Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3524/12.3YYLSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
ARTIGO 6º NO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
PRESTAÇÃO DE GARANTIAS
VALIDADE DO TÍTULO
ÓNUS DA PROVA
REVISTA EXCEPCIONAL
RELEVÂNCIA JURÍDICA
Data do Acordão: 05/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES – PERSONALIDADE E CAPACIDADE.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / CONFISSÃO / PROVA DOCUMENTAL / DOCUMENTOS AUTÊNTICOS.
Doutrina:
-Alexandre Soveral Martins, Código Das Sociedades Comerciais Em Comentário, Coordenação de Jorge Coutinho de Abreu, Volume I, 110;
-António Menezes Cordeiro, Código Das Sociedades Comerciais Anotado, I Volume, 2014, 93/95;
-João Labareda, Direito Societário Português Algumas Questões, 186/192;
-Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso De Direito Comercial, Volume II, Das Sociedades, 3ª edição, 193/199;
-Osório de Castro, Da Prestação De Garantias Por Sociedades a Dívidas De Outras Entidades, ROA Ano 56, Agosto 1996, 565/593;
-Vaz Serra, RLJ 103º, 27.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSCOMERCIAIS): - ARTIGO 6.º, N.º3.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 358.º E 371.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 13-05-2003, RELATOR PINTO MONTEIRO;
- DE 17-06-2004, RELATOR QUIRINO SOARES;
- DE 07-10-2010, RELATOR ÁLVARO RODRIGUES;
- DE 28-05-2013, RELATOR FERNANDES DO VALE,
- DE 16-11-2017, RELATORA GRAÇA AMARAL.
Sumário :

I Nos termos do artigo 6º, nº3 do CSComerciais  «Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.».

II Impende sobre a sociedade garante que invoca a nulidade da garantia por si prestada com o objectivo de se fazer valer de tal nulidade para não ter de cumprir a obrigação garantida, o ónus de alegação e prova da inexistência de interesse próprio, ou seja, o ónus da prova dos requisitos da existência da tal invalidade do acto, de que se pretende aproveitar.

III Se a parte que invoca a nulidade da garantia não logra provar o vício alegado, provando antes que por confissão da própria, a garante, que a prestação da garantia foi feita para a prossecução dos seus fins, inútil se torna qualquer outro questionamento em relação a quem impende o ónus da prova sobre a existência ou inexistência de interesse da mesma na constituição de tal garantia.

(APB)

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I Por apenso aos autos de execução comum requerida por A e outros em que são Executados C, Lda, M e E, vieram estes deduzir oposição à execução, pedindo extinção da execução contra a sociedade C, Lda, por ser nula a declaração confessória (…) e em consequência nula a constituição de hipoteca sobre o imóvel propriedade desta, não podendo proceder sobre este imóvel qualquer penhora no âmbito do presente processo, cujo título executivo é a escritura de confissão de divida e de hipoteca de 1 de Fevereiro de 2008.

Foi proferida decisão a julgar a oposição improcedente e a determinar o prosseguimento da execução.

Inconformada a Executada/Opoente C, Lda, recorreu de Apelação, recurso esse que não foi conhecido por se ter entendido que sendo o prazo de interposição de recurso de trinta dias a partir da notificação da decisão, cfr artigo 638º, nº1 do CPCivil e dispondo o seu nº7 a tal prazo acrescem dez dias se o mesmo tiver por objecto a reapreciação da prova gravada, e, não estando tal prova em causa, o recurso foi interposto extemporaneamente.

Irresignada com tal desfecho recorreu aquela Opoente, de Revista, a qual veio a ser provida, tendo sido proferido Acórdão a revogar a decisão e ordenada a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, para que aí fosse produzido Acórdão a conhecer do objecto do recurso de Apelação.

Cumprido o ordenado, o Tribunal da Relação de Lisboa, veio a produzir novo Acórdão onde julgou improcedente o recurso de Apelação, confirmando a sentença recorrida.

