funções o crime seria o de abuso.de confiança.

    É razoável admitir que esta mesma diferença se verifica na aplicação do Código Penal de 1982 no confronto entre a alínea b) do n.º 2 do art. 300.º com o art.º 424.º.

    De todo o modo, está sempre subjacente ao crime de peculato o crime de abuso de confiança, de que o primeiro é uma especificação; por isso mesmo o crime de peculato é um crime pluri-ofensivo, como já assinalámos, e se ofendido no crime é o Estado enquanto se dá violação grave de um dever específico da função pública, ofendido é também o Estado ou os particulares como donos do dinheiro ou coisas móveis à guarda ou na posse precária do funcionário público”.

    Henriques Gaspar, Crimes cometidos no exercício de funções públicas, Jornadas de Direito Criminal - Revisão do Código Penal (1995), CEJ, Volume II, Lisboa, 1998, a págs. 387 a 407, expende:

     “Os chamados crimes cometidos no exercício de funções públicas têm uma característica essencial comum a todos eles. Consiste no facto de traduzirem sempre um desvio no exercício dos poderes conferidos pela titularidade do cargo. Tais poderes, em vez de usados na prossecução dos fins públicos a que se destinam, são deslocados para a satisfação de interesses particulares, privados, do agente ou de terceiro.

    Mesmo quando visam a tutela, também, de outros interesses ou bens jurídicos específicos, todos os tipos compreendidos no capítulo IV do CP apresentam a nota comum de significarem a utilização indevida das faculdades próprias de funções públicas para satisfação de interesses puramente particulares ou privados. (cita Figueiredo Dias, RLJ, Ano 121.º, p. 380)

   Foi alargado o âmbito do n.º 3, não se exigindo agora a consciência de prejudicar.

   No peculato de uso verifica-se uma modificação relevante, a responder àquelas situações em que o sentimento geral possivelmente não compreenderia a qualificação penal de certas condutas e o respectivo sancionamento nesse nível.

    Assim, nos casos a que for dado a dinheiro público destino diverso daquele a que estava legalmente afectado (n.º 2 do art. 373.º), exige-se agora que não haja especiais razões de interesse público que o justifiquem. Introduziu-se, pois, uma causa de justificação: a existência de especiais razões de interesse público pode justificar a alteração de afectação de dinheiro público e, deste modo, excluir a ilicitude da actuação do funcionário.

    Segundo Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado e Comentado, 18.ª edição, 2007, pág. 1104, “Trata-se de um crime qualificado, de furto ou de abuso de confiança. Além de ter necessariamente como agente um funcionário, o objecto do crime tem de estar na posse deste, ou ser-lhe acessível em razão das suas funções”.

    Conceição Ferreira da Cunha, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, págs. 687 a 704, comentando o artigo 375.º, referindo-se ao bem jurídico tutelado, afirma no § 2.º, pág. 688: “É dupla a protecção concedida pelo tipo legal de peculato: por um lado, tutela bens jurídicos patrimoniais, na medida em que criminaliza a apropriação ou oneração ilegítima de bens alheios (no caso de apropriação consubstancia um furto ou abuso de confiança); por outro lado, tutela a probidade e fidelidade dos funcionários para se garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração, ou, por outras palavras, a “intangibilidade da legalidade material da administração pública” (Figueiredo Dias, Actas 1993 438), punindo abusos de cargo ou função. Assim, o peculato integra dois elementos: o crime patrimonial e o abuso duma função pública (ou equiparada; quanto ao conceito de funcionário cf. art. 386.º). Mas, para se preencher o presente tipo legal, estes dois elementos terão de se relacionar entre si; assim, há abuso de função pelo facto do agente se apropriar ou onerar bens de que tem a posse em razão das funções que exerce, violando, com esse comportamento, a relação de fidelidade pré-existente - o agente “viola os limites intrínsecos do exercício da posse que lhe foi conferida em razão do seu ofício ou serviço”.

    Quer os bens sejam do Estado quer de particulares, está sempre em causa um direito patrimonial do Estado - a sua propriedade (tratando-se de bens estaduais) ou a sua posse legítima (tratando-se de bens de particulares) – estando também neste segundo caso presente a tutela do direito de propriedade dos particulares.

    O interesse na repressão de abusos de cargo por parte de funcionários públicos como meio para se garantir a intangibilidade da legalidade material da administração, e, também, os interesses patrimoniais do Estado está expresso na inserção sistemática do tipo legal.

    O crime de peculato é um crime de furto qualificado em razão da qualidade especial do agente (ou especial função que desempenha, onde se engloba a sua relação com os bens objecto do presente crime) ou um crime de abuso de confiança qualificado em razão da qualidade do funcionário no exercício de funções públicas (§ 4.º).

    No crime de peculato está sempre em causa, como elemento fundamental, a relação de fidelidade para com o Estado (além da relação com o proprietário do bem, se este não for o próprio Estado).

    É a ideia de legalidade da administração relacionada com a probidade (e fidelidade) dos funcionários que confere maior especificidade ao tipo legal, sendo esse o bem jurídico preponderante (§ 5.º).

    A propósito do tipo objectivo de ilícito do artigo 375.º escreve a Autora, a págs. 692, que “Agente do presente tipo legal terá de ser um funcionário (sobre este conceito cf. art. 386º). Não basta, no entanto, que se trate de um funcionário; necessário é que o funcionário, em razão das suas funções, tenha a posse do bem objecto do crime; é esta qualidade do agente (e esta relação do agente com o objecto) que torna a ilicitude do crime de peculato mais grave do que a do furto (tipo legal que o peculato consome, salvo nos casos do art. 204.º-2). Trata-se, assim, de um crime específico impróprio. (§ 7.º).

    Objecto do crime de peculato é o “dinheiro”, a “coisa móvel”, ou seja, os “valores ou objectos” (§ 8), podendo o dinheiro ou a coisa móvel ser públicos ou particulares, embora estejam sujeitos, ainda que temporariamente, ao poder público, mas tendo de ser alheios (§10) e tem de se tratar de bens que tenham sido entregues, estejam na posse ou sejam acessíveis ao agente, em razão das suas funções, podendo entender-se que bastaria a referência ou à acessibilidade ou à posse (entendendo-se esta em sentido lato), sendo talvez preferível, por ter um conteúdo mais preciso, a referência a este último conceito. O conceito de posse, para efeitos deste tipo legal, deve, de facto, entender-se em sentido lato, englobando quer a detenção material quer a disponibilidade jurídica do bem, ou seja, a detenção indirecta – quando a detenção material pertence a outrem, mas o agente pode dispor do bem ou conseguir a sua detenção material mediante um acto para o qual tem competência em razão das suas funções. (§ 11º)

    E no § 14 afirma: A conduta punida por este tipo legal consiste na apropriação ilegítima; por apropriação deve entender-se o acto de fazer seu o bem, agindo como se fosse seu proprietário e não mero possuidor; a apropriação é ilegítima desde logo porque não deriva de nenhum título aquisitivo da propriedade. Por outro lado, a apropriação poderá ser feita em proveito próprio ou de outra pessoa.

    Quanto ao tipo subjectivo de ilícito (§ 19, pág. 699), trata-se de um tipo legal doloso, em que o agente terá de ter consciência de que se trata de bem alheio de que tem a posse em razão das suas funções (bastando ter o “conhecimento paralelo na esfera do leigo”) e a consciência e vontade de fazer seu o bem para seu próprio benefício ou de terceiro.

     Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris, 2008, a págs.915/918, comentam o artigo 375.º, seguindo de perto Cavaleiro de Ferreira, Conceição Ferreira da Cunha e Maia Gonçalves.

     A apropriação flui, antes do mais, do facto de o funcionário se encontrar investido nas respectivas funções.

      A conduta típica consiste na apropriação ilegítima.

      O n.º 3 contém uma forma mitigada de peculato.

      Os n.º 1 e 3 estabelecem penas abstractas que deixam de ser aplicáveis se penas mais graves couberem «por força de outras disposições legais», sendo caso do princípio de subsidiariedade no âmbito do chamado concurso impróprio, aparente ou de normas.

       O peculato é um crime de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, havendo concurso impróprio, aparente ou de normas entre o artigo 20.º da Lei n.º 34/87 e o artigo 375.º. 

     Trata-se de crimes dolosos. E parece não haver lugar para o dolo eventual. De resto, a intenção de restituir exclui o dolo de apropriação.

    Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2.ª edição actualizada, 2010, na nota prévia ao artigo 372.º, primeiro a integrar o Capítulo III - Dos crimes cometidos no exercício de funções públicas”, começa por referir na nota 1, a págs. 968 (fls. 878 da 1.ª edição de 2008), que os crimes praticados por funcionários não se encontram apenas neste capítulo, tendo sido incriminadas condutas de funcionários nos artigos 132.º, 155.º, 158.º, 184.º, 256.º, 257.º, 350.º, 351, 368.º e 369.º, opção sistemática que traz consigo problemas em matéria de concurso de normas/concurso de crimes.

    E na nota 2: “Os crimes mais graves cometidos por funcionários no exercício e com abuso das suas funções encontram-se fora do capítulo dos crimes de funcionários (ver artigos 132.º. 155.º, 158.º e 166.º)”.

    [Concretamente, artigos 132.º, n.º 2, alínea m); 155.º, n.º 1, alínea d); 158.º, n.º 2, alínea g) e 166.º – homicídio qualificado; ameaça e cocção agravada; sequestro; e abuso sexual de pessoa internada].

    E de seguida, afirma: «O critério sistemático adoptado por Eduardo Correia foi o seguinte: “em relação a funcionários públicos, reservar para capítulo à parte apenas os crimes específicos das suas funções” (Actas CP/Eduardo Correia, 1979:84)».

    E a págs. 1028 (913/4, na 1.ª edição), a propósito do conceito legal de funcionário, que vale para todos os crimes, reporta as palavras de Eduardo Correia “Em vez de a respeito de cada tipo de crime se acrescentar uma definição conceitual de funcionário público, achou-se melhor técnica legislativa estabelecer num artigo final tal conceito”, in Actas CP/Eduardo Correia, 1979:494.

    Versando o peculato, refere a págs. 998 (889, na 1.ª edição): “Os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário (…) e, acessoriamente, o património alheio (público ou particular).

    O crime de peculato é um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de resultado (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção).

    O tipo objectivo consiste na apropriação ilegítima pelo funcionário, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua pose ou lhe seja acessível em razão das suas funções; ou na oneração dos referidos bens (dinheiro e coisas móveis), por exemplo, dando de empréstimo ou empenhando.

    A acção de apropriação inclui a apropriação de dinheiro ou da coisa que se encontra na posse ou acessível ao funcionário em razão das suas funções. Trata-se nesta modalidade de um crime de furto qualificado pela qualidade do agente e pela concretização da intenção de apropriação do agente. A conduta típica inclui também a inversão do título da posse da coisa que foi entregue ao funcionário por título não translativo da propriedade. Trata-se nesta modalidade de um crime de abuso de confiança qualificado pela qualidade do agente. O crime previsto no n.º 1 é, pois, por uma e por outra razão, um crime específico impróprio.

    A apropriação pode ser em proveito próprio do funcionário ou em proveito de outra pessoa física ou colectiva, pública ou particular. (…)

    O tipo subjectivo admite qualquer modalidade de dolo. (…).

    A qualidade de funcionário é comunicável aos comparticipantes que a não possuam, nos termos do artigo 28.º, n.º 1. O crime previsto no n.º 3 tem a natureza de um crime de comparticipação necessária imprópria, não sendo punível o beneficiário da oneração.

    Mais recentemente.

 

    José António Barreiros, Crime de peculato, incluindo os peculatos especiais, actualizado segundo a jurisprudência, Labirinto de Letras, Editores, Março de 2013, versando o bem jurídico protegido conclui, a fls. 30, que o peculato é, na sua essência contemporânea, um crime pluriofensivo.

    Por um lado, ataca interesses de natureza estritamente patrimonial, até pelo objecto sobre o qual a acção do agente incide; por outro, põe em crise valores com assento constitucional, como são a prossecução do interesse público, a boa fé, a justiça, a imparcialidade, e a igualdade, tratando-se de uma exigência cumulativa, dado o carácter indissociável de tais princípios e em função precisamente da autonomia típica do crime em apreço.

    Estão em causa no que ao peculato se refere, interesses patrimoniais - não necessariamente públicos – o que decorre do facto de a conduta criminalizada supor que o ataque ilícito incida sobre «dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular», acrescentando que o âmbito da tutela não se confina a esse universo, mas pressupõe uma relação funcional entre o agente do crime  – o funcionário – e as funções em que se encontra investido, considerando ainda a irrelevância da tutela de dano por ser o peculato um crime de apropriação e não de um crime de dano (págs. 31 a 33).

    Especifica, a págs. 35, que o peculato é um crime de mão própria, de apropriação e não de dano, sendo crime de natureza compósita, decorrente da circunstância de estar em causa:

    Um crime próprio, em rigor de mão própria, pois só pode ser praticado por quem tiver uma determinada qualidade pessoal, no caso de funcionário no sentido jurídico-penal, ou seja, em sentido amplo, diferente, daquele outro sentido que o conceito recebe no domínio do Direito Administrativo, o que pode colocar questões a nível de comparticipação com não funcionários (…).

    Tratando-se de bens que não sejam necessariamente pertencentes ao sector público e isto constitui uma característica essencial do peculato.

    Refere a págs. 52 que “Sendo próprio, trata-se de um crime que só pode ser praticado por quem detiver certa qualidade pessoal, no caso funcional”.

    E a págs. 59: “Trata-se, pois, no que ao peculato respeita, da tutela de uma relação funcional de facto entre um funcionário e um bem, ainda que não público, em que a intangibilidade deste deve ser garantida em nome dos deveres do cargo e é posta em crise pela conduta indevida”.

    M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal Parte geral e especial, Almedina, 2014, comentam o artigo 375.º, de págs. 1242 a 1245, seguindo de perto Figueiredo Dias, Paulo Albuquerque, Conceição Cunha e José António Barreiros, citando dois acórdãos do STJ, um de 12-07-2006 e outro de 23-03-1966 e do Tribunal --- de 26-06 2013.

    Retira-se: A apropriação tanto pode ser em proveito do funcionário como de terceiro (nota 6). O tipo subjectivo admite qualquer modalidade de dolo (nota 10).

    Atenta a cláusula de subsidiariedade expressa, a punição por peculato é afastada quando intervém um furto qualificado punido com pena mais grave (nota 12).

    Em matéria de concursos, defendem haver concurso aparente entre o crime de peculato e o crime de furto simples e entre o crime de peculato e o crime de abuso de poder, concorrendo crime de peculato e crime de concussão a relação é de exclusão. (notas 13 e 14).

    

     Contributos doutrinários na conformação do conceito de funcionário

     A “ultrapassagem” do conceito restrito de funcionário, a noção de uma maior amplitude a conferir ao conceito de funcionário (na legislação da segunda metade do século XIX, o termo era empregado público, tout court) estava já presente no Código Penal de 1852, com a inclusão da referência a “quaisquer pessoas” no § 5.º do artigo 313.º (inclusão mantida na Nova Reforma Penal de 1884 e na redacção primitiva da publicação oficial do Código Penal de 1886), e mais tarde, no § 3.º do mesmo preceito (a partir da redacção do Decreto n.º 20 146, de 1-08-1931), de modo a abranger pela punição do peculato, pessoas que não tinham aquela qualidade, mas que desempenhavam funções de âmbito público.

     Como dava nota Eduardo Correia, em 1959, na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 92.º, o conceito rigoroso de empregado ou funcionário público adoptado no corpo do artigo 313.º não abarcava situações de profissionais que desempenhavam funções para a Fazenda Pública (cobradores e recebedores) ou autarquias locais (depositários públicos ou gerais, afiançados pela Câmaras).

     E daí a necessidade de complementar a tipicidade, incluindo condutas praticadas por quem não podia ser considerado funcionário, equiparando-os aos empregados públicos, para o efeito de tornar possível a sua punição, como autores de crime de peculato, relativamente a coisas públicas ou privadas que lhes fossem confiadas no exercício das suas atribuições.

     A solução passava por dispensar a qualidade de empregado público para a respectiva incriminação, como reportava o Assento de 19 de Dezembro de 1951.

     Daí o alargamento supra referido, primeiro no § 5.º e depois no § 3.º.

     Comentando o artigo 327.º do Código Penal de 1886, que reproduzia o artigo 327.º da versão de 1852, Luís Osório, Notas, pág. 715, quanto à fonte do preceito dizia parecer ter sido o artigo 322.º do Código Penal Espanhol.

     Frisa que a definição contida no artigo é, nos termos do mesmo artigo, restrita à interpretação das palavras «empregado público» empregadas no presente capítulo, convocando as disposições dos artigos 291.º e 308.º.

    O conceito é utilizado no artigo 291.º, que prevê o crime de abuso de autoridade, em que sujeito activo é necessariamente um empregado público, tratando-se de crime próprio (pág. 611).

    O crime de abandono de funções por empregados públicos da ordem judicial ou administrativa, previsto no artigo 308.º é um crime próprio do empregado público (pág. 653).

    Afirmava, a págs. 715/6, que não dizendo a lei o que se deve entender por esta expressão, quando empregada nos outros capítulos do Código temos de aplicar por analogia a presente disposição, sempre que ela não seja repelida pelos termos do artigo em que a expressão é empregada.

     Defendia o Autor – pág. 716 – que “Devia-se suprimir no artigo a limitação referida e ser a noção dada na parte geral”.

     A págs. 716, citando Jordão, 3.º, 251, pode ler-se: “Em regra, e no uso comum do falar, dá-se o nome de empregados aos funcionários da ordem civil que são nomeados pelo Govêrno e que na administração pública servem debaixo das ordens dêste. É por isso que vimos serem aplicáveis nalguns casos as disposições dêste capítulo aos facultativos, aos peritos e louvados os quais, no uso comum do falar não podem ser considerados como empregados públicos”.

     E citando Manzini, 5.º, 7: “Para a lei penal há duas categorias equivalentes de empregados públicos, os que o são em sentido próprio, isto é os que assim são considerados, ainda no direito público geral; e os assimilados, isto é aqueles que, embora à face dos princípios do direito público não sejam empregados públicos, tais se devem considerar por expressa determinação da lei”. (Sublinhado nosso).

     Comentando diz: “O primeiro elemento característico do empregado público refere-se à forma como esta qualidade é atribuída ao indivíduo”, mencionando as formas de autorização imediata da lei, nomeação por eleição popular, nomeação pelo Rei (hoje nomeação pelo Poder Executivo) e nomeação da autoridade competente.

     O outro elemento e fundamental para determinar a qualidade de empregado público refere-se à função.

     Só pode ser considerado empregado público o que exerce ou participa no exercício de funções públicas civis de qualquer natureza, o que exclui os que exercem funções militares.

     A págs. 717, cita Manzini, 5.º, 5, para quem “Função pública é o complexo do pensamento, da vontade e da ação dirigida imediatamente a um fim de interesse público e reservada absolutamente e normalmente aos órgãos do Estado ou a outros entes da administração pública, isto é a empregados públicos”.

     Na vigência deste Código de 1886 foi discutido o conceito de funcionário público, tido por mais amplo do que o fornecido pela ordem administrativa.

     Exemplos disso são os pareceres emitidos pela Procuradoria-Geral da República.

     Assim, o Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 24/53, de 25 de Março de 1953, in BMJ n.º 39, pág. 71, versando o conceito de agentes de autoridade, referia-se à divergência entre a técnica penal e a técnica administrativa que resulta do sentido lato da expressão, que se nota paralelamente a propósito do conceito de empregado público fixado no artigo 327.º do Código Penal, como resulta da doutrina e jurisprudência indicadas a págs. 261 do n.º 25 do BMJ.

     No Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 60/57, de 11 de Março de 1959 (emitido pelo Ajudante do Procurador-Geral da República, António Miguel Caeiro), in BMJ n.º 88, págs. 169/177, a propósito de questão relacionada com limite de idade, procurou definir-se a expressão funcionário civil.

     Aí se disse: “As leis administrativas, na multiplicidade de critérios que as informam e de sentidos com que empregam essa expressão, não fornecem base segura para uma definição técnica de funcionário público. O conceito tem sido formado à custa de um esforço de elaboração da doutrina e da jurisprudência. (…) Há em todo o caso certo número de requisitos que costumam ser salientados como decisivos para a qualificação dos agentes administrativos como funcionários públicos. Esses requisitos ou elementos estão intimamente ligados a três aspectos:

a) A investidura, que deve ser feita directamente pela Administração, e aceita voluntariamente pelo investido;

b) O cargo, que deve fazer parte dos quadros permanentes da Administração e envolver a prestação de trabalho não manual (ou predominantemente intelectual);

c) O exercício das funções, que deve implicar certa estabilidade e permanência, susceptível de determinar a profissionalidade das funções. 

     A enunciação destes requisitos essenciais caracterizadores da qualidade de funcionário estava já presente no Parecer da PGR n.º 66/50, de 3 de Agosto de 1950, BMJ n.º 25, págs. 205/8.

     Segundo o Parecer da Procuradoria-Geral da República de 24 de Março de 1959, publicado no Diário do Governo, de 11 de Julho, as expressões funcionário público e empregado público têm o mesmo conteúdo e é indiferente o emprego de uma e outra.

     No Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 98/58, de 11 de Junho de 1959 (emitido igualmente por António Miguel Caeiro), in BMJ n.º 91, págs. 388/393, em causa estava saber se os dirigentes e o pessoal dos organismos de coordenação económica podiam acumular o exercício dessas funções com as de deputados à Assembleia Nacional, procurando indagar-se se aqueles eram funcionários públicos.

     Começa o parecer por referir que a expressão nem sempre tem no nosso sistema jurídico o mesmo alcance, variando consoante a razão de ser do preceito respectivo, e para apurá-lo não pode deixar de atender-se ao sector da ordem jurídica em que tal preceito se integra.

     Citando o exemplo do artigo 327.º do Código Penal, refere ter sido adoptado um conceito de «empregado público» “bastante amplo, que segundo a mais recente e autorizada jurisprudência não corresponde ao usado na doutrina administrativa. Os fins específicos da tutela penal não se compadeceriam com uma fórmula restrita, que excluísse designadamente aqueles a quem são cometidas funções em serviços públicos sem a permanência bastante para que em direito administrativo possam qualificar-se como funcionários públicos. E daí terem sido com frequência considerados empregados públicos, para efeitos penais, certos indivíduos desempenhando aquelas funções, não obstante poderem ser livremente nomeados e exonerados. (Cita neste sentido os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27-06-1951 e do 1.º Juízo Criminal de Lisboa, de 10-04-1946, BMJ n.º 25, págs. 255 e 261). (Sublinhados nossos).

     O tema é igualmente abordado no Parecer n.º 389, emitido por Maia Gonçalves no processo n.º 30.787 e que consta em anotação ao acórdão do STJ de 13-12-1961, proferido naquele processo n.º 30.787, no BMJ n.º 112, pág. 353, versando a questão de saber se podem ser considerados ou não funcionários o presidente e o vice-presidente de um organismo de coordenação económica – no caso Junta de Exportação de Angola. 

     Do parecer transcrito no BMJ n.º 112, a págs. 375/6, consta:

     «...Para delimitação do conceito de funcionário público é mister que se não abstraia do sector da ordem pública em que tal conceito se integra. É que a noção varia consoante o ramo de direito que se aplica, e dentre de cada ramo ainda pode variar de sector para sector. Este aspecto de diversidade foi muito bem analisado nos pareceres da Procuradoria-Geral da República, n.ºs 60/57 e 98/58, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, respectivamente, n.ºs 88, págs. 169 e seguintes, e 91, págs. 388 e seguintes, para cujas linhas remetemos, dadas as naturais limitações do presente parecer.

     Não por interpretação analógica, ou mesmo extensiva, mas por mera interpretação declarativa, decorrente do art.º 327.º do Código Penal, o conceito mais amplo de funcionário público é o conceito penal.

     Conforme bem se acentua no citado parecer n.º 98, de todos os exemplos que poderiam apresentar-se, o mais frisante é o do art.º 327.º do Código Penal, onde foi perfilhado um conceito de empregado público bastante amplo que, segundo a mais recente e autorizada jurisprudência, não corresponde ao autorizado na doutrina administrativa. Os fins específicos da tutela penal não se compadeceriam com uma fórmula restrita que excluísse designadamente aqueles a quem são cometidas funções em serviços públicos sem permanência bastante para que, em direito administrativo, possam qualificar-se como funcionários públicos. E daí terem sido com frequência considerados funcionários públicos para efeitos penais certos indivíduos desempenhando aquelas funções, não obstante poderem ser livremente nomeados e exonerados.

     Independentemente do formalismo de investimento, de que cura o direito administrativo, é funcionário público para efeitos penais, segundo o próprio dizer do comando legal, todo aquele que exerce ou participa no exercício de funções públicas civis de qualquer natureza. É, fundamentalmente, a natureza das funções exercidas que dita e empresta a qualidade de funcionário a quem as exerce, isto segundo o critério da lei penal. A mens legis está na necessidade de evitar subterfúgios na defesa penal da coisa pública”.

     Termina afirmando que “a noção administrativa de funcionário público é mais acanhada do que a penal…”. (Sublinhados nossos).

     No Código Penal Português Anotado, 6.ª edição, 1992, em anotação ao artigo 437.º, págs. 806/7, o mesmo Autor repete a primeira parte, reformulando o parágrafo final, passando a constar:

     “Independentemente do formalismo de investimento de que cura o Direito Administrativo, é funcionário público para efeitos penais todo aquele que é chamado a desempenhar uma actividade compreendida na função pública ou que, nas mesmas circunstâncias, desempenhe funções em organismos de utilidade pública ou nelas participe, e isto mesmo que tenha sido chamado provisória ou temporariamente, e ainda que não seja remunerado”.

     Maia Gonçalves emitiu parecer com o n.º 1321 no âmbito do recurso de que resultou o acórdão de 2 de Junho de 1965, proferido no processo n.º 31.745, in BMJ n.º 148, pág. 142, o qual decidiu “A previsão do artigo 313.º do Código Penal abrange os actos das funções do empregado público resultantes da determinação legal e ainda de ordem de serviço”, mostrando-se a págs. 150/1, transcrito o referido parecer, no qual se colocava a questão de saber se a expressão em razão das suas funções utilizada no artigo 313.º do Código Penal abrangia somente as atribuições específicas do cargo, ou também as atribuições oriundas de ordem de serviço ou determinação do superior hierárquico, sendo que no concreto caso não houvera delegação nem ordem do superior hierárquico, mas mera indicação verbal.

     No mesmo BMJ n.º 148, págs. 97 a 121, consta o Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 62/64, de 11 de Março de 1965, abordando furto de uso de automóvel por agente administrativo, civil ou militar e defendendo a não punibilidade do peculato de uso, à luz do artigo 313.º do Código Penal 1852/1886.

        

     Na abordagem ao conceito no Código Penal de 1982, relembra-se o que consta das Actas das Sessões da Comissão Revisora do Projecto da Parte Especial do Código Penal, concretamente, na Acta da 24.ª relativa à sessão de 24-06-1966, in BMJ n.º 290, págs. 96/97, acima exposta no segmento da evolução legislativa ao abordar exactamente o novo Código, com o Autor do Anteprojecto a assinalar que “Como base deve admitir-se que o conceito válido para o Código Penal não tem de decalcar ou sequer assentar noutros conceitos estabelecidos para outros domínios de direito”

     Nas palavras de Eduardo Correia “Em vez de a respeito de cada tipo de crime se acrescentar uma definição conceitual de funcionário público, achou-se melhor técnica legislativa estabelecer num artigo final tal conceito”, in Actas CP/Eduardo Correia, 1979:494.

  

    Comentando o artigo 386.º, Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal, 2.ª Edição, 1996, 2.º volume, Rei dos Livros, pág. 1228, afirmam que o conceito de funcionário recortado é indiscutivelmente mais amplo que o conceito meramente administrativo, sendo funcionários, para fins penais, os seguintes: 

– funcionários civis;

– agentes administrativos;

– cidadãos que, a qualquer título, sejam chamados a desempenhar ou participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional ou em organismos de utilidade pública;

– cidadãos que desempenhem funções políticas, governativas ou legislativas, nos termos e pelo modo que as respectivas leis especiais o definirem;

– gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos.

    A elasticidade da lei, neste âmbito, tem justificada razão, atendendo às múltiplas situações em que cidadãos não rigorosamente funcionários, no sentido tradicional do termo, podem estar envolvidos e que de outro modo não obteriam uma censura jurídico-criminal ajustada aos seus actos, sendo certo que o seu comportamento não se afasta daquele que decorre dos servidores públicos como tal.

    Daí que a noção de funcionário esteja, para estes fins, intimamente ligada à ideia de função, que não propriamente ao formalismo da qualidade de agente.

    E após convocarem Nelson Hungria, afirmam:

    “E partindo desta noção, o nosso Código ainda lhe deu maior abrangência, incluindo no conceito mesmo aquelas pessoas que prestam um exercício não profissional ou não permanente, as que não são remuneradas, as que não foram convocadas para servir mas espontaneamente deram o seu contributo”.

    Como dão conta os Autores, a págs. 1229, o Prof. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 9.ª edição, 2.ª reimpressão, Tomo II, pág. 642, debruçou-se sobre o preceito no Projecto do Código (artigo 468.º), escrevendo a propósito:

    «O conceito é aceitável, mas julgamos que seria preferível substituir o termo funcionário por servidor do Estado e dar a seguinte definição:

     “Para efeitos da lei penal considera-se servidor do Estado todo aquele que, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, tenha sido provido num cargo público ou chamado por qualquer modo a desempenhar ou a participar no desempenho de actividade incluída nas atribuições de uma pessoa colectiva de direito público”.

    Nesta noção entender-se-ia o termo Estado no sentido amplo, abrangendo não só a sua administração própria como a posta a cargo de qualquer pessoa colectiva de direito público. Feita esta importante ressalva, não chocaria com as noções do Direito Administrativo».   

    Afirmam ainda os mesmos Autores, a págs. 1229/1230, “O legislador (em 1995) considerou como funcionários, para fins penais, três espécies de servidores públicos:

- os funcionários civis;

- os agentes administrativos;

- os que, não sendo funcionários nem agentes, exercem actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional ou desempenhem funções em organismos de utilidade pública, ou venham a participar nelas.

    E duas classes de equiparados a funcionários:

- os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas (nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público) e de empresas concessionárias de serviços públicos.

- os que desempenhem funções políticas.

    Concluem, a págs. 1234, dizendo: “Assim, são funcionários, para fins penais, os funcionários civis, os agentes administrativos, todos aqueles que por qualquer forma e em quaisquer circunstâncias desempenham ou participam no desempenho de actividades compreendidas na função pública (administrativa ou jurisdicional), desempenham funções em organismos de utilidade pública (considerando-se abrangidos nestes as pessoas colectivas de direito público e, dentre as pessoas colectivas de direito privado, os entes colectivos de fim desinteressado - pessoas colectivas de utilidade pública em geral e pessoas colectivas de utilidade pública administrativa), ou nelas participe.

 

     José Francisco de Faria Costa, Direito Penal da Comunicação (Alguns escritos), Coimbra Editora, 1998 (Outubro), neste plano aborda apenas o n.º 2 do artigo 386.º do Código Penal introduzido com a revisão de 1995, dizendo, a págs. 91:

     “Parece evidente, a todas as luzes, que se está perante um alargamento da equiparação a funcionário que, em alguns casos, não tem, a nossos olhos, qualquer ligação substancial com o conceito matricial de funcionário que o direito público nos oferece. E se é certo que o direito penal tem perfeita autonomia quanto a gerar e a construir os seus próprios conceitos ou categorias, é também certo que os desvios legitimamente operados se têm de fundamentar em razões substanciais, pois, de outra forma, aquelas rupturas conceituais podem rapidamente transformar-se em antinomias normativas dentro da unidade que a ordem jurídica representa”. 

