Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B1152
Nº Convencional: JSTJ00000328
Relator: ABEL FREIRE
Descritores: SOCIEDADES COMERCIAIS
ADMINISTRADOR
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
Nº do Documento: SJ200205230011522
Data do Acordão: 05/23/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 1236/01
Data: 11/05/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR COM - SOC COMERCIAIS.
Legislação Nacional: CSC86 ARTIGO 64 ARTIGO 77 ARTIGO 79 ARTIGO 397 N2 ARTIGO 405 ARTIGO 408 ARTIGO 409.
DL 82/98 DE 1998/04/02 ARTIGO 1 ARTIGO 5 N1.
CCIV66 ARTIGO 483.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1997/11/25 IN CJSTJ ANOV TIII PAG141.
Sumário : I - Os Administradores agem nas relações externas como mandatários da representada, sem prejuízo de a administração funcionar como órgão da sociedade na deliberação e gestão dos actos a praticar.
II - O mandato conferido aos Administradores tem como fim primeiro a representação da sociedade ("no interesse da sociedade") e como referência o interesse dos sócios e dos trabalhadores, pelo que o seu dever de diligência, a apreciar em cada caso concreto, se situa acima da exigência prevista para o bónus paterfamilias.
III - A responsabilidade do gerente para com os sócios e terceiros configura-se como uma responsabilidade delitual, aplicando-se o disposto no art. 483 cc e só nestes casos é que o sócio tem acção individual relativamente aos Administradores de forma directa - os sócios das sociedades anónimas não podem exercer acção individual directa contra os Administradores quando não haja a possibilidade de usar da acção ut universi ou ut singu.
IV - A teoria da desconsideração ou ficção da pessoa colectiva não é aceite no nosso Direito.
Decisão Texto Integral: Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça:

A, residente no Porto, intentou a presente acção com processo ordinário contra:
1 - B, com sede no Porto,
2 - C, com sede no Porto,
3 - D, residente em Águas Santas, Maia,
4 - E, viúva, residente no Porto (na qualidade de herdeira de F),
5 - G, residente no Porto, H, e suas irmãs I e J (estes quatro últimos na qualidade de herdeiros de L), os primeiros residentes profissionalmente na Rua do Almada no Porto e a última no lugar de Coreixas, Penafiel, pedindo que se declare nulo o contrato de trespasse referido na petição inicial, devendo os 3°, 4. e 5°s RR. ser condenados a pagar, solidariamente, ao A. a quantia de 2500000 escudos, acrescida de juros vincendos desde a citação.
Alega, para tanto, que é sócio da 1. R. desde 1943 e seu gerente até 1962, nessa altura com uma participação social de cerca de 35%, sendo, desde 1968, ano da sua transformação em anónima - detentor de 40 acções nominativas de 1000 escudos cada.
A 1. R. gozava de grande prestígio e tinha óptimas instalações no centro da cidade do Porto, que foram trespassadas à 2. R., sem o conhecimento do A. e pelo preço muito inferior, 2350000 escudos, quando é certo que o valor comercial da época daquele estabelecimento nunca seria inferior a 75000 contos. Um tal negócio foi manifestamente lesivo para os interesses do A., que, assim, nada recebeu, tendo beneficiado os 3°, 4° e 5° RR., que faziam parte das duas sociedades (1.ª e 2. RR). e que actuaram de forma concertada por forma a valorizar substancialmente o seu património, deixando de fora o A., assim desvalorizando por completo a sua participação social.
Contestaram os RR. afirmando que a 1. R. se encontrava em estado de degradação económica e financeira e a situação líquida negativa. Os sócios da 2.ª R. adquiriram 96,666% do seu capital, tendo deliberado, na assembleia geral de 15/12/71, ceder a exploração do seu estabelecimento à 2. R., procedendo posteriormente ao trespasse do estabelecimento, numa normal e quase inevitável operação, antes que o senhorio pedisse a resolução do contrato de arrendamento por falta de ocupação. Os administradores da trespassante agiram com a noção de que estavam a praticar um útil acto de gestão, da exclusiva competência do órgão colegial que integravam e que correspondeu, exactamente, à vontade real dos intervenientes na deliberação e no negócio, nunca tendo tido a intenção de prejudicar o A., nem retiraram qualquer proveito individual e directo do negócio. Quanto ao valor do trespasse, contestam o valor indicado pelo A..