Recorreu aquela Executada/Opoente, agora de Revista excepcional, nos termos da alínea a) do nº1 do artigo 672º do CPCivil, recurso esse que veio a ser admitido pela Formação a que alude aquele mesmo normativo no seu nº3, por se ter entendido estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, a qual consiste em saber «sobre que parte impendia o ónus do eventual interesse da embargante sociedade em prestar uma garantia a terceiros à luz do nº3 do artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais».

A Executada/Opoente, apresentou para o efeito as seguintes conclusões:

- Debatiam-se no âmbito da apelação duas questões jurídicas de crucial importância para o destino dos embargos, a saber:

(i) a primeira tinha a ver com a validade do titulo dado à execução.

(ii) a segunda com a definição da parte sobre a qual impende o ónus da prova de um eventual interesse na prestação da garantia (hipoteca) dos autos à luz do nº 3 do artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais.

- No que concerne à primeira questão, a tese do apelante de que estando a sua declaração confessória ferida de falsidade ideológica, a garantia consequente (a hipoteca) era nula, não obteve acolhimento nas instâncias.

- Nesta conformidade, melhor sorte não teve a conclusão retirada pela embargante de que a averiguação sobre se a declaração proferida pela garante no título executivo havia sido ou não no seu próprio interesse se tornava ociosa e inútil pois que, sendo falsa a montante, ela nunca seria juridicamente válida e atendível a jusante.

- Já no que concerne à segunda questão - que só relevaria na improcedência da primeira - a recorrente entende que, ao contrário do decidido nas instâncias, o ónus da prova acerca da existência de um eventual interesse da garante na prestação da garantia não impende sobre si, antes recai sobre os declaratários dela.

- Ora, não tendo os declaratários sequer invocado tal interesse, axiomático teria sido concluir pela inexistência de título executivo à luz do referido preceito do Código das Sociedades Comerciais.

- Se é verdade que a primeira questão - aliás mal decidida nas instâncias - não suscita grandes duvidas ou divergências no seio da doutrina e da jurisprudência, já a segunda questão assume manifesto relevo jurídico e determina, pela controvérsia de que se reveste, profunda e aturada reflexão jurídica sendo entendida como necessária para uma melhor aplicação de direito.

- Particularmente nos autos em apreço, esta controvérsia recorta-se com particular acuidade e nitidez, tanto que tivessem as instâncias julgado de harmonia com as pretensões da embargante - fazendo recair sobre os declatatários o ónus da prova do interesse na prestação da garantia - os embargantes teriam procedido.

- Mas não procederam enquanto que tanto na Comarca, quanto na Relação, a decisão conforme nesta matéria foi a de que o ónus daquela demonstração impendia sobre o declarante.

- A solução a dar à referida segunda questão enquadra-se com rigor no fattis species da al. a ) do nº1 do artigo 672º do Código de Processo Civil; e, portanto, a interposição do presente recurso de revista excepcional.

- O simples facto de os exequentes e declaratários da confissão da garante serem os seus ex-sócios determina que estes nunca poderiam ter invocado (nem aliás o fizeram) o seu desconhecimento acerca de que a “confissão” do garante de que ele próprio se considerava devedor de um débito de terceiros, não passava como não passou de uma declaração falsa, feita “à la carte” e mero instrumento da estipulação da hipoteca que serve de título à execução.

- Tivessem as instâncias atentado nesta axiomática verdade, logo daí deveriam ter retirado a conclusão da manifesta falta de interesse do garante na concessão da garantia.

- E concluído por igual que, fosse qual fosse o teor da prova testemunhal produzida, à mesma conclusão se teria necessariamente de chegar perante o mero conteúdo dos documentos autuados (em especial o da escritura de confissão de divida e de hipoteca).