     José Manuel Damião da Cunha, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, de págs. 808 a 823, comentou o artigo 386.º com a redacção então introduzida pela Reforma de 1995.

     Anota-se que a obra foi impressa em Março de 2001 e a alteração do preceito em causa introduzida nesse ano, só surgiu depois em 28 de Novembro, com a Lei n.º 108/2001.

     Começa por afirmar que embora o conceito de funcionário seja, em regra, um conceito específico do Direito Administrativo, no CP é dele desligado se bem que continue intimamente ligado à actividade administrativa, em sentido geral.

     Considera duvidosa a adopção da solução prevista no n.º 2, que corresponde a parte do artigo 4.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 371/83, diploma surgido em época em que o sistema económico português era diferente do actual, devendo ter-se presente que houve alterações no sistema que eliminaram, em muito, a importância do sector empresarial do Estado e por outro lado, que a concepção subjacente à parificação destas situações parece estar hoje ultrapassada.

    No § 7.º considera que a solução que o Código Penal estabeleceu de criar um conceito autónomo e alargado de funcionário é politico-criminalmente justificável.

    O conceito de funcionário apenas tem aplicação nos casos de incriminação por força da qualidade de agente activo. O conceito de funcionário previsto para efeitos da lei penal é integrável apenas nos casos em que o agente activo do crime seja funcionário e já não quando o crime seja cometido contra vítima funcionário (§ 9.º, pág. 811).

    Versando o n.º 1, começa por sublinhar que corresponde na íntegra ao previsto na versão original do Código Penal, tendo sido redigido com a preocupação de abarcar todas as hipóteses possíveis de actuação administrativa.

    No § 17.º, aborda as alíneas a) e b), do n.º 1, os “agentes da administração”, concretamente, os funcionários (o “funcionário civil”) e o “agente administrativo”, afirmando que decisivo para a qualificação dada – que coincide, verdadeiramente, com o conceito estrito de funcionário – é que se trate de um agente com uma determinada qualidade funcional-subjectiva, ou seja, com uma ligação a uma pessoa colectiva de direito público.

    Após referir no § 18.º a natural exclusão do funcionário militar, sujeito a um regime penal específico, aborda no § 19.º a alínea c) do n.º 1, o conceito “alargado” de funcionário, grupo de agentes abrangidos pelo conceito de funcionário que, “sem vinculação funcional ou pessoal, e por qualquer forma (temporária ou provisoriamente, onerosa ou gratuitamente, voluntária ou obrigatoriamente), tenham sido chamados a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional ou, nas mesmas circunstâncias, a desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou a nelas participar.

    Conclui: “ Como é evidente, este grupo de pessoas integra já o denominado conceito alargado de funcionário”.

     No âmbito do art. 386.º -1, apenas cabe o chamado sector público administrativo, e não o sector empresarial público, remetido para o n.º 2 (§ 21).

     Lê-se no § 23, pág. 815: “Organismos de utilidade pública corresponde ao conceito, corrente no direito administrativo, de pessoas colectivas de utilidade pública, isto é, pessoas colectivas de direito privado que mereçam a qualificação de interesse público, ou seja, a declaração de utilidade pública, independentemente do substrato que lhes presida. Podem ser pessoas colectivas de mera utilidade pública, instituições particulares de solidariedade social ou pessoas colectivas de utilidade pública administrativa. 

     Refere no § 25: “Por força deste artigo cabem no âmbito do conceito não só agentes qualificados, como trabalhadores da Administração Pública – conceito mais vasto que os referidos nas als. a) e b) – e, além destes, quaisquer particulares (incluindo o caso, bastante discutido no direito público, do chamado “funcionário de facto”) participantes naquele âmbito”, de que dá por exemplos o caso dos jurados, árbitros  em processos de arbitragem e em processos administrativos, e as pessoas requisitadas a qualquer título para o exercício de funções administrativas e os que actuem como auxiliares em organismos da Administração da Justiça (p. ex., ao nível de jurisdição de menores).

     No caso de organismos de utilidade pública - esclarece no § 27, pág. 816 -, o que está em causa é o agente desempenhar funções ou nelas participar. A referência é diferente, uma vez que, em princípio, os organismos de utilidade pública são pessoas colectivas de direito privado, pelo que quem exerce funções nesses organismos não caberia no conceito de funcionário das als. a) e b).

     Em conclusão (§ 28.º), pode dizer-se que, no art. 386.º - 1, a denominação de funcionário é determinada por duas considerações: ou por o agente ter uma qualificação subjectiva (a vinculação ou integração num serviço) ou por uma qualificação de ordem material-objectiva: o desempenho de funções num serviço público ou jurisdicional (ou se se quiser, de forma mais geral, num serviço público enquanto satisfação de uma necessidade colectiva individualmente sentida, cf. Marcello Caetano, cit. 1067).

     De seguida, o Autor versa o artigo 386.º, n.º 2, e o conceito de funcionário no âmbito do sector público empresarial, abrangendo empresas públicas, empresas de capitais públicos, empresas com participação maioritária de capital público, empresa concessionária de serviços públicos e a situação dos gestores públicos (§§ 30 a 38).

     Procurando determinar o sentido da expressão para efeitos da lei penal, o Autor considera que a averiguação, em concreto – isto é, face ao tipo legal em causa – de quem pode ser funcionário, à luz do conceito de funcionário do artigo 386.º, tem de ser efectuada face ao concreto tipo legal e, nomeadamente, face ao tipo de interesses subjacentes à tipificação. Tal significará que, em regra, o conceito alargado de funcionário terá, sobretudo, aplicação quando estejam em causa crimes contidos no capítulo denominado “Dos crimes cometidos no exercício de funções públicas”. 

     Explica: “Só nestes tipos de crime se visa garantir o conjunto de interesses que estiveram subjacentes àquele alargamento – isto é, que quem, por qualquer forma, intervenha na prestação de serviços públicos, actue segundo os princípios que devem reger a actividade administrativa em geral: imparcialidade, regularidade, continuidade, não aproveitamento indevido pelo facto de se exercer um serviço público, etc. (§§ 39.º e 40.º, concluindo do mesmo modo no § 42.º).

     A concluir, foca o Autor os aspectos comuns do conceito de funcionário.

     Como consta do § 50, o conceito de funcionário para efeito da lei penal só tem validade quando o exercício das suas funções seja eficaz. Não podem verificar-se, pois, situações de usurpação de funções.

     E no § 51: “ O cometimento de um crime que suponha a qualidade de funcionário, seja enquanto elemento agravador da responsabilidade (crime específico impróprio), seja enquanto elemento fundamentador da responsabilidade (crime específico próprio), supõe que o agente actue com dolo quanto a esta qualidade. Dado o especial alargamento do conceito de funcionário, para efeitos da lei penal, nalguns casos bastará uma avaliação paralela na esfera do leigo para afirmar aquele dolo. (Os realces são do texto).

     Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris, 2008, págs. 939 a 942, comentam o preceito com a versão então vigente, ou seja, com a última alteração introduzida pela Reforma Penal de 2007, começando por referir estabelecer-se “alargado «conceito definitório de funcionário» que, adoptado «para efeitos da lei penal», dispõe, por isso, de carácter instrumental. Eduardo Correia, a propósito, fora bem explícito, ao referir «a necessidade de um conceito de funcionário suficientemente abrangente para que não se verificassem lacunas de punibilidade”, no mais, seguindo, a par e passo, as posições de Damião da Cunha, maxime, nas notas 3 a 12, 14 e 15.

     José Manuel Damião da Cunha, O Conceito de Funcionário, para Efeito de Lei Penal e a “Privatização” da Administração Pública, Uma revisão do Comentário ao Art. 386.º do Código Penal - Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, Limitada, com depósito legal n.º 280 263/2008,  Agosto de 2008, explicita que a monografia teve por base, ou por motivo, um parecer, versando a qualificação como funcionário, para efeito de lei penal, de um titular de um órgão social de uma pessoa colectiva de utilidade pública desportiva, elaborado no âmbito do processo vulgarmente denominado “Apito Dourado”, desde logo esclarecendo tratar-se de uma abordagem claramente diferenciada da feita no Comentário.

     Ao longo do trabalho há uma única referência - pág. 42 - ao crime de peculato, muito ligeira, focando o Autor mais o crime de participação económica em negócio, em que está em causa meramente a tutela (de interesses) patrimonial, o que não ocorre com a tutela do crime de peculato.

    Afirma em nota de rodapé, que o tipo legal de peculato, em sentido específico, refere-se ao agente de serviço público (e prescinde de uma qualquer relação orgânica), que viola os seus deveres funcionais face a bens do Estado ou de particulares na legítima posse do Estado.

    Ao abordar, no Capítulo V, os organismos de utilidade pública, a págs. 58/9, após referir a redução do universo das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, dando-se o fenómeno inverso com a mais “importante” – a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – e que foi o da sua oficialização, refere o Autor ter-se verificado uma posterior alteração do estatuto destas entidades.

    Afirma, de seguida: «Ainda que com base num estatuto legal, as denominadas “pessoas colectivas de utilidade pública administrativa especiais” (são os casos da Santa Casa da Misericórdia, da Cruz Vermelha Portuguesa e da Liga de Combatentes, todas elas porque têm um estatuto específico legal), recuperaram a sua feição privatística (ao ponto de, algumas delas, se poderem denominar “entidades administrativas privadas”», como é o caso da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

    Reconhece o Autor continuar a existir alguma “ingerência” governativa, porque alguns dos titulares dos órgãos destas pessoas colectivas são nomeados pelo Governo, como acontece com o Provedor da Santa Casa, e igualmente, com o Presidente da Cruz Vermelha Portuguesa.

     A propósito do artigo 11.º do Código Penal, entende que a expressão “pessoa colectiva pública” inserta no preceito, assume uma intenção alargadora, no sentido de equiparar as “entidades privadas” (as aí descritas) a outras entidades (pessoas colectivas) públicas. (cfr. pág. 77, voltando ao tema, a págs. 106).

     Como auxiliar na interpretação dos conceitos do Código Penal, a págs. 80, é introduzido o novo Regime da responsabilidade extracontratual do Estado (Lei n.º 67/2007, de 30 de Dezembro, diploma que, entende o Autor, faz um duplo alargamento: a) aos (indivíduos) não submetidos ao regime de função pública, mas que actuam em pessoas colectivas públicas; e b) um alargamento às próprias pessoas colectivas privadas. 

     Versando a situação actual, após a abordagem na nota 69, a págs. 56, em que se demarca da anterior posição, ao afirmar que não podem ser integradas no conceito de funcionário, as pessoas colectivas de mera utilidade pública e as denominadas instituições particulares de solidariedade social, no § 4.º, a págs. 60, afirma o Autor: “(…) entendendo-se que as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa são hoje pessoas colectivas de direito privado, falha o pressuposto, histórico e teleológico, que legitimaria a subsunção, no conceito de funcionário, daqueles que exercem (ou participam no exercício de) funções públicas nessas entidades.”

     Do ponto de vista do Autor, expresso a págs. 62, o desempenho de funções públicas em “pessoas colectivas de utilidade pública administrativa” não constitui por si qualquer razão que legitime, hoje em dia, a qualificação como funcionário, pelo facto de o conceito de funcionário ter tido sempre como pressuposto o desempenho (ou participação no desempenho) de função pública em pessoa colectiva de direito público.

     Insiste na conclusão de págs. 84 “o conceito de funcionário, para efeito de lei penal, não pode abranger, atentas as suas fontes históricas, o contexto histórico-constitucional em que foi elaborado e do mesmo a sua ratio, as entidades privadas, sejam empresariais ou institucionais, ainda que exerçam poderes públicos.   

     O Autor repete a ideia na nota 105, a págs. 81/82, e a págs. 89, conclui que todas as entidades previstas no art. 386.º, de base “associativa” ou de base “empresarial”, mas de carácter (hoje em dia, indiscutivelmente) privado não podem servir de fundamento para a inclusão dos indivíduos, que nelas desempenham (ou participam no desempenho de) funções (em regra, sociais), no âmbito do conceito de funcionário para efeito de lei penal, pelo que qualquer crime cometido no exercício de funções/serviços públicos os não pode abranger.

     Como bem frisa Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, UCE, 2008, pág. 913 e na 2.ª edição actualizada, 2010, pág. 1028, a prolixidade de conceitos cria insegurança jurídica, quer na subsunção dos factos aos tipos legais quer na resolução do concurso de normas /concurso de crimes.

     O conceito de “funcionário” surge no CP como autor do crime, como vítima directa do crime, o acto do funcionário como objecto do ataque, o múnus do funcionário como objecto do ataque, o funcionário como testemunha do crime e como participante necessário no crime. 

    A págs. 914 (em 2008) e pág. 1029 (em 2010), apresenta as definições que seguem:

    O funcionário civil é o agente administrativo profissional submetido ao regime da função pública.

    O agente administrativo é a pessoa que, por qualquer título, exerce actividade ao serviço das pessoas colectivas de direito público, sob a direcção dos respectivos órgãos.

    A função pública administrativa inclui a administração directa, estadual, regional ou local, mas também a administração pública indirecta (por exemplo, os institutos públicos), autónoma (por exemplo, as associações públicas) e independente (por exemplo, o Conselho Superior da Magistratura).

    O organismo de utilidade pública é a pessoa colectiva de direito privado que é objecto de declaração de utilidade pública, precisamente porque a declaração de utilidade pública reconhece a “cooperação” desta pessoa colectiva no exercício da função pública da Administração, nos termos do artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 460/77, de 7-11 (por exemplo, as pessoas colectivas de mera utilidade pública, as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa e as instituições particulares de solidariedade social). Assinala “Contra, agora, DAMIÃO DA CUNHA, 2008: 56 e 62, contrariando as anotações 23.ª e 27.ª ao artigo 386.º, in CCCP, 2001, com base num novo entendimento, mais restritivo, do âmbito subjectivo do preceito”.  

     A empresa pública, a empresa nacionalizada, a empresa de capitais públicos e a empresa com participação maioritária de capital público fazem parte do sector empresarial do Estado.

     A empresa concessionária de serviços públicos é uma pessoa colectiva de direito privado com a qual o Estado contrata a concessão de um serviço público.

    Os serviços públicos são serviços que visam a satisfação de necessidades colectivas

passíveis de individualização (Daseinsvorsorge), como o fornecimento ao público de água, luz, energia ou calor (ver por exemplo, artigo 277.º, n.º 1, al.ª d).

     Na nota 30, pág. 915 (em 2008) e pág. 1030 (em 2010), volta à posição de Damião da Cunha, afirmando que o Autor “defendeu, em 2001, um conceito restritivo de funcionário no sector empresarial do Estado, de acordo com o qual só o agente que exercesse funções numa empresa que explorasse serviços públicos poderia ser considerado funcionário (DAMIÃO DA CUNHA, anotação 37.ª ao artigo 386.º, in CCCP, 2001). O Autor assume agora uma posição ainda mais restritiva (DAMIÃO DA CUNHA, 2008: 56 e 62), nos termos da qual não estão incluídas no conceito alargado de funcionário as “entidades privadas, sejam empresariais ou institucionais, ainda que exerçam poderes públicos”. No novo entendimento do Autor, só as pessoas colectivas de direito público são subsumíveis ao conceito penal alargado de funcionário, previsto n.º 1, al.ª c) e no n.º 2 do artigo 386.º (expressamente neste sentido ver a afirmação no final da nota 105 do texto citado de 2008). 

     Este entendimento, afirma, não é aceitável, apresentando em 2008 três razões (ver pág. 915), mas de forma mais contundente, ampliadas e publicadas em Outubro de 2010, pelas razões seguintes:

(1) ele contraria o propósito ampliativo do legislador e a ratio da equiparação legal, já referidos (exactamente nestes termos, com base no § 1.º (1), 2.º,do StGB, TRODLE –Fischer, anotação 17 ao § 11.º, SS-ESER, anotação 21.ª ao § 11.º, e HK-GS-Bannenberg, anotação 10.º ao § 331.º: “o fim de protecção desta disposição - a defesa da objectividade do exercício da função e indirectamente a confiança do povo nela - tem lugar no desempenho de tarefas sob formas privadas exactamente como no desempenho de tarefas sob a forma de direito público e, ainda mais clara, sobre a intentio expansiva do legislador, a nota crítica de Faria Costa, 1998, a: 91 e 92, concluindo, em face do n.º 2 do artigo 386.º , que “parece-nos ser evidente, a todas as luzes,  que se está perante um alargamento da equiparação a funcionário que, em alguns caso não tem, a nossos olhos, qualquer ligação substancial com o conceito matricial de funcionário que o direito público nos oferece” e rematando de iure condendo se foi longe demais na equiparação; 

(2) ele contraria a letra da lei na parte final do n.º 2, porque a previsão de empresas concessionárias de serviços públicos visou precisamente incluir pessoas colectivas particulares, e incólume na transição

(3) ele não é compatível com a inclusão no preceito legal de pessoas singulares que exerçam provisória ou temporariamente actividades compreendidas na função pública administrativa (como o perito da administração e o veterinário particular que se inscreve na campanha de vacinação contra a febre aftosa) ou na função jurisdicional (como o jurado, o liquidatário judicial e o encarregado da venda por negociação particular  de bens penhorados) (concordando agora que há pessoas singulares que exercem poderes públicos, com um exemplo actual dos notários, mas discordando do exemplo do jurado e não se pronunciando sobre o perito da administração, Damião da Cunha , 2009, a: 90).

Bem vistas as coisas, seria inconcebível que o legislador incluísse no conceito penal de funcionário pessoas singulares que exercem poderes públicos e não incluísse o empregado de entidade colectiva privada que exerce poderes públicos. A violação do princípio da igualdade seria gritante.    

    Com o que se junta um quarto argumento, de natureza constitucional, para defender a inclusão no conceito penal de funcionário dos empregados de entidades privadas, sejam privadas ou institucionais, que exerçam poderes públicos (como, aliás, também resulta a contrario do acórdão do TC n.º 589/97, baseado no acórdão do TC n.º 864/96). Por fim, a recente revisão do CP confirmou precisamente esta visão das coisas, pois inclui explicitamente os “árbitros, jurados e peritos” entre os funcionários. Isto é, a nova al.ª c) do n.º 1 exemplifica, explicita e concretiza a al.ª d) do mesmo número do artigo 386.º, tratando-se de três exemplos de pessoas singulares que foram chamadas a desempenhar ou participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional”.

     De entre os vários exemplos que assinala como funcionários em face dos respectivos estatutos profissionais, cita, a págs. 1031, o de vice-presidente de uma instituição particular de solidariedade social que seja pessoa colectiva de utilidade pública (acórdão do TRG, de 25-06-2007, in CJ, XXXII, 3, 296).

     Na nota 35, pág. 1032, pode ler-se que “Os crimes cometidos no “exercício das funções” são os cometidos durante o exercício das funções, por ocasião do exercício das funções ou por causa do exercício das funções, procedendo a lei à equiparação destas expressões, fundamental sendo a verificação de uma relação causal entre a ocupação da função pelo funcionário e o resultado, acção ou omissão que lhe são imputados.

    A categoria de “funcionário” é um elemento normativo do tipo, cujo conhecimento depende apenas da apreensão pelo agente do sentido social do elemento do tipo (“valoração paralela na esfera do leigo”) e não de uma exacta subsunção jurídica dos factos na lei que os prevê. (pág. 1032).

    José António Barreiros, Crime de peculato, Labirinto de letras, Editores, 2013, págs. 52, afirma que como crime próprio e de mão própria, importa para o peculato a existência de um sujeito activo que seja «funcionário», uma qualidade pessoal necessária; porquanto próprio, trata-se de um crime que só pode ser praticado por quem detiver certa qualidade pessoal, no caso funcional.

    A págs. 54, prescinde de uma abordagem especificada sobre a noção penal de funcionário, remetendo para a que fará em outras obras em curso de escrita, onde serão tratados outros crimes para cuja delimitação é relevante tal noção.

    No entanto, a anteceder esta remissão para o futuro, afirmou, a págs. 54: “o legislador, em vez de ter incriminado por peculato os funcionários e ter decretado que seriam sujeitos a igual punição outras categorias de cidadãos, optou por uma ficção jurídica, a de que essas categorias – que enunciou ao invés de definir – seriam também funcionários.

    Ou seja, aqueles outros que o Estado não reconhece como seus para efeito algum - cuidadoso como é o Direito Administrativo em só considerar, para efeitos estatutários, como funcionários em sentido estrito um corpo restritivo de servidores - passam agora, pois que se trata de repressão, a serem abrangidos pela qualificação ali negada”.

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    M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal Parte geral e especial, Almedina, 2014, comentam o artigo 386.º, de págs. 1262 a 1268, seguindo de perto no ponto 10 a posição restritiva de Damião da Cunha, embora assinalando obra de 2011, afirmando-se na nota 11 “Estamos convencidos da irremediável necessidade de optar por uma visão restritiva “para efeitos penais”.

     Referem os Autores nos pontos 14 e 15 que “O agente não pode ser punido se no momento da prática do facto não tiver a qualidade de funcionário”. Sem relevância típica são as condutas de natureza privada, mesmo quando levadas a efeito por ocasião do serviço”, aludindo-se ao agente putativo no ponto 16.

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    O Assento de 19 de Dezembro de 1951 e a ilicitude na comparticipação - Artigo 28.º do Código Penal

      O Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Dezembro de 1951, publicado no Diário do Governo, 1.ª Série, n.º 3, de 7 de Janeiro de 1952, e no BMJ n.º 28, pág. 164, com 4 votos de vencido, fixou jurisprudência no sentido de que

      “As qualidades exigidas nas incriminações dos artigos 312.º e 313.º do Código Penal são elementos constitutivos dos respectivos crimes. As sanções desses artigos são aplicáveis tanto aos autores materiais como aos autores morais” (no caso, não funcionários). 

      Como se extrai da fundamentação, “Esses crimes, de descaminho de papéis confiados em razão de emprego público e de peculato, afectam não só o interesse patrimonial do Estado mas também o de fidelidade dos seus empregados e ordem do serviço público”.

      Após afirmar que ambas as incriminações protegem esse interesse complexo, explicita:

      “E que a protecção da função pública é característica daqueles crimes vê-se claramente dos parágrafos 1.º do artigo 312.º e 3.º do artigo 313.º, que dispensaram a qualidade de empregado público para as respectivas incriminações.

      Os factos prevenidos nesses artigos têm gravidade própria, pela ofensa à honorabilidade, prestígio e autoridade naturais do exercício da função pública.

      E são estes interesses da função, da ordem pública, que preponderam nos interesses visados nessas incriminações e, assim, sobre o patrimonial.

     A qualidade de empregado público dum dos agentes desses delitos corresponde à estrutura destes e aos interesses especiais protegidos pelas respectivas normas, e essa qualidade ou posição pessoal é requisito elementar ou constitutivo dos factos típicos incriminados e não um elemento circunstancial, acessório dessas infracções (artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal).

      E, consequentemente, nesses crimes e quanto à referida qualidade, não pode haver lugar à aplicação do disposto nos artigos 31.º e 32.º desse Código. Qualquer que seja a melhor doutrina sobre a natureza da comparticipação criminosa, todos os que conscientemente concorram para o cometimento dessas unidades criminais ou a elas adiram, nos termos dos artigos 20.º a 23.º do mesmo Código, são seus autores, cúmplices ou encobridores, conforme as respectivas actividades, desde que os mesmos crimes se dêem”.

 

     Para uma melhor compreensão do sentido e alcance deste Assento, tenha-se em conta os pressupostos, isto é, o quadro normativo adrede convocado, tendo-se em conta que à data estava em vigor o Código Penal de 1886.

     O artigo 40.º - “Circunstâncias agravantes. Cessação do respectivo efeito”, dizia:

     As circunstâncias indicadas como agravantes deixam de o ser:

     2.º Quando forem de tal maneira inerentes ao crime, que sem elas não possa praticar-se o facto criminoso punido pela lei;

     Os artigos 20.º a 23.º definiam os autores, o excessus mandati, os cúmplices e os encobridores.

     Estabelecia o artigo 31.º (Circunstâncias inerentes ao agente):

     As circunstâncias agravantes ou atenuantes inerentes ao agente só agravam ou atenuam a responsabilidade desse agente.

     E o artigo 32.º (Circunstâncias relativas ao facto incriminado):

     As circunstâncias agravantes relativas a facto incriminado só agravam a responsabilidade dos agentes, que delas tiveram conhecimento ou que devessem tê-las previsto, antes do crime ou durante a sua execução.

     Este artigo abrange as circunstâncias relativas à ilicitude do facto, as quais, segundo o entendimento uniforme da jurisprudência do STJ, a partir do assento de 19 de Dezembro de 1951, são comunicáveis a todos os agentes da infracção a quem possam ser dolosamente imputadas.

     Sobre a ilicitude na comparticipação rege actualmente o artigo 28.º do Código Penal.      

     A referência expressa ao artigo 28.º do Código Penal encontra-se presente nos acórdãos de 11 de Novembro de 1981, processo n.º 36 353, in BMJ n.º 311, pág. 227, e de 13 de Fevereiro de 1986, processo n.º 38 212, in BMJ n.º 354, pág. 303, com invocação em ambos os casos do citado Assento de 19 de Dezembro de 1951.

 

     Eduardo Correia, Direito Criminal (I - Tentativa e Frustração. II - Comparticipação criminosa. III - Pena conjunta e pena unitária), Colecção Studium, Coimbra, 1953, ao abordar a comparticipação criminosa, e concretamente os crimes próprios, diz: “Efectivamente, por exemplo, não sendo autores os instigadores e os cúmplices, não seria necessário que estes reunissem as qualidades que a lei descreve como elemento constitutivo de certos tipos legais de crimes, chamados próprios (Sonderverbrechen), como v. gr. a de funcionário. Assim o extraneus, que não reúne certas qualidades típicas, não podendo ser autor, poderia ser punido como cúmplice ou instigador de tais crimes”.

     Mas adianta: “Só que as desvirtuações e as concessões a que é forçada tal teoria depõem fortemente contra a sua legitimidade e conduzem-nos a verificar que o seu fundamento é totalmente erróneo”.

     Teresa Pizarro Beleza Ilicitamente comparticipando - O âmbito de aplicação do artigo 28 do Código Penal, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, III, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Número especial, Coimbra, 1984, págs. 589 a 649 (658), abordando as situações de comparticipação, crimes específicos próprios, como o crime de peculato de uso (pág. 609), refere o Assento de 1951 (págs. 603/5), a extensão da pena dos intranei aos extranei  (pág. 639), os crimes de mão própria (pág. 641) e o regime do artigo 28.º do Código Penal. 

     Da mesma autora, A estrutura da autoria nos crimes de violação de dever - Titularidade versus Domínio do facto?, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, 3.º, Julho-Setembro 1992, pág. 337 a 351, visando a comparticipação em crimes específicos próprios e o artigo 28.º do Código Penal, que “estabelece, em casos de comparticipação, uma comunicabilidade total de circunstâncias fundamentadoras da ilicitude (ou do seu grau) que consistam em «qualidades ou relações especiais do agente» - de uma forma paralela ao estatuído no § 14 do Código Penal Austríaco”.

     Figueiredo Dias, Direito Penal Parte Geral, Tomo I (Questões fundamentais. A doutrina geral do crime), Coimbra Editora, Dezembro de 2004, págs. 287 e 288, ao abordar os “Crimes específicos”, refere tratar-se de caso em que a lei leva a cabo em matéria de determinação do autor individual uma especialização, no sentido de que certos crimes só podem ser cometidos por determinadas pessoas, às quais pertence uma certa qualidade ou sobre as quais recai um dever especial, de que são exemplos os arts. 227.º (O devedor que…), 284.º (O médico que…) ou 375.º (O funcionário que …), falando-se a este respeito, com propriedade, em elementos típicos do autor.

     Neste âmbito “distingue-se entre crimes específicos próprios ou puros e impróprios ou impuros. Nos primeiros a qualidade especial do autor ou o dever que sobre ele impende fundamentam a responsabilidade: é o caso por ex. do crime de prevaricação do art. 370.º, cuja conduta, se não for levada a cabo por advogado ou solicitador, não constitui crime. Nos segundos a qualidade do autor ou o dever que sobre ele impende não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para a agravar; é por ex. o caso do art. 378.º, que comina uma pena mais grave para o crime de violação de domicílio, previsto no art. 190.º, quando este for cometido por funcionário. Cremos que em todos estes crimes específicos decisivo é, em último termo, o dever especial que recai sobre o autor, não a posição do autor de onde este dever resulta” (…).

     A distinção entre crimes comuns e específicos, próprios e impróprios, assume relevo prático significativo sobretudo em matéria de comparticipação (eventualmente também em matéria de erro), nomeadamente em sede de distinção entre autoria e cumplicidade, bem como de comunicabilidade entre os comparticipantes de “certas qualidades ou relações especiais do agente” (art. 28.º).

      Refere o Autor os chamados crimes de mão própria, isto é, tipos de ilícito em que o preceito legal quer abranger como autores apenas aqueles que levam a cabo a acção através da sua própria pessoa, não através de outrem; quer abranger apenas pois, em princípio, os autores imediatos, ficando excluída a possibilidade da autoria mediata; e mesmo da co-autoria relativamente àqueles comparticipantes que não tenham chegado a executar por próprias mãos a conduta típica, não podendo por isso, nestes casos, verificar-se a “comunicabilidade” a que se refere o art. 28.º (cf. a parte final do n.º 1: “excepto se for outra a intenção da norma incriminadora”. (Caso dos arts. 165.º e 166.º e 295.º).      

      O Autor retoma estes temas em Direito Penal Parte Geral, 2.ª edição, 2007, págs. 303 a 305, 770 e 771, e mais à frente, sobre comunicabilidade e incomunicabilidade (artigos 28.º e 29.º do Código Penal), de págs. 848 a 854.

      Susana Aires de Sousa aborda o tema em A autoria nos crimes específicos: algumas considerações sobre o artigo 28.º do Código Penal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 15, n.º 3, Julho-Setembro 2005, págs. 343 a 368.

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       Abordagens na jurisprudência sobre o crime de Peculato e o conceito de “Funcionário”

       A enunciação será sequencial, obedecendo apenas a um critério cronológico, o que é dizer, demandando a cada passo a compreensão do decidido em função do que em cada tempo era lei (e as mudanças foram muitas, maxime, em função da definição dos contornos do conceito de funcionário, nodal in casu, por estarmos perante crime específico, equacionando-se a presença da qualidade do agente, sempre em majoração, mais compreensivo, desde logo em 1852, expressão mutante, em crescendo, ao longo dos tempos, mais recentemente, ao invés, se defendendo, como se viu, conceito mais restritivo).

    

     Jurisprudência abordando o crime de peculato

     No Tribunal Constitucional

    Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 201/98, de 3 de Março de 1998, proferido no processo n.º 20/98, da 1.ª Secção, in BMJ n.º 475, pág. 44, em sede de autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, interpostos pelo promotor de justiça junto do Supremo Tribunal Militar, em caso em que foi condenado o arguido pela prática de um crime de peculato, p. p. pelo artigo 193.º, n.º 1, alínea b), do Código de Justiça Militar, visando a apreciação da conformidade da norma à Constituição, na parte em que fixa os limites da medida abstracta da pena. 

     A norma constante do artigo 193.º, n.º 1, alínea b), do Código de Justiça Militar, na medida em que fixa o limite mínimo da pena de prisão maior em 12 anos, ao prever para o crime de peculato militar, a pena de 12 a 16 anos de prisão maior - quando o Código Penal artigo 375.º, n.º 2, pune o peculato de funcionários públicos com a penalidade de 1 a 8 anos de prisão – exprime diferença entre as penalidades estabelecidas na lei militar e as penalidades estabelecidas na lei penal comum de tal forma significativa que, forçosamente, tem de se afirmar que implica a existência de uma desproporcionalidade incompatível com os princípios consagrados nos artigos 13.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa. 

