Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A3673
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO MONTEIRO
Nº do Documento: SJ200302110036731
Data do Acordão: 02/11/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 2687/01
Data: 04/11/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I - A e mulher B intentaram acção com processo ordinário contra C e D, pedindo que se declare serem os autores os proprietários da fracção que identificam e de bens aí existentes, declarando-se nulo o contrato verbal celebrado entre autor e réus, sendo estes condenados a pagar uma indemnização.

Alegaram que acordaram verbalmente com os réus o trespasse de um estabelecimento que lhes pertencia, ocupando aqueles desde logo o local, que abandonaram posteriormente sem que celebrassem a escritura respectiva, pagassem a renda convencionada ou entregassem as chaves.

Contestando, a ré C sustentou que o estabelecimento não foi posto em funcionamento por dificuldades surgidas com a Câmara Municipal, sendo certo que nunca as rés foram interpeladas para outorgar a escritura de trespasse e de arrendamento. Em reconvenção pede que os autores sejam condenados a pagar-lhe 5.000.000$00 por benfeitorias realizadas.

A ré D, por sua vez, defende que foi estranha às negociações que terão havido entre a autora e a outra ré, nem nunca foi detentora do estabelecimento, não tendo responsabilidade por qualquer retenção.

O processo prosseguiu termos, tendo tido lugar audiência de discussão e julgamento e sendo proferida sentença que absolveu a ré De decidiu pela procedência parcial da acção relativamente à outra ré.

Apelaram os autores.

O Tribunal da Relação confirmou o decidido.

Inconformada, recorre a ré C para este Tribunal.

Formula as seguintes conclusões:
- No presente caso sempre esteve em causa a classificação das benfeitorias levadas a cabo pela ora recorrente, jamais estando em causa a entrega da loja pese embora o facto de a recorrente pretender ser ressarcida (indemnizada) pelo valor dos custos das benfeitorias;
- As benfeitorias realizadas eram absolutamente necessárias pois, só assim, o estabelecimento poderia vir a ser rentável;
- Os ora recorridos reconheceram que as benfeitorias realizadas lhes permitiriam obter um trespasse valioso - veja-se o requerimento de interposição de recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora onde, a dado passo, os ora recorridos afirmam, no ponto 4, que "os autores têm uma pessoa interessada no trespasse do estabelecimento pelo valor de 5.000 contos e uma renda de 80.000$00 por mês", sendo certo que já no artigo 4º da petição inicial anunciavam que obteriam uma renda mensal de 60.000$00 quando a renda acordada com a ora recorrente era de 28.000$00 mensais;
- A ora recorrente incorporou no estabelecimento benfeitorias necessárias e úteis que atingiram um valor superior a 5.000 contos, a preços de 1993;
- O Tribunal de 1ª instância não classificou as benfeitorias realizadas de molde a que todas as efectuadas fossem indemnizáveis;
- A verdade é que todas as obras e equipamentos foram colocados no local, melhorando-o, e sem aplicabilidade em qualquer outro local;
- Caso as obras e benfeitorias não fossem realizadas cairia a ora recorrente na situação em que ficou o sobrinho dos ora recorridos que se viu obrigado a fechar e abandonar o estabelecimento;
- O Tribunal da 1ª instância fez errada interpretação e aplicação da lei, violando o disposto no artigo 216º do CC;
- Foi, pois, sob recurso dos ora recorridos, a sentença do Tribunal da 1ª instância submetida à censura do Tribunal da Relação de Évora;
- É certo que a ora recorrente não interpôs recurso da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância;
- Contudo, nas suas contra-alegações, requereu a reapreciação da questão por aplicação do nº 2 do artigo 684ºA do CPC;
- Ao fazer uso daquela norma pretendeu a recorrente e então recorrida, impugnar a decisão proferida, a título subsidiário, e indicou os pontos da matéria de facto sobre os quais a decisão deveria recair;
- Apesar disso, entende a recorrente, o Tribunal da Relação de Évora apreciou mas não decidiu, limitando-se a julgar improcedente o recurso de apelação e a confirmar a sentença recorrida, não ampliando o âmbito do recurso;
- O que permite afirmar que o Tribunal da Relação de Évora violou, por omissão, o artigo 684ºA do CPC, violação que implica nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, conforme preceitua o artigo 668º nº 1 do CPC;
- De resto, como é sabido que o Tribunal superior reestuda questões já resolvidas pelo Tribunal "a quo" e não aprecia questões novas;
- Contudo, a regra que decorre dos artigos 676º nº 1 e 684º nº 3 do CPC comporta duas excepções, a saber: 1ª situações em que a lei expressamente determina o contrário e, 2ª situações em que está em causa matéria do conhecimento oficioso;
- No mínimo, o Tribunal da Relação de Évora, deveria ter feito correctamente, a aplicação do artigo 216º do CC;
- E classificar as benfeitorias feitas como absolutamente necessárias pois só com elas se evitou a deterioração do estabelecimento onde foram incorporadas;
- E foram também úteis pois lhe aumentaram o valor;
- Por outro lado, não é de desprezar o erro de julgamento verificado, a nosso ver, o que justifica o conhecimento oficioso por parte do Tribunal superior;
- Em suma, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora está ferido de nulidade por infracção da alínea d) do nº 1 do artigo 668º do CPC e, até, por infracção da alínea c) da mesma norma;
- Requer, pois, a recorrente que seja aplicada definitivamente o regime jurídico que se julgue o adequado conforme previsto no nº 1 do artigo 729º do CPC, ordenando-se, se assim se vier a entender, a ampliação da decisão de facto, de acordo com o nº 3 da mesma norma, procedendo-se a novo julgamento, nos termos previstos no artigo 730º do mesmo normativo, ou reformando o acórdão por força das nulidades invocadas nos termos do artigo 731º do CPC.

