Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
899/04.1TBSTB.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
REGISTO PREDIAL
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO
CONTRATO-PROMESSA
POSSE
ANIMUS POSSIDENDI
INVERSÃO DO TITULO DE POSSE
Apenso:
Data do Acordão: 07/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES - DIREITOS REAIS
DIREITO REGISTRAL
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1265.º.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRPREDIAL): - ARTIGO 7.º.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 17/4/07, PROCESSO N.º 07A480;
-DE 9/9/08, PROCESSO N.º 08A1988.
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR Nº 1/2008.
Sumário :

1.Instaurada acção de reivindicação, alicerçada em inscrição registral obtida a favor do autor mediante escritura de justificação notarial, e impugnada esta pelo reivindicado que demonstrou judicialmente não corresponder à verdade a situação possessória descrita na referida escritura, tem-se por ilidida a presunção emergente do registo predial efectuado à sombra de tal escritura, procedentemente impugnada, cujo cancelamento deve ser ordenado.

2. O contrato promessa de compra e venda , embora acompanhado de tradição da coisa prometida vender, não é, em regra, susceptível de transmitir a posse ao promitente comprador que, normalmente, não se verificando circunstâncias excepcionais, adquire o corpus possessório, mas não o animus possidendi, ficando numa situação de mero detentor.

3. A posse em nome próprio do promitente comprador pode, porém, resultar de superveniente inversão do título da posse, a qual pressupõe a sua efectivação por oposição à contraparte, levada ao conhecimento desta, em termos de poder razoavelmente inferir-se uma oposição séria ao seu direito de propriedade.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA e BB intentaram acção de reivindicação, na forma ordinária, contra CC e DD, pedindo que fosse reconhecido o direito de propriedade dos autores e os réus condenados a restituir-lhes o imóvel que identificam.
Alegaram para tanto - e em síntese - que são proprietários de determinado prédio urbano, que teriam adquirido por usucapião , - o qual, com base em escritura notarial de justificação, está registado em seu nome - e que os réus, desde há algum tempo, têm vindo a ocupar, sem qualquer título ou contrato que justifique a sua utilização.
Citados, os réus contestaram e reconviram, alegando em resumo que são eles os proprietários do imóvel que têm vindo a ocupar, primeiro na qualidade de arrendatários e, depois, como promitentes compradores, na convicção de que são proprietários do mesmo, dele retirando todos os benefícios, mantendo ali a sua habitação, realizando obras, pagando as respectivas contribuições e impostos, agindo e sendo tratados como proprietários por todos, à vista e com o conhecimento de toda a gente, incluindo os anteriores proprietários – pelo que impugnam a escritura de justificação com base na qual foi lavrado o registo e pedem o reconhecimento judicial do seu direito de propriedade.

Foi designada e teve lugar uma audiência preliminar, no âmbito da qual foram especificados os factos assentes e elaborada base instrutória, após o que, instruído o processo, teve lugar a audiência de julgamento.
Finda esta, foi proferida sentença, na qual a acção foi julgada improcedente, sendo os réus absolvidos do pedido, e a reconvenção foi julgada procedente, julgando-se constituído por usucapião o direito de propriedade dos réus sobre o rés-do-chão, composto por dois quartos, sala comum, casa de banho, despensa e quintal, correspondente ao nº .. do prédio urbano sito na Rua ................, freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o nº 0000, a fls. 18 vº do Livro B-... e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...º, absolvendo-se ainda os autores do pedido de condenação como litigantes de má-fé.

Inconformados, interpuseram os autores recurso de apelação a que foi concedido provimento, tendo a Relação julgado improcedente o pedido reconvencional e procedente a acção de reivindicação, inflectindo, desta forma, o sentido decisório adoptado na 1ª instância, com a seguinte linha argumentativa:

Conforme tem sido igualmente entendido na jurisprudência, por regra, o contrato-promessa de compra e venda, mesmo nos casos em que houve lugar à sinalização da promessa e à tradição da coisa objecto do contrato, não confere ao promitente comprador uma verdadeira posse mas sim uma mera posse precária.
Com efeito, tendo a entrega da coisa por base uma mera promessa de venda, o promitente comprador apenas passa a fruir a coisa, em nome do promitente vendedor e por mera tolerância deste (uma vez que a promessa, enquanto tal, não implica a transferência do direito de propriedade), não se verificando assim o elemento da posse referente ao animus possidendi.
E, desta forma, estando em causa o exercício material da posse em nome alheio, o promitente comprador apenas adquire o animus possidendi a partir do momento em que passa a exercer o domínio sobre a coisa, de forma inequívoca, como titular do direito de propriedade, contra quem actuava como dono, oposição esta que se deve traduzir em actos inequívocos praticados na presença ou com o conhecimento daquele a que se opõe (vide entre outros os acórdãos do STJ de 05.11.92, em que é relator Silva Cancela, de 09.09.2008, em que é relator Azevedo Ramos, de 12.03.2009 e de 16.06.2009, em que é relator Fonseca Ramos, todos in www.dgsi.pt).
E, conforme tem vindo ainda a ser entendido na jurisprudência, haverá inversão do título de posse, passando então a existir verdadeira posse (corpus e animus) quando, havendo tradição da coisa, ocorrer o pagamento da totalidade do preço, acompanhada da intenção de ambos os contraentes de efectivarem em definitivo a transmissão do direito de propriedade da coisa objecto da tradição (vide, para além do acórdão de 11.12.2008 supra referido, o acórdão do STJ de 11.05.2006, em que é relator Ferreira da Silva, igualmente in www.dgsi.pt).