Replicou o A. para mantendo o já alegado na petição inicial.
Proferida sentença em primeira instância, foram absolvidas as rés B e C e condenados os réus D, E, G, H, I e J (estes cinco últimos na qualidade em que são demandados) a pagar ao autor, solidariamente, a quantia de 1900000 escudos, acrescida de juros legais desde a citação e até integral pagamento.
Interposto recurso foi julgada procedente a apelação na parte em que condenou os réus D, E, G, H e J na parte em que foram condenados a pagar ao autor a quantia de 1900000 escudos e juros.
Veio o autor interpor recurso do assim decidido, concluindo, em resumo:
Os D, F e L, deliberaram como administradores e sócios da primeira ré e simultaneamente como sócios da 2.ª ré, um trespasse de estabelecimento daquela, pelo preço de 2350000 escudos, livre de qualquer passivo;
O valor comercial do estabelecimento era de 57375000 escudos;
Tal negócio acarretou prejuízos para o autor, que era sócio da primeira ré com a participação de 3,333% do capital da mesma.
Com a realização daquele negócio foi prejudicado o autor, que só tinha interesses na primeira ré por terem agido com abuso de direito.
Ao mesmo resultado se chega por interpretação extensiva do art. 79 do CSC.
E ainda o disposto no art. 64 do CSC.
O acórdão recorrido violou os art.s 79 do CSC, 334, 483 e 562 do C. Civil e 64 do CSC.
Contra-alegaram os réus, sustentando que deve manter-se a decisão recorrida.
Face às alegações do autor a questão posta reside no arbitramento da indemnização concedida na primeira instância e se deve ser mantida, atentos os normativos legais que invoca.
Factos.
1 - A 1.ª R. é uma sociedade comercial com o capital social de um milhão e duzentos mil escudos, e matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Porto sob o n° 3203.
2 - O A. é sócio da referida sociedade desde 1943, e, desde essa data também seu gerente efectivo até 1962 e, nessa altura, com uma participação social de cerca de 35%, sendo desde 1968 - ano da sua transformação em anónima - detentor de 40 acções nominativas do valor nominativo de 1000 escudos cada, o que corresponde a uma participação de 3,333% do capital da referida sociedade.
3 - A 1.ª R. tem como objecto social a comercialização por grosso de papéis e artigos de papelaria.
4 - Em 1987 a administração da 1.ª R. requereu a suspensão da sua actividade junto da Inspecção-Geral de Finanças, o que foi deferido por despacho de 28/11/87 e já relativamente ao exercício de 1986.
5 - Teor das cartas juntas a fol.s 23, 24, 25 e 26 dos autos que aqui dou por reproduzidas para todos os efeitos.
6 - Em reunião do conselho de administração da 1.ª R. de 11/11/1988, foi deliberado proceder ao trespasse das suas instalações para a 2.ª R., sendo nessa altura o conselho de administração integrado pelos Srs. D, F e L, estes dois últimos entretanto já falecidos.
7- Tendo estes votado por unanimidade o trespasse do estabelecimento da 1.ª R., pelo preço global de 2350000 escudos, à 2.ª R.
8 - Na mesma data, a Assembleia Geral da 2.ª R. deliberou aquele mesmo negócio, figurando nessa Assembleia também como sócios os administradores da 1.ª R. identificados em 6), que também aqui votaram favoravelmente a dita deliberação para o trespasse.
9 - As actas de ambas as reuniões, que tiveram lugar no mesmo dia, encontram-se redigidas pela mesma pessoa.
10 - O sócio - gerente da 2.ª R. trespassária e outorgante na escritura de trespasse como seu representante, Sr. M, é igualmente accionista da trespassante 1. R. e até seu actual administrador.