Contra-alegando, os recorridos defendem que o recurso não deve ser admitido e ainda que a decisão deve ser mantida.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Vem dado como provado:

Na sequência de escritura pública lavrada no dia 16.06.1977 no 1º Cartório Notarial de Sesimbra, os autores fizeram inscrever a seu favor na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra a aquisição por compra, da fracção autónoma B, correspondente ao rés-do-chão do nº 2 do prédio urbano sito no Largo da Torrinha (actualmente Largo Infante D. Henrique, nº ...), inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Santiago, sob o nº 1580 a fls. 73 do Livro B-5;

Na referida fracção os autores tinham instalado e exploravam um "snack bar";

A ré C mantém consigo a chave do estabelecimento;

Nunca os autores receberam quaisquer quantias que reclamam das rés a título de rendas do estabelecimento;

A autora B e a ré C acordaram há três anos, verbalmente, em transmitirem a esta tal "snack bar" por via de trespasse pelo valor de 3.500.000$00 e com uma renda de, pelo menos 26.000$00 mensais e, ainda, que a escritura seria celebrada mais tarde;

Na perspectiva da celebração dessa escritura a ré C ocupou o referido estabelecimento, iniciando então a execução de algumas obras de remodelação;

Ainda sem as mesmas obras haverem sido concluídas, o "snack bar" tem-se mantido fechado;

No referido "snack bar" os autores tinham: 12 cadeiras de plástico; 4 mesas em madeira e ferro; 4 mesas de plástico; 8 cadeiras de plástico e que encontravam afectas ao uso do estabelecimento;

Em data não determinada, mas anterior à propositura da acção, os autores solicitaram às rés a entrega da loja e os bens referidos;

A ré C recusou-se a entregar a loja e os bens ali deixados;

As obras referidas implicaram a substituição das cadeiras e as mesas aludidas;

Tais obras foram conhecidas dos autores quando da sua execução, nos seguintes termos:
- Colocação de uma porta na rua e de um balcão em madeira;
- Alteração da casa de banho com colocação de um arco à entrada desta e de um outro na parte superior da entrada para a cozinha;
- Colocação de um banco corrido com encosto em madeira aparafusado na parede e de canteiros na rua;

O "snack bar" não entrou em funcionamento;

O equipamento que se encontrava no local à data da sua ocupação pela ré C consistia nas mesas e cadeiras referidas e ainda de algumas prateleiras de vidro, espelhos e respectivos suportes;

As obras efectuadas e referidas e o equipamento ali colocado pela ré C visavam a maior rentabilidade do "snack bar", pretendendo-se a captação de um certo tipo de clientela mais seleccionada;

A ré C efectuou as obras de remodelação e adquiriu seguinte equipamento cujos valores não foram apurados mas que não são superiores aos que se indicam:
- Um frigorífico (200.000$00);
- Outros electrodomésticos, entre eles uma picadora (30.000$00);
- Aparelhagem de ar condicionado (600.000$00);
- Máquina registadora (70.000$00);
- Projectores e apliques de latão, campainha e respectivo trabalho de electricidade (190.000$00);
- Forragem a mogno, incluindo o balcão, banco, um móvel colocado em cima do balcão, porta de madeira corrida com cerca de 3m, móvel do lavatório, armário decorativo do lado esquerdo da entrada, duas portas da casa de banho, entrada para o balcão e trabalho de carpintaria (2.300.000$00);
- Fornecimento e colocação do chão de tijoleira (150.000$00);
- Lavatório (15.000$00);
- Móveis de cozinha em mármore e madeira (60.000$00);
- Placa em mármore de Estremoz para balcão (60.000$00);
- Pintura e respectivo material (150.000$00);
- Mão-de-obra de pedreiro (260.000$00);
- Ferragens-batentes das portas (50.000$00);
- Candeeiro de pé (20.000$00);
- Vitral para a bandeira da porta (50.000$00);
- Fechadura da porta de entrada (25.000$00);
- Tecidos e estofador (35.000$00);