    O acórdão julgou a norma inconstitucional por violação do disposto nos artigos 13.º e 18.º da CRP.

    No Supremo Tribunal de Justiça e Relações

     Pela sua importância e actualidade do tema da ilicitude na comparticipação, relembrar-se-á o supra citado Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Dezembro de 1951, publicado no Diário do Governo, 1.ª Série, n.º 3, de 7 de Janeiro de 1952, e no BMJ n.º 28, pág. 164.

     Sobre o bem jurídico tutelado releva o que consta do acórdão de 13 de Dezembro de 1961, proferido no processo n.º 30.784, in BMJ n.º 112, pág. 344, versando conduta de chefe interino de secretaria de tribunal, que, acerca do objecto da tutela penal, afirma: “Não é, propriamente, o interesse económico da Administração, aquilo que o art. 313.º do Código Penal visa acautelar, mas sim o interesse público relativo à garantia de entrega, por confiança, de dinheiros ou bens móveis públicos ou privados, feita a empregados públicos, em atenção às suas funções”.

     O acórdão de 23 de Março de 1966, proferido no processo n.º 31 745, BMJ n.º 155, pág. 281, citando Cavaleiro Ferreira e Eduardo Correia, afirma resultar da lição de ambos que só quando o empregado – ou a pessoa que se lhe possa equiparar por aplicação do artigo 327.º do Código Penal – está investido em funções públicas, «na forma e condições legais», ou exercer «atribuições legais», poderá verdadeiramente cometer «um abuso de funções públicas» idóneo para qualificar de peculato um crime patrimonial de abuso de confiança ou de furto. No caso, o réu foi, por meio ilegal, indevidamente investido numa actividade destinada a realizar interesses públicos. A investidura, afectada de ilegalidade, não pode tê-lo colocado na situação de «empregado público», que em razão «ou por motivo das suas funções» praticou actos que o colocassem na situação prevista no artigo 313.º. Conclui assim que não comete o crime de peculato, mas o de abuso de confiança, o empregado público que dissipa quantias pertencentes ao Estado e que estão em seu poder por ordem de serviço do superior hierárquico dada em contravenção de disposição legal proibitiva de tal prática.

     Para o acórdão da Relação de Luanda, de 31 de Março de 1970, in Acs. da Relação de Luanda, 1970, 89 e Sum. Jur., XX, 239 - “O art. 313.º do C.P. visa acautelar não o interesse económico da Administração, mas sim o interesse público relativo à garantia da entrega, por confiança, de dinheiro ou bens móveis públicos ou privados, feita a empregados públicos, em atenção às suas funções. Na expressão em razão das suas funções, que se lê na citada disposição, compreendem-se não só as funções que derivam directamente da lei mas também aquelas que, na esfera das suas atribuições, são atribuídas por determinação superior, legalmente emitida, aos diversos empregados públicos”. 

     Para o acórdão de 18 de Julho de 1984, processo n.º 37 448, in BMJ n.º 339, pág. 289, os crimes de peculato e falsificação encontram-se em concurso real.      

     Para o acórdão de 13 de Fevereiro de 1986, processo n.º 38 212, in BMJ n.º 354, pág. 303, em caso de comparticipação activa de cinco guardas fiscais e empregados da Administração do Porto, foi desconsiderado o crime de peculato (artigo 424.º), por a punição do furto qualificado se revelar mais severa, comunicando-se a agravativa decorrente da qualidade de funcionário aos restantes agentes, nos termos do artigo 28.º, n.º 1, do Código Penal, com invocação do aludido Assento de 19-12-1951, in Diário do Governo de 7-05-1952 e BMJ n.º 28, pág. 164.

     No acórdão de 16 de Dezembro de 1986, prolatado no processo n.º 38 675, in BMJ n.º 362, pág. 359, foi versado crime de peculato de uso, figura prevista a partir do Código Penal de 1982, não sendo aplicada a pena acessória de demissão.

     No acórdão de 11 de Maio de 1988, proferido no processo n.º 39 502, in BMJ n.º 377, pág. 265, foi versado o crime de peculato de uso.

    O acórdão de 31 de Outubro de 1990, proferido no processo n.º 41 086, in BMJ n.º 400, pág. 357, versa os crimes de favorecimento pessoal e corrupção passiva praticados por funcionário – no caso, um técnico de justiça auxiliar –, que foi condenado em pena de prisão efectiva e na pena acessória de demissão.

     O acórdão de 13 de Fevereiro de 1991, proferido no processo n.º 41 269, in BMJ n.º 404, pág. 169, pronunciou-se no sentido de verificar-se concurso real entre os crimes de peculato e de falsificação de documento.  

    No acórdão de 25 de Setembro de 1991, proferido no processo n.º 42 008, in BMJ n.º 409, pág. 491, afirma-se: O elemento da Guarda Nacional Republicana – funcionário público – que se apropria de guias de substituição de carta de condução, a que tem acesso por força das suas funções, e que estão guardadas no Posto da Guarda Nacional Republicana em local sem acesso de particulares, comete o crime de peculato.

    É irrelevante que tenha recebido dinheiro ou outra coisa de que se tivesse apropriado, bastando que o agente funcionário esteja em condições de acesso às guias, de que se apropriou.

    No acórdão de 29 de Abril de 1992, proferido no processo n.º 42 600, in BMJ n.º 416, pág. 388, em causa estava a prática de um crime de peculato cometido por técnico de justiça adjunto, que levantou e gastou o dinheiro de cheque destinado ao Estado, tendo sido suspensa a execução da prisão.

    Considera-se no acórdão: A suspensão da execução da pena assume autonomia; é diferente da pena de prisão, integrando a categoria das penas de substituição, sendo incompatível com a cominação da pena acessória de demissão.

    O acórdão condena o arguido em juros de mora, à taxa anual de 15%, por aplicação da Portaria n.º 339/87, de 24-04, e não à taxa mensal de 1%, então aplicável.

     (Em sentido contrário à aludida incompatibilidade com a cominação da pena acessória de demissão, pronunciou-se o acórdão de 17 de Junho de 1992, proferido no processo n.º 42 833, in BMJ n.º 418, pág. 523).

    No acórdão de 24 de Junho de 1992, proferido no processo n.º 42 729, in BMJ n.º 418, pág. 675, é versado caso de escrivão adjunto nomeado interinamente e depois passando a assegurar as tarefas inerentes ao cargo de secretário judicial, sendo afastado o crime de peculato de uso e determinado reenvio do processo para novo julgamento.

     No acórdão de 28 de Outubro de 1992, proferido no processo n.º 43 064, in BMJ n.º 420, pág. 289, em causa estavam crimes de peculato e de falsificação de documentos, cometidos por funcionário de Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, podendo ler-se: O artigo 424.º do C. P. destina-se a proteger o interesse do Estado em que os seus funcionários sejam honestos, não abusando, descaminhando-as, das coisas que lhes são confiadas naquelas qualidades.

   Como elementos típicos, aponta:

1) Que o funcionário – cuja noção é dada pelo artigo 327.º do Código Penal – se aproprie, ilicitamente, em proveito próprio, de dinheiro ou qualquer outra coisa móvel, pública ou particular;

2) Que o dinheiro ou qualquer outra coisa móvel, pública ou particular lhe tenha sido entregue, ou esteja na sua posse, ou lhe seja acessível em razão das funções que exerce; e

3) Que actue com manifesta intenção de se apropriar do dinheiro ou qualquer outra coisa móvel, pública ou particular, bem sabendo que lhe não pertenciam, que actuava contra a vontade dos donos e que a sua actuação era punida por lei.

     A consumação verifica-se no preciso momento em que o agente se apropria do dinheiro ou de qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível por virtude das funções que exerce.

     Como consta do acórdão de 14 de Abril de 1993, processo n.º 43 378, in BMJ n.º 426, pág. 171, “O vender ou trocar por outras máquinas fotocopiadoras propriedade do Estado, a que o arguido funcionário tinha acesso por força das suas funções (presidente do Conselho Administrativo de Escola Secundária), é uma actuação que se integra no conceito de apropriação daquelas, por parte do arguido, fora dos condicionalismos legais, em favor de terceiro, e que é subsumível à previsão do crime de peculato do artigo 424.º, n.º 1, do Código Penal”.

     O acórdão de 11 de Novembro de 1993, proferido no processo n.º 44 874, in CJSTJ 1993, tomo 3, pág. 245, versando concurso real de crimes de falsas declarações, p. p. pelo artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 33 725, de 21-06-1944, de subtracção de documentos, na forma continuada, p. p. pelos artigos 30.º, n.º 2, 231.º e 232.º com referência ao art. 437.º, n.º 1, alínea c), de dois crimes de falsificação de documentos, em concurso real, na forma continuada, p. p. pelo artigo 228.º, n.º 1, alíneas a) e b), n.º 2 e n.º 3, com referência aos artigos 229.º e 437.º, n.º 1, alínea c) e 30.º, n.º 2, e de um crime de peculato, p. p. pelos artigos 424.º e 297.º, n.º 1, alínea a), na forma continuada, 437.º, alínea c), e 30.º, n.º 2, do Código Penal.  

     O acórdão, ex-officio, considerou que a pena abstracta prevista para o subtipo do n.º 3 do artigo 228.º é uma só, independentemente das características do documento falsificado (no caso, letras de câmbio e outros documentos), considerando a realização plúrima do subtipo do n.º 3 e não do subtipo dos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico, ou seja, a autenticidade ou genuinidade dos documentos.

     Nesse caso, a natureza e as características do documento falsificado não representam um elemento constitutivo do sub-tipo de crime, os elementos constitutivos desse sub-tipo são, para além do dolo, a falsificação e a condição de funcionário do agente.

    Em resumo: Independentemente da natureza e características dos documentos falsificados, e do seu valor probatório, a realização plúrima do subtipo do n.º 3, constitui um só crime continuado. 

    Vejamos, entretanto, o que mereceu inscrição no sumário, inscrito na CJSTJ:

    Sendo o crime de peculato de valor consideravelmente elevado, a pena correspondente é fixada dentro dos limites estabelecidos para o furto qualificado, nos termos do art. 424.º n.º 1 do C. Penal.

    Para o acórdão de 30 de Novembro de 1993, proferido no processo n.º 45 053, in BMJ n.º 431, pág. 275, comete o crime de peculato do artigo 424.º, n.º 1, do Código Penal, a secretária judicial que, no exercício das suas funções, recebe um vale postal titulando a quantia de 4678$00 para pagamento de custas judiciais e, apesar de ter conhecimento do fim a que se destina esse montante, procede ao seu levantamento e o gasta em proveito próprio. A pena de prisão é suspensa; tratando-se de pena de prisão suspensa, a pena de demissão nunca poderia ser aplicada, como fizera a sentença recorrida, revogando-a nessa parte.

    O acórdão de 20 de Janeiro de 1994, proferido no processo n.º 45 786, in BMJ n.º 433, pág. 284, aborda caso de médico veterinário em regime liberal, participando na campanha de vacinação contra a febre aftosa de 1987, que comete o crime de falsificação praticada por funcionário, p. p. pelo artigo 233.º, n.º 1, referido ao artigo 437.º, alínea c), do Código Penal. Aí se considerou: “O conceito de funcionário do art. 437.º do C. Penal de 1982 é um conceito autónomo válido para o Código Penal e que não tem de decalcar ou sequer assentar noutros conceitos estabelecidos para outros domínios do direito e adequa-se às funções provisórias desempenhadas pelo arguido que participa em campanha oficial contra a febre aftosa, afixando marcas auriculares, cadernetas de vacinação”.

    O acórdão de 9 de Novembro de 1994, proferido no processo n.º 46 600, CJSTJ 1994, tomo 3, pág. 245, versa concurso de crimes de peculato, descaminho de autos e favorecimento pessoal, praticados por oficial de justiça em Tribunal Judicial, primeiro como chefe de secretaria e depois como escrivão de direito.

    O acórdão de 30 de Novembro de 1994, processo n.º 46 380, BMJ n.º 441, pág. 53, aborda caso de funcionário dos CTT, considerando que a punição do peculato não absorve a do crime de violação de segredo de correspondência. Um e outro protegem interesses e bens jurídicos distintos e não coincidentes e o último não é um «delito obstáculo» preordenado a evitar ou dificultar a agressão à propriedade por funcionários ou agentes públicos.

    No crime de peculato nenhuma intenção especial se exige ao agente, capaz de caracterizar o «dolo específico». Conclui pela existência de um concurso de crimes efectivo e verdadeiro. 

    O acórdão de 11 de Outubro de 1995, proferido no processo n.º 48 124, BMJ n.º 450, pág. 98, versa sobre caso de crime de peculato, mas apenas quanto à medida da pena, suspensa na execução sob condição de entregar ao Estado determinada quantia e a abolida pena de demissão e pena acessória de proibição de exercício da função pública por determinado período de tempo.

    O acórdão de 30 de Novembro de 1995, proferido no processo n.º 47 074, CJSTJ 1995, tomo 3, pág. 248, defende existir um concurso real de infracções entre os crimes de peculato e de destruição de documentos, pois, enquanto que, no primeiro, a norma incriminadora protege os bens e o património da entidade ofendida contra acções desonestas dos seus servidores, no segundo daquele crimes, visa-se a defesa do valor que os documentos têm como elementos de prova. Não há, portanto, coincidência nos interesses protegidos. O crime de peculato pode ser praticado sem destruição de quaisquer documentos. 

    Extrai-se do acórdão este passo: “A conduta naturalística não tem interesse, a não ser na medida em que, com a conexão temporal, é índice de uma unidade ou pluralidade de resoluções criminosas”.

     “Teremos, pois, que atender, na indagação da unidade ou pluralidade de infracções perpetradas, não aos fins procurados pelo agente que as praticou mas antes aos fins visados pela incriminação das normas violadas”.

     Para o acórdão de 23 de Maio de 1996, proferido no processo n.º 149/96, os crimes de peculato e de falsificação de documento estão em concurso real.     

     Para o acórdão de 30 de Outubro de 1996, proferido no processo n.º 47 846-3.ª, Sumários de Acórdãos do STJ, n.º 4, Outubro de 1996, pág. 95 - Comete um crime de peculato, na forma continuada, o enfermeiro que, no serviço de medicina e ortopedia de um hospital do Estado, onde exercia funções, em datas diversas, se apropria ilicitamente, em proveito próprio, para seu consumo, de ampolas de estupefacientes, que estavam guardadas num cofre. 

     Segundo o acórdão de 4 de Dezembro de 1996, proferido no processo n.º 48 830-3.ª, in SASTJ, n.º 6, Dezembro de 1996, pág. 52:

I – São elementos do crime de peculato: a) o agente ser funcionário; b) que em razão dessa qualidade tenha em seu poder ou lhe seja entregue dinheiro ou qualquer outra coisa móvel, pública ou particular ou lhe sejam acessíveis; c) que se aproprie ilegitimamente de tais bens em proveito próprio ou de outra pessoa.

II – A alínea b) pressupõe que o agente tenha a posse precária ou em confiança da res mobilis de que se apropria ou desvia do fim a que era destinada.

III – Essa posse deve ser entendida em sentido amplo compreendendo, inclusive, a disponibilidade jurídica sem detenção material.

IV – Para efeitos penais, é equiparado a funcionário, o arguido que é vogal do Conselho Directivo do Instituto Nacional de Habitação.

V – Comete tal ilícito o arguido que é vogal desse mesmo instituto e utiliza um cartão de crédito - que lhe foi cedido por esse instituto - para fins diferentes daqueles a que ele se destina, tendo-se através dele apropriado de verbas avultadas que integrou no seu património.

     No acórdão de 9 de Janeiro de 1997, processo n.º 210/96-3.ª, in CJSTJ 1997, tomo 1, pág. 172, em caso de financiamento de actividades policiais ilegais ou constituição de um saco azul, por parte de um “Pelotão de Segurança”, sendo que o extracto não fornece o quadro realista em que se desenrolam as actividades, em causa recursos interpostos por 16 arguidos e pelo Ministério Público, presentes sendo crimes de introdução em casa alheia, de peculato, na forma continuada, dois crimes de falsificação de documentos (auto de notícia), de não promoção (crime de actividade, inerente à qualidade de funcionário do agente, crime funcional, contra a realização da justiça), tráfico agravado pela qualidade de funcionário ou de menor gravidade, crimes de falso testemunho, e falsas declarações, prevaricação, promoção dolosa e tráfico de menor gravidade e ainda abuso de poderes e denúncia caluniosa, com absolvição quanto aos dois últimos.

     Colocada a questão da unificação de duas condutas homogéneas - o conjunto de apropriações ilegítimas (factos de 2-02-1994 e de 30-12-1993), todas ocorridas no exercício de funções do arguido F e subordinados, que atingem os mesmos bens jurídicos, com a mesma motivação e num quadro de oportunidades semelhantes - foi considerada a sua integração na figura do crime continuado de peculato (pág. 175).  

     Do sumário consta, no segmento que ora importa: “O agente da PSP que se apropria de certa quantia monetária, fazendo-a coisa sua, dispondo dela para constituir um eventual saco azul, que financiasse actividades policiais, pratica o crime de peculato, que não exige que o interesse próprio seja exclusivamente económico”.

    Como se colhe do acórdão de 23 de Janeiro de 1997, proferido no processo n.º 19/96,

«os crimes de peculato e de falsificação de documento protegem bens jurídicos diversos: o primeiro o interesse do Estado em que os seus funcionários sejam honestos, o segundo, o valor probatórios dos documentos. Consequentemente, nada na lei permite afastar a aplicabilidade da norma sancionatória de um deles para só punir o outro, encontrando-se tais infracções numa relação de concurso real». 

     Distinguindo os crimes de burla, corrupção passiva para acto ilícito e peculato, o acórdão de 19 de Novembro de 1997, proferido no processo n.º 906/97-3.ª, in CJSTJ 1997, tomo 3, pág. 237 e Sumários de Acórdãos do STJ, n.º 15 e 16, pág. 172, após afirmar-se que é elemento essencial dos crimes de peculato e corrupção que a vantagem patrimonial que se obtém seja a contrapartida de acto ou omissão contrários aos deveres do cargo e sendo o arguido absolvido do crime de peculato, afirma: “Comete o crime de burla – e não o de corrupção ou de peculato – o agente da PSP que, no exercício das suas funções, recebe quantias em dinheiro, no propósito de as fazer suas, as quais lhe eram entregues com a finalidade de serem passadas licenças que ele não pretendia diligenciar obter”.

     De acordo com o acórdão de 4 de Dezembro de 1997, proferido no processo n.º 978/07-3.ª Secção, in Sumários de Acórdãos do STJ, Gabinete de Assessoria, n.ºs 15 e 16 - Novembro e Dezembro de 1997, a págs. 197:

     I - Os interesses protegidos pelos crimes de peculato e de burla são distintos, se não mesmo antagónicos.

     II - O que caracteriza o peculato é a apropriação ilegítima pelo funcionário em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou de outra pessoa, de dinheiro ou de qualquer coisa pública ou particular, que esteja na sua posse em razão das suas funções.

     III - Tal apropriação pressupõe que o dinheiro ou a coisa estejam na posse legítima do arguido, ao contrário do que se passa na burla, em que os bens vêm à sua posse ilegitimamente, por força da astúcia utilizada.

     No acórdão de 25 de Janeiro de 1998, proferido no processo n.º 1229-3.ª, in CJSTJ 1998, tomo 1, pág. 178, é versada a natureza e os elementos essenciais dos crimes de favorecimento pessoal e peculato de uso.

     O crime de peculato de uso consubstancia-se no exercício doloso de um desvio de poder sobre coisas móveis e tanto o comete o funcionário que permite o uso ilícito da coisa, como aquele que o ordena, desde que, cada um deles, actue com a consciência da ilicitude de tal uso.

     O crime consubstancia a modalidade mais grave do desvio de poder sobre coisas móveis e após enunciar os elementos constitutivos, para além da qualidade de funcionário do agente, conclui que o tipo legal de peculato de uso não contém a proibição entre os seus elementos constitutivos.

     O acórdão de 25 de Março de 1998, proferido no processo n.º 53/98-3.ª, in CJSTJ 1998, tomo 1, pág. 238 e BMJ, n.º 475, pág. 502, versa concurso real dos crimes de peculato, de burla e de falsificação de documento, por distintos os bens jurídicos tutelados, sendo que o crime de peculato protege o interesse do Estado e dos organismos públicos em que os seus funcionários e agentes sejam honestos. No crime de burla, o objecto da tutela penal é o interesse público de garantir a ordem jurídica relativa ao complexo de bens que se compreende no conceito genérico de propriedade, enquanto o dono fica privado de tais bens por efeito de erro ou engano em que foi induzido.

    No crime de falsificação de documento, o bem jurídico protegido é a segurança e a confiança do tráfico jurídico, especialmente o tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento, a sua fé pública e a sua transmissibilidade.

    Consta do sumário da CJSTJ: “Pratica um crime de peculato, em concurso real com um crime de burla, a funcionária da Direcção-Geral do Tesouro que, nessa qualidade, retira diversos cheques a que tinha acesso emitidos pelo Tesouro, os quais fez seus, conseguindo, de seguida, através de endossos forjados, convencer os funcionários bancários, a quem os cheques foram apresentados, que o seu apresentante era o portador legítimo de tais títulos, e através desse engano, obteve o pagamento de tais cheques”. 

    Diversamente do anterior, e não só, o acórdão de 7 de Janeiro de 1999, proferido no processo n.º 953/98-3.ª Secção, in BMJ n.º 483, págs. 24 a 48, em sede de concurso de infracções, assumiu, em clara ruptura com a posição dominante (no domínio do direito penal clássico, entenda-se, já que no plano do direito penal secundário, o caso muda de figura, transfigura-se mesmo, bastando atentar nos numerosos exemplares produzidos no início dos anos noventa, em que impera a afirmação do concurso aparente no domínio da fraude fiscal, burla fiscal e falsificação de documentos), uma leitura divergente, dando aplicação aos princípios do “ne bis in idem” e da “lex consumens derrogat lex consumatae”, de modo que, dando razão ao recorrente, se afirma que “o crime de peculato consome os de burla e falsificação, quando dos actos que configuram burla e daqueles que definem falsificação fica delineada uma actividade que, no seu conjunto e no seu escopo, visa e logra uma apropriação ilegítima, traduzida num enriquecimento ilegítimo do agente-funcionário à custa do património da entidade pública lesada e de um seu prejuízo, com obtenção para o mesmo agente de um benefício ilegítimo”.

     Respiga-se da fundamentação: “Cremos assim que razão assiste ao recorrente quando pugna por que o crime de peculato consome os de burla e falsificação, sem mesmo se sentir necessidade, no atinente a estes últimos ilícitos, de trazer à colação a tese de que a burla consome a falsificação quando aquela seja cometida através desta (cfr. o recente acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Dezembro de 1998, processo n.º 728/96) ”.

     O arguido, tendo sido condenado na primeira instância pelos três crimes, na pena única de seis anos de prisão, foi, a final, condenado apenas pela prática de um crime de peculato, p. e p. no artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão.

     Significa isto que o acórdão considerou que os crimes de peculato, de burla e de falsificação, pelos quais tinha sido o recorrente condenado em concurso real, estavam, a final, em concurso aparente por consunção.

     Acontece que pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Fevereiro de 1992, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 84, de 9 de Abril, fora fixada, por unanimidade, jurisprudência no sentido de que: “No caso de a conduta do agente preencher as previsões dos crimes de falsificação e de burla do artigo 228.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 313,º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes”.

    Foi então do acórdão de 7 de Janeiro de 1999 interposto obrigatoriamente recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada, nos termos do artigo 446.º do CPP, para defesa daquela, pelo relator do acórdão de 18-01-2001, então Procurador-Geral Adjunto, o qual correu sob o n.º 344/99 da 5.ª Secção.

    Voltaremos a este assunto ao versar o acórdão proferido nesse processo 344/99 e no acórdão de 18-01-2001 (podendo neste ver-se o que aconteceu com o recurso do acórdão de 7-01-1999).

    Anota-se que o Acórdão n.º 8/2000, de 4 de Maio de 2000, in Diário da República, n.º 119, de 23 de Maio de 2000, confirmou a jurisprudência de 1992, então com cinco votos de vencido, nestes termos:

    “No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 217,º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes”.

    Na certificação da bondade da tese, pronunciaram-se o acórdão do Tribunal Constitucional de 8 de Junho de 2005 - 3.ª Secção, n.º 303/2005, proferido no processo n.º 242/05, Diário da República, II Série, n.º 150, de 5 de Agosto de 2005 e o acórdão de 7 de Julho de 2005, n.º 375/2005, proferido no processo n.º 337/2005, 2.ª Secção, Diário da República, II Série, n.º 182, de 21 de Setembro de 2005, 

    Mais recentemente, face à alteração em 2007 do texto do artigo 256.º do Código Penal, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2013, de 5 de Junho de 2013, proferido no processo n.º 29/04.0JDLSB-Q.S1, da 3.ª Secção, publicado in Diário da República, 1.ª série, n.º 131, de 10-07-2013, com quatro votos de vencido, incluindo o nosso, decidiu:

     “A alteração introduzida pela Lei 59/2007 no tipo legal de crime de falsificação previsto no artigo 256 do Código Penal, estabelecendo um elemento subjectivo especial, não afecta a jurisprudência fixada nos acórdãos de fixação de jurisprudência de 19 de Fevereiro de 1992 e 8/2000, de 4 de Maio de 2000 e, nomeadamente, a interpretação neles constante de que, no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 217.º, n.º 1, do mesmo Código, se verifica um concurso real ou efectivo de crimes”.

    Segundo o acórdão de 20 de Outubro de 1999, proferido no processo n.º 1265/98-3.ª, in BMJ n.º 490, pág. 190, comete o crime de peculato e não o crime de abuso de confiança, o funcionário de uma instituição bancária pública, que no exercício das suas funções, se apropriou ilicitamente de dinheiro de um valor elevado.

    À data dos factos, o Banco (BPA) era ainda uma empresa pública, que só posteriormente, a partir de 15 de Outubro de 1990, passou a constituir uma sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos, sendo o arguido, empregado do banco, nessa data, “funcionário” para efeitos penais, por força da equiparação operada pelos artigos 4.º, n.º 2 e 5.º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 371/83, de 6 de Outubro, equiparação integrada depois no artigo 386.º, n.º 2, do Código Penal, versão de 1995.

    Para o acórdão de 16 de Fevereiro de 2000, proferido no processo n.º 1153/99-3.ª, Sumários de Acórdãos STJ, n.º 38, Fevereiro 2000, pág. 71, “O crime de peculato consuma-se no preciso momento em que o agente, tendo em seu poder verbas que, legalmente, tinham um determinado fim, as desvia para seu próprio proveito. A posterior entrega das verbas em causa só tem interesse do ponto de vista da reparação do prejuízo anteriormente provocado, sendo irrelevante para a consumação do ilícito”.

    Para a decisão obtida em Plenário das Secções Criminais do STJ de 17 de Fevereiro de 2000, no processo n.º 344/99-5.ª, Sumários de Acórdãos do STJ, n.º 38, pág. 82, o decidir-se que o crime complexo (peculato) absorve os restantes crimes (burla e falsificação) não torna falsa a tese fixada de estes se encontrarem numa relação de concurso real ou efectivo.

    A afirmação de absorção foi feita, como vimos, no predito acórdão de 7 de Janeiro de 1999, do qual foi interposto recurso extraordinário, nos termos do artigo 446.º do CPP.

    O recurso, como se explica no acórdão de 18 de Janeiro de 2001, não chegou, pois, a ser conhecido, por se ter decidido em Plenário das Secções Criminais, que se não verificavam os respectivos pressupostos, face à interposição do crime de peculato, considerando-se que a junção ao concurso de burla e falsificação, do crime de peculato não afastava o concurso real entre a burla e a falsificação por via do concurso aparente da burla com o peculato.

     No sumário do acórdão de 29 de Novembro de 2000, proferido no processo n.º 2779/00-3.ª Secção, pode ler-se:

I - O peculato é um delito específico - delitum proprium -, pois enquanto os tipos legais de crimes descrevem, em regra, condutas que podem ser levadas a cabo por qualquer pessoa, naquele ilícito tem de intervir, como agente, um funcionário.

II - O que se encontra por detrás do crime de peculato é a punição do comportamento de alguém que viola um especial dever de não cometer certo modelo de apropriação, não só porque é funcionário e a sua responsabilidade aumenta, como também porque se visa prevenir, pelo efeito dissuasor do direito penal, que a situação de risco não seja aproveitada para a prática de certos crimes - o interesse na honestidade dos funcionários.

III - Integra o crime de peculato a conduta do arguido, escrivão de direito, que se centra, essencialmente, na substituição de precatórios-cheques emitidos em nome do secretário judicial, por outros, a seu favor, com a consequente apropriação indevida do seu produto, ou tão simplesmente, da apropriação de bens provenientes de precatórios-cheques regularmente emitidos a seu favor, juntando aos autos documentos por si forjados - guias de entrega e talões de depósito - com os quais procurava dar uma aparência de conformidade com o determinado pelos magistrados no respectivo processo.

IV - Para aquele efeito, é secundário o facto de esse dinheiro objecto de apropriação, em moeda nacional ou estrangeira, se encontrar depositado na CGD, porquanto o mesmo continua sempre acessível ao arguido em razão das suas funções, não deixando este de ser o seu depositário judicial, detendo a CGD apenas a sua guarda física.

V - Se não existe dúvida de que o peculato tem a natureza de um crime de abuso de confiança qualificado, aplicar o perdão àquele primeiro crime seria como “premiar” o arguido pelo motivo de além de um crime de abuso de confiança (simples) - excluído expressamente do perdão pelo art.º 2.º, n.º 2, al. e), da Lei 29/99, de 12-05 - ainda ter violado os seus especiais deveres de funcionário honesto. Não podendo caber tal contra-senso dentro de uma interpretação apropriada da lei de clemência, terá de concluir-se que também aquele crime de peculato, quando cometido através de falsificação de documentos, está excluído do perdão.

      No acórdão de 7 de Dezembro de 2000, processo n.º 2536/2000 - 5.ª Secção, é abordada situação de Técnico de Justiça-Adjunto, que se apropria de várias quantias,  concluindo que se está perante uma unidade de resolução, ou seja, perante uma unidade criminosa, pelo que o arguido pratica um só crime de peculato, de falsificação de documento, de não promoção ou denegação de justiça, para além de um único crime de descaminho de documento colocado sob poder público, tendo atenuado especialmente a pena.

    No supra citado acórdão de 18 de Janeiro de 2001, proferido no processo n.º 2833/00-5.ª Secção, in CJSTJ 2001, tomo 1, pág. 218, distinguindo os bens jurídicos protegidos pelo crime de peculato e de falsificação de documento, sendo no primeiro o interesse do Estado e dos organismos públicos em que os seus funcionários e agentes sejam honestos, no segundo, o valor probatório dos documentos, a fé pública dos documentos ou a verdade intrínseca do documento enquanto tal, ou ainda a verdade da prova documental enquanto meio que consente a formulação de um juízo exacto, relativamente a factos que possam apresentar relevância jurídica, defende-se a existência de concurso real entre as infracções.     

    No crime de peculato o funcionário apropria-se ilegitimamente, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções.

    Trata-se de um delito específico em que a lei exige a intervenção de pessoas de um certo círculo, no caso, um funcionário, diversamente do que sucede com os tipos legais de crime, em geral, nos quais os factos podem ser levados a cabo por qualquer pessoa.