Estando fora de causa o período que decorreu entre Janeiro de 1976 e Maio de 1982 em que os réus ocuparam a casa na qualidade de arrendatários (sendo evidente a ausência de posse), considerou-se na sentença recorrida que “no caso em apreço os réus provaram que possuem o prédio desde 1982, momento em que celebraram um contrato promessa de compra e venda com o anterior proprietário, tendo então deixado de pagar as rendas, passando a comportar-se como proprietários do imóvel”.

Em suma, o tribunal “a quo”, não tendo esclarecido tal aspecto, ou considerou pura e simplesmente que a posse dos réus resultou e se iniciou com a celebração do contrato-promessa ou considerou que a inversão do título de posse coincidiu com esse mesmo momento.

E, após passar em revista a matéria de facto apurada, considerou a Relação:

Assente, como vimos, que o contrato-promessa não confere ao promitente-comprador (ou, como no caso dos autos, ao beneficiário da promessa – já que aquilo que está em causa nos autos não passa de uma mera promessa de venda) uma verdadeira posse mas sim uma mera posse precária, importa verificar se existe inversão do título de posse e em que momento.

Da matéria de facto dada como provada, ficamos a saber que os réus, que nem sequer passaram a ocupar a casa como consequência da celebração da promessa de venda, em 18.05.1982 (conforme documento junto a fls. 49 dos autos), uma vez que já a utilizavam desde 1976 na qualidade de arrendatários.
Para além disso, não se provou que os réus tivessem pago, na altura da celebração da promessa de venda ou em momento posterior (e em que data) a totalidade do preço indicado na promessa.
A única coisa que sabemos é que, nos termos da dita promessa (conforme se alcança do documento de fls. 49) a prometida venda seria feita pelo preço de 300.000$00 (trezentos mil escudos), por conta do qual o promitente vendedor recebeu a quantia de 200.000$00 (duzentos mil escudos), sendo os restantes 100.000$00 pagos no acto da escritura, que seria a realizar no prazo de um ano, mas que se não chegou a realizar.

Desta forma, e neste contexto, afigura-se-nos que o simples facto de se ter dado como provado que “desde 18.05.1982 os réus passaram a ocupar a mesma casa na convicção de que são proprietários da mesma, retirando todos os benefícios que o prédio proporciona, nomeadamente nele mantendo a sua habitação, onde confeccionam e tomam as suas refeições, dormem, recebem o correio e a visita de amigos e familiares, fazendo as obras que o mesmo necessitava, reparação de canos, pavimento, telhado, remodelação das divisões interiores e janelas e fazendo as benfeitorias que entenderam necessárias, tais como pintar o interior e exterior do prédio, picar e rebocar as paredes que se vão degradando ao longo dos anos” não pode ser entendido e aceite como verdadeira inversão do título de posse.
Com efeito, para além da mera celebração da promessa unilateral de venda (com recebimento apenas parcial do preço) não sabemos quais os eventuais factos ou circunstâncias, se é que os houve, em que se terá baseado essa convicção.

É certo que ainda se deu como provado que “os réus não pagam aos autores qualquer valor pela utilização do prédio”, que “ocupam a casa à vista e com o conhecimento de toda a gente, incluindo os anteriores proprietários, seus sucessores, os autores e seus vizinhos” e que “são considerados e tratados por toda a gente como os verdadeiros proprietários da casa”.
Todavia, o certo é que não sabemos desde quando ou a partir de que momento é que tal passou a acontecer (e porque razão).
Ainda se deu como provado que “pagaram no ano de 1991 a contribuição autárquica relativa ao prédio”.

Todavia, o certo é que o fizeram “em nome de EE” – o que aponta no sentido do exercício da posse em nome de outrem.

Em suma, não conferindo a mera promessa de venda em causa uma verdadeira posse (enquanto requisito da usucapião), mas sim uma mera posse precária, e não tendo os réus feito prova da inversão do título de posse, não se pode considerar como verificada (conforme se entendeu na sentença recorrida) a invocada aquisição por usucapião, pelos réus, do direito de propriedade sobre a casa que ocupam.
E assim sendo, impunha-se (e impõe-se) a improcedência da reconvenção.

Por outro lado, tendo os autores, face ao registo do prédio em seu nome, feito prova (presuntiva, nos termos do art. 7º do Código de Registo Predial) da propriedade do prédio urbano, sito na Rua ................, freguesia de Pinhal Novo, concelho ele Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o nº 0000, a fls. 18 vº do livro B-... e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...º, encontra-se registado a favor dos autores, pela inscrição nº 0000, AP 00 de 17.10.2003 – e não tendo os réus feito prova de título que legitimasse a ocupação da casa (integrada naquele prédio) que têm vindo a ocupar, impõe-se ainda julgar procedente a acção.

Com efeito, “cabendo aos réus elidir tal presunção” resultante do registo “sob pena de serem condenados a reconhecer o direito de propriedade dos autores sob a coisa em litígio, e a entregá-la dos mesmos” – conforme bem se considerou na sentença, e não tendo os mesmos, como vimos, face á falta prova da sua aquisição por usucapião, elidido tal presunção, a outra conclusão se não poderia chegar.