11 - As instalações da 1.ª R. ocupavam espaço de cerca de 1200 m2, pagando a 1.ª R. 80000 escudos de renda mensal.
12 - O trespasse foi efectuado livre de qualquer passivo.
13 - A 1.ª R. gozou, ao longo de várias décadas, de um enorme prestígio no mercado, de todo o país e nas então colónias portuguesas.
14 - A que não ficaram alheias cobiçadas instalações, de elevada área e posicionadas em excelente zona comercial da cidade.
15 - Apenas no início de Junho de 1994, em passagem frente à sede e instalações da 1. R., o A. verificou que a tabuleta exterior publicitando o nome da R. já lá não se encontrava, antes deparando com uma outra referente à 2.ª R.
16- Tais instalações distribuíam-se em prédio de 3 pisos, dispondo de frente para a Rua .... de 113 m com fundo no r/c de mais de 40m e nos 1.º e 2° andares de 30m cada.
17 - Com entradas várias, uma das quais, para veículos de carga.
18 - Em excelente artéria central da cidade do Porto, com várias zonas de aparcamento próximos.
19 - E em zona comercial e de serviços.
20 - E com um parque de máquinas de impressão e manufactura de papel marcas registadas - nomeadamente «Emegê Papeis», «Papel Almaço», papéis «Vitória» e «Triunfo» -, equipamentos para armazenagem, tudo integrando o estabelecimento.
21 - O valor comercial da época rondaria os 57375 contos.
22 - Este negócio acarretou para o A. prejuízos.
23 - Logo após a transformação da 1.ª R. em sociedade anónima, e quando a sua situação líquida já era negativa, os sócios da sua congénere, 2.ª R., adquiriram 96,666% do seu capital.
24 - Nas assembleias gerais da 1.ª R. de 31/03/73 e 30/03/74, a administração admitia como inevitáveis, ou a dissolução ou a fusão da empresa.
25 - O que foi discutido e tratado em assembleias gerais, em que o A. não esteve presente.
26 - E nos períodos entre assembleias gerais, o A. nunca apareceu para se inteirar da vida da empresa, do andamento dos seus negócios, da existância de lucros ou prejuízos, do futuro do seu pessoal.
27- Todo o pessoal da 1.ª R. passou para a 2.ª R..
28 - Após o trespasse, foram feitas obras na construção de uma galeria e de beneficiação na fachada e nas infra-estruturas de electricidade de águas e de saneamento.
29 - A que acresceram obras de reparação e conservação, como conserto e colocação de portas e janelas pintura interior e exterior .
30 - À data da deliberação do trespasse a situação líquida da 1.ª R. continuava a ser negativa.
O direito.
Indemnização.
Abuso de direito.
Como se vê da sentença de primeira instância entendeu-se que da reunião em assembleia geral do conselho de administração da ré B, de 11-11-1988, de trespassar o estabelecimento, situado na Rua ...., Porto, para a firma C, deliberação que foi efectuada pelos administradores D (3.º réu), F, já falecido e a quem sucedeu a ré E, e L (já falecido e a quem sucederam a viúva, G, e os filhos H, I e J), agiram em proveito próprio e em prejuízo da sociedade e accionistas que não tiveram qualquer proveito naquela transacção.
Considerou a sentença de primeira instância que houve prejuízo directo para o autor com tal deliberação e condenou os 3.º, 4.º e 5.º réus a pagarem ao autor a quantia de 1900000 escudos.
A segunda instância entendeu que não se verificava o dano directo dos sócios e terceiros, nos termos previstos no art. 79 n.º 1 do CSC e quanto à quantia atribuída como prejuízos, não pode a mesma ser obtida mediante a quantificação da percentagem de capital do autor sobre o valor do trespasse, por não se encontrar liquidado o valor do passivo.
Entende o autor que a transmissão do estabelecimento efectuado pelos administradores da primeira ré (B) para a segunda (C) pelo preço de 2350000 escudos é um acto de gestão que deve considerar-se realizado, não no interesse da sociedade, mas no interesse daqueles accionistas que eram também sócios da trespassária.