    A arguida, funcionária de Cartório Notarial, na primeira instância fora condenada pela autoria de um crime continuado de peculato, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão e no pagamento da indemnização ao Estado Português, a título de danos patrimoniais no montante de 95.502.537$00, declarando-se, nos termos dos arts. 1.º, 4.º e 5.º, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, perdoado um ano de prisão, sob a condição de não cometer crime doloso até 12 de Maio de 2002 e pagar ao Estado o montante da indemnização em que foi condenada no prazo de 90 dias.

    O Ministério Público interpôs recurso, pedindo a revogação da decisão e substituição por outra a condenar a arguida por crime de peculato, de falsificação de documento, autêntico agravado pela qualidade de funcionária e um crime de burla agravada, tudo na forma continuada.

    Concedendo parcial provimento ao recurso do Ministério Público, o Supremo condenou a arguida como autora de um crime continuado de falsificação de documento autêntico, cometido por funcionária, na pena parcelar de 3 anos de prisão e em cúmulo jurídico, com a pena de 5 anos e 6 meses de prisão aplicada pelo crime de peculato, na pena única de 7 anos de prisão, mantendo o perdão de 1 ano de prisão em relação a essa pena única, nos termos definidos na decisão recorrida (ou seja, pagar em 90 dias a quantia de 95.502.537$00).

    No acórdão de 28 de Novembro de 2002, proferido no processo n.º 3102/02 - 5.ª Secção, é defendida a consunção entre tráfico de estupefacientes agravado e peculato, constando do respectivo sumário:

I - O «desvio» operado pela arguida de «medicamentos estupefacientes» do hospital público onde trabalhava como enfermeira obstetra para a sua clínica particular integra, simultaneamente, o tipo legal de crime de «tráfico de estupefacientes» (art. 24.º al. e), do DL 15/93, de 22-01) e o de «peculato» (art. 375.º, n.º 1, do CP).

II - E a utilização destes na sua clínica particular, enquanto exigência instrumental de uma «boa prática» do «aborto», também implica a duplicação típica de uma mesma conduta.

Dir-se-ia que a censura relativa ao meio utilizado na boa prática dos abortos levados a cabo pela arguida não caberia (enquanto «tráfico ilícito de estupefacientes», e, daí, a punição autónoma deste) na censura do tipo legal de crime de aborto.

III - Não cabe na punição típica do «peculato», a censura devida ao «funcionário» que subtrai (ao Estado) bens de «trânsito condicionado» (que lhe sejam acessíveis em razão das suas funções) e os coloque, em resultado da subtracção/apropriação, em «regime livre». Mas é, por isso mesmo, que o art. 375.1 do CP prevê para o autor do peculato, em casos que tais, a «pena mais grave que lhe couber por força de outra disposição legal».

IV - A questão que deve por isso colocar-se é a de saber se, perante a concreta punição dos crimes de «peculato (de drogas ilícitas)» e de «aborto» (cuja «boa prática» exige, como já se viu e é óbvio, a administração de analgésicos, sedativos e anestésicos), a penalização autónoma do tráfico agravado de estupefacientes não implicará um injusto «bis in idem»

V - Por outras palavras, o que se pergunta é se, afinal, a norma punitiva do «tráfico ilícito» não concorrerá tão só aparentemente com as normas típicas dos demais crimes (designadamente o de «peculato», que, na hipótese de concurso de normas, adopta, justamente, a «pena mais grave que lhe couber por força de outra disposição legal»).

VI - Ora, no caso, é a própria lei que, ao punir o peculato, condiciona expressamente a eficácia da pena genericamente prevista para esse crime à não aplicabilidade, pelo mesmo facto (complexo), de pena mais grave (subsidiariedade expressa). O que quer dizer que, sendo de trânsito ilícito os bens subtraídos ao Estado, haja o correspondente peculato de ser penalizado com a pena mais grave que couber ao trânsito ilícito desses bens.

VII - Daí que, devendo afinal aplicar-se ao peculato a pena (mais grave) do tráfico agravado de estupefacientes, a norma assim aplicada passe a consumir - «em concreto» - a protecção visada pela outra (consumpção).

VIII - Não haverá, pois, que punir autonomamente o peculato e o tráfico ilícito de drogas, mas, simplesmente, que punir aquele com a pena (agravada) deste.

(Tem declaração de voto: na óptica de que parte o acórdão deveria efectivar-se a punição no quadro do peculato e do tráfico simples, não se valorando duplamente a qualidade profissional da arguida).

    No acórdão de 2 de Abril de 2003, proferido no processo n.º 4194/02-3.ª, refere-se que a alegada consumpção não é de aceitar porquanto «os bens jurídicos que procuram proteger são diferentes», já que «no crime de falsificação de documento (art.º 256º do CP) se protege a verdade intrínseca do documento enquanto tal», no caso concreto «a veracidade da contabilidade da Conservatória», enquanto «no crime de peculato (art.º 375º do CP) protegem-se bens de natureza patrimonial - criminalizando-se a apropriação ou oneração de bens alheios - e bens de natureza pessoal - probidade e fidelidade do funcionário - com vista à garantia do bom andamento e imparcialidade da Administração Pública».

     O problema do concurso do crime de peculato com outros delitos tem sido objecto da ponderação da Doutrina e da Jurisprudência, sendo aceite que a capacidade consumptiva do peculato será extensível aos crimes de furto (em certas circunstâncias), de abuso de confiança, de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público, ou de abuso de poder.

    Extrai-se do acórdão de 12 de Julho de 2006, proferido no processo n.º 2032/06-3.ª:

I - O tipo legal do crime de peculato, p. e p. pelo art. 375.º do CP, configura uma dupla protecção: por um lado, tutela bens jurídicos patrimoniais, na medida em que criminaliza a apropriação ou oneração ilegítima de bens alheios; por outro, tutela a probidade e fidelidade dos funcionários para se garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração pública, ou, por outras palavras, a “intangibilidade da legalidade material da administração pública”, punindo casos de abusos de cargo ou função.

II - O peculato integra dois elementos: o crime patrimonial e o abuso duma função pública ou equiparada; quanto ao conceito de funcionário cf. art. 386°). Para se preencher esse tipo legal, esses dois elementos terão de se relacionar entre si: assim, há abuso de função pelo facto de o agente se apropriar ou onerar bens de que tem a posse em razão das funções que exerce, violando, com esse comportamento, a relação de fidelidade pré-existente - o agente “viola os limites intrínsecos do exercício da posse que lhe foi conferida em razão do seu ofício ou serviço”.

III - Pode dizer-se que o crime de peculato é um crime de furto qualificado em razão da qualidade especial do agente ou de abuso de confiança, qualificado em razão da qualidade de funcionário no exercício de funções públicas.

     O crime de peculato apresenta maiores convergências com o crime de abuso de confiança, urna vez que também neste preceito o agente se apropria de um bem que possui em nome alheio, violando urna relação de fidúcia pré-existente.

     O acórdão foi proferido no âmbito de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, estando em causa no acórdão recorrido um caixa de uma empresa e no acórdão fundamento um tesoureiro de Junta de Freguesia.

     O acórdão de 28 de Março de 2007, processo n.º 614/07-3.ª, aborda conduta de militar da GNR do Carvoeiro que comunica ao condutor que tinha praticado uma infracção ao Código da Estrada exigindo que lhe fosse entregue a quantia de € 120, o que aquele fez, sem que o arguido lhe tivesse entregue o comprovativo da respectiva cobrança; o arguido não procedeu, pela prática da alegada infracção, ao levantamento de auto de contra-ordenação, nem ao seu registo; o arguido, que se encontrava no exercício das suas funções, não registou nem entregou nos cofres do Posto da GNR a quantia recebida, tendo-se apropriado de tal valor, que guardou para si e utilizou em proveito próprio. Em causa estava apenas a medida da pena, seguindo o acórdão de perto o acórdão anterior.    

     No acórdão de 2 de Outubro de 2008, proferido no processo n.º 1608/08-5.ª, questionada era a possibilidade legal de ser imputado, em concurso real com o crime de peculato, o crime de branqueamento de capitais, à luz do regime vigente à data da prática dos factos, entre Abril de 1998 e Julho de 2000.

     Conclui o acórdão que é de rejeitar a consumação do facto posterior do branqueamento pela incriminação do facto subjacente, mostrando-se correcta a decisão recorrida, no que respeita ao questionado concurso real, ao proceder à qualificação autónoma do crime de branqueamento de capitais.

     O acórdão de 21 de Janeiro de 2015, proferido no processo n.º 12/09.9GDODM.S1, por nós relatado, estando presente inquestionado crime de peculato, cometido por funcionária de uma escola, no recurso em causa estava alteração de espécie de pena, passando para prisão suspensa em vez de efectiva e sujeição a condição do pagamento do montante da condenação, não vindo questionada a aplicação de pena acessória de proibição de exercício de funções por quatro anos.

    A pena de prisão foi reduzida, suspensa na sua execução e sujeita a suspensão a condição de pagamento de parte do montante do pedido de indemnização em que a arguida foi condenada, tendo-se em conta a cláusula de razoabilidade e a salvaguarda do rendimento mínimo disponível.

     Conceito de Funcionário na Jurisprudência

     Desde cedo a jurisprudência assumiu a necessidade de afirmar uma maior amplitude da noção, abrangendo uma fórmula mais lata.

    De acordo com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Novembro de 1937, O Direito, Tomo LXX, 1938, pág. 117, Os funcionários dos corpos administrativos são empregados públicos, como os define o art. 327.º do Código Penal e exercem funções públicas, como se retira dos arts. 23.º da Constituição e 425.º do Cód. Administrativo, em virtude do que comete o crime de peculato do art. 313.º do Cód. Penal o empregado que se apropria de dinheiro alheio, que guardava.

     O mencionado acórdão do 1.º Juízo Criminal de Lisboa, de 10 de Abril de 1946, proferido no processo n.º 12 366 (citado no Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 98/58, de 11 de Junho de 1959 e no acórdão do STJ de 19 de Outubro de 1966, processo n.º 32 107, in BMJ n.º 160, pág. 199), ao defender a interpretação lata do artigo 327.º do Código Penal, de molde a incluir tanto os funcionários públicos permanentes como os transitórios (assalariados, contratados, eventuais, etc.), como se pode ver da anotação a págs. 261 do BMJ n.º 25, disse:

     “A fórmula penal é mais lata (do que a administrativa) e compreende-se bem; basta considerar que o legislador, interessado no melhor funcionamento público, não podia subtrair os empregados a quem cometeu funções de carácter público – mesmo que as desempenhem transitoriamente – as sanções devidas por qualquer prevaricação; sendo esta a «ratio legis» segue-se que a permanência ou transitoriedade das funções não intercedem com a conceituação de empregado público para efeitos penais”.

     Segundo o acórdão de 18 de Fevereiro de 1948, BMJ n.º 5, pág. 165 “Com a actual organização dos serviços públicos, só devem considerar-se funcionários para efeitos penais, os empregados dos serviços civis do Estado, das autarquias locais e das pessoas colectivas de utilidade pública, a que se referem os arts. 9.º, 24.º e 25.º da Constituição”.

     Segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Junho de 1951, processo n.º 27 899, in BMJ 25, pág. 255, citado no Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 98/58, de 11 de Junho de 1959, os auxiliares dos Tesoureiros da Fazenda Pública são, como estes e os seus propostos, empregados públicos nos termos e para os efeitos do art. 327.º do Código Penal, ficando assim sujeitos às disposições deste diploma que punem os crimes pelos mesmos praticados no exercício das suas funções. Deste modo, a subtracção de dinheiros e valores àqueles confiados, feitas com quebra dos deveres funcionais, constitui crime de peculato.

    De acordo com o acórdão de 16 de Dezembro de 1959, processo n.º 30 243, in BMJ n.º 92, pág. 324, comete um abuso de confiança continuado, e não um crime de continuado de peculato, o funcionário público que, não tendo pela orgânica dos serviços nem por ordem superior, a missão específica de arrecadar ou levantar dinheiros públicos e dar-lhes aplicação, avoca arbitrariamente, embora com consentimento de seus imediatos superiores, tais atribuições e descaminha em seu proveito dinheiros públicos recebidos nessas circunstâncias.

    O acórdão de 13 de Dezembro de 1961, proferido no processo n.º 30 784, in BMJ n.º 112, pág. 344, considerou: Os chefes de secretaria dos tribunais, embora desempenhando interinamente as suas funções, são funcionários públicos para efeitos do artigo 327.º do Código Penal.

    O acórdão de 13 de Dezembro de 1961, proferido no processo n.º 30 787, in BMJ n.º 112, pág. 353, versando a questão de saber se podiam ser considerados, ou não, funcionários, o presidente e o vice-presidente de um organismo de coordenação económica – no caso Junta de Exportação de Angola –, concluiu que aqueles, até ao despacho do Conselho de Ministros de 19 de Julho de 1955, não podiam ser considerados funcionários públicos para o efeito do artigo 327.º do Código Penal.

    Segundo o acórdão de 2 de Junho de 1965, proferido no processo n.º 31 745, in BMJ n.º 148, pág. 142, a previsão do artigo 313.º do Código Penal abrange os actos das funções do empregado público, resultantes da determinação legal e ainda de ordem de serviço.

    Para o acórdão de 19 de Outubro de 1966, proferido no processo n.º 32 107, in BMJ n.º 160, pág. 199, são diferentes os conceitos administrativo e penal de funcionário público, sendo mais lato o penal, para cuja verificação não intercedem a permanência ou transitoriedade das funções. É funcionário público para efeitos penais um carteiro supranumerário, nomeado verbal e transitoriamente, de harmonia com o Regulamento dos Correios.

    A fórmula penal do artigo 327.º é mais lata do que a fórmula administrativa.

    E compreende-se que assim seja; basta considerar que o legislador, interessado no melhor funcionamento público, não podia subtrair, os empregados a quem cometeu funções de carácter público, mesmo que as desempenhem transitoriamente, às sanções devidas por qualquer prevaricador.

    Sendo esta a ratio legis, segue-se que a permanência ou transitoriedade das funções não intercedem com a conceituação de empregado público para efeitos penais – Dr. Bravo Serra, nota no Boletim, n.º 25, pág. 261.

    Do mesmo modo, no acórdão do STJ de 3 de Maio de 1967, proferido no processo n.º 32 369, in BMJ n.º 167, pág. 368, em cujo sumário consta: «O conceito de funcionário público para efeitos penais, em vista do disposto no artigo 327.º do Código Penal, é mais amplo que o conceito administrativo. Os serventuários assalariados dos Correios são funcionários públicos para efeitos penais. O que a lei pretende e claramente traduz na norma do artigo 327.º é evitar escapatórias na defesa penal da coisa pública».

    Para o acórdão de 6 de Janeiro de 1971, proferido no processo n.º 33 304, in BMJ n.º 203, pág. 119, a previsão do artigo 313.º do Código Penal abrange dinheiro, títulos de crédito ou efeitos móveis pertencentes a serviços públicos ou a corpos administrativos. O conceito de empregado público, para efeitos penais, é o que está contido no artigo 327.º do Código Penal, abrangendo os cobradores dos transportes colectivos explorados pelas câmaras municipais (no caso Câmara Municipal do Lubango). Faz inclusão na figura através de interpretação lata do conceito vertido no artigo 327.º, mas, mesmo que assim não fosse entendido, sempre se cairia no artigo 313.º, através do § 3.º, que o torna aplicável a «quaisquer pessoas». 

    Segundo o acórdão de 11 de Novembro de 1981, proferido no processo n.º 36 353, in BMJ n.º 311, pág. 227, é funcionário público o encarregado principal de armazéns de Tráfego e Manutenção Militar, integrando a conduta o crime do artigo 313.º do Código Penal de 1886, comunicando-se a qualidade ao co-autor, com invocação do já mencionado Assento de 19-12-1951, in BMJ n.º 28, pág. 164. 

    Para o acórdão de 18 de Julho de 1984, proferido no processo n.º 37 448, in BMJ n.º 339, pág. 289, a expressão funcionário, do tipo legal de crime do artigo 424.º do Código Penal, abrange o assalariado (carteiro) dos Correios e Telecomunicações.

    Consta do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3 de Maio de 1985, in Colectânea de Jurisprudência, ano X, tomo 3, pág. 182: “Atenta a redacção do art. 437.º do Código Penal, tem a categoria de funcionário, para o efeito da prática de crimes específicos dos funcionários, não só quem desempenhe uma actividade compreendida na função pública, como aquele que a desempenhe em organismo de utilidade pública, conceito que compreende as empresas públicas e as empresas concessionárias de serviços públicos”.

    Para o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Dezembro de 1985, in Colectânea de Jurisprudência, ano X, tomo 5, pág. 133: “Para efeitos de qualificação da conduta nos crimes que exigem a qualidade de funcionário no seu agente, deve ser havido como tendo essa natureza, em harmonia com o art. 437.º do CP, não só quem desempenha uma actividade na função pública, como também quem desempenha funções em organismos de utilidade pública como a CP”.

    No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de Fevereiro de 1990, in Colectânea de Jurisprudência, ano XV, tomo 1, pág. 113, o Presidente da Câmara é equiparado a funcionário para os efeitos do art. 6.º do DL n.º 24/84 – suspensão de funções – em relação ao crime de corrupção de que for acusado.

    No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de Outubro de 1990, in Colectânea de Jurisprudência, ano XV, tomo 5, pág. 70, afirma-se: “O conceito de funcionário para efeitos penais tem um sentido amplo, abrangendo não só quem desempenha uma actividade pública, mas também quem desempenha funções em organismo de utilidade pública ou nelas participe. Uma guarda de passagem de nível, empregada da CP, no exercício das suas funções deve ser considerada como funcionária, para efeitos da lei penal, especialmente dos artigos 165.º e 168.º do C. Penal de 1982”.

    No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 31 de Outubro de 1990, in Colectânea de Jurisprudência, ano XV, tomo 5, pág. 74, após referir o sentido amplo do conceito de funcionário, afirma que um chefe de esquadra da PSP é funcionário para os efeitos previstos no artigo 424.º do Código Penal de 1982.

    No acórdão de 27 de Janeiro de 1988, processo n.º 39 308, in BMJ n.º 373, pág. 327, estava em causa crime de abuso de confiança agravado pela qualidade de funcionário de banco nacionalizado, face a bens pertencentes ao sector público - artigo 300.º, n.º 2, alínea b) e n.º 3, do Código Penal.

    Segundo o acórdão de 13 de Fevereiro de 1991, processo n.º 41 269, in BMJ n.º 404, pág. 169, funcionário bancário prestando serviço em banco-empresa pública, comete em concurso real um crime de peculato e um crime de falsificação, p. e p. pelo n.º 3 do artigo 228.º do Código Penal; a solução resulta da equiparação operada pelos artigos 4.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 371/83, de 6 de Outubro.     

    Segundo o acórdão de 18 de Abril de 1991, processo n.º 41 722, in BMJ n.º 406, pág. 351, e Colectânea de Jurisprudência, ano XVI, tomo 2, pág. 27, e AJ n.º 18, “O conceito de funcionário público, para efeitos penais previsto no artigo 437.º do Código Penal de 1982, embora delimitado, é bastante amplo, procurando evitar lacunas, abrangendo qualquer pessoa que «desempenhe funções em organismos de utilidade pública», «ou nelas participe», sem curar da natureza do vínculo, que só interessará no âmbito disciplinar. Aquele conceito abrange o funcionário militar, ponto de vista que resulta até reforçado do conteúdo do n.º 2 (o funcionário militar não desempenha funções políticas, governativas ou legislativas). Os fins específicos da tutela penal não se compadeceriam com uma fórmula restrita. A mens legis está na necessidade de evitar subterfúgios na defesa penal da coisa pública - como bem observa Maia Gonçalves em anotação ao artigo 327.º do Código Penal de 1886.

    No caso concreto, o arguido, sargento-ajudante do Exército, foi condenado por dois homicídios qualificados, cometidos fora do exercício das suas funções públicas, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), do Código Penal, para além da pena única de 20 anos de prisão, na pena acessória de demissão (artigo 66.º, n.ºs 2 e 3 do mesmo Código).

    No acórdão de 24 de Abril de 1991, processo n.º 41 671, in AJ n.º 18, é versado caso de injúria agravada, sendo a vítima funcionário, entendendo-se como tal médico veterinário, actuando como autoridade municipal.

    No acórdão de 19 de Setembro de 1991, processo n.º 42 039, in BMJ n.º 409, pág. 464, em causa estava a falsificação de cartas de condução e “guias de entrega” por contínuas da Direcção de Viação do Norte, as quais preenchem a categoria integrante do artigo 437.º do Código Penal, como «agentes administrativos profissionais submetidos ao regime legal da função pública», no interior dos quadros de um serviço concreto. Colocava-se a questão de saber se sendo funcionárias civis, ficavam as arguidas desde logo e por isso, sujeitas à qualificativa do n.º 3 do artigo 228.º do Código Penal. Considera-se que este preceito não dispensa a qualidade ou posição de funcionário. Reporta-se, todavia, ao funcionário em movimento, no espaço das tarefas que lhe estão cometidas. E nada tem a ver com o funcionário que invade os espaços reservados doutros funcionários, se não partir da dinamização daquelas. Assim, é de recusar a qualificação desse preceito quando se provou que as arguidas, apesar de serem funcionárias civis, procederam in toto, fora e acima das respectivas funções. Isto é: como se não fossem contínuas.

    Como se extrai do acórdão de 2 de Outubro de 1991, proferido no processo n.º 42.065, publicado na Colectânea de Jurisprudência, XVI, tomo 4, pág. 32: “O advogado que intervém num processo não pode ser considerado funcionário para efeitos de qualificação de crime que tenha cometido no desempenho dessa função”.

    No sumário deste mesmo acórdão inserto no BMJ n.º 410, pág. 261, consta: “O advogado que intervém num processo não é funcionário, nos termos do artigo 437.º do Código Penal, pelo que lhe não é aplicável o n.º 3 do artigo 228.º do mesmo diploma legal” (o qual previa pena agravada para os factos cometidos por funcionário, no exercício abusivo das suas funções, de 1 a 6 anos de prisão e multa até 120 dias).

    O acórdão distingue: “desempenhar” é cumprir uma missão, um encargo; “participar” é tomar parte (Dicionário Lello Popular). Os advogados apenas colaboram na função jurisdicional. O arguido não foi chamado, como exige o artigo 437.º, alínea c), a desempenhar qualquer actividade. Chamados a desempenhar actividade jurisdicional serão os jurados, os juízes sociais, os assessores técnicos, a que se refere o artigo 210.º da CRP.

    Do mesmo dia 2 de Outubro de 1991, o acórdão proferido no processo n.º 41 785, in BMJ n.º 410, pág. 294, podendo ler-se no sumário:

I - O crime de peculato, como crime de mão própria, exige a qualidade de funcionário público por parte do respectivo agente, perante a definição do artigo 437.º do Código Penal.

II - O funcionário de um banco, mesmo que este tenha sido nacionalizado, não tem a categoria de funcionário público, por a sua actividade não caber em qualquer das previsões do artigo 437.º do Código Penal, porquanto:

a) O banco, como tal, não participa do desempenho de uma actividade compreendida na função administrativa ou jurisdicional, e não é um organismo de utilidade pública, nem lhe competem funções políticas, governativas ou legislativas;

b) Daí que a conduta de infidelidade funcional do agente funcionário bancário não possa ser enquadrada na figura do peculato.

III - O equivalente do peculato, para quem não seja funcionário público, é o crime de infidelidade do artigo 319.º do Código Penal (correspondente, com alterações, ao crime de abuso de confiança do Código de 1886), o qual, presentemente e ao contrário do que sucedia com a legislação anterior, só é possível quando, intencionalmente e com grave violação dos deveres assumidos, se cause prejuízo patrimonial importante.

IV - Quando o agente utiliza mal os poderes conferidos pelo banco de que é funcionário ou os poderes que os clientes do banco lhe hajam igualmente conferido para movimentar as respectivas contas e cheques por si entregues já assinados, não se configura crime de burla se não se fizer prova de que tivesse usado de astúcia ou de artifício enganatório para conseguir que lhe conferissem tais poderes”.

V - A questão de saber se existe concurso real ou aparente entre crimes de falsificação e burla praticada por funcionário bancário que falsifica assinaturas em cheques ou em impressos destinados a movimentar fundos de clientes, em seu proveito, não se coloca se o enquadramento jurídico de tal conduta não permitir o preenchimento do segundo daqueles crimes. 

VI - O facto de forjar assinaturas em diversos documentos como se pertencessem aos titulares de conta movimentadas pelo agente funcionário bancário não se enquadra no n.º 3 do artigo 228.º do Código Penal, já que este pressupõe a qualidade de funcionário no exercício das suas funções, porquanto:

a) A história do preceito e da figura a que respeita leva à conclusão de que o «funcionário» nele previsto só pode ser o «funcionário público». Tal como se encontra definido no artigo 437.º do Código Penal;

b) Esse n.º 3 não pode ser interpretado isoladamente e, antes, tem de ser conjugado com os artigos seguintes, designadamente os artigos 232.º e 233.º do mesmo Código, pelos quais se vê que a lei, ao referir-se a «funcionário» teve em vista apenas os «funcionários públicos», por a expressão ser dirigida às pessoas com competência para elaborarem documentos a que a lei atribui «fé pública» ou com competência para neles exararem qualquer anotação com a mesma força, o que só ocorre relativamente aos ditos «funcionários públicos».

    E de acordo com o acórdão de 22 de Abril de 1993, processo n.º 43 204, in BMJ n.º 426, pág. 244, os trabalhadores da empresa Telefones de Lisboa e Porto - TLP, à semelhança dos trabalhadores da empresa Correios e Telecomunicações de Portugal - CTT, estão abrangidos pelo conceito de «funcionário» previsto pelo artigo 437.º do Código Penal. Os Telefones de Lisboa e Porto constituem uma empresa pública, com personalidade jurídica de direito público e para efeitos penais, os seus trabalhadores desempenham funções ou nelas participam num organismo de utilidade pública.

    Considera-se que o conceito válido para o Código Penal não tem de decalcar ou sequer assentar noutros conceitos estabelecidos para outros domínios de direito - «Actas», BMJ n.º 290, págs. 96 a 97.

    No acórdão de 20 de Janeiro de 1994, processo n.º 45 886, BMJ n.º 433, pág. 296, é apreciado caso de gerente de agência de banco, à data empresa pública nacionalizada, havido como funcionário para efeitos da lei penal, dada a equiparação efectuada pelos artigos 4.º, n.º 2 e 5.º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 371/83. O tipo especial do artigo 424.º do Código Penal de 1982 prevalece sobre o do artigo 319.º: o arguido, como funcionário, apropriou-se ilicitamente, em proveito de terceiro, de dinheiro que lhe estava acessível em razão das suas funções de gerente de uma agência bancária.

    O acórdão de 15 de Junho de 1994, processo n.º 45 950, in BMJ n.º 438, pág. 210, aborda caso de funcionária da CGD, que reveste as características de utilidade pública, citando o acórdão de 18 de Abril de 1991 supra mencionado, transmitindo-se a qualidade de funcionário ao marido, nos termos do artigo 28.º do Código Penal. O acórdão faz aplicação do Decreto-Lei n.º 371/83, defendendo que não padece de inconstitucionalidade.

    No acórdão de 16 de Novembro de 1994, processo n.º 46 433, CJSTJ 1994, tomo 3, pág. 250, foi mantida a condenação por falsificação de documento, p. p. pelo n.º 3 do artigo 228.º do Código Penal. Por outro lado, como os factos ocorreram em altura em que o Crédito Predial Português era ainda uma empresa pública nacionalizada daí resultando ser o arguido havido como funcionário para efeitos de subsunção no crime de peculato, invocando o Decreto-Lei n.º 371/83, de 6-10, o acórdão procedeu à convolação de abuso de confiança para peculato, aqui invocando o Assento n.º 2/93.

    Como consta do sumário: “Tendo os factos integradores do crime de abuso de confiança pelo qual o arguido vinha condenado sido cometidos por ele, como empregado bancário de Banco que era na ocasião empresa pública nacionalizada, verifica-se que ele tem que ser havido como funcionário e que a incriminação deve ser feita pelo crime de peculato”.

    Como se extrai do acórdão de 18 de Dezembro de 1996, processo n.º 45 950-3.ª, SASTJ, n.º 6, Dezembro de 1996, pág. 67, Os funcionários da CGD, durante o período que decorreu entre 1/9/93 e 1/10/95, não podem ser considerados funcionários para efeitos penais.

    Assim, comete um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 300.º, n.º 1, do Código Penal de 82 (art. 205.º, n.º 1, do CP revisto), a arguida funcionária da CGD que em 17/5/89 recebeu de um cliente desta instituição 6 cheques para depositar na conta desse cliente. A arguida somente depositou 5 cheques e o outro entregou-o ao seu marido que, de acordo com ela, o depositou na instituição bancária onde ele exercia funções.

    No acórdão de 13 de Fevereiro de 1997, proferido no processo n.º 840/96-3.ª, in CJSTJ 1997, tomo 1, pág. 221, e SASTJ, n.º 8, pág. 89, em causa estava a consideração de funcionária da arguida para efeitos de incriminação pelo crime de peculato – então, p. e p. pelo artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal – e o conceito de funcionário definido no artigo 386.º, em cujo sumário consta: “Para efeitos penais, o conceito de funcionário é mais amplo que o administrativo, pois está mais intimamente ligado à função desempenhada e não propriamente ao formalismo legalmente estabelecido para aquisição daquela qualidade.

    Assim, deve ser considerado “funcionário” quem, trabalhando num hospital público, tenha como atribuições efectuar serviços de limpeza e, no âmbito destes, acesso a todas as dependências daquele estabelecimento, incluindo as arrecadações onde esteja guardado material clínico”.

    Pode ler-se na fundamentação: “A arguida trabalhava no Hospital Egas Moniz, o que significa que trabalhava para o Estado, dado ser este o ofendido no crime praticado. O conceito de funcionário para efeitos penais como logo se surpreende do exposto, é mais amplo que o respectivo conceito administrativo. “A elasticidade da lei, neste âmbito, tem justificada razão, atendendo às múltiplas situações em que os cidadãos não rigorosamente funcionários no sentido tradicional do termo, podem estar envolvidos e que de outro modo não deteriam uma censura jurídico-criminal ajustada aos seus actos, sendo certo que o seu comportamento não se afasta daquele que decorre dos servidores públicos como tal. Daí que a noção de funcionário esteja, para estes fins, intimamente ligado à ideia de função, que não propriamente ao formalismo da qualidade do agente - Leal Henriques e Simas Santos, CP Anot., 2.º vol,1996, pág. 1228”.    

    E conclui: “Estando provado que a arguida trabalhava no Hospital Egas Moniz, competindo-lhe efectuar serviços de limpeza e que, no exercício das suas funções tinha acesso a todas as dependências do Hospital, incluindo a arrecadação em que era guardado o material clínico que depois foi recuperado, tendo apenas que solicitar a chave à enfermeira-chefe, está bem caracterizada a figura de “funcionário” exigido no tipo legal do crime de peculato”.

    Segundo o acórdão de 19 de Fevereiro de 1997, proferido no processo n.º 84/96-3.ª, in SASTJ, n.º 8, pág. 95 - O funcionário de um banco, mesmo quando este tenha sido nacionalizado, não tem a categoria de funcionário público.

    No acórdão de 9 de Abril de 1997, proferido no processo n.º 161/96-3.ª, in BMJ n.º 466, pág. 380 e SASTJ, n.º 10, Abril 1997, pág. 92, em causa estavam crimes de falsificação e burla na forma continuada, e no concreto caso, a noção de “funcionário” presente no n.º 3 do artigo 228.º do Código Penal, ou seja, no domínio do crime de falsificação de documento. 

    Um empregado bancário, ainda que de banco nacionalizado ou empresa pública, não é funcionário no termos da definição do artigo 437.º do Código Penal de 1982.