2 É desta decisão que vem interposta a presente revista, que os recorrentes encerram com as seguintes conclusões que, como é sabido, lhe definem o objecto:

Deve ser concedida a revista revogando-se o acórdão recorrido e mantida a sentença da primeira instância e se assim não se entender julgada improcedente a acção pelos seguintes fundamentos:
I- Provado ficou nos autos que os R.R. estão de posse do prédio que identificaram desde Janeiro de 1976;
II- Que em Maio de 1982 celebraram com os proprietários uma promessa de compra e venda do imóvel.
III- Que desde essa data passaram a considerar-se e serem reconhecidos por todos incluindo os vendedores, que deixaram de receber a renda, como os proprietários do imóvel.
IV- Desde essa data sempre actuaram sobre o imóvel como se propriedade sua se tratasse, e com a convicção de que o prédio era sua propriedade e agiam sobre património seu.
V- Que a escritura prometida, não se podia realizar por ter ocorrido grave erro na escritura de
venda do prédio em 1978, onde foi vendido 9/6 do prédio a diversos compradores.
VI- Que o termo posse tem na linguagem corrente um sentido e interpretação própria e perceptível sem recurso a interpretação jurídica, facto que aliás está expresso na resposta à base instrutória proferida pelo Tribunal de Ia Instância, quando coloca as palavras " Tendo a posse" entre aspas, precisamente porque emprega o termo em sentido corrente e não jurídico, resposta ao ponto 11 da base instrutória.
VII- Que a posse dos R.R., que está provada ser pública, pacifica de boa fé que os R.R. ao adquiri-la não lesaram interesses de ninguém, muito menos dos A.A., e tem uma duração superior a 20 anos, reúne todas as características necessárias para que os R.R., invocassem na sua contestação a aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel por usucapião.
VIII- Os A.A., não provaram nos autos que sejam os proprietários do imóvel que identificavam e de que o prédio dos R.R., faz parte e não podem beneficiar da presunção derivada do registo predial, porque a sua inscrição no registo predial foi obtida mediante uma escritura de justificação da aquisição do direito de propriedade por usucapião, sendo jurisprudência uniformizada que por este facto não podem beneficiar da presunção resultante do artigo 7o do Código do Registo Predial.
IX- Consideram os RR que o acórdão sob recurso fez uma má interpretação e aplicação dos institutos da posse e da usucapião.

Pelo exposto e sempre com o douto suprimento de V.Ex.as, deve a revista ser concedida, revogando-se o acórdão recorrido e mantida a sentença da primeira instância e se assim não se entender julgada improcedente a acção os autores serem condenados nas custas do processo e procuradoria condigna, por assim se mostrar ser de Direito e de Justiça.
Os recorridos pugnam pela manutenção da decisão contida no acórdão recorrido, fazendo notar que o objecto da revista se circunscreve à discussão de questões de direito: é, porém, manifesto que a revista interposta vem claramente reportada a «questões de direito», ligadas à força e valor da presunção registral fundada em escritura de justificação notarial e à interpretação das normas que consagram os requisitos da situação possessória tendente à aquisição por usucapião.

3. As instâncias fizeram assentar a solução jurídica do pleito na seguinte matéria de facto:

1) O direito na propriedade sobre o prédio urbano, sito na Rua ................, freguesia de Pinhal Novo, concelho ele Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o nº 0000, a fls. 18 vº do livro B-... e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...º, encontra-se registado a favor dos autores, pela inscrição nº 0000, AP 00 de 17.10.2003.
2) A Escritura de Justificação Notarial foi realizada no Cartório Notarial da Baixa da Banheira, em 14 de Novembro de 2002.
3) Desde há algum tempo a esta parte, os réus vêm ocupando o referido prédio.
4) Os réus desde há algum tempo, ocuparam uma casa existente no prédio referido em 1), sito na Rua ................ nº .. - rés-do-chão­ - 2955 - Pinhal Novo.
5) Os réus não pagam aos autores qualquer valor pela utilização do prédio.
6) Em 18 de Maio de 1982, os réus e EE outorgaram o documento intitulado promessa de venda junto como documento 5-A, com a contestação a fls. 49.
7) Teor da escritura de 9 de Outubro de 1978, junto como documento nº 7 com a contestação a fls. 51 e seguintes.
8) Os réus desde Janeiro de 1976, instalaram a sua residência na casa identificada em 3).
9) Que sempre utilizaram como sua habitação.
10) Desde Janeiro de 1976 até Maio de 1982, os réus ocuparam a casa referida em 3), na qualidade de arrendatários.
11) Desde o momento referido em 6), os réus passaram a ocupar a mesma casa na convicção de que são proprietários da mesma.
12) Retirando todos os benefícios que o prédio proporciona, nomeadamente nele mantendo a sua habitação, onde confeccionam e tomam as suas refeições, dormem, recebem o correio e a visita de amigos e familiares.
13) Fazendo as obras que o mesmo necessitava, reparação de canos, pavimento, telhado, remodelação das divisões interiores e janelas.
14) Fazendo as benfeitorias que entenderam necessárias, tais como pintar o interior e exterior do prédio, picar e rebocar as paredes que se vão degradando ao longo dos anos.
15) Pagando no ano de 1991 a contribuição autárquica relativa ao prédio, em nome de EE.
16) Não tendo sido celebrada de imediato a escritura notarial de compra e venda, por dificuldades burocráticas e ao modo como a escritura de compra havia sido celebrada.
17) Os réus ocupam a casa à vista e com o conhecimento de toda a gente, incluindo os anteriores proprietários, seus sucessores, os autores e seus vizinhos.
18) “Tendo a posse” sobre a casa sido adquirida.
19) Os réus são considerados e tratados por toda a gente como os verdadeiros proprietários da casa.