Tal comportamento, alegam, constitui um caso de abuso de direito.
A questão do abuso de direito foi invocada pelo autor na réplica (folhas 119). A decisão de primeira instância, a folhas 301, aceita a existência do abuso de direito quando refere: "Por outras palavras à sua actuação presidiu mais o interesse pessoal do que o interesse da sociedade, pelo que forçoso é concluir, que abusaram do seu direito e da sua posição maioritária".
O acórdão recorrido não se refere à questão do abuso de direito e revogou a sentença de primeira instância que atribuiu a indemnização de 1900000 escudos ao autor. Nas suas alegações para este Tribunal o autor voltou a invocar o abuso de direito pelo trespasse do estabelecimento para a primeira ré. Ora, a questão do abuso de direito não surge avulsa nesta parte decisória. A entender o autor que há abuso de direito teria de prosseguir a discussão encetada nos articulados, decidida na primeira instância e omitida na Relação, invocando no recurso, não um abuso de direito reavivado, mas a omissão de pronúncia quanto ao seu não conhecimento (art. 668 n.º 1 al. d) do CPC) na decisão revogatória. Não o fazendo a questão foi definitivamente decidida quanto àquela questão com a prolação do acórdão que não conheceu do abuso de direito, ficando precludida a anulação da decisão da Relação e defeso a este Tribunal pronunciar-se sobre esta questão, quer em sentido favorável ao autor ou desfavorável, neste caso com a possibilidade de recurso.
Adianta o autor a invocação da desconsideração da personalidade da ré C. Esta figura tem subjacente a ideia de que a sociedade constituída - segunda ré - teve como escopo esconder outro negócio que não a constituição da pessoa colectiva.
A este respeito o que o autor afirma na petição é a nulidade do negócio de trespasse com base no art. 397 n.º 2 do CSC, pois se trataria dum negócio entre os administradores da primeira ré e a segunda.
Esta questão foi decidida no saneador no sentido de que a pretensão vai no sentido de que seja declarado nulo o trespasse, não com base naquele artigo (397 n.º 2 do CSC), mas também por tal negócio ter sido lesivo dos interesses do credor.
Aliás, a teoria da desconsideração ou ficção da pessoa colectiva não vem sendo aceite no nosso direito, quer porque viola as normas que atribuem personalidade à pessoa colectiva, quer porque só a ela se chega por via do duplo mandato, o que contraria os meios de que o legislador se serve para dar expressão aos direitos dos sócios pela acção ut universi ou ut singuli (ver Brito Correia, Administradores das Sociedades Anónimas, 613 e seguintes).
Por outro lado a questão da desconsideração da pessoa colectiva não vem afirmada na petição como causa de pedir para a indemnização que ora se pretende, nem para a nulidade do contrato de trespasse que foi pedido.
Violação do art. 64 do CSC.
Dispõe o art. 64 do CSC:
"Os gerentes administradores ou directores de uma sociedade devem actuar com a diligência dum gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores."
O entendimento de alguma doutrina sobre este preceito é o de que se trata duma norma "genérica e imprecisa, mais retórico do que realista destinado a definir o grau de diligência exigível dos responsáveis pela gestão da sociedade, capaz de interessar ao requisito da culpa ...... para que, como mandatários da sociedade ou equiparados, respondam civilmente perante ela pelos danos provenientes dos seus actos"(A. Varela, RLJ 126-315). No mesmo sentido Soares Machado (ROA 54-948).
É discutível a natureza da relação do administrador com a sociedade, havendo a tese contratualista (Teresa Vaz, ROA, 128-333 e Lobo Xavier, Anulação da Deliberação Social e Deliberações Conexas, pág. 102, nota 7 e Ac. STJ de 19-11-1987, BMJ 371-473) e quem considere o conselho de administração como um membro dum órgão da sociedade ligados a ela por um contrato de emprego de direito comum e não de mandato (Soveral Martins, Os Poderes de Representação dos Administradores de Sociedades Anónimas, pág. 59).