    Também não o é, porque a norma que equiparou o funcionário aos trabalhadores das empresas públicas nacionalizadas, de capitais ou com participação maioritária de capital público (artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 371/83), foi declarada organicamente inconstitucional, pelo acórdão do Tribunal Constitucional de 27-06-1996, publicado no Diário da República, II Série, de 9-11-1996).

    À data dos factos (Janeiro a Maio de 1990) o arguido era trabalhador do Crédito Predial Português, então empresa pública, colocado numa agência em Lisboa.

    Afastada a qualidade face à inconstitucionalidade orgânica da norma constante dos artigos 4.º, n.º 1 e 2 e 5.º do Decreto-Lei 371/83, não pode o arguido ser condenado pela qualidade de funcionário e o artigo 386.º do Código Penal revisto de 1995 não pode ser invocado, por não poder aplicar-se retroactivamente.

    Neste sentido o já citado acórdão de 2 de Outubro de 1991, in BMJ n.º 410, pág. 294 e os acórdãos de 19-02-1997, processo n.º 194/96 e de 16-10-1997, processo n.º 365//97-3ª, abaixo referido, e contra, os acórdãos de 20-01-1991, processo n.º 45 886; o supra referenciado acórdão de 13-02-1991, proferido no processo n.º 41 269, in BMJ n.º 404, pág. 169; de 16-11-1994, processo n.º 46433 e de 31-10-1995, proferido no processo n.º 48 011.

    No acórdão de 9 de Outubro de 1997, proferido no processo n.º 410/97, in CJSTJ 1997, tomo 3, pág. 185 e Sumários de Acórdãos do STJ, n.º 14, pág. 138 - em causa crime de falsificação de documentos, p. p. pelo art. 256.º, n.º 1, alínea a) e n.º 4, do CP 1995 e a qualidade de funcionário, considerando que pratica tal crime o arguido que falsifica documentos no exercício das suas funções de funcionário da Caixa Geral de Depósitos, por o pessoal da C.G.D. estar sujeito ao regime do funcionalismo público, mas a final, reconhecendo no caso não ser possível a convolação do n.º 1 para o n.º 4 do art. 256.º, por não ter sido assegurado ao arguido o direito de defesa quanto à nova qualificação jurídica.

    Para o acórdão de 16 de Outubro de 1997, processo n.º 365/97-3.ª, in CJSTJ 1997, tomo 3, pág. 206 e Sumários de Acórdãos do STJ, n.º 14, pág. 151, estando em causa crime de peculato do artigo 424.º do Código Penal de 1982, sendo o arguido gerente do BNU, pertencente à data dos factos (1985) ao sector público e sendo à data do acórdão, sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos.

    O mesmo Colectivo do anterior acórdão, fazendo aplicação do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 864/96, concluiu não poder fundar-se a incriminação do arguido no conceito de funcionário fornecido pelo DL n.º 371/83, não podendo o arguido ser condenado por esse crime.

    Considerando de seguida que “o crime de peculato é, na sua essência, um crime de abuso de confiança qualificado pela qualidade de funcionário do agente (v. Maia Gonçalves, C. Penal Anotado, 3.ª edição, 558 e 10.ª edição, 939 e ac. STJ de 9-01-1997, rec.º n.º 210/96) ”, avança no sentido de descortinar se, não podendo o agente ser considerado funcionário, se os factos provados preenchem os requisitos típicos do abuso de confiança, concluindo pelo crime do artigo 332.º do C. Penal de 1982, afirmando: “Mais uma vez estamos perante um crime de abuso de confiança qualificado, não já pela qualidade de “funcionário” do agente, mas pela de gerente de uma unidade do sector público”, terminando por ser o arguido condenado, por força da operada convolação, pelo crime de abuso de confiança do artigo 300.º, n.º 1 e 2, alínea a), do Código Penal/1982.

     No acórdão de 12 de Fevereiro de 1998, proferido no processo n.º 1249/97-3.ª, in CJSTJ 1998, tomo 1, pág. 206, foi afastada a figura de funcionária da arguida, que trabalhara na Casa da Cultura da Juventude de ---, que será analisado infra.

     No acórdão de 8 de Julho de 1998, proferido no processo n.º 1417/96-3.ª, in CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 232, num caso de retroactividade da lei extra-penal (versando estatuto de instituição de crédito), perante crime continuado, no decurso do qual há sucessão de leis não penais, com aplicação a final da lei mais favorável, considera-se que a arguida não pode ser condenada como autora de um crime de peculato relativamente aos factos praticados antes da entrada em vigor de uma lei que lhe haja retirado a qualidade de funcionário, se, posteriormente ao início da vigência dessa lei e em continuação criminosa daqueles factos, tiver praticado outras condutas idênticas.

    No concreto, em causa condutas de arguida trabalhando em entidade bancária - CCAM - que segundo o regime anterior (DL 231/82) beneficiava do estatuto de utilidade pública, sendo por isso a arguida considerada funcionária, sendo enquadrável a conduta no artigo 375.º do Código Penal de 1995 e 424.º do C. P. de 1982. Já no regime seguinte (DL 24/91, de 11-01), a entidade bancária deixou de beneficiar do estatuto de utilidade pública e assim a arguida “perdeu” a qualidade de funcionária para efeitos criminais, passando a sua actividade posterior a integrar o crime de abuso de confiança previsto no artigo 205.º do CP de 1995 e 300.º do CP de 1982, mais favorável ao agente (artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal).

    Operou-se, pois, a desqualificação da arguida como funcionária, face ao estatuto da instituição de crédito entretanto alterada pela nova lei; as caixas agrícolas deixaram de ser consideradas pessoas colectivas de utilidade pública. Por isso, deixou de ser aplicável à arguida a alínea c) do n.º 1 do artigo 437.º do Código Penal de 1982, segundo o qual o conceito de “funcionário” abrangia quem desempenhasse funções “em organismos de utilidade pública ou nelas participasse”, com texto idêntico no artigo 386.º, após a revisão de 1995.  

    Pela falta de qualidade de funcionário foi afastada igualmente a qualificação do crime de falsificação (n.º 4 do artigo 256.º do Código Penal).

    Segundo o acórdão de 29 de Outubro de 1998, proferido no processo n.º 525/98, in BMJ n.º 480, pág. 292 “Para efeitos penais, é funcionário público todo aquele que é chamado a desempenhar e desempenha actividades compreendidas na função pública (administrativa ou jurisdicional)”, citando Maia Gonçalves, Código Penal Português, 10.ª edição, pág. 950, e Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 2.º vol., 1996, pág. 1234.

    Em causa estava actividade de elementos da GNR e do Grupo Especial de Acção e Pesquisa, que no exercício de funções para os quais foram incumbidos, detiveram (prenderam) pessoas, constituíram-nas arguidos e mesmo assim libertaram-nas, relevando a correspondente qualidade de funcionários, tal como plasmada no artigo 386.º do Código Penal, tendo sido dois dos arguidos condenados, para além do mais, por crime de peculato em penas de prisão efectiva e pena acessória de proibição de exercício de funções pelo período de 4 anos.

    Segundo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28 de Março de 2006, in Colectânea de Jurisprudência, 2006, tomo 2, pág. 124, “O n.º 2 do artigo 386.º do CP, ao estabelecer equiparação à noção de funcionário abrangida pelo seu n.º 1, apenas quis abranger o sector público empresarial do Estado, em sentido muito lato, por oposição ao sector público administrativo que caberia no mesmo n.º 1. Sendo o arguido trabalhador duma empresa de capitais exclusivamente públicos, tem que ser considerado como equiparado a funcionário para efeito de integração da respectiva conduta, na prática de um crime de peculato.

    Vejamos os casos abordados nos acórdãos citados pela requerente BB no requerimento de abertura de instrução a fls. 1069, ou seja, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-02-1998, e a fls. 1070, isto é, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 5-07-2010 (e não de 5-08-2010).

    No acórdão deste Supremo Tribunal de 12 de Fevereiro de 1998, proferido no processo n.º 1249/97-3.ª, in CJSTJ 1998, tomo 1, pág. 206, foi afastada a figura de funcionária da arguida.

    A arguida desempenhara as funções de chefe da secção de contabilidade da Casa da Cultura da Juventude de Setúbal, entidade dependente do Instituto da Juventude, ente público com autonomia administrativa e tutelado pelo Governo, ao abrigo de contrato de trabalho com aquela celebrado, entre 1 de Janeiro de 1993 a início de Julho de 1994, tendo sido condenada na primeira instância por comissão de um crime continuado de abuso de confiança agravado e de um crime continuado de falsificação.

    O Ministério Público interpôs recurso a defender que os factos apurados integradores do abuso de confiança deveriam ser enquadrados na figura do peculato, por a arguida dever ser considerada como funcionária para efeitos penais.

    O acórdão convoca o artigo 437.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal de 1982 e o Decreto-Lei n.º 371/83, de 6-10, o qual à data fora já declarado formalmente inconstitucional, e aplica a doutrina do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 864/96, de 27-06-1996, “do que resulta que a pretensão do recorrente, de submissão do arguido (sic) à previsão de tal diploma não pode proceder”.

    Refere o acórdão que, mesmo que o diploma não pudesse ser havido como inconstitucional, sempre se teria de dizer que a situação da arguida não poderia ser enquadrada na figura de crime cometido por pessoa equiparada a funcionário público, porque os factos de a Casa de Cultura se encontrar qualificada como de utilidade pública directamente dependente do Instituto da Juventude, e de este ser um ente público com autonomia administrativa do Governo, não têm potencialidade para se poder concluir pela atribuição da qualidade de funcionário, para efeitos penais, à arguida.

    É que os funcionários que o diploma equiparou, ou pretendeu equiparar a funcionários públicos foram os dos Institutos Públicos, mas não os de outros organismos de utilidade pública (ou de eventual utilidade pública), sobre os quais os referidos Institutos tenham poderes de fiscalização ou de orientação, como claramente se deduz da redacção do artigo em causa.  

    Como é evidente, o quadro normativo era diferente, pois à data dos factos estava em vigor o artigo 437.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal de 1982 e o Decreto-Lei n.º 371/83, de 6 de Outubro, ainda não declarado inconstitucional, o que veio a acontecer em 1996, estando em vigor à data da decisão a versão do Código Penal de 1995, sendo que então no artigo 386.º foi introduzido no n.º 2 parte do texto do Decreto-Lei de 1983.

   O afastamento foi justificado à luz do n.º 2 e no caso presente em equação está a alínea d) do n.º 1 do artigo 386.º do Código Penal [à data do acórdão, alínea c)].

 

    Analisando o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 5 de Julho de 2010, proferido no processo n.º 1015/07.3TABRG.G1, constata-se que o arguido era Presidente da Direcção da assistente APVG, sendo esta uma instituição particular de solidariedade social, reconhecida como pessoa de utilidade pública por despacho publicado no Diário da República, III Série, de 12-07-2001, tendo o inquérito sido arquivado. A assistente requereu abertura de instrução, defendendo haver crime de peculato por o arguido ter emitido três cheques da conta da assistente para pagamento a advogados que acompanharam processo de impugnação de eleições em que fora eleito o Presidente.

    Sendo colocada a questão de saber se o arguido pode ou não ser considerado funcionário para efeitos penais, pelo facto de desempenhar funções, como presidente, numa associação, pessoa colectiva de direito privado a quem foi atribuída utilidade pública, a decisão instrutória adopta o entendimento mais restritivo do âmbito subjectivo do conceito de funcionário preconizado por Damião da Cunha, dando uma resposta em conformidade com a nova posição, negativa, ou seja, não é funcionário para efeitos penais quem desempenha funções como presidente, numa associação, pessoa colectiva de direito privado a quem foi atribuída utilidade pública.

    Explicita o juiz de instrução: “(…) no caso dos autos a pessoa colectiva de utilidade pública “APVG” é uma pessoa colectiva de direito privado, não podendo os seus agentes ser considerados servidores do Estado, nem funcionários, para efeitos da lei penal, tanto mais que o aspecto privatístico é o único a considerar, no caso dos autos, na medida em que estamos apenas perante uma simples pessoa colectiva de direito privado, destinada a prosseguir apenas os interesses privados dos seus associados, sendo unicamente no âmbito destes interesses particulares que importa circunscrever a actuação do arguido nos presentes autos, na medida em que não está em causa qualquer concreto exercício de funções públicas (eventualmente decorrentes da utilidade pública, a qual se destina a conferir essencialmente cobertura legal para uma ajuda à própria associação, quer ao nível fiscal quer ao nível de subsídios estatais, assegurando assim a sua viabilidade existencial com vista a assegurar o escopo fundacional, ou seja os interesses dos respectivos associados).

    Termina afirmando que é a vertente privada e interna da APVG que está em causa nos autos e que, quanto a si, se apresenta in casu determinante.

     Conclui não poder estar em causa o crime de peculato, por o arguido não poder, in casu e em face do concreto objecto delimitado no requerimento de abertura de instrução, ser considerado funcionário para efeitos penais. 

    O acórdão cita igualmente Damião da Cunha, dizendo concordar com a nova orientação, seguindo de muito perto a fundamentação do juiz de instrução de que transcreve boa parte. 

     Adianta o acórdão: “Não está em causa a utilidade pública da APVG; nem que esta, para além da função privada, também desempenha funções públicas (fins de solidariedade social).

     Mas in casu o objecto delineado no requerimento de abertura de instrução não respeitava àquelas funções públicas ou àquelas finalidades de solidariedade social; mas outrossim, tinha a ver com a vida interna da APVG, com o seu património e contratos ”.

    No caso versado na decisão instrutória recorrida sobre que incidiu o acórdão convocado pela requerente BB estava em causa pessoa colectiva de direito privado, tendo sido focados apenas os interesses privados dos seus associados, exclusivamente interesses particulares.

    Muito diversamente, como já vimos e veremos de seguida, a Cruz Vermelha Portuguesa prossegue fins altruístas, sendo o seu Presidente, não eleito como no caso da assistente, mas nomeado pelo Governo, no caso Despacho da Presidência do Conselho de Ministros e Ministério da Defesa Nacional 15993/2009 (fls. 1087).

     Por isso mesmo até, o problema debatido tinha por pano de fundo uma questão emergente de processo eleitoral, que não se coloca na Cruz Vermelha, instituição integrada na figura das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa “especiais”, prosseguindo fins de interesse público, tarefas públicas, missão de interesse público, estando submetida a um regime fiscalizador de tutela, de ingerência pública, governativa.

     Neste sentido relevam os segmentos dos depoimentos do Presidente Nacional e de SS e de LL, com as referências a transferência da Segurança Social para a CVP da creche de Valbom, de Santo Tirso e de Crestuma, de administração do Lar Militar e do empenho colocado na solução de questões de violência doméstica, para além da prestação de apoio familiar, como ficou consignado supra a fls. 211.

 

      Para terminar, convoca-se o acórdão do Tribunal --- de 1 de Outubro de 2014, proferido no processo n.º 9051.09.9TDPRT.P1, publicado in Colectânea de Jurisprudência 2014, tomo 4, pág. 205, segundo o qual é funcionário para o efeito do artigo 386.º do Código Penal o presidente de uma instituição particular de solidariedade social e ainda o acórdão supra citado por Paulo Pinto de Albuquerque, no sentido de revestir essa qualidade o vice-presidente de uma instituição particular de solidariedade social que seja pessoa colectiva de utilidade pública (acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25 de Junho de 2007, in Colectânea de Jurisprudência, XXXII, 3, 296).

     

                                                              *******

     Para a integração do conceito de “funcionário” para efeitos penais, importa indagar da natureza da pessoa colectiva Cruz Vermelha Portuguesa, que de acordo com a acusação é ofendida no caso dos autos. 

       O regime jurídico da Cruz Vermelha Portuguesa

      Pelo Decreto-Lei n.º 36 612, de 24 de Novembro de 1947 (publicado no Diário da República, I Série, n.º 273, de 24-11-1947, alterado pelo Decreto-Lei n.º 40 337, de 17-10-1955, e pelo Decreto-Lei n.º 40 749, de 1-09-1956), é aprovado o Estatuto da Cruz Vermelha Portuguesa, salientando-se no preâmbulo a obrigação moral que sobre o Estado impende de estimular e favorecer a actividade da instituição em Portugal e a afirmação de que não será regateado o amparo necessário.

     Ali pode ler-se: “Com a plena consciência dos altos e humanitários objectivos que a tão prestante organismo compete atingir, e seguro da obrigação moral, que sobre o Estado impende, de estimular e favorecer a sua actividade em Portugal, sem nunca lhe deixar perder a orientação que mais convém aos interesses, ao sentir e à maneira especial de ser da gente portuguesa, promove agora o Governo a publicação do conjunto de princípios que, em seu entender, devem presidir à vida de uma instituição cuja actividade não pode deixar de ter alto significado e marcada projecção”.

      No artigo 1.º a Cruz Vermelha Portuguesa é definida como uma associação de utilidade pública, estabelecendo o artigo 2.º que goza dos privilégios legais concedidos às Misericórdias ou a quaisquer outras organizações ou associações de benemerência legalmente estabelecidas.

      No artigo 4.º dizia-se que gozava do benefício legal de pobreza, podendo receber legados e heranças a benefício de inventário, e de facilidades, atributos e prerrogativas especiais, como isenção de franquia postal, redução de taxas telefónicas e telegráficas e isenção de pagamento de direitos, impostos e taxas em relação a bens necessários à sua actividade.

      O artigo 7.º estabelecia:

      A Cruz Vermelha Portuguesa é uma instituição de carácter e interesse público, com personalidade e capacidade jurídica para todos os actos civis, devidamente amparada pelo Estado.

      Exerce a sua acção sob a égide do Ministério da Guerra, de que directamente depende.

     Dispunha o artigo 11.º: A CVP funciona na superintendência de um presidente nacional da instituição, responsável perante o Governo por todas as suas actividades, pela manutenção do seu prestígio e pelo seu desenvolvimento e progresso.

      Com o Decreto-Lei n.º 164/91, de 7 de Maio (Diário da República, I Série, n.º 104, de 7-05-1991), como se colhe do preâmbulo, o legislador, reconhecendo embora que os princípios orientadores da actividade da instituição permaneciam inalteráveis, considerava ser inquestionável a necessidade de se proceder à reformulação dos respectivos estatutos.

      Ali pode ler-se: “Com a plena consciência dos altos e humanitários fins que a tão prestante instituição compete atingir, e no sentido de estimular e favorecer a prossecução das suas tarefas, mantém-se o reconhecimento das razões determinantes de apoio devido à Cruz Vermelha Portuguesa pelo Estado, gozando dos benefícios inerentes às instituições particulares de solidariedade social.

      Importa, por isso, que o Governo consagre legalmente um conjunto de regras e princípios que irão regular as relações entre o Estado e a Cruz Vermelha Portuguesa, de molde a poder prestar cada vez mais e melhores serviços de reconhecida relevância e utilidade públicas, como instituição humanitária nacional de carácter voluntário.

      Sobre a natureza e regime jurídico regia o artigo 1.º:

1 – A Cruz Vermelha Portuguesa, adiante designada abreviadamente por CVP, é uma instituição humanitária não governamental de carácter voluntário e de interesse público, que desenvolve a sua actividade devidamente apoiada pelo Estado.

2 – A CVP é uma pessoa colectiva de direito privado e de utilidade pública administrativa, sem fins lucrativos, com plena capacidade jurídica para a prossecução dos seus fins.

 5 – A CVP exerce a sua actividade em todo o território nacional, como a única Sociedade Nacional da Cruz Vermelha, sendo a sua duração ilimitada e gozando dos benefícios inerentes às instituições de utilidade pública e instituições particulares de solidariedade social.

     Versando os objectivos, o artigo 3.º, n.º 2, enumera várias acções desenvolvidas pela CVP tendentes à concretização do objectivo fundamental, de entre as quais:

e) A promoção e a participação em acções de solidariedade social, complementares das levadas a cabo pelas entidades públicas de assistência social e de qualidade de vida.

      Pelo artigo 14.º, alínea d), do citado Decreto-Lei era revogado o Decreto-Lei n.º 36 612, após a entrada em vigor do decreto regulamentar que aprovava os novos Estatutos.

      À data do Decreto-Lei n.º 164/91, estava em vigor o Estatuto de 1947, estando previstos no diploma preceitos que contêm normas que então integravam os Estatutos e assim:

Artigo 52.º dos Estatutos (Recursos Económicos) corresponde ao artigo 6.º do DL 164/91;

Artigo 57.º dos Estatutos (Competência da tutela) corresponde ao artigo 9.º do DL 164/91;

Artigo 58.º dos Estatutos (Apoio do Estado) corresponde ao artigo 8.º do DL 164/91;

Artigo 59.º dos Estatutos (Benefícios) corresponde ao artigo 7.º do DL 164/91;

Artigo 60.º dos Estatutos (Designação, emblemas, distintivos e uniformes) corresponde ao artigo 10.º do DL 164/91;

Artigo 61.º dos Estatutos (Insígnias e condecorações) corresponde ao artigo 11.º do DL 164/91.

     Seguiu-se o Decreto-Lei n.º 281/07, de 7 de Agosto (publicado no Diário da República, 1ª Série, n.º 151, de 07-08-2007), que aprovou o regime jurídico da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) e os respectivos estatutos, os quais passaram a fazer parte integrante do Decreto-Lei.

     Desde logo no preâmbulo é de novo enfatizado o apoio justificado à instituição por parte do Estado, como se retira do seguinte passo: 

      “Com plena consciência dos altos e humanitários fins que à instituição compete atingir e no sentido de estimular e favorecer a prossecução das suas tarefas, mantém-se o reconhecimento das razões determinantes do apoio devido à Cruz Vermelha Portuguesa, continuando a gozar dos benefícios inerentes às instituições particulares de solidariedade social e consagrando-se legalmente um conjunto de regras e princípios que irão regular as relações entre o Estado e a instituição, de molde a que esta possa prestar, cada vez mais e melhor, serviços de reconhecida relevância e utilidade pública, como instituição humanitária nacional”.

     E mais à frente:

      “O novo regime considera definitivamente a verdadeira génese da Cruz Vermelha Portuguesa enquanto organização não governamental e pessoa colectiva de direito provado e utilidade pública administrativa, embora tendo em consideração que o apoio estatal constitui uma condição fundamental para a prossecução dos seus objectivos.

     Na definição do Regime jurídico decorre do artigo 2.º, n.º 1, que a CVP está subordinada às convenções internacionais de Genebra, subscritas e ratificadas por Portugal, no âmbito das suas finalidades, ao presente decreto-lei e demais legislação aplicável.

     Estabelece o n.º 2 que a CVP tem duração ilimitada e goza dos benefícios inerentes às instituições de utilidade pública e instituições particulares de solidariedade social.

     No que tange à natureza, estabelece o 

                                                               Artigo 3.º

1 – A Cruz Vermelha Portuguesa, adiante designada por CVP, é uma instituição humanitária não governamental, de carácter voluntário e de interesse público, que desenvolve a sua actividade devidamente apoiada pelo Estado, no respeito pelo Direito Internacional Humanitário, pelos Estatutos do Movimento Internacional e pela Constituição da Federação da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.

2 – A CVP é uma pessoa colectiva de direito privado e de utilidade pública administrativa, sem fins lucrativos, com plena capacidade jurídica para a prossecução dos seus fins.

      Os Princípios fundamentais são definidos no n.º 2 do artigo 4.º e que são Humanidade, Imparcialidade, Neutralidade, Independência, Voluntariado, Unidade e Universalidade.

     A definir a Independência a alínea d. refere: A Cruz Vermelha é independente e, no exercício das suas actividades como auxiliar dos poderes públicos, conserva autonomia que lhe permite agir sempre segundo os princípios do Movimento Internacional da Cruz Vermelha.

     No artigo 52.º dos Estatutos (Capítulo IV – Funcionamento e gestão), respeitante a “Recursos económicos”, consta como integrantes – alínea b. – as subvenções e apoios concedidos pelos órgãos da Administração Pública.

      Integrado no Capítulo V - Relações com o Estado – sobre Tutela dispõe o

                                                           Artigo 57.º

 1 – Compete ao Ministro da Defesa Nacional o exercício da tutela inspectiva da CVP na administração dos seus recursos.

2 – No âmbito das suas competências tutelares, cabe, ainda, ao Ministro da Defesa Nacional:

a. Promover todas as iniciativas legislativas que respeitem à sociedade;

b . Homologar o relatório e contas dos exercícios anuais da CVP;

c. Promover as necessárias medidas de forma a contribuir para a realização do suporte financeiro adequado.

     Após no artigo 58.º se definirem os modos em que se traduz o apoio do Estado à CVP, o tema dos “Benefícios” é versado no 

                                                           Artigo 59.º 

1 – A CVP goza, para a prossecução dos seus objectivos, de isenção de custas judiciais, de franquia postal, de redução de taxas telefónica e telegráficas, de bonificação nos encargos da publicidade que realize nos meios de comunicação social de empresas do sector público, dos benefícios aplicáveis às instituições particulares de solidariedade social, assim como de outros que solicita e sejam concedidos pelos órgãos da Administração Pública.

2 – A CVP goza, igualmente, para a prossecução dos seus objectivos, dos benefícios fiscais concedidos às pessoas colectivas de utilidade pública e às instituições particulares de solidariedade social, nos termos da legislação em vigor.

                                                            *******

     Na vigência do Estatuto da Cruz Vermelha Portuguesa, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 36 612, sendo então a CVP definida como «uma associação de utilidade pública» pronunciou-se o Parecer da Procuradoria-Geral da República, n.º 17/84, de 5 de Julho de 1984, homologado em 23 de Abril de 1985, in BMJ n.º 346, págs. 39 a 53, sendo questionado:

a) Se a Cruz Vermelha Portuguesa é uma pessoa colectiva de utilidade pública administrativa;

b) Se, sendo-o, os seus servidores estavam isentos de imposto profissional.

    Consta da fundamentação do Parecer:

    “As pessoas colectivas de direito privado distinguem-se em pessoas colectivas de utilidade pública e de utilidade particular.

    São pessoas colectivas de direito privado e utilidade particular as que se propõem um escopo lucrativo, de que são paradigma as sociedades comerciais.

     Se a finalidade estatutária não se limita ao fim meramente lucrativo, ainda que este objectivo possa concorrer com vista à satisfação de interesses ideais ou económicos não lucrativos dos associados ou do fundador, dizem-se de utilidade pública as pessoas colectivas de direito privado.

     Para Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, vol. I, Lisboa, 1982, pág. 152, são-no todas aquelas que não tenham como objecto social a prossecução do lucro «quer o seu fim seja desinteressado ou altruístico por não se dirigir à satisfação de um interesse dos associados ou do fundador, quer seja interessado ou egoístico mas de natureza ideal ou de natureza económica não lucrativa”.

      Dizia Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 7.ª edição, 1965, pág. 142 “A lei, consentindo a concorrência das pessoas colectivas de direito privado com as de direito público e desejando-a para mais fácil e eficazmente serem alcançados fins comuns de interesse geral, poderá criar um regime jurídico especial para essas pessoas colectivas e assim nascem as pessoas de utilidade pública administrativa”.

     Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10.ª edição, 2.ª reimpressão, 1982, vol. I, pág. 403 e Parecer da PGR n.º 37/68, de 20 de Dezembro de 1968, in Diário do Governo II Série, de 3-04-1969 e BMJ n.º 186, pág. 102 “A expressão abrange, consequentemente, «associações que não tenham por fim o lucro económico dos associados e fundações de interesse social (e nesse fim não económico ou interesse social está a essência da utilidade pública) cujos fins coincidem com atribuições da Administração Pública (utilidade pública administrativa). Nesta coincidência ou concorrência se acha o fundamento da qualificação da utilidade pública como administrativa, podendo, portanto, haver numerosíssimas pessoas colectivas de utilidade pública meramente civil, isto é, não administrativa».

     O conceito encontra-se plasmado no artigo 416.º do Código Administrativo assumindo natureza local.

     “Consideram-se pessoas colectivas de utilidade pública administrativa as associações beneficentes ou humanitárias e os institutos de assistência ou educação, tais como hospitais, hospícios, asilos, casas pias, creches, lactários, albergues, dispensários, sanatórios, bibliotecas e estabelecimentos análogos, fundados por particulares, desde que umas e outros aproveitem em especial aos habitantes de determinada circunscrição e não sejam administrados pelo Estado ou por um corpo administrativo”.

     O Parecer reitera considerar a CVP uma pessoa colectiva de utilidade pública administrativa, tratando-se em linhas gerais, de uma associação de interesse não meramente lucrativo, de carácter social, cujos fins são parcialmente coincidentes com atribuições da Administração Pública, daí lhe resultando a utilidade pública administrativa.

     E explicita: “A complexidade do aparelho do Estado provoca pelo mecanismo da devolução de poderes, recebendo o nome de administração indirecta, que as funções de responsabilidade do Estado sejam, dentro de certos limites, entregues a outras pessoas colectivas, nada impedindo que estas sejam de direito privado, contribuindo-se deste modo para melhor satisfação das necessidades colectivas, sem descurar um regime fiscalizador de tutela”.

     Concluía o Parecer ser a CVP uma pessoa colectiva de utilidade pública administrativa (geral e não local atenta a sua projecção nacional), sendo nessa medida de observar a isenção prevista no artigo 4.º, alínea c), do Código de Imposto Profissional.

     A título informativo, anota-se que no Parecer n.º 39/79, de 19 de Abril de 1979, in BMJ n.º 294, págs. 69 e ss., a Liga dos Combatentes foi considerada uma pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública administrativa geral.

     Da fundamentação extrai-se o seguinte passo: “O fim desinteressado de uma pessoa colectiva é índice da sua utilidade pública e se exercida em cooperação necessária com a Administração que prossegue paralelamente o mesmo fim, estaremos perante uma pessoa colectiva de utilidade pública administrativa, geral ou local.

     Já anteriormente pelo Parecer n.º 19/60, de 10 de Março de 1960, in BMJ n.º 97, pág. 151, a instituição particular de assistência Liga dos Combatentes foi considerada pessoa colectiva de utilidade pública administrativa.

 

                                                              *******

     O Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de Novembro, e a atribuição do estatuto de pessoas colectivas de utilidade pública

      (O diploma foi alterado pela Lei n.º 40/2007, de 24 de Agosto, a qual aprovou um regime especial de constituição imediata de associações, alterando o Código Civil (Diário da República, 1.ª série, n.º 163, de 24-08-2007), que pelo artigo 19.º, adita alínea f) ao artigo 10.º e o Decreto-Lei n.º 391/2007, de 13 de Dezembro (Diário da República, 1ª série, n.º 240, de 13-12-2007), alterando os artigos 2.º a 8.º, 12.º, 13.º e 15.º; revogando o n.º 4 do artigo 5.º; o n.º 3 do artigo 6.º e as alíneas c) e d) do artigo 10.º, e procedendo à republicação).

     Como se retira do preâmbulo, na origem do diploma esteve a preocupação de incentivar o associativismo, a necessidade de dotar as colectividades de alguns meios para valorização e expansão da sua actividade e a falta de legislação respeitante ao processo de reconhecimento da utilidade pública.

     Os direitos e regalias possibilitados pelo diploma, que se traduzem em isenções fiscais, redução de determinadas taxas e outros benefícios, algo poderão contribuir para a valorização das colectividades que a eles façam jus.

     No último parágrafo pode ler-se:

     “As pessoas colectivas de utilidade pública, que se não confundem com as mais próximas categorias de pessoas colectivas, nomeadamente as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, as pessoas colectivas de direito privado e utilidade pública e as empresas de interesse colectivo, caracterizam-se fundamentalmente pelo facto de resultarem de uma distinção especial, conferida, caso a caso, pela Administração, a pedido da própria associação interessada”.

     Estabelece o Artigo 1.º (Noção de pessoa colectiva de utilidade pública):

1 – São pessoas colectivas de utilidade pública as associações ou fundações que prossigam fins de interesse geral, ou da comunidade nacional ou de qualquer região ou circunscrição, cooperando com a Administração central ou a administração local, em termos de merecerem da parte desta administração a declaração de «utilidade pública».