4. Importa começar por delimitar com rigor o objecto material do litígio que opõe as partes. Na verdade, a controvérsia as partes reporta-se à titularidade de um prédio urbano que – embora seja constituído por 3 parcelas fisicamente destacáveis e distintas : 2 moradias, cada uma com 4 divisões, e um armazém – constitui uma unidade, em termos de descrição predial e matricial ( fls. 8 e 13). Saliente-se que , quer a escritura de justificação notarial, subjacente ao registo a favor dos AA, quer a pretensão de reivindicação por estes formulada em juízo, se reportam à totalidade desse prédio. Porém, a contestação/reconvenção, deduzida pelos reivindicados, tem como objecto apenas uma das unidades físicas que compõem o referido prédio, entendido como unidade registral e matricial, limitando-se os RR a invocar a propriedade, originariamente adquirida por usucapião, sobre uma das moradias que fisicamente o compõem, identificada pelo nº .. da rua .................

E, assim sendo, é manifesto que a sentença que julgou procedente o pedido reconvencional, começando por identificar correctamente o objecto material da reconvenção , reportando-se apenas à unidade física integrada pela moradia reivindicada, correspondente ao referido nº de polícia, comete um lapso manifesto ao fazer aparentemente coincidir tal unidade física com o prédio descrito no registo e constante da matriz – já que, como se viu, este inclui também a outra moradia e o armazém ali existentes.

É, pois, pertinente a questão levantada subsidiariamente pelos recorrentes no recurso de apelação, fazendo notar que o pedido reconvencional de reivindicação apenas incidia sobre uma das moradias que integravam o prédio, descrito e registado como unidade jurídica, pelo que obviamente uma eventual procedência da reconvenção nunca poderia conduzir a atribuir aos RR todo o prédio descrito sob o nº 0000 e inscrito na matriz predial sob o art. ... – mas apenas a titularidade da moradia a que corresponde o referido nº .. de polícia, já que só esta unidade física é objecto da reivindicação pelos RR.

Note-se que esta questão foi considerada prejudicada pela Relação, tendo em conta a solução dada ao litígio, mas terá naturalmente de ser tida em consideração se tal sentido decisório vier a ser, porventura, modificado ou inflectido.

5. Importa delimitar e compreender os traços essenciais do litígio que opõe as partes.

a) Na verdade, pretendem estas ter adquirido, enquanto promitentes compradores da unidade predial em litígio, a respectiva propriedade, por via de usucapião: os AA teriam celebrado em 1980 o contrato promessa em que alicerçam a sua posse continuada sobre a totalidade do prédio; e os RR sustentam ter adquirido a respectiva posse – circunscrita, como se viu, a uma parcela física de tal unidade predial - mediante contrato promessa celebrado em 1982, cujo documento juntam, a fls. 49.

b) Nenhuma das escrituras, titulando os contratos prometidos, foi, porém, celebrada, antecipando-se os primeiros promitentes na realização de escritura de justificação notarial, titulada a fls. 40, em que invocam a «compra», embora desprovida de título formal, de todo o prédio, e sustentam ter logo entrado na respectiva posse e fruição , mantida por mais de 20 anos – e conduzindo, consequentemente, tal factualidade à aquisição originária por usucapião.
Com base em tal escritura notarial, inscreveram os AA registo a seu favor da propriedade sobre a totalidade do prédio – sendo precisamente com base na invocação da presunção emergente de tal registo que intentaram a presente acção de reivindicação.

c) Os RR opõem-se a tal acção mediante contestação/reconvenção, em que formulam dois pedidos:

- o de impugnação da referida escritura de justificação notarial, alegando que todos os factos nela alegados, enquanto reportados à unidade física identificada pelo atrás citado nº de polícia, seriam falsos, por não corresponderem à verdade, já que os AA nunca teriam exercido qualquer poder de facto sobre essa fracção predial, peticionando a nulidade e ineficácia da identificada escritura e o cancelamento da inscrição obtida pelos AA com base na escritura impugnada ( cfr arts 44 e segs da contestação e fls 35);

- o de reconhecimento da aquisição da sua própria propriedade sobre tal fracção física do prédio urbano em causa, por serem eles próprios, e não os AA, a terem actuado como verdadeiros possuidores desde a data em que foi celebrado o referido contrato promessa, em 1982, mostrando-se preenchidos os requisitos do «corpus» e do «animus» - e conduzindo tal posse continuada à usucapião a seu favor.

d) da instrução e discussão da causa resultou terem razão os RR, ao menos no que respeita ao exercício sobre a referida parcela física do imóvel de um poder de factoprevalecendo totalmente a sua versão factual sobre a dos AA, já que ficou demonstrado que sempre utilizaram tal prédio como sendo a sua própria habitação ( improcedendo, quanto a este ponto, totalmente a versão fáctica dos AA, subjacente, desde logo, à escritura de justificação que esteve na base do registo – e sendo evidente que a versão factual, resultante da livre apreciação da prova pelas instâncias é obviamente insusceptível de discussão no âmbito da presente revista).
Na verdade, assente, por verificação judicial, que eram os RR que exerciam, desde 1982, sobre a moradia que tem o nº .. de polícia, todos os poderes de facto – vide a matéria de facto fixada – cai totalmente pela base o afirmado na escritura de justificação, na parte em que se refere à dita moradia, não correspondendo à verdade a proclamada posse e fruição de todo o imóvel pelos AA desde 1980, envolvendo a habitação por eles de ambas as moradias.
É que, como é óbvio, havendo uma frontal contradição entre a declaração unilateral de um dos interessados , plasmada em simples escritura de justificação notarial, desprovida de cabais garantias de fiabilidade e de real correspondência à verdade dos factos, e o resultado de uma apreciação jurisdicional das provas produzidas em audiência contraditória pelos litigantes, é naturalmente esta última que tem de prevalecer, caindo pela base, quer a escritura cujo conteúdo foi procedentemente impugnado, quer o registo, lavrado à sua sombra.

