Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2º SECÇÃO | ||
Relator: | ROSA TCHING | ||
Descritores: | MATÉRIA DE FACTO PODERES DA RELAÇÃO ANULAÇÃO DE SENTENÇA CONHECIMENTO OFICIOSO CASO JULGADO ADMISSIBILIDADE DE RECURSO REJEIÇÃO DE RECURSO | ||
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Data do Acordão: | 05/24/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | DESATENDIDA A RECLAMAÇÃO | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO / MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO. | ||
Doutrina: | -Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017. 4.ª Edição, p. 298, 299 e 300; -Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, p. 280, nota 34. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): ARTIGO 662.º, N.ºS 2, ALÍNEA C) E 4. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 10-12-2015, PROCESSO N.º 730/12, IN SSTJ 2015, P. 696. -*- ACÓRDAO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: -DE 12-10-2017. | ||
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Sumário : | I. De acordo com o disposto no art. 662º, nº 2, al. c) do CPC, o Tribunal da Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância sempre que repute deficiente a decisão sobre determinados pontos da matéria de facto, pelo que, mesmo que as partes não tenham impugnado a decisão de facto, não se pode considerar que esta decisão formou caso julgado, o qual depende da própria decisão da Relação sobre ela. II. Da decisão do Tribunal da Relação que reputou deficiente a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância sobre a matéria de facto e que anulou esta decisão, à luz do nº 2, al. c) do art. 662º do CPC, não cabe recurso para o STJ, nos termos do nº 4 deste mesmo artigo, ficando, por isso, vedada a este Supremo Tribunal a possibilidade de apreciar se a Relação extravasou, ou não, os poderes conferidos por aquele preceito normativo. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2ª SECÇÃO CÍVEL I – Relatório
1. A Santa Casa da Misericórdia de ..., IPSS, intentou ação declarativa sob a forma de processo ordinário contra a herança aberta por óbito de AA, representada pelo cabeça de casal BB; a herança aberta por óbito de CC, representada pelo cabeça de casal BB; DD; EE e mulher, FF; GG e marido, HH; II e mulher JJ; KK e marido LL e MM e marido, NN, pedindo que se declare que: a) A autora é comproprietária de 20% do prédio identificado no artigo 7º da petição inicial, conjuntamente com os demais comproprietários identificado no artigo 4, alínea b) da petição; b) Esse direito foi adjudicado em comum e aos demais comproprietários referidos, na partilha a que se procedeu por óbito de AA, legítimo proprietário do prédio, para ser dividido (em propriedade plena), no termo do usufruto, nos termos e na proporção referidos no artigo 4, alínea b) da petição; c) Nessa partilha foi adjudicado e ficou a pertencer à OO e a AA o usufruto vitalício e sucessivo desse prédio; d) Os usufrutuários OO e AA faleceram em 11/12/1992 e 24/03/2007, respetivamente; e) O usufruto de que aqueles eram titulares se extinguiu e a propriedade plena do prédio sobre que incidia se consolidou na autora e demais comproprietários, nos termos e proporções constantes da partilha e referidos no artigo 4 , alínea b) da petição; e que se condenem os réus a: f) restituir à autora o referido prédio, que estão a ocupar ilegitimamente; g) restituir à autora os rendimentos que receberam desde 24/03/2007, data do falecimento do AA, na parte correspondente à quota da autora no prédio; h) pagarem à autora, a título de indemnização pelos prejuízos que lhe causaram e pelos que vierem a causar-lhe, por virtude da sua ilegítima detenção do prédio, a quantia que se apurar, a liquidar em execução de sentença; i) pagarem à autora, a título de indemnização pelos prejuízos que lhe causaram e pelos que vierem a causar-lhe, por virtude da sua ilegítima detenção do prédio, a quantia que se apurar, a liquidar em execução de sentença; j) reconhecerem o direito de propriedade da autora e demais comproprietários sobre o identificado prédio e a abster-se de praticar quaisquer atos; k) no pagamento das custas.