2 – As pessoas colectivas de utilidade pública administrativa são, para efeitos do presente diploma, consideradas como pessoas colectivas de utilidade pública.

     O artigo 2.º estabelece as condições gerais da declaração de utilidade pública. O artigo 9.º estabelece que as pessoas colectivas de utilidade pública gozam das isenções fiscais que forem previstas na lei, definindo o artigo 10.º as regalias de que beneficiam e o artigo 12.º os respectivos deveres.

                                                                 *******

      Para Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10.ª edição, 1980, Vol. I, págs. 396 a 399, seriam pessoas colectivas de utilidade pública as pessoas colectivas de direito privado que não tivessem “por fim o lucro económico dos associados”.

      De entre o conjunto de associações, fundações e sociedades criadas por iniciativa dos particulares cuja personalidade colectiva era reconhecida nos termos do Direito privado, podendo na sua actividade ser sujeitas a normas de Direito administrativo em virtude de colaborarem na realização de fins próprios da Administração Pública ou receberem mesmo desta funções especiais destacava-se a classe das pessoas colectivas de direito privado e regime administrativo, onde se incluíam as denominadas pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, categoria que abrange «associações que não tenham por fim o lucro económico dos associados e fundações de interesse social (e nesse fim não económico ou interesse social está a essência da utilidade pública) cujos fins coincidam com atribuições da Administração Pública (utilidade pública administrativa). Nesta coincidência ou concorrência se acha o fundamento da qualificação da utilidade pública como administrativa, podendo portanto haver numerosíssimas pessoas colectivas de utilidade pública meramente civil, isto é, não administrativa.

     Como reconheceu Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 1992, págs. 552/3, esta classificação carecia de ser revista à luz da significativa evolução legislativa verificada após 1974.

     O Autor propôs, para as referidas pessoas colectivas de direito privado e regime administrativo, a nova designação de instituições particulares de interesse público, que define como “pessoas colectivas privadas que, por prosseguirem fins de interesse público, têm o dever de cooperar com a Administração Pública e ficam sujeitas, em parte, a um regime especial de Direito Administrativo”.

      Tais instituições particulares de interesse público possuem como características mais marcantes as seguintes:

a) Do ponto de vista orgânico ou subjectivo, são entidades privadas (pessoas colectivas privadas);

b) Do ponto de vista material ou objectivo, desempenham, por vezes, uma actividade administrativa de gestão pública, outras vezes exercem uma actividade de gestão privada;

c) Do ponto de vista do direito aplicável, estão sujeitas a um regime misto de direito privado e de Direito Administrativo.

      Considera, ainda, o Autor que as instituições particulares de interesse público abrangem, fundamentalmente, duas espécies - sociedades de interesse colectivo e pessoas colectivas de utilidade pública.

      Estas, por sua vez, subdividem-se em três subespécies: pessoas colectivas de mera utilidade pública, instituições particulares de solidariedade social e pessoas colectivas de utilidade pública administrativa.

      As pessoas colectivas de utilidade pública são definidas como «as associações ou fundações de direito privado que prossigam fins não lucrativos de interesse geral, cooperando com a Administração central ou local, em termos de merecerem da parte desta a declaração de “utilidade pública”». É a definição dada pelo artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de Novembro.

      Referindo-se, depois, às subespécies de pessoas colectivas de utilidade pública, caracteriza-as do seguinte modo:

      «As pessoas colectivas de mera utilidade pública compreendem todas as pessoas colectivas de utilidade pública que não sejam instituições particulares de solidariedade social nem pessoas colectivas de utilidade pública administrativa - o conteúdo desta categoria determina-se, pois, por exclusão de partes. Prosseguem quaisquer fins de interesse geral que não correspondam aos fins específicos das outras duas categorias. O seu regime jurídico consta do D.L. n.º 460/77, de 7 de Novembro (...).»

      «As instituições particulares de solidariedade social são as que se constituem para dar expressão organizada ao dever moral de solidariedade e de justiça entre os indivíduos - nomeadamente para fins de apoio a crianças e jovens, apoio à família, integração social e comunitária, protecção na velhice e na invalidez, promoção da saúde, educação, formação profissional e habitação social. O seu regime jurídico consta do D.L. nº 119/83, de 25 de Fevereiro (...).»

      «As pessoas colectivas de utilidade pública administrativa são as pessoas colectivas de utilidade pública que, não sendo instituições particulares de solidariedade social, prossigam alguns dos fins previstos no artigo 416.° do CA: é, nomeadamente, o caso das associações humanitárias, que visam socorrer feridos, doentes ou náufragos, a extinção de incêndios ou qualquer outra forma de protecção desinteressada de vidas humanas e bens. O seu regime jurídico consta ainda do Código Administrativo de 1936-40 (...)».

      Constata-se que há uma graduação da intervenção da Administração Pública nestas três espécies: mínima nas pessoas colectivas de mera utilidade pública, de nível intermédio nas instituições particulares de solidariedade social e máxima nas pessoas colectivas de utilidade pública administrativa.

     A justificação da diferença de regimes radica na medida em que os fins prosseguidos interessam à Administração: no primeiro caso, os fins de interesse geral tidos em vista por entidades privadas não interferem com as funções assumidas pela Administração, embora esta os veja com bons olhos, limitando-se a controlar as actividades privadas correspondentes; no segundo caso os fins prosseguidos coincidem com funções da Administração e esta favorece, mas também fiscaliza, a coexistência colaborante entre as actividades privadas e públicas; no terceiro caso as entidades criadas vêm suprir uma omissão ou lacuna dos poderes públicos e correspondem por conseguinte a uma modalidade de exercício privado de funções públicas, onde a intervenção e o controle administrativo e financeiro têm de ser maiores (pág. 569).

     Como refere o Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 17-02-2005, processo n.º 160/2004, DR, n.º 198, de 14-10-2005, “Independentemente da catalogação doutrinária que se possa fazer das pessoas colectivas de utilidade pública, importa ter presente que essa qualificação não é de carácter, automático, antes resulta, nos termos do Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de Novembro, «de uma distinção especial, conferida, caso a caso, pela Administração, a pedido da própria associação interessada»”, como refere a nota preambular do diploma.

     Sobre a caracterização do qualificativo de utilidade pública pronunciou-se já o Conselho Consultivo da PGR no Parecer n.º 11/88, de 26 de Maio de 1988, citado no Parecer n.º 160/2004, de 17 de Fevereiro de 2005, in Diário da República, n.º 198, de 14-10-2005, da seguinte forma:

     “A utilidade pública, como atributo que pode ser concedido, por decisão da Administração, a determinadas pessoas colectivas, que reúnam certos condicionalismos e prossigam finalidades relevantes de interesse social, constitui uma noção com recorte legal específico, expressamente acolhida e definida no Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de Novembro.

    “A utilidade pública consiste, assim, numa atribuição ou qualificação, conferida (reconhecida) caso a caso pela Administração a determinadas pessoas colectivas (associações ou fundações), de natureza privada e de fins não lucrativos, em atenção ao relevo dos interesses que prosseguem e dos serviços que prestem à comunidade.

     As pessoas colectivas de utilidade pública, na significação resultante do DL 460/77, são pessoas colectivas privadas (associações ou fundações), que prosseguem fins não lucrativos de interesse geral, de âmbito nacional ou local, que devem cooperar com a Administração no prosseguimento e desenvolvimento de fins de interesse geral e, que, em consideração desses interesses e fins, mereçam da Administração a declaração de utilidade pública. 

     A declaração de utilidade pública determina para as associações e fundações a que seja reconhecida um regime jurídico próprio, que se caracteriza essencialmente pela concessão de um certo número de regalias e isenções, de par com alguns deveres e limitações.



     Segundo Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10.ª edição, Reimpressão (revista e actualizada pelo Prof. Freitas do Amaral), Almedina 1980, Tomo I, pág. 193, “as pessoas colectivas de direito privado resultam da atribuição da personalidade pela Ordem jurídica (reconhecimento) a uma associação ou instituição de iniciativa particular (substracto) cuja organização e gestão são deixadas, senão na totalidade ao menos em grande parte, à vontade dos associados ou instituidores”.

     Refere a págs. 194: Quando o fim prosseguido pela associação é desinteressado em relação aos associados, isto é, não envolve a intenção de procurar lucro ou proveito económico para cada um deles, diz-se que há utilidade pública. É a essas associações que se refere o Código Civil nos artigos 157.º e 167.º e segs.

     As pessoas colectivas de direito privado podem ser de fim interessado ou desinteressado.

     Nas primeiras - fim interessado - há um intuito lucrativo, em que os associados participam numa quota do capital social e adquirem o direito aos lucros provenientes da sua actividade.

     Estamos, então, perante as sociedades civis ou comerciais, que prosseguem, portanto, uma mera utilidade particular.

     Nas segundas - fim desinteressado - os objectivos prosseguidos pelo ente colectivo não visam o proveito económico dos seus membros ou associados, mas antes finalidades coincidentes com os da Administração, por conseguinte, voltadas para a satisfação de interesses da colectividade.

     Estas denominam-se pessoas colectivas de utilidade pública

     As pessoas colectivas de utilidade pública:

- São entes colectivos de direito privado;

- Visam a prossecução de interesses gerais, nacionais ou locais;

- Cooperam com a Administração na realização desses fins ou interesses;

- Pressupõem a prévia declaração de utilidade pública por parte da Administração.

     Figueiredo Dias, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 121.º, 1988-1989, n.º 3777, págs. 379 a 384, Coimbra Editora, Ld.ª, 1989, em anotação a acórdão do Tribunal Colectivo de Braga de 20-01-1989, versando crime de participação económica em negócio, envolvendo Câmara Municipal e o “Clube de X”, afirma a págs. 381:

     “O que caracteriza e historicamente esteve na base da atribuição da qualidade de «utilidade pública» a certas entidades de direito privado consistiu no facto de estas prosseguirem finalidades de interesse social, consideradas necessárias ou relevantes na esfera local, regional ou nacional. Trata-se, portanto, do reconhecimento de que determinadas organizações e associações privadas realizam funções que, em princípio, cabem na órbita das atribuições do Estado, assumindo em relação a este, por isso, muitas vezes, um papel supletivo ou subsidiário. Daí que, coincidindo os interesses enquadrados nas entidades de «utilidade pública» com os do Estado, se tenha forçosamente de concluir que eles revestem carácter público e nunca privado. Essa a ideia que esteve presente no Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de Novembro, diploma que regula a concessão da qualidade utilidade pública.

     Acresce que a circunstância de o processo de declaração de utilidade pública ser individualizado, resultando «(…) de uma distinção especial, conferida, caso a caso, pela Administração, a pedido da própria associação interessada», só vem vincar, ainda mais, a natureza eminentemente pública ou colectiva dos objectivos que, depois de reconhecidas, essas entidades servem. Numa palavra, a ponderação individualizada de cada situação constitui garantia segura de que as fundações e associações reconhecidas como de utilidade pública prosseguem efectivamente finalidades de carácter social ou colectivo, desenvolvendo, assim, uma actividade supletiva da própria Administração”.

     Conclui, na pág. 384: “(…) os interesses prosseguidos pelo «Clube de X», enquanto pessoa colectiva de «utilidade pública», assumem igualmente um carácter público”.

     

     Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica; Vol I, Sujeitos e Objecto, Almedina 1960, e Reimpressão Coimbra, 1992, foca o tema de classificações doutrinárias e legais das pessoas colectivas, de págs. 67 a 92, com inteira coincidência nas duas edições. 

     Procurando critério de distinção das pessoas colectivas de direito público e pessoas colectivas de direito privado aponta o respectivo escopo ou finalidade, sintetizando o critério proposto neste enunciado, a págs. 71/2: “são de direito público as pessoas colectivas que disfrutam, em maior ou menor extensão, o chamado jus imperii, correspondendo-lhes portanto quaisquer direitos de poder público, quaisquer funções próprias da autoridade estadual; são de direito privado todas as outras”. 

     Pessoas colectivas públicas são aquelas às quais couber, segundo o ordenamento jurídico e em maior ou menor grau, uma posição de supremacia, uma possibilidade de afirmar uma vontade imperante.

     As pessoas colectivas de direito privado, segundo um critério que olha a finalidade estatutária, distinguem-se em pessoas colectivas de utilidade pública e de utilidade particular.

     As pessoas colectivas de direito privado e utilidade pública são as que se propõem um escopo de interesse público, ainda que, concorrentemente, se dirijam à satisfação dum interesse dos próprios associados ou do próprio fundador.

     Modalidades:

     Pessoas colectivas de fim desinteressado ou altruístico

    Nestas pessoas colectivas o interesse próprio que os associados ou o fundador querem satisfazer é um interesse de natureza altruística: o interesse em promover certos interesses de outras pessoas (os beneficiários). Trata-se de pessoas colectivas de utilidade pública, porque à comunidade social importa que tais interesses sejam satisfeitos. Tanto que o Estado ou os entes públicos menores costumam prover no mesmo sentido (em ordem a contentar os mesmos ou análogos interesses), através dos seus próprios recursos.

    A esta categoria pertencem as fundações e grande número de associações como as de beneficência ou as humanitárias.

    Pessoas colectivas de fim interessado ou egoístico

   Nestas pessoas colectivas o escopo visado interessa de modo egoístico aos próprios associados, mas é tal que ao mesmo tempo interessa à comunidade. Este fim pode ser de diversa ordem e daí a subdistinção entre pessoas colectivas de fim ideal, como clubes recreativos e desportivos e pessoas colectivas de fim económico não lucrativo, como as associações de socorros mútuos e instituições congéneres.

 

   As pessoas colectivas de direito privado e utilidade particular têm por finalidade própria o mero interesse particular; só podem ser as que se dirigem a um escopo lucrativo (ou especulativo); fazer lucros (um monte de valores económicos) para distribuir entre o seus componentes. Tratar-se-á das sociedades previstas no Código Civil e no Código Comercial (págs. 79/80).

   Mais à frente, a págs. 89/90, versa as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, agrupamento constituído pelas pessoas colectivas de que trata o Código Administrativo nos artigos 416.º a 448.º.

   Após transcrever o artigo 416.º, dizia concluir-se do texto que “são de utilidade pública administrativa as pessoas colectivas de direito privado e utilidade pública, quando a utilidade pública visada seja predominantemente local, competindo a respectiva administração a particulares e não a entes públicos, uma vez que, segundo parece, se trate duma finalidade desinteressada e tal que deva qualificar-se como de assistência ou beneficente, humanitária ou educativa”.

   Refere de seguida: “Numa fórmula não inteiramente rigorosa, mas bastante próxima da realidade, podemos dizer, portanto, que as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa equivalem a pessoas colectivas de direito privado e utilidade pública, de fim altruístico e predominantemente local”.

   Como modalidades destas pessoas colectivas distinguem-se as associações beneficentes ou humanitárias e os institutos de utilidade local. 

   As pessoas colectivas de utilidade pública administrativa podem definir-se como as “pessoas colectivas de direito privado, de fim não lucrativo, cujas atribuições coincidem com as funções da Administração Pública, e que por isso estão sujeitas a um regime jurídico especial” – assim, Freitas do Amaral, Lições ao Curso de Direito de 1983/4, da FDUCL, I., 891. (v.g., as Misericórdias, as Associações de Bombeiros Voluntários).

   Para além destas pessoas colectivas de direito privado que prosseguem fins públicos há outras que igualmente se propõem ao exercício privado de funções públicas. São as empresas de interesse colectivo, definidas como «empresas de direito privado, de fim lucrativo, incumbidas de exercer poderes ou desenvolver actividades pertencentes à Administração Pública, e que por isso ficam sujeitas a um regime jurídico especial» Freitas do Amaral, loc. cit.,- pág. 903 (v.g., sociedades concessionárias de serviços públicos, sociedades concessionárias de obras públicas).

   Vital Moreira, Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra Editora, 1997, versando as “pessoas colectivas de utilidade pública administrativa”, designação com que rebaptizadas no Código Administrativo de 1936, as antigas “corporações administrativas” do Código Administrativo de João Franco (1896), refere que a doutrina dominante sustenta a persistência da categoria com o regime do Código Administrativo, ressalvada a inconstitucionalidade superveniente de algumas normas desse regime.

   Refere a pág. 297: “As pessoas colectivas de utilidade pública administrativa são “pessoas colectivas de utilidade pública”, mas não esgotam esta figura, formando uma modalidade à parte; além delas existem as pessoas colectivas de mera utilidade pública, sem submissão a um regime administrativo. Por outro lado, nem todas as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa do Código Administrativo foram consumidas pelas “instituições particulares de solidariedade social” (por exemplo, as associações humanitárias). Por isso, devem continuar a ser consideradas como pessoas colectivas de utilidade pública administrativa «todas aquelas que já o eram à face do art. 416.º do Código Administrativo e não passaram a instituições particulares de solidariedade social nos termos do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25-12 (neste sentido, Freitas do Amaral, 1994:555; Fernandes Cadilha, 1986:29; Rebelo de Sousa, 1995:479 e Acórdão do STA de 15-12-83, na Revista do Ministério Público, n.º 17 (1994), pág. 111, com nota concordante de Silva Leal)”.

   De seguida – pág. 298 – afirma: “De resto, às pessoas colectivas de utilidade pública administrativa de âmbito local – as previstas no Código Administrativo – devem equiparar-se certas outras espécies de entidades de direito privado, de âmbito nacional, de utilidade pública qualificada e submetidas a um regime jurídico com traços administrativos muito semelhantes, como sucede com a Cruz Vermelha Portuguesa. Próximas estão também as federações desportivas, no formato jurídico-organizatório hoje vigente”.

   Em nota de rodapé, afastando as posições de Jorge Miranda e de Freitas do Amaral que incluíam a CVP entre as associações públicas, o que supunha a personalidade de direito público, e depois de manifestar concordância com a conclusão do Parecer n.º 17/84, afirma: “A Cruz Vermelha corresponde à categoria das «associações humanitárias» definidas no art. 441.º do Código Administrativo, as quais são uma das espécies das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa. Embora o Código Administrativo, pela sua própria natureza de compêndio da administração local, só se aplique directamente às pessoas colectivas de utilidade pública administrativa de âmbito local, nada obstava a que o conceito abarcasse as de âmbito supralocal, como era o caso da Cruz Vermelha, aplicando-se-lhe supletivamente o regime daquelas”. (Realces nossos).

     Freitas do Amaral em Curso de Direito Administrativo, Vol. I, Reimpressão Almedina, Coimbra, 1991, ao abordar as Associações Públicas, a págs. 366 e ss, distingue três espécies de associações públicas: associações de entidades públicas, associações públicas de entidades privadas e associações de carácter misto.

      Na categoria Associações públicas de entidades privadas, a mais importante e numerosa e aquela que custou mais a aceitar nos quadros do novo regime democrático português, o Autor aponta como exemplos as Ordens Profissionais e as Câmaras profissionais.

      Indica como outros casos, as academias científicas (Academia das Ciências de Lisboa, Academia Portuguesa de História, Academia Nacional de Belas Artes, Academia da marinha e Academia Internacional de Cultura Portuguesa); a «Casa do Douro», as «casas do povo»; a «Cruz Vermelha Portuguesa», não deixando de em nota de rodapé referir a diferente qualificação dada pelo Parecer da PGR n.º 17/84, como pessoa colectiva de utilidade pública administrativa.  

      O Autor justifica esta integração nestes termos: “ Em todos estes casos a lei entrega a uma associação de sujeitos privados – muitas vezes, indivíduos – a prossecução de um interesse público destacado de uma entidade pública de fins múltiplos, o qual coincide com os interesses particulares desses sujeitos privados. Deste modo, a lei confia na capacidade destes para, em associação, desempenharem adequada e correctamente a missão de interesse público colocada sobre os seus ombros. Pode mesmo afirmar-se que, ao criar para o efeito uma associação pública, transferindo para ela poderes públicos pertencentes ao Estado (ou a outra pessoa colectiva pública), a lei está implicitamente a reconhecer que, nas circunstâncias do caso, um certo interesse público específico será bem mais prosseguido pelos particulares interessados, em regime de associação, e sob direcção de órgãos por si próprios eleitos, do que por um serviço integrado na administração directa do Estado, constituído por funcionários, ou mediante um instituto público que, embora personalizado e autónomo, mais não seria do que uma longa manus do Governo, a cargo de pessoas por este nomeadas”. (Realce nosso).

    Pedro Gonçalves, Entidades Privadas com Poderes Públicos, Colecção Teses, Almedina, 2005 (correspondendo a texto apresentado em 30-12-2003, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico - Políticas na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) refere, a págs. 437, que há entidades privadas que, embora originariamente não pertencentes à Administração Pública (trata-se de entidades particulares), passam a integrá-la (de um ponto de vista funcional) pelo facto de ficarem investidas de funções públicas administrativas.

      Mais à frente, a págs. 454/5, tratando da cooperação entre particulares e Administração Pública, afirma que o Estado reconhece a similitude de funções, atribuindo ao sujeito privado um estatuto que o distingue dos demais particulares: o reconhecimento de utilidade pública de uma associação ou fundação.

     Ao versar as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa previstas no Código Administrativo, refere não se ir ocupar das entidades com o estatuto legal ou normativo de pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, hipótese integrada pelos casos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (artigo 1.º/1 dos seus Estatutos, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de Agosto), da Cruz Vermelha Portuguesa (artigo 1.º/2 do Decreto-Lei n.º 164/91, de 7 de Maio) e da Liga dos Combatentes (artigo 1.º/1 do seu Estatuto, aprovado pela Portaria n.º 119/99, de 10 de Fevereiro).

      Esclarece, a págs. 520/1: “Trata-se, em todos esses casos, de pessoas colectivas de utilidade pública administrativa “especiais”, que, para além do mais, extravasam claramente do âmbito local das entidades assim designadas no Código Administrativo.

      A qualificação das entidades referidas resulta de uma opção legal ou normativa para casos particulares. A existência delas não confirma (nem desmente) a subsistência, no direito português, da categoria específica de pessoas colectivas de utilidade pública administrativa a que se refere o Código Administrativo. Trata-se, insistimos, de uma qualificação pública de carácter normativo, eventualmente inspirada nas “tradicionais” ou “históricas” pessoas colectivas de utilidade administrativa e na ideia que imediatamente esta qualificação sugere, quer quanto aos fins prosseguidos pelas entidades assim qualificadas, quer quanto ao regime de ingerência pública a que ficam submetidas. O regime das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa “especiais” é, além do que as leis gerais estabelecem para todas as entidades dessa categoria, aquele que, especialmente, lhes for dedicado. Os escopos a que se dedicam são indicados no acto normativo que as institui ou que lhes reconhece utilidade pública administrativa. Por isso mesmo, saber se executam tarefas públicas, ou não, constitui algo que só o estudo de cada uma delas permite concluir. Veremos, sobre isso, que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa se assume como “entidade administrativa privada”, pelo que, de acordo com a concepção que defendemos, a actividade que exerce deve considerar-se “actividade pública”. (Negrito nosso).   

   

      Como vimos, Damião da Cunha, O Conceito de Funcionário, para Efeito de Lei Penal e a “Privatização” da Administração Pública, Uma revisão do Comentário ao Art. 386.º do Código Penal - Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, Limitada, 2008, refere-se às “pessoas colectivas de utilidade pública administrativa especiais”, como são os casos da Santa Casa da Misericórdia, da Cruz Vermelha Portuguesa e da Liga de Combatentes, todas elas porque têm um estatuto específico legal.

  

                                                         *******

      Enquadramento jurídico-criminal

    Os factos cuja prática pelas ora requerentes vem fortemente indiciada preenchem os elementos essencialmente constitutivos do tipo legal de crime de peculato, p. p. pelo artigo 375.º do Código Penal, pois que para pagamento de resumos e projectos de acórdãos destinados a processos do Tribunal --- distribuídos a AA, Juíza Desembargadora naquele Tribunal, foi apropriada a quantia global de 7 505,75 €, pertencente à Delegação de ... da Cruz Vermelha Portuguesa, sendo 6 644,75 € para BB e 861,00 € para EE, no caso, pagamento da factura 1012, de 12 de Abril de 2013, sendo que a caracterização da Cruz Vermelha Portuguesa como pessoa colectiva de direito privado de utilidade pública administrativa especial, o exercício de funções públicas e a tutela governativa conduzem à configuração das requerentes ao conceito de funcionário para efeitos da lei penal, nos termos do artigo 386.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal.  

    No caso presente proceder-se-á a uma subsunção in mellius em relação às condutas dadas por fortemente indiciadas como praticadas por uma e outra das arguidas/requerentes, embora por razões diferentes.

    No que tange à requerente BB, a quem igualmente era imputada a prática de dois crimes de peculato, sendo o segundo por envolvimento directo na contratação da advogada Dr.ª EE para elaboração de projectos de acórdãos distribuídos a AA, por verificada forte contra indiciação no que respeita à sua intervenção no que toca a tal contratação, como ficou demonstrado através da análise da prova testemunhal produzida, em que se compreendem os depoimentos do Presidente Nacional, Dr. GG, de SS, de CC e de DD, se bem que aqui com menor consistência e ainda das declarações de AA, operando-se redução do lastro factual imputado na acusação, concretamente nos artigos 48, 49 e 51, quanto a responsabilidade pela quantia de 861,00 € paga pela Delegação da Cruz Vermelha de ... àquela advogada.

    Aliás, da leitura dos artigos 38 a 41 da acusação ressalta o contacto directo de AA com EE.

    O plasmado nos artigos 23 a 31 do RAI apresentado pela requerente BB obteve confirmação a este nível contra-indiciário, e daí que, com proveito, em face do novo e ora reduzido quadro factual, se tenha de restringir o tratamento subsuntivo.

    E assim à requerente BB será imputada a prática de um só crime de peculato. 

                                                          *******

    No que concerne à requerente AA, a situação é diferente, pois que responsável pelo desvio da quantia global mencionada, havendo que ponderar a eventual redução do número de crimes, já não ao nível factual que se mantém quanto ao narrado na acusação, mas agora em sede de discussão de violação plúrima e de unidade ou pluralidade de infracções.

    A acusação imputa dois crimes de peculato por conduta relativa ao pagamento devido pela intervenção de BB, ao abrigo de uma invocada avença jurídica e a outro pagamento ao abrigo de alegada assessoria jurídica por parte de EE, muito embora neste caso nem toda a intervenção substancie prática de crime, pois que como vimos, apenas foram pagos sete projectos, conforme a factura n.º 1012, de 12-4-2013, não tendo sido pagos outros oito projectos elaborados igualmente por EE, constantes da factura n.º 1035, relativamente à qual AA afirmou neste Supremo Tribunal, em 6 de Março de 2015, ter EE provavelmente desistido da respectiva cobrança.  

    Como vimos, a participação de FF revela-se anódina nesta sede, uma vez que a sua prestação foi simplesmente graciosa.

     O que está em causa neste particular é o pagamento integrante da componente do prejuízo patrimonial.

                                                        *******

     A conduta da requerente AA integra, conforme a acusação, dois crimes de peculato, 

     Ou apenas um?

     Estabelece o artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal:

     «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».

     (A versão é a de 1982 inalterada nas subsequentes alterações).

 

     Trata-se da consagração no texto da lei do chamado critério teleológico ou normativo para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, que já vinha sendo perfilhado na vigência do Código Penal de 1886, na sequência da obra de Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal - Unidade e Pluralidade de Infracções.

     Com efeito, o preceito teve por fonte o artigo 33.º do Projecto da Parte Geral do Código Penal de 1963, inspirado na formulação de Eduardo Correia, exposta em 1945, em Unidade e Pluralidade de Infracções.

     Como se vê das Actas das Sessões da Comissão Revisora do Projecto da Parte Geral do Código Penal, mais concretamente da Acta da 13.ª Sessão, de 08-02-1964, publicada no BMJ n.º 144, págs. 56/9, foi posto à discussão o artigo 33.º, do seguinte teor:

     «O número de crimes determina-se pelo número de tipos legais de crime ou pelo número de vezes que o mesmo tipo legal de crime foi efectivamente preenchido pela conduta do agente».

     § único – A realização plúrima do mesmo tipo legal ou de vários tipos legais, que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior, que diminui consideravelmente a culpa do agente, constitui um só crime continuado.

     O Autor do Projecto frisou então a inteira correspondência deste preceito às ideias que já em 1945 defendera naquela sua obra.

     Disse ter-se dado conta há pouco tempo que já o Prof. Beleza dos Santos no seu trabalho sobre a Simulação defendera a equiparação do concurso ideal ao concurso real.

     Acrescentou que o corpo do artigo devia ter uma outra redacção, que adianta:

     «O número de crimes determina-se pelo número de tipos legais de crimes efectivamente realizados, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo legal de crime foi preenchido, pela conduta do agente».

     O Prof. Gomes da Silva discordou do critério de determinação da unidade e pluralidade de infracções, e, em particular, da equiparação do concurso ideal ao concurso real.

     Maia Gonçalves considerou que devia expressamente ressalvar-se a hipótese do concurso legal ou aparente de infracções, explicitando as regras da consumpção e da especialidade, o que mereceu a resposta de que para ressalvar o caso do concurso aparente lá está no preceito o termo «efectivamente» e quanto à explicitação das regras da especialidade e da consumpção, não se julga ser ela oportuna, uma vez que se trata, por um lado, de regras doutrinais e não legislativas, e, por outro lado, de regras gerais de interpretação do tipo legal de crime e não de regras privativas do problema da unidade e pluralidade de crimes.  

     Em princípio, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos (concurso heterogéneo), ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso homogéneo) – artigo 30.º, n.º 1, do C. Penal. 

     Cavaleiro de Ferreira, no domínio do Código Penal de 1886, sempre entendeu - Direito Penal Português, 1982, II, pág. 200 - que “a unidade do facto é a substância da unidade do crime: uma acumulação de crimes é sempre uma pluralidade de factos”.

     “No direito português haverá unidade de facto se a acção ou evento material for único ou única a decisão voluntária; a multiplicidade dos eventos não afecta a unidade da resolução da vontade que os toma conjuntamente por objecto, pois que uma mesma decisão voluntária pode ter vários fins ou objectos”. “Deste modo, a pluralidade de lesão jurídica, por si só, não multiplica o número de crimes, desde que exista unidade de acção, ou do evento material ou da decisão voluntária. A dupla ou múltipla punição iria afectar o princípio do non bis in idem”.

     Face ao Código Penal de 1982, em Lições de Direito Penal, Editorial Verbo, 2.ª edição, 1987, a págs. 381/2, dizia o mesmo Autor: “O n.º 1 do art. 30.º não atenta na unidade ou pluralidade de factos (condutas) para definir o concurso de crimes. Quer seja um facto ou vários factos que infringem plúrimas vezes normas incriminadoras, há concurso de crimes. Ou, dito singelamente, há concurso de crimes desde que o agente cometa mais do que um crime, quer mediante o mesmo facto, quer mediante vários factos.

     Com a definição legal, obnubila-se a distinção entre concurso real e concurso ideal, como desnecessária ou irrelevante”.

     A págs. 385, precisava o mesmo Autor: “O mesmo facto pode simultaneamente realizar um ou mais «tipos de crime». Mas o «tipo de crime» realizado abarca o conteúdo global da norma incriminadora, isto é, o tipo legal, objectivo e subjectivo.

     Não basta produzir pelo modo previsto na mesma ou em várias disposições legais o evento jurídico de cada uma. É indispensável que relativamente a cada crime concorrente se verifique vontade culpável. É preciso que cada crime seja doloso ou culposo, e como tal punível”.

     E concluía, então, a págs. 386: “A vontade culpável, como dolo ou como negligência, por um só acto de vontade ou por actos plúrimos da vontade, deve ter por objecto todos os crimes concorrentes, que serão dolosos ou culposos, consoante a vontade tomar quanto a cada um deles a forma de dolo ou negligência”. 