Note-se que, no caso dos autos, nem sequer é necessário invocar a doutrina subjacente ao Ac. uniformizador nº 1/2008, colocando a cargo de quem beneficia da escritura impugnada o ónus de provar os factos constitutivos do seu direito, sem que lhe seja lícito fundar-se na presunção do registo, emergente do art. 7º do CRPredial : na realidade, na situação dos autos, foram os RR que demonstraram inteiramente a inveracidade da versão factual plasmada na referida escritura, mostrando que, ao contrário do ali afirmado, os AA nunca exerceram qualquer poder de facto sobre a parcela litigiosa do prédio, assim ilidindo cabalmente a presunção que pudesse, porventura, emergir do registo obtido através daquela escritura de justificação.

E daqui decorre que a procedência do pedido de impugnação da escritura de justificação notarial, enxertado pelos RR na sua contestação/reconvenção, implica a improcedência da acção de reivindicação movida pelos AA, alicerçada decisivamente na invocação da presunção do registo predial, obtido com base precisamente na escritura impugnada com êxito, por a versão factual nela plasmada não corresponder à verdade dos factos, tal como foi judicialmente apreciada e estabelecida.

Note-se que – tendo em conta a anterior delimitação do objecto físico do litígio – poderia supor-se que apenas haveria que determinar consequencialmente o cancelamento da inscrição obtida pelos AA quanto à fracção predial a que corresponde o nº .. de polícia : porém, a circunstância de o referido prédio constituir uma unidade registral e matricial inviabiliza tal possibilidade de «redução» do pedido de cancelamento formulado pelos RR, por não poder obviamente ordenar-se aos serviços de registo que cancelem uma inscrição, mas apenas na parte correspondente a determinada parcela física de um imóvel que juridicamente surge como unitário, apesar de integrado por diferentes parcelas, porventura , destacáveis e autonomizáveis.
E, por esta razão, terá de proceder por inteiro o pedido de cancelamento formulado a fls. 35.

6. Resta analisar se deverá ser julgado procedente o pedido reconvencional de reconhecimento da aquisição originária da propriedade da dita moradia, integrada no prédio descrito, através do instituto da usucapião, funcionando agora em favor dos RR: é que, se é inquestionável que estes lograram demonstrar o exercício efectivo de um poder de facto sobre tal parcela do prédio urbano em questão – provando o «corpus» da situação possessória invocada - já se configura como duvidoso que se possa ter por preenchido o «animus», sem o que naturalmente sempre terá de se considerar excluída a aquisição por usucapião do direito de propriedade…

A situação debatida nos autos – resolvida em termos diversificados na 1ª instância e na Relação – reconduz-nos a um problema largamente tratado na doutrina e na jurisprudência – e que consiste em saber em que termos e circunstâncias se poderá qualificar como «verdadeiro» possuidor o promitente comprador que, obtendo a tradição da coisa, em consequência de acordo negocial conexo com a promessa de venda, permanece por período anormalmente dilatado no respectivo uso e fruição, em consequência de, não se realizando a escritura definitiva, também não ser definida pelas partes cabalmente a situação de pendência prolongada do contrato promessa, culminando na sua resolução, execução específica, etc.
É que – sendo evidente e incontroverso que tal tradição da coisa prometida vender, assente na pressuposição e expectativa de que será cumprido o contrato definitivo, equivalendo, quando muito, à outorga ao promitente comprador de uma situação equiparável a um direito pessoal de gozo ( cfr. Ac. de 17/4/07, proferido pelo STJ no P. 07A480), apenas desencadeará normalmente uma situação de mera detenção, enquadrável no art. 1253º do CC, possuindo aquele interessado o imóvel em nome do proprietário/promitente vendedor, sem que tal envolva a transmissão a seu favor da posse sobre o imóvel – poderá naturalmente ocorrer, nomeadamente, uma situação de inversão do título da posse, prevista no art. 1265º do CC, susceptível de desencadear supervenientemente a aquisição de posse - verdadeira e própria - por parte do – até então – mero detentor.