2. Citados os réus, apenas contestaram os réus GG e marido, HH; II e mulher, JJ; KK e marido, LL e MM e marido, NN.
3. Foi proferido despacho saneador-sentença, datado de 14.04.2016, no qual o Tribunal de 1ª Instância, entendendo que «o estado dos autos, com os documentos juntos e não impugnados» habilitava «a conhecer, sem necessidade de mais provas, do mérito da causa», elencou, sob os nºs 1 a 47, os factos que considerou provados «por confissão (dada a não impugnação) e documento» e com base neles decidiu julgar a ação procedente, por provada e, em consequência: I. Declarou que: « a) A autora é, conjuntamente com os demais comproprietários identificados no artigo 4, alínea b) da petição inicial, comproprietária do prédio identificado no artigo 7º daquele articulado ( sendo 20% a sua quota indivisa nesse prédio); b) Esse direito lhe foi adjudicado em comum e aos demais comproprietários referidos, na partilha a que se procedeu por óbito de AA, legítimo proprietário do prédio, para ser dividido (em propriedade plena), no termo do usufruto, nos termos e na proporção referidos no artigo 4, alínea b) da petição inicial; c) Nessa partilha foi adjudicado e ficou a pertencer à OO e a AA o usufruto vitalício e sucessivo desse prédio; d) Os usufrutuários OO e AA faleceram em 11/12/1992 e 24/03/2007, respetivamente; e) Com o seu falecimento, o usufruto de que aqueles eram titulares extinguiu-se e a propriedade plena do prédio sobre que incidia consolidou-se na autora e demais comproprietários, nos termos e proporções constantes da partilha e referidos no artigo 4, alínea b) da petição inicial». II. Condenou os réus a: «f) Restituir à autora o referido prédio, que estão a deter e a ocupar ilegitimamente; g) Restituir à autora os rendimentos que receberam desde 24/03/2007, data do falecimento do AA, na parte correspondente à quota da autora no prédio». III. Ordenou: «h) O cancelamento do registo do usufruto efectuado pela inscrição nº 12.552, a fls. 34vº, do Livro G-18, a favor de OO e de AA, referida no artigo 11 desta petição (em caso de existência) bem como da consignação de rendimentos registados na Cons. do Reg. Predial pela inscrição nº 17.378, ap. 1, de 11/06/1965, como consta da referida certidão e quaisquer outros efectuados ou que entretanto venham a ser efectuados sobre o prédio, posteriores ao óbito do autor da herança AA». IV. Condenou os réus a: «i) pagarem à autora indemnização pelos prejuízos que lhe causaram e pelos que vierem a causar-lhe, por virtude da sua ilegítima detenção do prédio, a liquidar; j) Reconhecerem o direito de propriedade da autora e demais comproprietários sobre o identificado prédio e a abster-se de praticar quaisquer atos que violem aquele direito».
4. Inconformados com esta decisão, os réus DD e EE e mulher, FF, dela apelaram para o Tribunal da Relação do Porto, sustentando, para além do mais, que: « 1. O tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, no que tange aos factos considerados provados sob os pontos 30, 40, 41, 44 e 45, pois que a escassa prova carreada para os autos não permite dar como provados tais factos, nos termos em que o tribunal recorrido o fez. (…), Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser parcialmente revogada a sentença recorrida, substituindo-a por outra que julgue improcedentes, em relação aos ora recorrentes, os pedidos formulados pela autora sob as alíneas g), i) e k), vertidos na sentença nos pontos ii g) e IV i), com as legais consequências, nos termos que se deixaram expostos».
5. Por acórdão proferido em 2017.10.12, o Tribunal da Relação do Porto considerou que: «(…) alguns dos factos essenciais constitutivos da causa de pedir da ação relativamente a alguns dos pedidos formulados, expressamente os pedidos formulados sob as alíneas g), i) e k) da petição inicial, independentemente da interpretação e aplicação do direito a realizar posteriormente pelo juiz, encontram-se controvertidos- art°s 5º, n° 1 NCPC- face aos termos da contestação apresentada em 15.05.2013- fls 318 a 321- tendo estes réus arrolado prova testemunhal. Cabendo à autora o respectivo ónus da prova quanto a todos os factos essenciais para a decisão de todos os pedidos formulados na ação, os referidos réus apresentaram contra prova - art°s 342°, n° I e 346°, ambos do Código Civil - e, não impondo a lei meio de prova legal, podem os respectivos factos impugnados naquela contestação ser provados por quaisquer outros meios de prova, nomeadamente testemunhal, depoimentos de parte dos embargados ou declarações de parte destes