O CSC atribui ao conselho de administração poderes de gestão (art. 405) e de representação (art. 408). Os primeiros têm efeitos na ordem interna e os segundos na ordem externa, isto é, para com terceiros. A representação supõe que o representante actue em nome e por conta do representado.
Os administradores têm deveres em relação à pessoa colectiva, como os deveres de diligência (art. 64 do CSC, Brito Correia, Os Administradores das Sociedades Anónimas) que se situam no âmbito das relações internas. Por outro lado, como órgãos da pessoa colectiva praticam actos jurídicos com terceiros e em sua representação. Os art.s 408 e 409 do CSC estabelecem um regime no qual os terceiros sabem que ao contratar com os administradores estão a contratar com a sociedade. E os poderes de representação não se confinam aqui aos actos de administração ordinária, gozando duma maior autonomia (Brito Correia, o. cit., pág.s 546 e 551).
Entendemos que a teoria que melhor traduz a relação dos administradores com a sociedade é a contratualista, agindo os administradores nas relações externas como mandatários da representada, sem prejuízo de a administração funcionar como órgão da sociedade na deliberação e gestão dos actos a praticar.
Na sua actuação o administrador tem de agir com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores. Trata-se, em suma, "do interesse colectivo ou comum dos sócios, quer no interesse dos sócios como sócios, quer o resultado da solidariedade de quaisquer interesses individuais dos sócios" (Raul Ventura e Brito Correia, Responsabilidade Civil da Sociedade Anónima e dos Gerentes das Sociedades por Quotas).
Do artigo 64 do CSC resulta que o mandato concedido aos administradores tem como fim primeiro a representação da sociedade ("no interesse da sociedade") e como referência o interesse dos sócios e dos trabalhadores. Ou seja: o fim social e comum da sociedade. Não se trata dum dever para com os sócios ou trabalhadores, autonomizado, mas para com a sociedade como mandante. Este dever de diligência deve ser apreciado em cada caso concreto e situa-se acima da exigência prevista para o bonus pater familiae, critério que tem a sua importância para averiguação da responsabilidade civil.
Desta forma o que está em causa neste artigo é o cumprimento do dever de actuar perante a sociedade e no seu interesse, com os reflexos ("tendo em conta") que daí resultam para os sócios e os trabalhadores. Nos sistemas de maior desenvolvimento económico e organização societária, tal princípio, longe de ser uma norma programática, pode funcionar e funciona como meio de controle dos investidores organizados sobre a forma de gestão das sociedades e de que são exemplo as corporate governance (ver Soares da Silva, ROA 57-617). E também entre nós se pode dizer que com o DL 82/98 de 2-4 o fim de fiscalização da administração não é uma hipótese remota. Nos termos do art. 1.º se diz que se consideram "sociedades gestoras de empresas (SGE) as sociedades que tenham por objecto exclusivo a avaliação e a gestão de empresas, com vista à sua revitalização e modernização", com a possibilidade de indicar "de entre os seus sócios, uma ou mais pessoas singulares que sejam designadas gerentes, administradoras ou directoras de outra sociedade comercial....." (art. 5.º n.º 1)
Entendemos que esta norma, visa salvaguardar o bom funcionamento da sociedade e não defender os sócios contra actos ilegais que especificamente e de forma individualizada os atinjam. A relação nela contemplada não visa salvaguardar o interesse individual do sócio perante a sociedade, mas o dever do administrador para com a sociedade e a defesa do interesse social que a sua função determina. Não pode, assim, encontrar-se nela fundamento para a responsabilização do(s) administrador(es) para com o sócio.
Violação do art. 79 do CSC.
Dispõe este normativo:
"1 - Os gerentes, administradores e directores respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes causarem.
2 - Aos direitos de indemnização previstos neste artigo é aplicável o disposto nos n.os 2 a 5 do art. 72, no artigo 73 e no n.º 1 do art. 74".