Saliente-se ainda uma peculiaridade do presente processo que deve ser ponderada como relevante : é que, ao contrário do comum das situações deste tipo - em que o litígio ocorre entre promitente vendedor e promitente comprador, afirmando aquele o seu direito de propriedade sobre o bem em causa e sustentando o segundo, com base no exercício prolongado de poderes de facto sobre o imóvel cujo uso e fruição lhe foi concedido, mediante entrega das respectivas chaves, uma aquisição originária por usucapião – no caso dos autos o litígio desencadeou-se entre dois promitentes compradores, permanecendo os promitentes vendedores totalmente à margem dos presentes autos.
Ora, como e evidente, destruída a eficácia da escritura de justificação notarial que esteve na base do registo conseguido por um daqueles promitentes compradores, por estar judicialmente demonstrado que, ao contrário do ali afirmado, ele não exerceu poderes de facto sobre a parcela do imóvel também reivindicada pelo outro promitente comprador, R. na presente acção, ressurge de pleno aquele primitivo e básico conflito de interesses – sendo particularmente delicado, por eventualmente violador da regra básica do contraditório, reconhecer a qualquer dos promitentes compradores uma aquisição por usucapião do imóvel prometido vender sem que o respectivo proprietário e promitente vendedor tenha tido oportunidade de exercer o contraditório, questionando os fundamentos aduzidos como base de tal aquisição originária da propriedade.
Mesmo que se entenda que tal situação não implica que o verdadeiro titular do interesse em contradizer tenha passado a ser o proprietário/ promitente comprador, uma vez que a legitimidade processual está há muito definida, é manifesto que a utilidade prática da presente acção sempre seria abalada pelo facto de aquele promitente vendedor não ficar vinculado pelo caso julgado que se formasse, como consequência da eventual procedência do pedido aqui formulado. E daí que se imponha particular cuidado e rigor na aferição dos essenciais requisitos da posse por parte do reconvinte, só deixando estabelecido o seu direito à revelia do promitente vendedor quando nenhuma dúvida razoável se possa suscitar sobre o preenchimento efectivo dos pressupostos da situação possessória que, nos termos legais, conduz à pretendida aquisição originária da propriedade.

Como vem sendo reiteradamente considerado na jurisprudência, a qualificação da natureza da posse do beneficiário da tradição da coisa, no âmbito de um contrato promessa de compra e venda de imóvel, depende fundamentalmente de uma ponderação casuística que valore adequadamente os termos e o conteúdo do negócio, as circunstâncias que o rodearam e as vicissitudes que se seguiram à sua celebração, podendo efectivamente verificar-se situações – seguramente excepcionais – em que a «traditio» não teve originariamente como pressuposto subjacente à vontade dos contraentes a realização do contrato definitivo ou em que, supervenientemente, ocorrem vicissitudes na vida da relação contratual determinantes de uma radical mudança no título que tinha justificado a inicial «entrega das chaves», a título precário e limitado, ao promitente comprador.
Impõe-se, pois, verificar se ocorrem no caso dos autos circunstâncias excepcionais que permitam considerar justificadamente que a específica situação dos promitentes compradores, ora reconvintes, ultrapassava claramente o âmbito da mera detenção do imóvel por eles usado e fruído como habitação.

Como se afirma, por exemplo, no Ac. de 9/9/08, proferido pelo STJ no P. 08A1988:

A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – art. 1251 do C. C.
Na análise de uma situação de posse distinguem-se dois momentos : um elemento material ( corpus ), que se identifica com os actos materiais de detenção e fruição praticados com o exercício de certos poderes sobre a coisa ; um elemento psicológico ( animus ) que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados .
A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação : é o que se chama a usucapião – art. 1287 do C.C.
A verificação da usucapião depende de dois elementos : da posse e do decurso de certo período de tempo, variável conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa .
Para conduzir à usucapião, a posse tem de revestir sempre duas características : ser pública e pacífica .
Os restantes caracteres ( boa ou má fé, titulada ou não titulada) influem apenas no prazo .
A qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio .
Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela ( Código Civil Anotado, Vol. II, 2ª ed., págs 6/7 ) , “ o contrato promessa de compra e venda não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador .
O contrato promessa, com efeito, não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente comprador . Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário .
São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente comprador preenche, excepcionalmente, todos os requisitos de uma verdadeira posse.
Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo ( a fim de, v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício do direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade .
Tais actos não são realizados em nome do promitente vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real .
O promitente comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse“ .