- Tanto mais quanto é certo que mesmo na hipótese académica de aquela confissão não estar eivada de falsidade ideológica, nem por isso a conclusão poderia ser diferente na medida em que, ainda que verdadeira, ela sempre iria muito para lá da perimetria da capacidade de gozo do confitente.

- De resto, importa não esquecer que a proibição plasmada no nº3 do artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais tem em vista a prestação de garantias a título gratuito.

- Ora, no caso dos autos, sendo insofismável que a sociedade não recebeu dos declaratários ou de terceiros qualquer contrapartida pela prestação da garantia, esta terá necessariamente de cair sob a alçada daquele dispositivo legal por se tratar da uma liberalidade pura e dura.

- Por outro lado, se é inteiramente pacifico que a sociedade não fica vinculada se provar que a contra parte sabia (e sabia-o in casu) que não subjazia à prestação da garantia um “justificado interesse próprio”, então por paridade da razão nunca um terceiro que conheça o objectivo visado pela sociedade poderá deixar de se interrogar sobre se o mesmo consubstancia ou não o tal justificado interesse próprio.

- Ora, conhecendo o terceiro o objectivo visado pela sociedade na prestação da garantia, o ónus de demonstração desse interesse não poderá deixar de impender sobre ele.

- E dest’art dispensando-se o declarante da “missão impossível” da prova diabólica de factos negativos.

Não foram apresentadas contra alegações.

II Põe-se como questão única a conhecer no âmbito da presente impugnação recursória a de saber sobre quem impende o ónus da prova de um eventual interesse na prestação da garantia (hipoteca) dos autos à luz do nº 3 do artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais.

As instâncias declararam como assente a seguinte materialidade: 

A) No dia um de Fevereiro de 2008, no Cartório Notarial sito na Rua …, foi outorgada escritura pública de confissão de dívida e hipoteca por E e C, em nome próprio e como únicos sócios, em representação da sociedade comercial C, Lda, na qualidade de primeiro outorgante, e por M e outros, tendo ali designadamente dito: “Que os primeiros outorgantes E e C e a referida sociedade “Cl, Lda”, que ambos representam confessam-se solidariamente devedores aos segunda a décimo primeiro outorgantes e representados das quantias abaixo discriminadas, que totalizam o montante global de um milhão e oitocentos mil euros, decorrente de transmissão de direitos e valores relacionadas com as cessões de participações sociais e empréstimos relativos à identificada sociedade. (…)/ Que os montantes das dívidas deverão ser pagos até trinta e um de Março de dois mil e onze./ Que para garantia dos mencionados créditos a sociedade representada pelos primeiros constitui hipoteca sobre o imóvel seguinte:/ terreno para construção (…)Que sobre o imóvel incidem já duas hipotecas registadas pelas inscrições C-um e C-dois a favor do banco BPI, SA./ Que além do capital em dívida, a hipoteca fica também a caucionar os juros de mora à taxa legal, acrescida de dois por cento e, bem assim, quaisquer despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de advogado ou solicitador, que qualquer uma das partes credoras haja de fazer para garantir a cobrança de tudo o que constitua o seu crédito./ Que ficam abrangidas pela presente hipoteca todas as construções e benfeitorias feitas ou que vierem a ser feitas no imóvel dado de hipoteca, pelo que a sociedade se obriga a, quando necessário proceder aos competentes averbamentos./ (…) Que a constituição da hipoteca é necessária e conveniente à prossecução dos fins da sociedade hipotecante.” – conforme teor da respectiva certidão a fls. 11 a 20 dos autos de execução e que, no mais, se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais.