     Como se pode ler no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-10-2002, processo n.º 2133/02, da 3.ª Secção, publicado in CJSTJ, 2002, tomo 3, pág. 217 “Segundo o critério distintivo do artigo 30.º, quanto à determinação do número de infracções, há que considerar que haverá pluralidade de delitos quando o agente, com a sua acção, preencher mais do que um tipo de ilícito ou o mesmo tipo por mais do que uma vez.

     E assim somos conduzidos ao concurso legal, aparente, impróprio ou impuro, também chamado de mero concurso de normas, em que as leis penais concorrem só na aparência e em que a aplicação de uma norma punitiva que prevalece, exclui a das demais, por força dos princípios da especialidade, da consunção, da subsidiariedade ou da impunibilidade do facto posterior; no fundo o que se pretende evitar é uma dupla incriminação - situações em que não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes, casos de concurso aparente e de crime continuado, ou ao concurso efectivo, verdadeiro, próprio ou puro (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções, que pode ser meramente ideal, se decorrente de uma só acção violadora de tipos diferentes, ou seja, quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes - unidade de acção - concurso ideal heterogéneo – ou do mesmo tipo por mais do que uma vez – concurso ideal homogéneo; ou real se resultante de uma pluralidade de acções, quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime)”.

    No mesmo acórdão, versando caso de concurso de crime de dano e de roubo pode ler-se:

    “Ora, como é sabido, o direito penal serve fins da comunidade politicamente organizada, destinando-se assim a acautelar valores que em cada momento histórico são por elas considerados fundamentais.

    Daí que a norma jurídico-penal, se dirija à protecção de bens jurídicos essenciais e individualizáveis.

    A partir daí se constróem, pois, os tipos legais de crimes, que mais não são do que modelos ou padrões de aferimento, para se saber que condutas humanas são susceptíveis de agredir os bens jurídicos que importa tutelar”.  

    E no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-10-2004, processo n.º 3210/04-3.ª, in CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 186, pode ler-se: “o critério da efectividade do concurso de crimes “crimes efectivamente cometidos” do artigo 30.º é um critério teleológico, remetendo essencialmente ao critério do bem jurídico protegido em cada crime”.

    Como referia Eduardo Correia em A teoria do concurso em direito criminal, 2.ª Reimpressão, 1996, a págs. 125, toda a problemática da questão da acumulação de infracções está intimamente ligada à teoria do bem jurídico.

    Com efeito, a problemática da unidade/pluralidade de infracções está directamente relacionada com a ideia de que a construção do crime parte do pressuposto de que a função do direito penal se traduz na protecção de bens jurídico – penais, o que ficou muito claro com a reforma do Código Penal de 1995, ao verter no artigo 40.º, n.º 1, como uma das finalidades das penas, exactamente, a tutela de bens jurídicos.             

    José de Faria Costa, em Formas do crime, Jornadas de Direito Criminal, Fase I, CEJ, Novembro de 1982, a propósito de uma das formas do crime previstas no Capítulo II, do Título II, do Livro I, do Código Penal – o concurso de crimes – refere a págs. 181, que “este critério (normativo) só vai ao encontro da ideia de que o direito penal visa proteger bens jurídicos criminais, juridicamente precipitados no tipo legal. É no tipo que se focaliza o núcleo do juízo de ilicitude que tem como seu suporte material, o bem jurídico. Daí que não possa deixar de ser visto como uma referência essencial para a determinação do número de crimes praticados”.

    Esclarece que o tipo pressuposto é uma entidade concreta, que como tal deve ser encarada.

   Como, por seu turno, sintetiza Figueiredo Dias, em Unidade e Pluralidade de crimes: «Où sont les neiges d`antan?», inserto em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Coimbra, 2008, Tomo III, a págs. 674, na distinção da unidade e pluralidade de crimes têm sido seguidas desde que se iniciou até aos nossos dias duas vias fundamentais: ou a de atender prioritariamente à unidade e pluralidade de tipos legais de crime violados; ou a de conferir relevo decisivo à unidade e pluralidade de acções praticadas pelo agente. A primeira via parece pois ser claramente aceite e prosseguida pela nossa lei vigente. A segunda via impôs-se na jurisprudência e na doutrina germânicas e, a partir destas, em diversos países; através dela se alcançando a distinção entre concurso ideal (a mesma acção viola várias disposições penais ou várias vezes a mesma disposição penal) e concurso real (diversas acções autónomas violam varias disposições ou várias vezes a mesma disposição penal). Dir-se-ia assim que de acordo com o disposto no art. 30.º-1 não haverá espaço para a distinção germânica entre um “concurso real” e um “concurso ideal”: no ordenamento jurídico-penal português ou existe um concurso efectivo ou verdadeiro (hoc sensu, se quisermos, “real”), ou há unidade do facto punível e, por conseguinte, de crime”. 

    E a págs. 678 diz: “ (…) decisivo da unidade ou pluralidade de crimes não parece poder ser a unidade ou pluralidade de acções em si mesmas consideradas, mas a unidade ou pluralidade de tipos legais de crime violados pela conduta de um mesmo agente e submetidos, num mesmo processo penal, à cognição do tribunal. Foi este o critério sempre vivamente sufragado por Eduardo Correia e, na sua esteira, pela jurisprudência portuguesa largamente dominante na vigência do nosso Código Penal actual”.

    A págs. 679, precisa o Autor, ser o tipo legal de crime a fonte de conhecimento da unidade ou pluralidade de factos puníveis, mas tornando dispensável, ao menos em princípio, o apelo à categoria da culpa.

    Já o mesmo Autor, nos Sumários e notas das Lições ao 1.º ano do Curso Complementar de Ciências Jurídicas da Faculdade de Direito de Coimbra, 1975/1976, págs. 115/117, referia que o critério do concurso efectivo de crimes (de que são modalidades o concurso ideal e o concurso real) vem a residir, no fundo, na pluralidade de tipos legais violados pela conduta do agente, sem curar de saber se tal conduta se analisou em um único acto ou numa pluralidade de actos.

    Segundo Urs Kinderhauser, Aumento de risco e diminuição de risco, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 20, n.º 1, Janeiro/Março 2010, págs. 11 a 39, o conceito de resultado refere-se a uma modificação.

    As normas penais de conduta destinam-se a preservar as qualidades das pessoas, das coisas e das instituições, positivamente valoradas, de modificações prejudiciais. Na terminologia corrente, estas qualidades positivamente valoradas são denominadas bens jurídicos. Deste modo, a protecção dos bens jurídicos vida e saúde significa que as qualidades de uma pessoa, manifestadas em estar viva ou saudável, não podem ser modificadas negativamente. Por outras palavras, uma pessoa não deve morrer ou ficar doente como consequência de uma conduta evitável.    

    No fundo o resultado é uma modificação prejudicial abarcada pelo tipo.

    O tipo legal de crime apresenta-se não como uma entidade abstracta, mas, antes, como entidade concreta, portadora de um concreto juízo de censura, sendo, portanto, o interposto da valoração jurídico-criminal, ante o qual se acham colocados o tribunal e o intérprete – assim, Eduardo Correia, in A teoria do concurso em Direito Criminal, 2.ª Reimpressão, Almedina, Colecção Teses, 1996, pág. 90. 

           

    Os bens jurídicos protegidos pelo direito penal são concretizações de valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais, sendo por esta via que os bens jurídicos se “transformam” em bens jurídicos dignos de tutela penal ou com dignidade jurídico-penal - Figueiredo Dias, Temas básicos da doutrina penal, Coimbra Editora, 2001, pág. 48.

                                                                ****

    A distinção entre unidade e pluralidade de crimes é decisiva na determinação das consequências jurídicas do facto, para efeito de punição do agente, sabido que no caso de concurso de crimes cabe a aplicação do critério especial de determinação da pena constante do artigo 77.º, extensível, nos termos do artigo 78.º, ao caso de superveniência de conhecimento da existência de relação concursal, cabendo ainda em caso de unificação do concurso como crime continuado, tratado como uma situação ou caso de unidade de infracção, ou seja, como um só crime, um outro critério especial, de privilegiamento punitivo, do artigo 79.º do Código Penal, sendo punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.

    Como se extrai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Junho de 1986, proferido no processo n.º 38292, in BMJ n.º 358, pág. 267, a realização plúrima do mesmo tipo legal pode constituir:

a) Um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial;

b) Um só crime, na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para reiteração das condutas;

c) Um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores.

    A regra é a de que sendo vários os preceitos violados ou sendo o mesmo preceito objecto de plúrimas violações haja uma pluralidade de crimes; esta pluralidade só fica afastada no caso de concurso aparente, ou nas formas de unificação de condutas, seja como crime continuado, ou ainda fora dos quadros do artigo 30.º, como único crime, ou crime de trato sucessivo, como é ponderado a nível de situações de tráfico de estupefacientes, ou de infracções fiscais ou contra a segurança social, que se protraem por períodos mais ou menos longos, tendo sido assim qualificados alguns casos de abusos sexuais, v.g. acórdãos de 02-10-2003, processo n.º 2606/03-5.ª, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 194 e de 14-07-2007, processo n.º 1580/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220, solução que segundo Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª edição, 2010, pág. 162, será de afastar, a partir da Lei n.º 40/2010, de 03-09, por estarem em causa bens eminentemente pessoais, afirmando que no caso da sucessão de vários crimes contra bens eminentemente pessoais, deve punir-se as condutas do agente em concurso efectivo.

    A matéria de concurso de crimes não é tratada no artigo 30.º de forma abrangente e esgotante, na medida em que as soluções indicadas no preceito se limitam a estabelecer um critério mínimo de distinção entre unidade e pluralidade de crimes, tratando-se de um ponto de partida estabelecido pelo legislador a partir do qual à doutrina e à jurisprudência caberá em última análise, encontrar soluções adequadas, tendo em vista a multiplicidade de casos e situações que se prefiguram e que ocorrem (assim acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-01-2006, processo n.º 3671/03-3.ª, in CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 159, que aborda a temática da distinção entre crime continuado e crime único, num caso de falsificação de três cheques para aquisição de produto).

    Aliás, note-se que de acordo com a epígrafe do artigo 30.º, neste segmento de “formas de crime” - unidade/pluralidade - só haveria lugar ao concurso de crimes e ao crime continuado, não albergando o preceito, por exemplo, as hipóteses de crime único que o Código Penal de 1886 previa no § único do artigo 421.º para o crime de furto.

    Há outras figuras de lesividade múltipla ou repetida de bens jurídicos com tutela jurídico-criminal, que se não contêm na dicotomia do artigo 30.º.

    Isto é, para além do concurso de crimes, a punir nos termos dos artigos 77.º e 78.º, e do crime continuado, a punir de acordo com o artigo 79.º do Código Penal, há toda uma gama de situações da vida real a demandar uma específica regulamentação.

    Estabelecendo um critério, assumidamente distintivo, o artigo 30.º contém a indicação de um princípio geral de solução da problemática do concurso de crimes, sendo também uma base de trabalho, a partir da qual há que olhar outras dimensões de violações de bens jurídicos, que ficam de fora, não estando abrangidos outros casos e situações que ocorrem no dia a dia, apresentando dificuldades de integração as hipóteses de crimes culposos emergentes de acidentes de viação, sabido que o critério vale fundamentalmente para os crimes dolosos (cfr. voto de vencido no acórdão de 13 de Julho de 2011, proferido no processo n.º 1659/07.3GTABF.S1, in CJSTJ 2011, tomo 2, pág. 210).

                                                           *****

 

    Sob a epígrafe (Acumulação de infracções), estabelecia o artigo 38.º do Código Penal de 1886:

    “Dá-se a acumulação de crimes, quando o agente comete mais de um crime na mesma ocasião, ou quando, tendo perpetrado um, comete outro antes de ter sido condenado pelo anterior, por sentença passada em julgado”.

    E dizia o § único: “Quando o mesmo facto é previsto e punido em duas ou mais disposições legais, como constituindo crimes diversos, não se dá acumulação de crimes”.

    O preceito partia do tratamento diferenciado do concurso ideal e do concurso real, o primeiro traduzindo a unidade, o segundo a pluralidade do facto ou do crime, concepção que veio a ser contestada por Eduardo Correia, na obra de 1945 Teoria do Concurso em Direito Criminal – Unidade e Pluralidade de Infracções”.    

   Foi pacífica e constante a orientação que defendia a existência de um critério naturalístico, um conceito realista da acção, com a interpretação da expressão “mesmo facto” como significando mesma acção, no sentido real, e não abrangendo também o evento, o resultado típico, rejeitando-se assim o conceito social de acção – realização de um resultado socialmente relevante, ou, do ponto de vista jurído-criminal, produção de um resultado típico.

   Segundo esta corrente o § único consagrava o princípio de que nos casos de concurso ideal um só crime existe, reconhecendo a existência de um só crime – crime único – desconsiderando-se os restantes por inexistentes ou insubsistentes, esgotando-se o concurso ideal numa só infracção, afirmando a eficácia exclusiva de um dos tipos realizados – o eleito – no tocante à pena, prevalecendo o mais grave, sendo de atender ao delito mais grave como base punitiva, sendo os restantes eventos tomados como agravantes.

   A punição funcionava com o sistema de absorção, agravada pela circunstância agravante 31.ª “Ter resultado do crime outro mal além do mal do crime” do artigo 34.º do Código Penal, ou noutros casos, tendo em conta o disposto no artigo 84.º, que na graduação da pena mandava atender especialmente à gravidade do facto criminoso e aos seus resultados.

   Em muitos dos acórdãos proferidos sobre a matéria, na sua esmagadora maioria, a solução é apresentada como dado perfeitamente adquirido, dispensando qualquer justificação.

    Esta posição dominante, tradicional, pacífica, no domínio do Código Penal de 1886, tratava o concurso ideal de crimes como mero concurso de normas.

    Com o artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, o concurso ideal é tratado de forma inequívoca como concurso efectivo de crimes.

    Figueiredo Dias, in Das consequências jurídicas do crime, 1993, Aequitas, § 395, pág. 278, ao abordar o concurso de crimes como um dos casos especiais de determinação da pena, refere que nenhuma distinção haverá que fazer consoante os crimes relevantes se encontrem numa relação de concurso real ou ideal, homogéneo ou heterogéneo: diferentemente do que sucede em várias legislações, como na brasileira ou na alemã, onde o regime de punição varia consoante se esteja perante uma ou outra daquelas formas de concurso, a lei portuguesa transportou com inteira coerência para o regime de punição a sua concepção básica de integral equiparação do concurso ideal ao concurso real (art. 30.º-1).

    Como se referiu, o ponto de viragem na definição do critério a seguir na distinção entre unidade e pluralidade de infracções foi introduzido em 1982 com o artigo 30.º do Código Penal.

    O critério teleológico passou a ser referenciado na jurisprudência com natural particular enfoque no domínio dos crimes dolosos.

    Eduardo Correia, em Teoria do Concurso em Direito Criminal, 2.ª Reimpressão, Almedina, 1996, a págs. 100, referia que o princípio segundo o qual a unidade ou a pluralidade de crimes determina-se pela unidade ou pluralidade de tipos preenchidos, independentemente de saber se uma só acção ou várias lhes correspondem, contradiz o que está legislado.

    A págs. 101, a propósito do § único do artigo 38.º, do Código Penal de 1886, referia que não podia pensar-se que o preceito pretendia significar que a unidade ou pluralidade de crimes dependesse da unidade ou pluralidade das actividades do agente.

    E sublinhava: “A opinião de que o § único do art. 38.º prevê e abrange o chamado concurso ideal ou formal, assenta sobre o pressuposto bem simplista de que a incriminação do mesmo facto em duas ou mais disposições legais tem de corresponder necessariamente àquela forma de concurso. Ora tal ideia não é de modo algum exacta.

    Há hipóteses - e muitas - em que se poderia dizer que  a mesma acção é subsumível a uma pluralidade de tipos, sem por isso se verificarem as condições de um concurso, legal ou formal: estar-se-á em face tão somente daquilo a que se chama concurso legal «aparente»”.  

    Como dizia o mesmo Autor, a págs. 103, a expressão «mesmo facto» constante do § único tem um sentido equívoco, podendo bem entender-se que com ela não se abrange apenas a actividade do agente, mas também o seu efeito causal - o evento, citando a propósito Alimena quando afirma que “A expressão «facto» designa tanto o momento causal como o momento efectual da antijuricidade: ele indica o conjunto da conduta e do resultado, a síntese da acção e do evento”.

    E continuava: “a actividade de interpretação e integração do § deve orientar-se para aquela solução exigida pela natureza teleológica da infracção criminal, pelo plano referencial em que ela se situa”, havendo que considerar a estrutura teleológica do crime.

    A págs. 121, sintetizava: a unidade ou pluralidade de tipos de crimes a que é possível subsumir uma expressão da vida constitui o critério decisivo para fixar a unidade ou pluralidade de infracções existentes num caso concreto.

    Eduardo Correia, in Direito Criminal, com a colaboração de Figueiredo Dias, II, Reimpressão, Almedina, 1971 (e igualmente 1997), pág. 200, refutando a teoria naturalística, segundo a qual a unidade de conduta é o índice da unidade do crime, mas que não consegue resolver o problema face a um concurso ideal, diz que é a uma teoria jurídica e não naturalística que terá de pedir-se o critério de destrinça da unidade e pluralidade de infracções.

    E assim se a acção tem uma estrutura não naturalística, mas valorativa (é a negação de valores ou interesses pelo homem), há-se ser o número de acções assim entendidas que há-se determinar a unidade ou pluralidade de infracções. Ou, por outras palavras: o número de infracções determinar-se-á pelo número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade. Pelo que, se diversos valores ou bens jurídicos são negados, outros tantos crimes haverão de ser contados, independentemente de, no plano naturalístico, lhes corresponder uma só actividade, isto é, de estarmos perante um concurso ideal. Inversamente, se um só valor é negado, só um crime existirá, já que a específica negação de valor que no crime se surpreende reúne em uma só actividade todos os elementos que o constituem.

   Pluralidade de crimes significa, assim, pluralidade de valores jurídicos negados.”

    A fonte de conhecimento da unidade ou pluralidade de valorações jurídicas está na determinação da ilicitude material e esta exprime-se nos tipos legais de crime (…) “se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções; pelo contrário, se só um tipo é realizado, a actividade do agente só nega um valor jurídico-criminal e estamos, portanto, perante uma única infracção”.

     Revertendo ao caso concreto.

    A conduta de AA dada por fortemente indiciada tem de ser apreciada em função dos bens jurídicos tutelados pela norma incriminadora e na consideração do escopo último pretendido pela requerente com a sua actuação.

     Estamos face a um crime pluriofensivo, havendo que atender ao bem jurídico protegido na norma, a saber, a probidade e fidelidade do funcionário e o dano no plano patrimonial.

     A questão é indagar se a actividade desenvolvida deve ser vista à luz de uma única valoração, ou a mais do que uma.

     Facilmente se intui que tivesse BB prosseguido o seu desempenho para além de Fevereiro de 2013 e AA não teria tido necessidade de contactar FF e depois EE; o objectivo era apenas encontrar alguém que pudesse elaborar resumos e projectos de acórdãos, fosse A ou B, reunidos que fossem, é evidente, determinados pressupostos.

     No aspecto patrimonial é que se verificam diferenças, considerando-se a apropriação de x e y, individualmente considerados, ou antes z, correspondente a x+y, indagando-se se esta nuance altera os dados do problema.      

     Há uma renovação do propósito, mas a motivação é a mesma; no fundo quando se verifica a intervenção de EE, já o bem jurídico, componente pessoal, estava violado; o que acresce será um grau de lesividade mais intenso, que poderá ser avaliado a nível de medida da pena, mas não como integrante de um outro crime autónomo.

      Por outro lado, o acréscimo no plano patrimonial é evidente, pois que há uma outra quantia a somar, mas no fundo será uma questão de grau, alçando-se um dano de maior amplitude na vertente da lesão patrimonial, a avaliar nos mesmos parâmetros.

    

      Concluindo.

    Proceder-se-á à unificação das condutas, considerando-se preenchido um único crime de peculato.

                                                           *******

     Factos indiciados

  

     Considera-se fortemente indiciada a prática pelas arguidas dos factos que se enunciam:                                                   

                                                                  I

1.         A arguida AA é magistrada judicial, exercendo funções no Tribunal --- onde foi colocada, primeiro como juíza auxiliar, em regime de destacamento, pela deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura n.º 1731/2007, datada de 16 de Julho de 2007, e desde 3 de Julho de 2010, por promoção, como juíza ---. Do seu registo disciplinar consta que já foi objecto de dois processos disciplinares, o processo disciplinar número 170/2009 e o processo disciplinar número 2012-17/PD.

2.         O processo disciplinar número 170/2009 foi-lhe instaurado em 31 de Março de 2009, por deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, face aos atrasos que apresentava na elaboração de acórdãos nos processos que lhe estavam distribuídos no Tribunal da Relação do ---, bem como, devido ao elevado número de processos que tinha pendentes há mais de seis meses ou um ano.

3.         No âmbito do referido processo disciplinar, por deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 19 de Janeiro de 2010, foi-lhe aplicada a pena de 10 (dez) dias de multa, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, sob condição de, nesse período, baixar a pendência processual para os 45 processos.

4.         No entanto, e uma vez que arguida AA não cumpriu a condição que lhe foi imposta, em 12 de Julho de 2011, por deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, foi-lhe revogada a suspensão da execução da pena.

5.         Posteriormente, e dado que a arguida AA apresentava, novamente, atrasos na elaboração de acórdãos nos processos que lhe estavam distribuídos, bem como um número anómalo de processos pendentes há mais de seis meses ou um ano, em 13 de Março de 2012, por deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, foi-lhe instaurado novo processo disciplinar, com o número 2012-17/PD.

6.         Tendo-lhe sido aplicada, em 6 de Novembro de 2012, no âmbito do referido processo, a pena disciplinar de 30 dias de multa.

7.         Cumulativamente com o exercício das suas funções de Juíza --- no Tribunal ---, a arguida AA é, desde 20 de Maio de 2009, Presidente da Delegação de ... da Cruz Vermelha Portuguesa, cargo que acumula desde 6 de Agosto de 2012, com a presidência da comissão administrativa da Delegação do --- da Cruz Vermelha Portuguesa.

8.         A arguida BB é advogada, encontrando-se inscrita na Ordem dos Advogados desde 19 de Abril de 2001.

9.         Para além disso, a arguida BB é desde 26 de Novembro de 2010, Vice-Presidente da Delegação de ... da Cruz Vermelha Portuguesa, cargo que acumula, desde 6 de Agosto de 2012, com o de membro da comissão administrativa da Delegação do --- da Cruz Vermelha Portuguesa.

10.       A Cruz Vermelha Portuguesa, adiante designada por C.V.P., é uma instituição humanitária não governamental, de carácter voluntário, de interesse público, sem fins lucrativos.

11.       Face à natureza da C.V.P., as funções desempenhadas pelas arguidas AA e BB naquela instituição não eram remuneradas.

                                                                      II

 

12.       Em data não concretamente apurada do ano de 2012, mas anterior a 19 de Outubro de 2012, e uma vez que tinha conhecimento que contra ela corria o processo disciplinar referido em 5.º, a arguida AA decidiu solicitar sucessivamente a BB, FF e EE, que estudassem os processos que lhe estavam distribuídos e que lhe viessem a ser distribuídos no âmbito do seu desempenho funcional como desembargadora.

13.       Pretendia que estes procedessem à elaboração de resumos dos mesmos, pesquisa jurídica, bem como projectos de acórdãos, de forma a que assumindo a sua autoria, AA se pudesse eximir à responsabilidade disciplinar, cumprindo os objectivos que lhe haviam sido fixados pelo Conselho Superior da Magistratura.

14.       A arguida AA decidiu, ainda, na prossecução dos seus intentos e aproveitando-se do cargo que ocupava na Delegação de ... da C.V.P., utilizar dinheiro daquela delegação para proceder ao pagamento dos serviços prestados por BB.

15.       Assim, e em execução do plano previamente delineado, em data não concretamente apurada do ano de 2012, mas anterior ao dia 19 de Outubro de 2012, a arguida AA abordou a arguida BB, então vice-presidente da delegação de ... da Cruz Vermelha, a fim de averiguar se aquela estaria disponível para a auxiliar nos termos definidos em 12.º a 14.º, tendo aquela concordado.

16.       Combinaram então que a arguida BB procederia à elaboração de projectos de acórdãos e, resumiria os processos que a arguida AA lhe viesse a entregar.

17.       Para o efeito a arguida BB receberia como contrapartida, a quantia mensal de cerca de 1500 € (mil e quinhentos euros), a qual seria paga pela Delegação de ... da C.V.P.

18.       Em concretização do plano acordado, em 25 de Outubro de 2012, a arguida AA, aproveitando-se do facto de ser Presidente da Delegação de ... da C.V.P., determinou que a arguida BB fosse contratada, em regime de avença, como jurista daquela instituição, auferindo mensalmente a quantia de 1500 € (mil e quinhentos euros).

19.       Por sua vez, a arguida BB, vice-presidente daquela delegação, e, logo, membro da direcção da delegação local, aceitou a sua contratação nos sobreditos termos, contrários ao âmbito da actividade da instituição e aos seus deveres funcionais.

20.       Bem sabiam as arguidas AA e BB que aquele contrato celebrado entre a CVP e a última não se destinava a ser cumprido, nem o foi, visando tão só justificar os pagamentos que a Delegação de ... da C.V.P. passou a efectuar mensalmente à arguida BB.

21.       Deste modo, e conforme acordado, desde 19 de Outubro de 2012 até Abril de 2013, a arguida BB recebeu processos que se encontravam distribuídos à arguida AA, elaborou projectos de acórdãos e resumos daqueles processos, que depois lhe entregou pessoalmente ou enviou através de correio electrónico.

22.       Assim, sucedeu nos dias que a seguir se discriminam, em que a arguida BB enviou através dos seus endereços de correio electrónico, ---@adv.oa.pt, ---@gmail.com, para o endereço de correio electrónico da arguida AA – ---@)hotmail.com - nas seguintes datas os projectos de acórdãos e/ou resumos de processos que elaborara:

- 30 de Outubro de 2012, o projecto de acórdão referente ao processo com o NUIPC 10407/05.1TBMTS.PI (documento constante de fls. 84 do Apenso II, anexo D – Pasta de arquivo – email de envio –, documentos de fls. 203 a 221 e de fls. 286 a 301 do Apenso III, Anexo B, e resumo/folha manuscrita relativa ao mesmo processo, a fls. 85 do Apenso II, anexo D – Pasta de arquivo);

- 12 de Novembro de 2012, o projecto de acórdão referente ao processo com o NUIPC 3612/10.TBMTS.P1 (documento constante de fls. 82 do Apenso II, Anexo D, documento de fls. 173 a 200 do Apenso III, Anexo B e folha manuscrita/resumo do referido processo (fls. 83 do Apenso II, Anexo D – Pasta de arquivo);

- 19 de Novembro de 2012, o projecto de acórdão referente ao processo com o NUIPC

1389/07.6TBVLG.P1 (documento constante de fls. 81 do Apenso II, Anexo D – email de envio – e documento de fls. 96 a 101 do Apenso III, Anexo B);

- 20 de Novembro de 2012, o projecto de acórdão referente ao processo com o NUIPC

516/06.5TVPRT.P1 (documento de fls. 75 do Apenso II, Anexo D – email de envio –, documento de fls. 53 a 82, repetido de fls. 254 a 283 do Apenso III, Anexo B, documento de fls. 223 - n.º 10 - do mesmo Apenso e resumo/folha manuscrita de referido processo, a fls. 76 do referido Apenso II, Anexo D – Pasta de arquivo);

- 26 de Novembro de 2012, o projecto de acórdão e resumo referentes ao processo com o NUIPC 70/12.9TBSJP-E.P1 (documento de fls.  79 do Apenso II, Anexo D – email de envio –,, documento de fls. 20 a 22 do Apenso III, Anexo B e resumo/folha manuscrita  a fls. 80 do Apenso II, Anexo D );

- 2 de Dezembro de 2012, o projecto de acórdão referente processo com o NUIPC 587/11.2TBDDM.P1 (documento de fls. 74 do Apenso II, Anexo D – Pasta de arquivo (email igualmente a fls. 304 do Apenso III anexo B), documento de fls. 83 a 95 e fls. 305 a 318 do Apenso III, Anexo B e documento de fls. 223 - n.º 14 - do mesmo apenso);

- 7 de Dezembro de 2012, os projectos de acórdão referentes aos processos com o NUIPC 85/09.4TBBGC-A.P1 e 1666/11.ITBSTS.Pl, ambos incompletos (documento de fls. 72 do Apenso II Anexo D - Pasta de arquivo – email de envio –, e documento de fls. 23 a 41,102 a 106 e ainda fls. 223 – n.º 15 – e fls. 319 do Apenso III, Anexo B);

- 19 de Janeiro de 2013, o projecto de acórdão referente ao processo com o NUIPC 2292/05.0TBAMT-A.Pl (documento de fls. 68 do Apenso II, Anexo D – Pasta de arquivo – email de envio –,e documento de fls. 156 a 158, 332 - repete o email de fls. 68 da Pasta – fls. 333 a 356, fls. 357 (e fls. 223 n.º 19) e fls. 390 a 408 do Apenso III, Anexo B e resumo/folha manuscrita do referido processo, a fls. 69 do Apenso II, Anexo D);

- 19 de Janeiro de 2013, o projecto de acórdão referente ao processo com o NUIPC 2315/l0.0TBPNF-A.Pl (documento de fls. 70 do Apenso II, Anexo D, documento de fls. 159 a 168, fls. 358 a 369, fls. 416 - repete email de fls. 70 da Pasta já referido – e fls. 417 a 431 do Apenso III, Anexo B e resumo/folha manuscrita do referido processo, a fls. 71 do Apenso II, Anexo D);

- 27 de Janeiro de 2013, o projecto de acórdão referente ao processo com o NUIPC 477/10.6TBVPA.P1 (documento de fls. 66 do Apenso II, Anexo D – email de envio –,e documento de fls. 47 a 52 e 370 a 389 do Apenso III, Anexo B, bem como o resumo/folha manuscrita do processo, a fls. 67 e verso do Apenso II, Anexo D);

- 6 de Fevereiro de 2013, o projecto de acórdão referente ao processo com o NUIPC 25/12.3TBMAI.P1 (documento de fls. 45 a 48 – emails – e 49 a 65 do Apenso II, Anexo D – Pasta de arquivo e fls. 10 a 19 e fls. 401 a 415 do Apenso III, Anexo B);

-15 de Fevereiro de 2013, o projecto de acórdão referente ao processo com o NUIPC 1933/09.4TBPFR.P1 (documento de fls. 42 do Apenso II, Anexo D – email de envio –, e documento de fls. 115 a 155 do Apenso III, Anexo B, bem como o resumo/folha manuscrita  do processo, a fls. 43 e verso do Apenso II, Anexo D);

- 1 de Março de 2013, os projectos de acórdãos referentes aos processos com os NUIPC 2997/06.8TBVCD-D.P1 e 5546/11.2TBMTS.P1 (documento de fls. 33 do Apenso II, Anexo D – email de envio dos dois – bem como o resumo do processo 2997/06.8TBVCD-D.P1, de fls. 34 a 37 do Apenso II, Anexo D e documento de fls. 169 a 172 do Apenso III, Anexo B e do processo 5546/11.2TBMTS.P1, de fls. 38 a 41 do Apenso II, Anexo D, e documento de fls. 201 e 202 do Apenso III, Anexo B);

- 4 de Março de 2013, o projecto de acórdão referente ao processo com o NUIPC 464/08.4TBCHV.PI (documento de fls. 27 do Apenso II, Anexo D – email de envio – e documento de fls. 42 a 46 do Apenso III, Anexo B, bem como o resumo do referido processo, de fls. 28 a 32 do Apenso II, Anexo D);

- 7 de Março de 2013, o projecto de acórdão referente ao processo com o número 1853/10.0TBPFR-A.P1 (documento de fls. 19 do Apenso II, Anexo D – email de envio –, bem como o resumo do referido processo, de fls.  20 a 26);

- 2 de Abril de 2013, o projecto de acórdão referente ao processo com o número 347/09.0TBMAI.PI (documento de fls. 17 do Apenso II, Anexo D – email de envio).