Trata-se de posição que tem sido sufragada pela doutrina ( Antunes varela, R.L.J. Ano 124º- 348 ; Vaz Serra, R.L.J. Ano 109º-314 e Ano 114º-20, Calvão da Silva, BMJ nº 349-86, nota 55), bem como pela jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal de Justiça (Ac. do S.T.J. de 26-5-94, Col. Ac. S.T.J., II, 2º, 118; Ac. S.T.J. de
19-11-96, III, 3º, 96; Ac. S.T.J. de 11-3-99, Col. Ac. S.T.J., VII, 1º, 137; Ac. S.T.J. de 23-5-06, Col. Ac. S.T.J., XIV, 2º, 97, este também relatado pelo ora relator ) .
Pois bem .
No nosso caso concreto, apurou-se ter sido celebrado, em 24-4-1964, um contrato promessa, através do qual os réus CC, FF e CC prometeram vender ao autor AA e este prometeu comprar àqueles, o segundo andar esquerdo do referido prédio, com uma arrecadação, pelo preço de 540.000$00.
Como sinal e princípio de pagamento, o AA entregou aos réus, no acto da assinatura do contrato promessa a quantia de 200.000$00.
Ficou acordado que o AA efectuaria os seguintes reforços de sinal : 150.000$00 em fim de Julho de 1964; 150.000$00 aquando da efectivação do registo provisório a seu favor ; 40.000$00 no acto da escritura de compra e venda .
Todavia, o AA apenas veio a pagar o primeiro reforço do sinal, no indicado montante de 150.000$00 .
Também ficou estabelecido que a escritura de compra e venda se realizaria no dia, hora e local em que os promitentes acordassem ou, na ausência de acordo, em cartório notarial de Lisboa, na data e hora indicados pelo AA, mas nunca antes dos réus CC, II e FF estarem munidos da licença de habitabilidade do prédio e demais documentação exigível .
Em 30-5-64, os réus CC, II e FF entregaram ao autor as chaves do indicado segundo andar esquerdo e da arrecadação, permitindo que este fosse para lá viver com a família e passasse a usar a arrecadação, tudo sem qualquer contrapartida monetária .
Os promitentes vendedores comprometeram-se a pagar a sisa, os encargos relativos ao prédio existentes até à escritura de venda e ainda as despesas desta.
Em auto de conciliação lavrado em 7-4-70, que pôs termo a uma acção, os réus CC, II e FF comprometeram-se a promover, no prazo de 30 dias, as diligências necessárias para a obtenção das licenças de habitação indispensáveis para a outorga das escrituras definitivas de venda dos andares do prédio, às quais se devia proceder imediatamente a seguir à constituição do regime de propriedade horizontal .
Aconteceu, porém, que os réus não registaram o prédio em seu nome, não instituíram o regime da propriedade horizontal, não pagaram a sisa, nem requereram para o edifício a licença de utilização, habitação e ocupação .
Os autores também não chegaram a pagar a restante parte do preço em dívida, no valor de 190.000$00, só tendo entregue os mencionados 350.000$00.
A escritura de compra e venda nunca foi outorgada, mas a verdade é que o contrato promessa nunca foi resolvido por qualquer das partes .
Assim sendo, é bom de ver que não resultaram provadas quaisquer daquelas circunstâncias excepcionais que permitam concluir que possa existir o animus da posse, por parte do promitente comprador, em resultado da tradição da coisa que lhe foi facultada pelos promitentes vendedores, na sequência da celebração do contrato promessa de compra e venda .
Com efeito, nem a coisa foi entregue ao promitente comprador como se sua fosse já, nem este nesse estado de espírito ( de proprietário ) podia praticar sobre a coisa entregue actos materiais correspondentes ao direito de propriedade, pois era propósito das partes celebrar o contrato definitivo de compra e venda, quando foi outorgado o contrato promessa, sendo certo, por outro lado, que o preço não estava pago na totalidade e que não houve pagamento da sisa .
A posse do promitente comprador foi exercida com referência à traditio da coisa decorrente do contrato promessa, por cujo cumprimento os próprios autores chegaram a reclamar em 2-8-66, quando notificaram os promitentes vendedores para comparecerem em cartório notarial no dia 15-12-66, a fim de outorgarem a escritura de compra e venda .

Não se vislumbram, assim, circunstâncias excepcionais que justifiquem a consagração de uma excepção à regra da qualidade de mero detentor do promitente comprador .
Já vimos que o contrato promessa celebrado não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente comprador .
Com a entrega do andar e da arrecadação, antes da outorga da escritura de compra e venda do contrato prometido, o promitente comprador adquiriu o corpus possessório, mas não adquiriu o animus, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário .
Ao conferirem a posse precária aos recorridos, sem dúvida que os recorrentes queriam autorizar que aqueles usassem a arrecadação e fossem habitar, com a sua família, para o andar prometido vender, que lá preparassem e tomassem as suas refeições, que ali dormissem, recebessem a correspondência, amigos e conhecidos e lá organizassem a sua vida .
Corolário dessa autorização seria também que os recorridos contratassem os fornecimentos de água, electricidade e gás, indispensáveis ao uso e fruição do andar consentido pelos promitentes vendedores, e suportassem os custos dos respectivos fornecimentos .
E, tendo sido celebrado contrato promessa de compra e venda, que definiu as prestações recíprocas das partes, nada se pode concluir do facto de não ser exigida qualquer contrapartida pela utilização do andar .
Relativamente ao facto de os recorridos terem comparticipado em outras despesas do andar e até do prédio, há que referir que nada mais se apurou para além dessa comparticipação, designadamente quanto a saber a que título foi feita, em que medida e porque razão .
Tais actos traduzem o corpus da posse, que os recorrentes não contestam, sem que tenham a virtualidade de reflectir, necessariamente e de forma inequívoca, quanto aos mesmos recorrentes, o animus possidendi .
A tradição da coisa, realizada a favor do promitente comprador, no caso de promessa de compra e venda sinalizada, não investe o promitente comprador na qualidade de verdadeiro possuidor da mesma coisa .
Os poderes que o promitente comprador exerce de facto sobre a coisa, sabendo que ela ainda não foi comprada, nem paga a totalidade do preço, não são os correspondentes ao direito do proprietário adquirente, mas os correspondentes ao direito de crédito do promitente adquirente perante o promitente alienante .
Por outro lado, cumpre ainda salientar que, embora se tivesse apurado que, desde 30-5-64, o autor se passou a julgar dono do andar e da arrecadação, o certo é que não basta tal estado psicológico de convicção interior, nem o facto do mesmo, desde 1966, ter comparticipado em certas despesas do andar e do prédio ou de ter pago a contribuição autárquica, a partir de 1974, pois não foi feita prova da inversão do título da posse em que aquele se encontrava, que teria de ser efectuada por oposição aos promitentes vendedores e levada ao conhecimento destes, em virtude da posse em nome próprio não ter sido originariamente conferida aos autores .
Nos termos do art. 1265 do C.C., a inversão do título da posse só pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.

Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela ( Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed, pág. 30 ) “torna-se necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía .
Nesse sentido pode dizer-se que ainda se mantém a regra “nemo sibi causam possessionis mutare potest “.
Não basta sequer que a detenção se prolongue para além do termo do título ( depósito, mandato, usufruto a termo, etc) que lhe servia de base .
O detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa cujo nome possuía (quer judicial, quer extrajudicialmente ) a sua intenção de actuar como titular do direito “.
Para ser eficaz, a inversão da posse tem de traduzir-se “em actos positivos ( materiais ou jurídicos ) inequívocos ( reveladores que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que até então considerava pertencente a outrem ) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem ( Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, pág. 98) .
Ora, desde a outorga do ajuizado contrato promessa, os autores tiveram muitas oportunidades para inverterem o título da posse precária em que estavam investidos, levando ao conhecimento dos réus ( ou dos seus herdeiros ), quer judicial ou extrajudicialmente, a sua intenção de actuar como titulares do direito de propriedade sobre os mencionados andar e arrecadação .
Mas nunca o fizeram, designadamente quando foram notificados pela ré EE, em 25-7-79, para lhe enviarem o contrato promessa e para esclarecerem se estavam na disposição de outorgar a respectiva escritura de compra e venda .
E apenas se provou que os réus sempre souberam e nunca se opuseram à utilização que os autores faziam do andar, por eles expressamente consentida mediante a entrega das chaves, na sequência da celebração do contrato promessa, nada se tendo apurado quanto ao conhecimento, pelos réus, da mudança da convicção pessoal dos autores, nem quanto ao conhecimento do pagamento dos aludidos encargos que estes passaram a efectuar.

7. No caso dos autos - e perante a matéria factual apurada pelas instâncias - não se verificam as referidas circunstâncias excepcionais que pudessem reconfigurar ou alterar a normal situação de detenção dos promitentes vendedores , convertendo-a em verdadeira e própria posse. Assim:

- no momento da celebração do contrato promessa, estava manifestamente subjacente à intenção das partes a celebração do contrato definitivo, estabelecendo-se, aliás, o prazo de 1 ano para a respectiva realização, visando tal prazo ultrapassar as dificuldades resultantes do modo deficiente como tinha sido adquirido o direito do promitente vendedor, através de escritura que titulava uma situação de compropriedade;

- o preço convencionado nunca foi integralmente pago, uma vez que a fracção residual do valor global estipulado apenas deveria ser paga no acto da escritura, que nunca se realizou;

- a tradição da coisa limitou-se, no caso, a consentir que se mantivesse a habitação no local dos promitentes compradores , uma vez que estes já aí residiam na qualidade de arrendatários, desde 1976, ficando tal situação locatícia precludida e absorvida pela expectativa de futura aquisição da propriedade, levando à cessação do pagamento da renda;

- a mera circunstância de os reconvintes habitarem e fazerem da casa um uso normal, sendo tal uso conhecido dos promitentes vendedores, que concederam a «traditio», é obviamente irrelevante para operar a inversão do título da posse;

- igualmente irrelevante é a circunstância de, em 1991, terem pago a contribuição autárquica, de cujo título, emitido pela Administração fiscal, constava a identidade de outro devedor desse tributo;

- tal como não constitui base factual suficiente para a inversão do título da posse a mera circunstância de o público em geral inferir do uso continuado do prédio um direito de propriedade por parte dos reconvintes; ou a mera circunstância de estes terem adquirido uma simples convicção psicológica de que seriam eles os proprietários, sem que tal convencimento tivesse sido expressado e comunicado à contraparte;

- deste modo, da factualidade apurada a única que poderia ter algum relevo para o preenchimento da figura a inversão do título seria a realização de obras que tivessem alterado ou melhorado estrutural ou substancialmente o local utilizado pelos reconvintes como sua habitação, por as mesmas transcenderem claramente -e de forma inquestionável - o plano da utilização e fruição de um imóvel no quadro de um simples direito pessoal de gozo, demonstrando-se a data em que tiveram lugar e o conhecimento efectivo da sua realização e dimensão pelo promitente vendedor.

Ora, como é evidente, a matéria de facto fixada é manifestamente insuficiente para este efeito, já que se ignora a real dimensão das benfeitorias e obras de conservação que os reconvintes alegam ter realizado, desconhecendo-se totalmente a data em que as mesmas teriam tido lugar ( sendo evidente que só a partir dessa data se iniciaria uma verdadeira situação possessória) e se o promitente vendedor delas teve efectivo conhecimento, em termos de poder razoavelmente inferir uma oposição séria à sua propriedade sobre o prédio.


E, deste modo, não estando demonstrada uma situação de inversão do título da posse, subsumível ao art. 1265º do CC, tem naturalmente de improceder o pedido reconvencional de reconhecimento do direito de propriedade.

8. Nestes termos e pelos fundamentos apontados, concede-se, em parte, provimento à revista, e, em consequência:
a) revoga-se o acórdão recorrido, na parte em que julgou procedente a acção, por se julgar antes procedente o pedido de impugnação de escritura notarial de justificação, deduzido pelos RR, tendo-se por ilidida a presunção emergente do registo efectuado e ordenando-se consequencialmente o cancelamento da inscrição nº --.--- , a fls. --- do livro G--- a favor dos AA, obtida com base naquela escritura;
b) confirma-se o acórdão recorrido, na parte em que julgou improcedente o pedido reconvencional de reconhecimento do direito de propriedade .
Custas por recorrentes e recorridos, de acordo com o respectivo decaimento.

Lisboa, 12 de Julho de 2011

Lopes do Rego (Relator)

Távora Victor
Sérgio Poças