B) No dia um de Fevereiro de 2008 no Cartório Notarial sito na Rua …, foi outorgada escritura pública de cessões de quotas, constituição de penhor e alteração de contrato social por M e outros, tendo ali designadamente os primeira a décimo outorgantes dito: “Que os outorgantes M e outros são os únicos sócios da sociedade comercial C, Lda (..) com o capital social de trezentos e oitenta mil seiscentos e setenta euros dividido em catorze quotas: (…)/ Que pela presente escritura e nas qualidades em que intervêm outorgam, respectivamente, o seguinte (…)” e mais ali disseram os décima primeira e décimo segundo outorgantes: “Que aceitam as cessões nos termos exarados,/ Que cada um deles constitui a favor dos respectivos cedentes penhor nas quotas adquiridas para garantia das obrigações assumidas./ Que na qualidade de únicos sócios da identificada sociedade deliberam alterar os artigos 4º e 5º do respectivo articulado contratual (…)” – conforme teor da respectiva cópia a fls. 19 a 30 dos presentes autos e que, no mais, se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais.

C) A dívida como confessada na escritura referida em A) resulta do contrato outorgado mediante a escritura referida em B).

D) M e outros assinaram documento particular datado de 1 de Fevereiro de 2008 intitulado de “contrato de compra e venda”, acordando e reciprocamente aceitando, designadamente, que “2ª Pelo presente contrato cada um dos primeiro a décimo quarto outorgantes vendem à décima quinta e ao décimo sexto outorgantes, e estes compram-lhes, em comum e sem divisão de parte ou direito, as respectivas prestações suplementares, cujos valores estão descritos na cláusula anterior, pelo preço igual ao do seu valor./ 3ª Os valores correspondentes às ditas prestações suplementares, cujo montante global é de €50.000,00, serão pagos até ao fim dos mês de Março de 2011. (…)” – conforme teor da respectiva cópia a fls. 31 a 35 destes autos e que no mais se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais.

(E) Eliminada na sentença do Tribunal de primeira instância, por constituir a duplicação da alínea D), cfr fls 220 e 221)

F) C, Lda, representado pela sua sócia gerente E, M e outros assinaram documento particular datado de 1 de Fevereiro de 2008 intitulado de “acordo de pagamento”, acordando e reciprocamente aceitando os segundo a décimo quinto outorgantes na qualidade de credores do Colégio o pagamento das quantias ali melhor discriminadas relativas a empréstimos que lhe fizeram que  C, Lda lhes pagasse tais valores até ao fim do mês de Março de 2011, conforme teor da respectiva cópia de fls. 36 a 40 dos autos e que no mais se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais.

G) C, Lda, representado pela sua sócia gerente E, M, M, A, M, A, M, A, J, R, B, A e J assinaram documento particular datado de 1 de Fevereiro de 2008 intitulado de “assumpção de responsabilidade”, fazendo constar os seguintes considerandos “considerando que:/ a) que os segunda a décimo terceiro outorgantes e ainda os sócios A e acabam de ceder a E e a C as quotas que cada um deles possui na sociedade C, Lda (…), b) A existência de litígios judiciais em que é autor M P F”; e ali acordando e reciprocamente aceitando que; “1ª/ Os segunda a décimo terceiro outorgantes declaram que assumem perante  C, Lda a responsabilidade proporcional à quota de cada um pelas despesas que venham a ser feitas com a realização das obras que, em resultado dos litígios referidos na alínea b) dos considerando, possam ser ordenadas pelo Tribunal./ 2ª/ O Colégio obriga-se a fazer todas as diligências judiciais que lhe competirem por forma a que não seja condenado, sem prejuízo de transacção nos autos com o autor M P F subordinado ao acordo prévio da segunda ao décimo terceiro outorgantes”, conforme teor da respectiva cópia a fls. 45 a 47, que no mais se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais.

H) A sociedade comercial executada, de que foram sócios os exequentes, é proprietária do imóvel a que se alude na escritura referida em A), no qual está implantado edifício onde a sociedade executada explorava, ao tempo em que os exequentes eram seus sócios, um estabelecimento de ensino particular designado Colégio.