ou dos embargantes, nos termos do art° 410º ss NCPC. A referida contestação aproveita a todos os réus, nos termos do artº 568°, al. a), NCPC, devendo o senhor juiz a quo proferir despacho designando audiência prévia nos termos do art° 591° NCPC ou, dispensando-a proferir despacho, incluindo despacho saneador, onde conhecendo parcialmente de alguns dos pedidos, ordene o prosseguimento dos autos quanto aos pedidos controvertidos, nos termos do art° 593º, 595° e 596°, NCPC. Mas, entendemos, que o saneador sentença recorrido não procedeu a adequada fundamentação da matéria de facto que considerou provada indicando em concreto os meios de prova em que fundamenta cada um ou um conjunto conexo de factos e procedendo à justificação da livre convicção do juiz a quo, salvo quanto aos meios de prova legal, de acordo com o disposto 607°, n°s 4 e 5, NCPC. Podem-se destacar duas grandes diferenças no novo regime de fundamentação do acórdão ou despacho sobre a matéria de facto do NCPC aprovado pela Lei n° 41/2013, de 26.06, a saber: a) Deixa de existir a restrição de só ser necessário justificar as respostas dadas aos factos provados passando a ser necessário fundamentar a resposta aos factos dados como no provados. E, b) Para além de especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, o julgador tem de proceder à análise crítica das provas. Quer isto dizer que o julgador tem de esclarecer quais as provas que o levaram a formar a sua convicção, como acontecia no regime anterior, mas deve ainda analisar as provas produzidas explicando os motivos que o levaram a optar por uma determinada resposta. Do mesmo modo a doutrina mais recente entende que, no actual regime de fundamentação da matéria de facto, se torna necessário, para dar cumprimento as exigências legais, não só indicar os meios de prova que contribuíram para formar a convicção do julgador, mas proceder à sua análise critica, explicitando os motivos porque determinado meio de prova foi relevante e outro não o foi para formar tal convicção. É o que ensina o Prof. Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 2 edição, Lisboa 1997, pag.348): “A fundamentação da apreciação da prova deve ser realizada separadamente para cada facto. A apreciação de cada melo de prova pressupõe conhecer a seu conteúdo (por exemplo, um depoimento da testemunha), determinar a sua relevância (que não é nenhuma quando, por exemplo, a testemunha afirmou desconhecer o facto) e proceder à sua valoração (por exemplo, através da credibilidade da testemunha ou do relatório pericial,). Se o facto for considerado provado, o tribunal deve começar por referir os meios de prova que formaram a sua convicção, indicar seguidamente aqueles que se mostraram inconclusivos e terminar com referência àqueles que, apesar de conduzirem a uma distinta decisão, não foram suficientes para afirmar a sua convicção”. Sobre esta matéria escreveu o Dr. Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, Coimbra, pag.243): “Quer relativamente aos factos provados quer quanto aos factos não provados, deve a tribunal justificar os motivos da sua decisão, declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento, garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (art.º 655º do CPC), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos, achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos particulares, etc.” Só procedendo deste modo o tribunal dará expressão à análise e apreciação crítica dos meios probatórios e a fundamentação da resposta à matéria de facto cumprirá as funções endoprocessual e extraprocessual que acima se explicitaram e respeitará o estatuído no n° 4 do artigo 653º do novo Código de Processo Civil. Assim sendo, não é possível a esta Re1ação em sede de recurso apreciar a pretendida alteração da matéria de facto impugnada pela recorrente, pelo que se impõe a anu1ação da decisão recorrida - art°s 662°, n°s 1 e 2, al. c), NCPC, por deficiência da decisão sobre a matéria de facto alegada pela autora na pi e a que diz respeito os pontos 30, 40, 41, 44 e 45 dos factos provados do saneador sentença recorrido. Daí que se imponha, sem prejuízo de conhecer desde já de alguns dos pedidos no despacho saneador a proferir, que o senhor juiz a quo, no prosseguimento da acção, profira também despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova quanto aos pedidos controvertidos- art° 596°, nº 1, NCPC».
E com base nestes fundamentos, decidiu revogar o saneador sentença recorrido e ordenar o prosseguimento dos autos para subsequente julgamento.