23.       Ainda no mês de Novembro de 2012, em data que não foi possível apurar, mas anterior a 23 de Novembro, a arguida AA abordou FF, que se encontrava a efectuar o estágio de advocacia no escritório de BB.

24.       Nessa ocasião a arguida AA propôs entregar-lhe processos do Tribunal --- que lhe estivessem distribuídos a fim de proferir decisão para que aquele os resumisse, analisasse do ponto de vista da jurisprudência e doutrina, e procedesse a elaboração de projectos de acórdãos.

25.       GG acedeu uma vez que tinha sido a arguida AA a recomendá-lo para estagiar no escritório da arguida BB.

26.       Para o efeito, a arguida AA entregou pessoalmente a FF, em data não concretamente apurada do mês de Novembro de 2012, mas anterior a 23 de Novembro, um dispositivo de armazenamento de dados, vulgarmente denominado “pen”, que continha vários modelos de acórdãos por aquela proferidos, para os copiar para o seu computador, o que aquele fez.

27.       Tais modelos de acórdãos destinavam-se a auxiliar FF a elaborar os projectos de acórdãos, designadamente, ver a forma e estrutura com que os mesmos deveriam ser elaborados.

28.       Combinaram ainda que, quando FF tivesse terminado de elaborar o projecto de acórdão ou o resumo do processo que a arguida AA lhe tinha entregado, aquele o enviaria por correio electrónico para o endereço electrónico da arguida AA, ou aguardava que aquela se deslocasse ao escritório de BB para lhos entregar, ou ainda deixava-os em cima da secretária de DD, companheiro da arguida, para aquele lhos entregar.

29.       Em execução do plano previamente acordado, no período compreendido entre 23 de Novembro de 2012 e 11 de Fevereiro de 2013, FF, utilizando os modelos de acórdão que a arguida AA lhe tinha entregado, procedeu à elaboração de projectos de acórdãos e, efectuou resumos dos processos indicando as questões doutrinais e jurisprudenciais que se encontravam em análise, bem como qual a posição assumida pelo tribunal de primeira instância.

30.       Assim sucedeu nos dias que a seguir se discriminam, em que FF enviou através do seu endereço de correio electrónico, ---@hotmail.com para o endereço electrónico da arguida AA, ---@hotmail.com, os seguintes projectos de acórdãos e resumos de processo:

- 23 de Novembro de 2012, referente aos processos com os NUIPC 5500/12.7YYPRT.P1 e 594/11.5TBMCN.P1, bem como resumos daqueles (fls. 277 a 346 do Apenso IV);

- 18 de Dezembro de 2012, enviou projectos dos acórdãos referentes aos processos com os NUIPC 96/12.2TBVCD-A.P1 e 1982/11.2TBVFR (fls. 146 a 276 do Apenso IV);

- 11 de Fevereiro de 2013, enviou projecto do acórdão referente ao processo com o NUIPC: 479/08.2TBLSD.Ple resumo do mesmo (fls. 133 a 145 do Apenso IV).

31.       GG tinha no seu computador elementos relativos ao processo n.º 464/08.4TBCHV.PI; 5546/11.2TBMTS.P1; 7823/10.0TBMTS.P1; 1853/10.0TBPFR-A e 8560/08.1TBMTS-B.P1.

32.       Em finais de Fevereiro de 2013, a arguida BB informou a arguida AA que não pretendia continuar a proceder a elaboração de projectos de acórdãos, resumos e análises de processos.

33.       A arguida BB sugeriu ainda à arguida AA que abordasse GG, a fim de averiguar se aquele não estaria interessado em auxiliá-la conforme vinha fazendo, mas desta feita mediante retribuição.

34.       Seguindo a sugestão da arguida BB, em finais de Fevereiro de 2013, em data concreta que não foi possível apurar, AA, numa deslocação ao escritório de BB, abordou GG, e solicitou-lhe que se deslocasse à delegação de ... da C.V.P. o mais brevemente possível a fim de conversarem, ao que aquele acedeu.

35.       Assim, e conforme combinado, em data não concretamente apurada do mês de Fevereiro de 2013, GG deslocou-se à sede da delegação de ... da C.V.P., sita na Rua Conde Alto Mearim, n.° 223, ....

36.       Uma vez aí chegado, a arguida AA confidenciou-lhe que estava com dificuldade em conciliar a sua actividade profissional como juíza desembargadora do Tribunal --- com a presidência das delegações da C.V.P. de ... e do ---, e propôs-lhe que continuasse a analisar

processos que lhe estavam distribuídos, procedendo ao seu resumo, bem como elaborando projectos de acórdãos, sendo para tal remunerado.

37.       No entanto, FF não aceitou tal proposta.

38.       Face à recusa de FF, a arguida AA contactou, em data concreta que não foi possível apurar do mês de Março de 2013, EE, advogada, e propôs-se contratá-la para que procedesse à elaboração de projectos de acórdãos e análise de processos que lhe estivessem distribuídos e que viessem a ser distribuídos no âmbito do seu desempenho funcional como juíza desembargadora do Tribunal ---.

39.       A arguida AA informou-a que a contratação proposta estava autorizada pelo Presidente Nacional da Cruz Vermelha Portuguesa.

40.       Disse-lhe, ainda, que a mesma radicava no facto de ser imprescindível a sua manutenção à frente da delegação de ... e do Porto, e haver necessidade de conciliar tal actividade com as suas funções enquanto juíza desembargadora.

41.       Convencida da veracidade de tais afirmações, EE resolveu submeter a proposta efectuada à apreciação dos outros dois sócios que com ela constituem a sociedade “AAA & Associados”, tendo resolvido aceitá-la, em nome e pela sociedade.

42.       Na referida reunião com os seus sócios de escritório, acordaram, ainda, que o valor a cobrar à delegação da Cruz Vermelha de ... seria de € 100,00 por cada questão individualizada a tratar, valor ao qual acresceria o respectivo IVA.

43.       Assim, e em concretização do plano projectado, a arguida AA, aproveitando-se do facto de ser Presidente da delegação de ... da C.V.P., determinou que EE, como sócia da “DSP”, fosse contratada como jurista daquela instituição.

44.       Bem sabia a arguida AA que aquele contrato celebrado entre a C.V.P. e a sociedade “AAA & Associados” visava, tão só, justificar os pagamentos que a delegação de ... da CVP viesse a efectuar mensalmente à referida sociedade.

45.       EE, como sócia da sociedade e na execução do contrato, procedeu, desde meados de Março de 2013 e até 28 de Junho de 2013, à elaboração de projectos de acórdãos e resumos, nos seguintes processos que se encontravam distribuídos à arguida AA:

62-1/1999.P1 (documento de fls. 33 a 47 do Apenso III, Anexo C), 6168/05.2TBVNG.P1 (documento de fls. 135 a 146 do Apenso III, Anexo C), 177/06.1TBTMC.PI (documento de fls. 48 a 87 do Apenso III, Anexo C), 57/08.6TBRSD-A.P1 (documento de fls. 18 a 32 do Apenso III, Anexo C), 452/08.0TBARC-A.P1 (documento de fls. 232 a 243 do apenso III, Anexo C), 781/03.3TJVNF.P1 (documento de fls.88 a 109 do Apenso III, Anexo C),

4681/09.1TBVFR.P1 (documento de fls. 281 a 301 do Apenso III, Anexo C), 148/10.3TBMCD.P1 (documento de fls. 214 a 231 do Apenso III, Anexo C), 7600/10.9TBMAI.P1 (documento de fls. 302 a 317 do Apenso III, Anexo C), 4/11.8TBTBC-E.P1 (documento de fls. 3 a 17 do Apenso III, Anexo C), 57/11.9TBVLP-A.P1 (documento   de  fls.  203   a   213  do   Apenso III,    Anexo C),

193/11.1TBAMT.P1 (documento de fls. 161 a 202 do Apenso III, Anexo C), 812/11.0TJPRT.P1 (documento de fls. 110 a 132 do Apenso III, Anexo C), 1327/11.1JAPRT.P1, 7128/11.0TBMTS-A.P1 (documento de fls. 147 a 160 do Apenso III, Anexo C), 1110/12.7TBVFR.P1 (documento de fls. 244 a 262 do Apenso III, Anexo C) e 1349/12.5TBVFR-A.P1 (documento de fls. 263 a 280 do Apenso III, Anexo C).

46.       Assim, nos anos de 2012 e 2013 a delegação de ... da C.V.P. efectuou pagamentos à arguida BB e à sociedade DSP Associados, de que EE é sócia, os quais visavam retribuir a actividade por aquelas despendida na elaboração de projectos de acórdãos e análise de processos que se encontravam distribuídos à arguida AA nos montantes de € 6.644,75 e € 861,00, respectivamente, no total de 7505,75 € (sete mil, quinhentos e cinco euros e setenta e cinco cêntimos) tal como se refere no quadro que se segue:

Documento da despesa
Pagamento
N.° do recibo ou facturaData
Valor a pagar
DataMeio de pagamento (conta bancaria -CVP)
Valor pago
16
26-10-2012
659,75 €
30-10-2012
trans. banc ----
659,75 €
19
03-12-2012
1.522,50 €
29-11-2012
trans. banc ---
1.522,50 €
21
02-01-2013
1.522,50 €
28-12-2012
trans. banc ---
1.522,50 €
22
28-01-2013
1.470,00 €
30-01-2013
trans. banc ---
1.470,00 €
28
26-02-2013
1.470,00 €
05-03-2013
trans. banc ---
1.470,00 €
Total recebido por BB
6.644,75 €
1012
12-04-2013
861
29-04-2013
trans. banc ---
861,00 €
Total recebido por AAA &Associados
861,00 €
Total
7.505,75 €

47.       No dia 15 de Outubro de 2013, pelas 10 horas e 30 minutos procedeu-se a uma busca à residência da arguida AA, sita na ---, ..., tendo sido apreendido:

- Uma agenda Cruz Vermelha relativa ao ano de 2012;

- Uma pasta de micas de cor preta, contendo listagem e documentação diversa respeitante ao tribunal ---;

- Cinco conjuntos de peças avulsas, respeitantes a existências de diversos processos, com a terminação P1, todos titulados pelo tribunal ---;

- O processo com o NUIPC: 812/11.0TJPRT.P1 o qual se encontrava pendente no tribunal ---;

- Um disco rígido externo de cor cinza da marca Iomega, modelo LPHD-UPC, com o número de série 57AA456998,

- Um suporte de armazenamento de dados, vulgarmente conhecido por pen drive, de cor cinza, da marca Sandisk, modelo Cruzer, com o número de série SDCZ6-8192RB.

48. No dia 15 de Outubro de 2013, pelas 10 horas e 15 minutos, procedeu-se a realização de uma busca ao escritório da arguida BB, sito na Rua ---, ..., tendo sido apreendida:

-uma pasta de arquivo de cor vermelha, em cuja lombada é visível a inscrição “CVP DIVERSOS”, na qual se encontravam: facturas/recibo números 28, 22, 21, 19 e 16, emitidas pela buscada em favor da Cruz Vermelha Portuguesa, entre Outubro de 2012 e Fevereiro de 2013, a que se encontram anexados mensagens de correio electrónico trocados entre a arguida BB e funcionária da Cruz Vermelha Portuguesa - Delegação de ...; documentação diversa, designadamente mensagens de correio electrónico dirigidas pela arguida BB à arguida AA, anotações manuscritas, projectos de Acórdão relativos aos processos 347/09.0TBMAI.P1, 1853/10.0TBPFR-A.P1, 464/08.4TBCHV.P1, 2997/06.8TBVCO-D.P1, 5546/11.2TBMTS.P1, 193/09.4TBPFR.P1, 25/12.3TBMAI.P1, 477/1 0.6TBVPAP1, 2292/05.0TBAMT-A.P1, 2315/10.0TBPNF-A.P1, 85/09.4TBBGC-A.P1, 587/11.2TBGOM.P1, 1666/11.1TBSTS.P1, 516/06.5TVPRT.P1, 70/12.9TBSJP- E.P1, 1389/07.6TBVLG.P1, 3612/0.0TBMTS, 10407/05.1TBMTS.P1, resumos de processos e cópia da Lei 56/2008, de 04 de Setembro (a qual consta como Apenso II, Anexo D).

49. No dia 15 de Outubro de 2013, pelas 12 horas e 20 minutos, procedeu-se a realização de uma busca à residência de EE, sita na ---, ..., tendo sido apreendido:

- Extracto da conta número --- - Cruz Vermelha Portuguesa.

- Triplicado da factura n.º A-1012, emitida à Cruz Vermelha Portuguesa – Delegação de ..., em 12.04.2013, no valor de 861,00 €.

- Cópia do extracto bancário da conta do Millennium BCP, número --- que identifica a transferência efectuada pela C.V.P. - Núcleo de ..., no valor de 861  € para pagamento da factura anterior.

- Triplicado da factura n.º A-1035, emitida à Cruz Vermelha Portuguesa-  Delegação de ..., em 17.06.2013, no valor de 984,00 €.

- Cópia de dados que se encontravam no Computador de secretária da marca ASUS, com o n.º de série BAPBAW006111, bem como dos dados que se encontravam na “DROPBOX”, da arguida.

50. A arguida AA, aproveitando-se do facto de ser presidente da delegação de ... da C.V.P. actuou de forma deliberada e com perfeita consciência de que se utilizava ilegitimamente da quantia total de 7505,75 € (sete mil quinhentos e cinco euros e setenta e cinco cêntimos), que pertencia àquela delegação da C.V.P., a fim de proceder ao pagamento dos serviços prestados pela arguida BB e EE, na qualidade de sócia da “DSP...”, na elaboração de projectos de acórdãos e resumos de processos que se lhe encontravam distribuídos no âmbito da sua competência funcional, enquanto desembargadora do Tribunal ---.

51. Bem sabiam as arguidas AA e BB que a quantia monetária de 6 644,75 €, e ainda AA no que respeita à quantia de 861,00 €, que a primeira administrava face às funções de Presidente da Delegação de ... da C.V.P., se destinavam a ser utilizadas nas normais finalidades da instituição e não em proveito próprio, como foi.

52.       As arguidas AA e BB agiram sempre livre, voluntária e conscientemente, com o propósito firme de utilizar em seu proveito próprio, como efectivamente aconteceu, a referida quantia de 6 644,75 € que administravam e controlavam enquanto membros da direcção da delegação de ... da C.V.P. e ainda AA, no que respeita à quantia de 861,00 €, não obstante saberem que as mesmas (nas respectivas medidas) se destinavam a ser utilizadas nas finalidades prosseguidas por esta delegação na satisfação de assistência humanitária e social dos mais vulneráveis, e não os seus interesses pessoais.

53. A arguida AA actuou de forma deliberada e com perfeita consciência de que se apropriava ilegitimamente de quantia em dinheiro que lhe tinha sido entregue no exercício das suas funções públicas.

54. Bem sabia a arguida BB, e, nomeadamente, face às funções como vice-presidente da Cruz Vermelha de ... e no exercício das suas funções públicas, que a quantia de 6 644,75 € (seis mil, seiscentos e quarenta e quatro euros e setenta e cinco cêntimos) por si recebida, era proveniente dos cofres da Delegação de ... da C.V.P. e visava pagar os resumos e projectos de acórdãos por si realizados em processos que se encontravam distribuídos à arguida AA no âmbito das suas funções como Juíza Desembargadora do Tribunal ---.

55. Agiram sempre as arguidas livre e conscientemente, bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

      Factos indiciados trazidos pela defesa

Do requerimento de abertura de instrução de AA 

56 – As classificações da Requerente oscilaram sempre entre o Bom, o Bom com Distinção e o Muito Bom.

57 – Os projectos da requerente eram analisados e discutidos colegialmente e votados (às vezes com votos de vencido), como é de lei;

58 – Os votos de vencido, que constam dos documentos apresentados pela requerente AA, tiveram lugar nos seguintes casos:

Processo n.º 10269/10.7TBVNG.P1, sendo confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça a solução proposta pela arguida – Anexo 1 - Documento 1;

Processo n.º 4328/09.6TBMAI.P1 – Anexo 1 - Documento 2;

Processo n.º 1666/11.1TBSTS.P1 – Anexo 1 - Documento 3.

59 – A Requerente tem um estilo próprio de elaboração dos acórdãos, que é inconfundível e que os Senhores Desembargadores que, com ela, habitualmente conferenciavam conhecem perfeitamente e que não confundiriam com projectos de estagiários;

60 – Os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça com confirmação de acórdãos elaborados entre 12 de Abril de 2012 e 10 de Julho de 2013, são os seguintes:

Processo n.º 10269/10.7TBVNG.P1 – Anexo 1 - Documento 1 (com voto de vencido);

Processo n.º 660/1999.P1 – Anexo 1 - Documento 4;

Processo n.º 1007/05.7TBVLG.P1 – Anexo 1 - Documento 5;

Processo n.º 110/2000.P3 – Anexo 1 - Documento 6;

Processo n.º 353/07.0TBARC.P1 – Anexo 1 - Documento 7;

Processo n.º 2733/05.6TBAMT.P1 – Anexo 1 - Documento 8;

Processo n.º 1310/07.1TBLSD.P2 – Anexo 1 - Documento 11.

   Os restantes três, constantes dos documentos 9, 10 e 12 são anteriores, de 2010 e 2011:

Processo n.º 960/03.0TBPVZ.P1 – o acórdão data de 13-07-2011 – Documento 9;

Processo n.º 9962/05.0TBVNG.P1 – o acórdão data de 11-07-2011 – Documento 12; 

Processo n.º 3687/03.9TVPRT.P1 – o acórdão data de 25-03-2010 – e o recurso não foi conhecido – Documento 10, todos no mesmo Anexo 1.

61 – A requerente facultou ao Dr. FF peças processuais que serviram para a aprendizagem dele

62 – A Dr.ª BB em sede de contenciosos laborais elaborou nove informações/pareceres, a saber:

Em 22 de Outubro de 2012 – Anexo 11 – Documento 49

Em 25 de Outubro de 2012 – Anexo 5 – Documento 42

Em 30 de Outubro de 2012 – Anexo 6 – Documento 45 (A)

Em 12 de Novembro de 2012 – Anexo 4 – Documento 40

Em 29 de Novembro de 2012 – Anexo 5 – Documento 41

Em 3 de Dezembro de 2012 – Anexo 5 – Documento 43

Em 17 de Dezembro de 2012 – Anexo 9 – Documento 47

Em 07 de Janeiro de 2013 – Anexo 9 – Documento 46

Em 29 de Janeiro de 2013 – Anexo 10 – Documento 48

63 – A Dra. BB, como advogada, desenvolveu serviços profissionais por vezes com deslocações vários quilómetros, e mesmo antes de Outubro de 2012 já prestava serviços forenses à Cruz Vermelha Portuguesa, por vezes muito complexos e sempre valiosos.

Do requerimento de abertura de instrução de BB

 

64 – A actividade da Cruz Vermelha rege-se pelos seguintes princípios fundamentais:

a. Humanidade - a Cruz Vermelha nasce da preocupação de prestar auxílio a todos os feridos, dentro e fora dos campos de batalha; de prevenir e aliviar, em todas as circunstâncias, o sofrimento humano; de proteger a vida e a saúde; de promover o respeito pela pessoa humana; de favorecer a compreensão, a cooperação e a paz duradoura entre os povos;

b. Imparcialidade - a Cruz Vermelha não distingue nacionalidades, raças, condições sociais, credos religiosos ou políticos, empenhando-se exclusivamente em socorrer todos os indivíduos na medida dos seus sofrimentos e da urgência das suas necessidades, sem qualquer espécie de discriminação;

c. Neutralidade - a Cruz Vermelha, a fim de conservar a confiança de todos, abstém-se de tomar parte em hostilidades ou em controvérsias de ordem política, racial, filosófica ou religiosa;

d. Independência - a Cruz Vermelha é independente e, no exercício das suas actividades como auxiliar dos poderes públicos, conserva autonomia que lhe permite agir sempre segundo os princípios do Movimento Internacional da Cruz Vermelha;

e. Voluntariado - a Cruz Vermelha é uma instituição de socorro voluntária e desinteressada;

f. Unidade - a Cruz Vermelha é só uma. Em cada país só pode existir uma sociedade que está aberta a todos e estende a sua acção a todo o território nacional;

g. Universalidade - a Cruz Vermelha é uma instituição universal, no seio da qual todas as sociedades nacionais têm direitos iguais e o dever de entreajuda.

65 – No exercício da sua actividade a CVP:

a. Fomenta e organiza a colaboração voluntária e desinteressada das pessoas singulares e colectivas, públicas e privadas, nas actividades da instituição, ao serviço do bem comum e em especial em situações de acidente grave ou catástrofe;

b. Colabora com outras entidades e organismos que actuem nas áreas de proteção e socorro e da assistência humanitária e social, sendo também, neste âmbito, auxiliar ou complementar dos poderes públicos, sem prejuízo da sua independência e autonomia e assegurando o respeito pelos símbolos, distintivos e emblemas da Cruz, Crescente e Cristal Vermelhos, nos termos das Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais;

c. Colabora com as autoridades de protecção civil em articulação com o sistema integrado de operações de protecção e socorro, de acordo com os princípios e as normas a que se encontra submetida e sem prejuízo da sua independência e autonomia;

d. Colabora com os serviços de saúde militar, no âmbito da protecção aos militares feridos, doentes, náufragos, prisioneiros de guerra, às vítimas civis dos conflitos nacionais e internacionais e noutras situações decorrentes de estados de excepção, no quadro da acção do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e de acordo com as disposições das Convenções de Genebra e seus protocolos adicionais;

e. Colabora com o Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho na promoção dos direitos humanos, na difusão e ensino do direito internacional humanitário, bem como na difusão e aplicação das suas orientações.

66 – A requerente BB desconhecia totalmente que a advogada EE tinha sido contratada para prestar serviços jurídicos à CVP/.../....

67 – Não sabia, nunca falou com ela, nunca a consultou para nada, nem na sua qualidade de vice-presidente da direcção nem noutra, nunca ordenou que lhe fosse feito qualquer pagamento.

68 – A arguida cessou a sua prestação de serviços em Fevereiro de 2013, e apesar de ter continuado com o cargo de vice-presidente da direcção, a sua colaboração com a CVP cingiu-se a meros actos de representação em substituição da Presidente.

69 – A partir de então a requerente BB, além do seu serviço do escritório de advocacia, passou a estar totalmente absorvida com a preparação das eleições autárquicas de Setembro de 2013, sendo que também ela, tal como a co-arguida AA, foi candidata à vereação integrada nas listas do Partido ....

70 – A diferença substancial, é que a arguida é militante activa do Partido ..., enquanto a Dra. AA é uma independente que apenas interveio na campanha.

71 – Daí que para a arguida, a organização de uma campanha eleitoral constitua um árduo e absorvente trabalho, que a obrigou a cessar a prestação e a diminuir a sua actividade voluntária na CVP.

72 – A Direcção da CVP ..., sob a presidência da Dra. AA, assumiu também, a pedido do Sr. Presidente Nacional da CVP, Dr. GG, a direcção da CVP do Porto, a partir do dia 6 de Agosto de 2012.

73 – Esta situação implicou um aumento substancial de trabalho, acrescido de problemas jurídicos que não eram comuns à CVP ..., designadamente, porque existiam processos pendentes nos tribunais, de responsabilidade civil, de contratos de trabalho e de responsabilidade contratual, que envolviam avultadas quantias.

74 – Os processos pendentes em tribunal, cuja listagem se junta como doc. n° 1 (fls. 1031 a 1035), eram acompanhados pro bono pela RR e Associados, a qual denunciou esse protocolo, alegando dificuldades económicas, passando a arguida a acompanhar em parte alguns desses processos.

75 – No que respeita ao quadro de pessoal da Delegação do ..., sobre dimensionado e muito oneroso do ponto de vista financeiro, a arguida estudou alguns dos processos individuais de trabalho, verificou quais as pessoas dispensáveis e chegou a acordo para a rescisão de alguns contratos de trabalho.

76 – A arguida dava ajuda nos casos de violência doméstica. 

77 – A arguida era antes apenas voluntária, sem obrigação do cumprimento de tarefas, sem a obrigação de atingir objectivos e sem a obrigação de preterir a sua vida profissional liberal a favor dos interesses da CVP.

77 – Antes, como voluntária, a arguida colaborava, na estrita medida das suas disponibilidades e do seu saber.

78 – Como o seu marido é colega de escritório da aqui arguida, a Dra. AA deslocava-se frequentemente às instalações desse escritório, permitindo a requerente a utilização do computador para trabalhar nos seus Acórdãos, sempre pautada pelo sentimento de cooperação e amizade.

      Pelo exposto, perante a existência de fortes indícios da prática dos factos descritos, pronuncio as arguidas AA e BB, pela prática de um crime de peculato, p. e p. pelo artigo 375.º, com referência ao artigo 386.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal.

     Prova:

     A da acusação, incluindo a

 

     Testemunhal

- CC, id a fls. 7

- SS, id a fls. 383

- GG, id a fls. 387

- ---, id a fls. 486

- EE, id a fls. 629

- ---, inspector chefe da polícia judiciária, id a fls. 71

- BBB, inspectora da polícia judiciária, id a fls. 699.

- ---, advogado, id a fls. 824;

- ---, advogada, id a fls. 827;

- ---, advogado, id a fls. 830.

   Documental:

 (Constante da acusação a fls. 854 a 856), a saber: 

- Contrato de arrendamento com promessa unilateral de venda de fls. 23 a 25;

- Fotografias de fls. 25 a 28, 76, 224 a 226;

- Certificado de registo individual de AA - fls. 31;

- Acórdãos do Conselho Superior da Magistratura de fls. 32 a 49;

- Fotografia de fls. 63 (capa do processo do tribunal --- n.º 886/11.2TBMTS.P1);

- Fotografia de fls. 64, 75 (capa dos processos do tribunal --- número 2997/06.8TBVCD-D.P1 e número 464/08.4TBCHV.P1, respectivamente);

- Recibos de vencimento emitidos pela arguida BB a favor da Cruz Vermelha Portuguesa - fls. 67, 68;

- Fls. 80 a 88, 635 a 641;

- Mensagens de correio electrónico de fls. 147, 184;

- Declarações de IRS da arguida BB – fls. 264 a 268;

- Auto de busca e apreensão à residência da arguida AA - fls. 346 a 347;

- Auto de busca e apreensão à Delegação da Cruz Vermelha de ... - fls. 352 a 358;

- Auto de busca e apreensão ao escritório da arguida BB - fls. 362 a 364;.

- Auto de busca e apreensão à residência da arguida EE de fls. 380 a 382;

- Termo de entrega por parte de FF do seu computador portátil melhor identificado a fls. 394;

- Declarações de rendimentos de EE, fls. a 473 a 479;

- Informação enviada pela Cruz Vermelha Portuguesa - fls. 481 a 484;

- Lista de processos distribuídos, pendentes e findos da arguida AA no Tribunal --- - fls. 610 a 628.

Apenso I - Fls. 18, 32, 38, 42.

Apenso II:

Anexo A: agenda da arguida AA na Cruz Vermelha portuguesa;

Anexo A: Pasta de Micas;

Anexo A: fls. 3 a 80 (Buscas a casa da arguida AA); Anexo B - fls. 81 a 89 (elementos recolhidos nas buscas no Gabinete da Cruz Vermelha da arguida AA);

Anexo C - fls. 89 a 220 (material recolhido nas buscas na delegação da cruz vermelha de ..., sito na Rua --);

Anexo D - fls. 221 a 228 (material recolhido nas buscas realizadas ao escritório de BB, sito na Rua ---);

Anexo E - fls. 229 a 235 (material apreendido nas buscas realizadas ao escritório de EE sito na Av. ---);

Anexo D - fls. 2 a 140 pasta vermelha apreendida no escritório de BB

Apenso III:

Anexo A: fls. 4 a 188 (documentos constantes do dispositivo de armazenamento de dados - pen - e disco rígido apreendida a AA);

Anexo B: fls. 2 a 481 - documentos constantes das pastas acórdãos e preparatórios existente no disco rígido pertencente à BB, bem como mensagens de correio electrónico e respectivos anexos de BB@gmail.com com interesse para os autos;

Apenso C: fls. 2 a 327, documentos constantes do computador ASUS, de EE

Sá Pereira, mais concretamente na pasta tribunal ---, acórdãos e outros relatores.

Anexo D: - fls. 2 a 16 lista de e-mails enviados e recebidos que se encontram localizados no computador de JJ.

Apenso IV – fls. 2 a 349 - lista de processo contantes do computador de FF e,

e-mail trocados entre AA e FF.

Apenso V - acórdãos enviados pelo tribunal ---.

Apenso I - Fls. 18, 32, 38, 42.

Apenso II:

Anexo A, a): agenda da arguida AA na Cruz Vermelha Portuguesa;

Anexo A, b): Pasta de Micas;

Apenso II (Buscas):

Anexo A - fls. 3 a 80 (Buscas a casa da arguida AA); Anexo B - fls. 81 a 89 (elementos recolhidos nas buscas no Gabinete da Presidente da Cruz Vermelha, arguida AA);

Anexo C - fls. 89 a 220 (material recolhido nas buscas na Delegação de ... da Cruz Vermelha Portuguesa, sita na Rua ---, ...);

Anexo D - fls. 221 a 228 (material recolhido nas buscas realizadas ao escritório de BB, sito na Rua --- - ...);

Anexo E - fls. 229 a 235 (material apreendido nas buscas realizadas ao escritório de EE, sito na Av. ---, ...).

Anexo D - fls. 2 a 140 pasta vermelha apreendida no escritório de BB

Apenso III:

Anexo A: - fls. 4 a 188 (documentos constantes do dispositivo de armazenamento de dados - pen - e disco rígido apreendida a AA)

Anexo B: - fls. 2 a 481 - documentos constantes das pastas acórdãos e preparatórios existente no disco rígido pertencente a BB, bem como mensagens de correio electrónico e respectivos anexos de BB@gmail.com com interesse para os autos.

Apenso C: - fls. 2 a 327, documentos constantes do computador ASUS, de EE, mais concretamente na pasta Tribunal ---, acórdãos e outros relatores.

Anexo D: - fls. 2 a 16, lista de e-mails enviados e recebidos que se encontram localizados no computador de JJ.

Apenso IV – fls. 2 a 349 - lista de processo constantes do computador de FF e e-mail trocados entre AA e Luís Campos.

Apenso V - acórdãos enviados pelo Tribunal ---.

     Prova apresentada em instrução

 

     Prova documental

- Anexos 1, 2 e 3 (parte) – Documentos 1 a 21 (AA)

- Anexos 3 (parte), 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11 – Documentos 22 a 49 (BB).

     Prova Testemunhal

 

- GG, Presidente Nacional da Cruz Vermelha Portuguesa, id. a fls. 1183;

- LL, psicóloga, Directora de Serviços da Cruz Vermelha Portuguesa – Delegação de ..., id. a  fls. 1213;

- Juiz Desembargador II, com domicílio profissional no Tribunal --- (fls. 1151);

- Juiz Desembargador HH, com domicílio profissional no Tribunal --- (fls. 1212);

- DD, Advogado, id. a fls. 1215.

Mantêm-se as medidas de coacção fixadas.

Notifique.

 

    Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

                                        Lisboa, 17 de Abril de 2015        

Raul Borges (Relator)