I) No decurso das negociações havidas entre os executados E e C e alguns dos exequentes ao tempo sócios da sociedade executada, agindo estes por si e em representação dos demais sócios e com a pretensão de cederem as quotas da sociedade executada, deixando de por intermédio desta explorar o referido estabelecimento de ensino, foi por estes informado e exibido àqueles a única licença que possuíam com base na qual mantinham o Colégio em funcionamento: licença de carácter provisório, renovável anualmente, emitida pelo Ministério da Educação.

J) No decurso daquelas negociações e antes da outorga dos documentos referidos de A) a G) foram os executados E e C informados que a delonga relativa à emissão da licença de utilização do edifício por parte da Câmara Municipal de Sintra estava relacionada com conflitos com o proprietário de um prédio vizinho, M P F, relativos à definição das extremas dos terrenos, conflitos estes que culminaram na pendência de uma acção cível e de uma acção judicial de impugnação de acto administrativo da Câmara no âmbito do processo de emissão daquela licença.

K) Foi neste contexto que foi subscrito o documento referido em G).

Vejamos.

Não obstante a Recorrente tivesse enunciado em sede de conclusões de recurso duas problemáticas solvendas, a primeira relativa à validade do titulo dado à execução e a segunda respeitante à definição da parte sobre a qual impende o ónus da prova de um eventual interesse na prestação da garantia (hipoteca) dos autos à luz do nº 3 do artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais, apenas esta última foi considerada como questão jurídica de relevo consubstanciadora do recebimento da Revista excepcional em tela.

Insurge-se a Recorrente contra a decisão ínsita no Aresto sob recurso, porquanto ao contrário do aí decidido o ónus da prova acerca da existência de um eventual interesse da garante na prestação da garantia não impende sobre si, antes recai sobre os declaratários dela e não tendo estes, sequer, invocado tal interesse, axiomático teria sido concluir pela inexistência de título executivo à luz do artigo 6º, nº3 do Código das Sociedades Comerciais.

Decorre da materialidade dada como assente, cfr alíneas A) e B), que que a sociedade Executada, a aqui Recorrente, representada pelos seus únicos sócios, também Executados, quis assumir solidariamente com estes uma dívida no “montante global de um milhão e oitocentos mil euros, decorrente de transmissão de direitos e valores relacionadas com as cessões de participações sociais e empréstimos relativos à identificada sociedade”, constituindo para garantia de tais créditos hipoteca sobre o imóvel “terreno para construção com mil quinhentos e quarenta metros quadrados, sito …, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de …, registado em nome da sociedade.”.

Decorre do artigo 6º do CSComerciais, no que à temática envolvente diz respeito, o seguinte:

«1. A capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessárias ou convenientes à prossecução do seu fim, excetuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular.

2. As liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta,

3. Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.».

Prima facie há que acentuar que o segmento normativo constante daquele preceito legal estabelece os limites da capacidade de gozo da sociedade comercial, entendida como a aptidão para ser titular de um círculo, com mais ou menos restrições, de relações jurídicas e sendo o fim das sociedades comerciais a obtenção de lucro, tal significa que a respectiva actividade social terá de abranger não só os direitos e obrigações necessários à prossecução daquele fim lucrativo, mas também todos os que para tal se revelem convenientes, dentro dos limites da Lei, apanágio do princípio da especialidade, cfr Alexandre Soveral Martins in Código Das Sociedades Comerciais Em Comentário, Coordenação de Jorge Coutinho de Abreu, Volume I, 110; Código Das Sociedades Comerciais Anotado, I Volume, 2014, Coordenação de António Menezes Cordeiro, 93/95.

Dentro dos aludidos limites impostos pela norma, surge-nos o do nº3, onde se impõe que qualquer prestação de garantia real ou pessoal por banda da sociedade a terceiros, se considera contrária ao fim social, salvo se existir justificado interesse da sociedade garante ou se estiver perante uma situação de sociedade em relação de domínio ou de grupo, hipótese esta que transcende a economia da questão solvenda.