Como refere Raúl Ventura (BMJ 195-60) "a responsabilidade para com terceiros regulada no n.º 1 do art. 24 (actualmente art. 79 do CSC) tem natureza subjectiva, pois é essa também a regra do direito civil português". E Pereira de Almeida (Sociedades Comerciais, pág. 139) dá como exemplos, v. g., o facto dos administradores não pagarem os dividendos votados no prazo legal, não notificarem os sócios para o exercício de preferência e outros que aí se indicam.
Quer se trate de terceiros, quer dos próprios sócios, sempre está em causa a responsabilidade directa dos gerentes por actos obrigacionais ou ilícitos, dos administradores perante os sócios.
A este propósito, por actividades delituais, escreveu-se no Ac. STJ de 25-11-1997, CJ(S) V-III-141:
"Mas fundamentalmente o que interessa aqui realçar é que a responsabilidade do gerente - definida no âmbito de qualquer dos preceitos enfocados - se configura, em ambos os casos como uma responsabilidade delitual, que o artigo 79, que nos interessa particularmente, como vimos, remete para os termos gerais e alude logo para o art. 483 do Código Civil (Prof. Duarte Rodrigues, ob. cit., pág. 224, e seguintes; Prof., Armando Braga, Código das Sociedades Comerciais, pág. 171)."
A existir violação dos direitos sociais há que ter em conta que os administradores têm obrigações perante a sociedade, por virtude da representação, mas não perante os sócios, como tais, salvo o caso das acções ut universi ou ut singuli, mas nestes casos, a responsabilidade provem da relação para com a sociedade e não perante o sócio, não existindo acção individual do sócio relativamente aos administradores de forma directa, a não ser nos casos acima referidos de responsabilidade obrigacional ou delitual que tenha o administrador como directamente responsável. Aliás, a aceitar-se, dum modo geral, a responsabilização dos administradores perante os sócios em acções propostas pela sociedade e também as propostas pelos sócios, estar-se-ia a admitir uma duplicação de sujeitos activos na propositura de acções com o mesmo tipo de responsabilidade. Permitindo a lei a utilização da acção ut singuli para os sócios que reunissem 5% do capital social (art. 77 do CSC), não é de aceitar que o legislador permitisse uma proliferação de acções de indemnização, quando estivesse em causa um interesse social e uma relação entre os actos de administração e a sociedade, por tal redundar num possível prejuízo para o funcionamento e imagem social da sociedade.
No sentido de os sócios das sociedades anónimas não poderem exercer acção individual directa contra os administradores quando não haja a possibilidade de usar da acção ut universi ou ut singuli veja-se Brito Correia, o. cit. pág 611.
Em 1987 a administração da ré requereu a suspensão da sua actividade junto da Inspecção Geral de Finanças, o que foi deferido por despacho de 28-11-1987 e já relativamente ao exercício de 1986.
Em reunião do conselho de administração da 1.ª ré de 11-11-1988, foi deliberado proceder ao trespasse das suas instalações para a 2.ª ré, sendo estimado em 2350000 escudos.
O trespasse teve lugar livre de qualquer passivo e envolveu um edifício com três pisos, no Porto, na Rua ...., onde tem 13 m e com fundo de r/c de mais 40 metros, sendo o valor comercial à época do trespasse de 57375000 escudos.
O trespasse acarretou prejuízos ao autor.
À data da deliberação a situação da ré era negativa.
Ora, o trepasse do estabelecimento efectuado pelos administradores, em representação da sociedade da primeira para a segunda ré, que causou prejuízos ao autor, como foi dado como provado, é um acto incluído na relação entre a sociedade e os administradores e não causou directamente prejuízos ao autor. Ora, o que o artigo 79 tem em vista são os danos causados directamente pelo gerente aos sócios ou a terceiros de forma delituosa ou em violação duma obrigação e não aqueles outros danos que resultam duma gestão que os prejudique.
Face ao exposto, improcedem as alegações do autor.
Nega-se revista.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 23 de Maio de 2002.
Abel Freire,
Ferreira Girão,
Eduardo Baptista.