6. Inconformada com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, veio a autora, em 2017.11.16, interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
7. Pelo Senhor Juiz Desembargador relator do Tribunal da Relação do Porto foi proferido, em 24.01.2018, despacho com o seguinte teor: «O acórdão desta Relação de 12-10-2017 não decidiu do mérito da causa, nem pôs termo ao processo, antes ordenou que os autos prosseguissem para julgamento, tendo revogado o saneador sentença, tendo anulado a decisão recorrida (saneador sentença) por deficiência da decisão sobre a matéria de facto alegada pela autora e a que dizem respeito os pontos 30, 40, 41, 44 e 45 dos factos provados na sentença recorrida e ordenado a baixa dos autos ao tribunal a quo para identificar o objecto do litígio e enunciar os temas da prova quanto aos factos controvertidos, sem prejuízo de conhecer desde já de alguns pedidos, tudo nos termos dos arts. 596º, nº 1, 662, nºs 1 e 2, al. c). Assim, não há recurso de revista daquele acórdão de acordo com o disposto no art. 671º, nº1 e a situação não é alterada pela revista excepcional prevista no art. 671º, nº3, CPC. Pelo exposto, de acordo com o disposto no art. 679º e 641º, nº,2, al. a), CPC, não admito o recurso interposto pela recorrida na apelação, Santa Casa da Misericórdia de …, em 07.11.2017 ( fls. 1055). Notifique» 8. Inconformada com este despacho de não admissão do recurso interposto, a autora, Santa Casa da Misericórdia de …, veio, nos termos do nº 1 do at. 643º do CPC, presentar reclamação para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo nos seguintes termos:
«1. A sentença proferida no despacho saneador, na parte não recorrida, transitou em julgado, com força obrigatória dentro e fora do processo, devendo ser respeitada, inclusivamente pelos Tribunais Superiores; 2. A referida decisão na parte transitada, não pode ser alterada, anulada, ou revogada; 3. Ao decidir anular a decisão recorrida e revogar o saneador sentença e ordenar que os autos prossigam nos termos por ela referidos, ofende o caso julgado de que se reveste a sentença em apreço, na parte em que não houve recurso, transitada em julgado; para além disso, 4. O acórdão pronunciou-se e decidiu para além do âmbito do recurso, limitado objectiva subjectivamente pelos recorrentes. 5. A contestação dos réus contestantes, não aproveita aos recorrentes, ao contrário do decidido e pelas razões aludidas; 6. Com o que, com a sua decisão, o acórdão infringiu, entre outros, o disposto nos artigos 619º, 620º, 1, 628º, 629º, 2, alínea a), 634º, 1 e 2, alínea c) e 3 e 5, 635º, 2, 5 do NCPC. 7. O recurso, contrariamente ao decidido no despacho reclamado, é admissível – art. 629, 2, al. a) do CPC». 9. Recebidos os autos neste Supremo Tribunal, em sede de exame preliminar, foi proferido despacho de não admissão do recurso de revista. 10. Vem, agora, a recorrente, através do articulado de fls.71 a 77, reclamar deste despacho para a conferência, ao abrigo do disposto no art. 692º, nº 2 do CPC, nº 2 do CPC, reproduzindo o teor das suas alegações do recurso de revista e acima transcritas no ponto 8. E reiterando que o art. 662º do CPC não confere ao Tribunal da Relação os poderes de revogar ou anular decisões transitadas em julgado por não terem sido objecto de recurso, como acontece no caso dos autos, requer seja admitido o recurso interposto. 11. Não foi deduzida resposta. 12. Cumpre, pois, apreciar e decidir. *** II - Do mérito da reclamação A questão a dirimir na presente reclamação prende-se com a admissibilidade, ou não, do recurso de revista interposto pela autora do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 12 de outubro de 2017, à luz do regime recursório do CPC na redação dada pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, aplicável por força do disposto no respetivo artigo 5.º, n.º 1. Analisada por este coletivo toda a fundamentação do despacho reclamado, conclui-se por manter integralmente essa fundamentação e que aqui se transcreve: « (…) nesta matéria, dispõe o art. 662º, nº 1 do citado e diploma que «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa». Por sua vez e na parte que aqui interessa, estabelece o nº 2 deste artigo que a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente, «anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta» [ al. c) ] . E acrescenta o nº 4 deste mesmo artigo que «Das decisões da Relação previstas nos nºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça». Ora ainda que, como refere Abrantes Geraldes[1], esta delimitação não seja totalmente rígida, sendo admissível recurso de revista «quando sejam suscitadas questões relacionadas com o modo como a Relação aplicou as normas de direito adjectivo conexas com a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, máxime quando seja invocado pelo recorrente o incumprimento de deveres previstos no art. 662º » ou