Concentremo-nos então na primeira situação, a da confissão de divida com constituição de hipoteca.

Pretende a Recorrente fazer demonstrar que inexistia um qualquer interesse da sua parte na constituição da garantia, sendo que sempre impenderia sobre os declaratários da mesma o ónus da prova da demonstração do aludido interesse, o que não foi feito in casu.

A jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que impende sobre a sociedade garante que invoca a nulidade da garantia por si prestada com o objectivo de se fazer valer de tal nulidade para não ter de cumprir a obrigação garantida, o ónus de alegação e prova da inexistência de interesse próprio, ou seja, o ónus da prova dos requisitos da existência da tal invalidade do acto, de que se pretende aproveitar, sendo que a razão principal para tal reside na circunstância de que ninguém melhor do que a própria sociedade que presta a garantia, poderá certificar que a mesma foi prestada no seu próprio interesse, cfr inter alia os Ac STJ de 13 de Maio de 2003 (Relator Pinto Monteiro), 17 de Junho de 2004 (Relator Quirino Soares), 7 de Outubro de 2010 (Relator Álvaro Rodrigues), 28 de Maio de 2013 (Relator Fernandes do Vale), 16 de Novembro de 2017 (Relatora Graça Amaral); João Labareda, Direito Societário Português Algumas Questões, 186/192; Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso De Direito Comercial, Volume II, Das Sociedades, 3ª edição, 193/199; Osório de Castro, Da Prestação De Garantias Por Sociedades a Dívidas De Outras Entidades, ROA Ano 56, Agosto 1996, 565/593; Vaz Serra, RLJ 103º, 27.

Da factualidade apurada resulta que a constituição de hipoteca aqui questionada pela garante, ora Recorrente, se encontra intimamente relacionada com o objecto social desta, exploração de um colégio, o qual funcionaria no imóvel objecto daquela garantia a qual como decorre expressamente do seu título constitutivo «[é] necessária e conveniente à prossecução dos fins da sociedade hipotecante», cfr alínea A), condição esta suficiente para condenar ao insucesso a pretensão da Recorrente.

Daqui deflui que não tendo a Recorrente logrado efectuar prova no sentido preconizado, isto é que afinal estava a garantir terceiros seus sócios, à margem de qualquer interesse societário relevante, e/ou de forma gratuita fundada em declarações falsas como igualmente alvitra no seu discurso conclusivo, a sua pretensão está, como esteve, condenada ao insucesso, sendo certo que, quanto a este particular da falsidade do título, se tratar de questão que para além de ultrapassar o âmbito da Revista, é já uma res judicata.

Assim sendo, estando plenamente assente por confissão da própria Recorrente, a garante, que a prestação da garantia foi feita para a prossecução dos seus fins, inútil se torna qualquer outro questionamento em relação a quem impende o ónus da prova sobre a existência ou inexistência de interesse da mesma na constituição de tal garantia, questionamento este que, na circunstância sempre poderia configurar um eventual abuso de direito por banda da Recorrente, sancionável nos termos do normativo inserto no artigo 334º do CCivil: por um lado confessa que a garantia foi prestada com vista à prossecução do fim societário e por outro questiona a bondade de tal declaração, negando-a e fazendo impender sobre os declaratários, igualmente intervenientes na mesma declaração negocial, o ónus da prova da existência daquele interesse social, o que, no caso sujeito a ser aceite, sempre constituiria um absurdo (os confitentes, apesar de confessarem, poderiam obrigar os co-confitentes a terem de provar o facto confessado), cfr artigos 358º, nº2 e 371º, nº1 do CCivil.

Soçobram, pois, todas as conclusões recursivas.

III Destarte, nega-se a Revista, confirmando-se a decisão ínsita no Aresto sob recurso.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 22 de Maio de 2018

 

Ana Paula Boularot (Relatora)

Pinto de Almeida

José Rainho