A ré C pagou à autora 200.000$00 como sinal;

O café dos autores desde meses antes das negociações com a ré C estava fechado, sendo um sobrinho daqueles quem o explorava e quem o equipou, com excepção dos bens referidos anteriormente, tendo então transferido para outro local de "café" que abriu na Rua D. Dinis em Sesimbra, todo esse equipamento, incluindo pratos, talheres, copos e garrafas de bebidas, com excepção daqueles bens referidos anteriormente;

Antes das obras, a casa tinha pavimento em mosaico e estava pintada quando da entrega do estabelecimento à ré C, encontrando-se nessa altura nas condições fotografadas;

Os autores, pela privação do estabelecimento perdem por mês um valor de rendimento de, pelo menos, 26.000$00.

III - Suscita-se a questão prévia de saber se este Tribunal deve ou não conhecer do objecto do recurso.

Como é sabido, a decisão que admita o recurso, fixe a sua espécie ou determine o efeito que lhe compete não vincula o Tribunal superior (artigo 687º nº 4 do C. Processo Civil).

Por outro lado, o despacho do relator é susceptível de modificação, por iniciativa do próprio, por invocação das partes ou dos adjuntos, como resulta, além do mais, do disposto nos artigos 704º, 702º e 726º, todos do C. Processo Civil.

Em concreto, tendo sido interposto recurso, os recorridos vieram alegar que o mesmo deveria ser rejeitado. A recorrente, em sede de alegações, defendeu a sua posição. Está, pois, respeitado o princípio do contraditório, já que as duas partes se pronunciaram.

Vejamos então a problemática em causa, uma vez que nenhum obstáculo formal impede tal análise.

Intentada a presente acção, foi a mesma julgada parcialmente procedente.

Recorreram os autores, conformando-se as rés.

O Tribunal da Relação confirmou integralmente a sentença recorrida. Uma das rés veio então interpor recurso.

Os recursos, exceptuada a oposição de terceiros, só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal, tenha ficado vencido (artigo 680º nº 1 do CP Civil).

No que respeita à legitimidade para recorrer, segundo o critério material que a lei parece consagrar, tem legitimidade a parte para a qual a decisão for desfavorável, no todo ou em parte, independentemente dos pedidos formulados e do seu comportamento na instância recorrida.

Ora, o acórdão recorrido em nada foi desfavorável à ré recorrente, na medida em que confirmou por inteiro a decisão da 1ª instância com a qual a mesma ré se conformou.

Sustenta, porém, a recorrente que embora não tenha interposto recurso da sentença, nas suas contra-alegações "requereu a reapreciação da questão por aplicação do nº 2 do artigo 684ºA do CPC", pretendendo impugnar a decisão recorrida a título subsidiário.

O referido artigo permite efectivamente a interposição de recurso subsidiário, estipulando no seu nº 2 que pode ainda o recorrido, na respectiva alegação, e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença ou impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas.

O recorrido pode invocar a nulidade da decisão e requerer a apreciação dessa nulidade para o caso de o recurso vir a ser considerado procedente e de a decisão ser revogada.

A apreciação está dependente de o Tribunal julgar procedente o recurso interposto pelo autor, como conclui o Prof. Teixeira de Sousa em exemplos citados em "Estudos sobre o Novo Processo Civil", 2ª edição, pág. 470/471.

No recurso subsidiário a apreciação é condicionada pelo recorrente ao sentido do julgamento de um outro recurso.

Tendo o recurso interposto pelo autor sido julgado totalmente improcedente, não haveria que apreciar o recurso subsidiário.

A decisão da 1ª instância transitou assim em julgado relativamente à ré, que não a impugnou.

Acresce que não tem razão de ser a tese defendida pela recorrente, por dois motivos.

Primeiro porque os pontos determinados da matéria de facto que indica, em obediência ao nº 2 do artigo 684ºA referido, são "o conteúdo do artigo 35º da contestação" que, segundo defendeu, deve ser reapreciado.

Ora, em tal artigo diz que protesta juntar documentos comprovativos de aquisição de equipamento que depois discrimina.

Não se vê onde possa existir nulidade da sentença por não terem sido juntos tais documentos, que ela recorrente deveria juntar.

Por outro lado, contrariamente ao que alega, apurar se existem benfeitorias e classificá-las não é, obviamente, matéria de conhecimento oficioso, não impendendo por isso sobre o Tribunal a obrigação de conhecer tal matéria.

Não se pode assim tomar conhecimento do recurso.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 11 de Fevereiro de 2003.

Pinto Monteiro

Barros Caldeira (dispensei o visto)

Reis Figueira