quando se trate de «sindicar a decisão da matéria e facto nas circunstâncias referidas no art. 674º, nº 3 e apreciar criticamente a suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada e não provada em conexão com a matéria de direito aplicável, nos termos do art. 682º, nº 3», a verdade é que o caso dos autos não se integra em nenhuma destas situações. Com efeito, tendo sido conferido à Relação o poder de, oficiosamente, anular a decisão sobre a matéria de facto com vista à correção de determinadas patologias (v.g. deficiência, obscuridade ou contradição) e tendo a Relação reputado deficiente a decisão proferida sobre a matéria de facto alegada pela autora na petição inicial, designadamente quanto aos factos dados como assentes sob os n.ºs 30, 40, 41, 44 e 45 no despacho saneador sentença, acrescentando mesmo que tal deficiência era impossível de superar, visto tratar-se de matéria de facto controvertida, que competia à autora provar e relativamente à qual os réus contestantes (fls. 318 a 321) apresentaram contra prova, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 346º do C. Civil, não se vê que a Relação tenha, de algum modo, extravasado dos poderes que a este respeito o citado art. 662º, nº 2, al. c) lhe comete. De resto, tal como afirma o acórdão recorrido, a denunciada deficiência impossibilita também a Relação de apreciar a impugnação da matéria de facto, o que equivale a dizer inexistirem, no processo, elementos suficientes para a Relação decidir, nos termos do nº 1 do citado art. 662º, da alteração da matéria de facto pretendida pelos réus/apelantes. Do mesmo modo, não se vê que a Relação tenha extravasado dos poderes que a este respeito a lei lhe confere ao considerar que o Tribunal de 1ª Instância não procedeu, no saneador sentença recorrido, a adequada fundamentação dos factos que considerou provados, na medida em que limitou-se a afirmar (mesmo relativamente aos factos controvertidos, que incluiu, erradamente, nos factos provados descritos sob os n.ºs 30, 40, 41, 44 e 45), de forma genérica, que os mesmos foram dados como provados «por confissão (dada a não impugnação) e documento», e ao ordenar a remessa dos autos ao Tribunal de 1ª Instância, a fim de ser colmatada essa falha, pois, como referem Lebre de Freitas[2] e Abrantes Geraldes[3], é este o procedimento a seguir quando estejam em causa factos essenciais (como é o caso). Finalmente, no que respeita à invocação de violação de caso julgado, entende-se que a mesma inexiste, pois, conferindo o nº 2 do art. 662º do CPC à Relação poderes oficiosos de anulação, ou seja, mesmo sem que tenha havido impugnação de matéria de facto fixada na 1ª instância, nos casos em que ela repute existirem deficiências na decisão a matéria de facto, e tendo a Relação, no uso desses poderes, anulado esta decisão e, em consequência disso, revogado o saneador sentença, determinando o prosseguimento dos autos para subsequente julgamento, não se pode considerar que se tenha formado caso julgado sobre a decisão de facto e de direito. Daí ser de concluir pela rejeição do recurso de revista interposto pela recorrente Santa Casa da Misericórdia de …, ao abrigo do disposto no art. 662º, nº4 do CPC». Assim, sufragando este entendimento, já perfilhado no Acórdão do STJ, de 10.12.2015 (processo nº 730/12)[4], e porque não se vislumbra que a presente decisão constitua violação de alguns dos princípios programáticos consagrados na Constituição da República Portuguesa, impõe-se concluir, que: i). De acordo com o disposto no art. 662º, nº 2, al. c) do CPC, o Tribunal da Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância sempre que repute deficiente a decisão sobre determinados pontos da matéria de facto, pelo que, mesmo que as partes não tenham impugnado a decisão de facto, não se pode considerar que esta decisão formou caso julgado, o qual depende da própria decisão da Relação sobre ela. ii). Da decisão do Tribunal da Relação que reputou deficiente a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância sobre a matéria de facto e que anulou esta decisão, à luz do nº 2, al. c) do art. 662º do CPC, não cabe recurso para o STJ, nos termos do nº 4 deste mesmo artigo, ficando, por isso, vedada a este Supremo Tribunal a possibilidade de apreciar se a Relação extravasou, ou não, os poderes conferidos por aquele preceito normativo.
Termos em que improcede a presente reclamação.
*** III - Decisão Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a presente reclamação, confirmando-se a decisão da relatora de não admissão do recurso de revista interposto pela recorrente. As custas da reclamação ficam a cargo da reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 2UC. *** Supremo Tribunal de Justiça, 24 de maio de 2018
Maria Rosa Oliveira Tching (Relator)
Rosa Maria Ribeiro Coelho
João Luís Marques Bernardo __________
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