Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
050462
Nº Convencional: JSTJ00010797
Relator: SAMPAIO DUARTE
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE MATERNIDADE
DEPOSITO
MULHER
APLICAÇÃO DA LEI
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ19391202050462
Data do Acordão: 12/02/1939
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DG IªS 09-12-1939; COL OF ANO38, 443
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO.
Decisão: UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO 2/1939
Área Temática: DIR CIV - DIR FAM / TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CCIV867 ARTIGO 8 ARTIGO 101 PARUNICO.
D DE 1910/11/03 ARTIGO 20.
CPC39 ARTIGO 768 PAR1.
D 19126 DE 1930/12/16.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1938/07/15.
ACÓRDÃO STJ DE 1933/06/23.
ACÓRDÃO STJ DE 1914/04/03.
ACÓRDÃO STJ DE 1929/02/05.
Sumário :
Para o efeito da acção de investigação de maternidade ilegitima, e havido por ilegitimo o filho nascido mais de trezentos dias apos a data do deposito judicial da mãe, pois que o paragrafo unico do artigo 101 do Codigo Civil, aditado pelo Decreto n. 19126, e de natureza interpretativa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em sessão plena:

A, maior, solteira, domestica, residente em Vila do Conde, propos, com o beneficio da assistencia judiciaria, no juizo de direito da 2 vara da comarca do Porto, contra B divorciada, capitalista, residente nesta dita cidade, uma acção ordinaria para investigação de maternidade ilegitima, em que alega, resumidamente:
A autora nasceu no dia 26 de Setembro de 1912 e, não tendo ainda um dia de vida, foi colocada, por ordem de seu pai, a porta de uma casa na Rua do Rosario, da cidade do Porto, onde foi encontrada, tendo dado entrada no Hospicio das Crianças Abandonadas, onde ficou devidamente matriculada.
A autora foi entregue em 21 de Outubro de 1912, pela direcção do dito Hospicio, aos cuidados de uma ama chamada C residente na freguesia e concelho de Povoa de Varzim, que mediante determinada retribuição promovera a sua criação de leite e a seco.


A mesma autora foi registada na Conservatoria do Registo Civil do 2 bairro do Porto, com o nome de que usa, e tempos depois foi baptizada religiosamente, sendo sua madrinha D, da freguesia e concelho de Vila do Conde.
Por virtude do falecimento da ama e marido dela foi a autora, em 10 de Janeiro de 1919, entregue de novo ao Hospicio, sendo logo confiada aos cuidados daquela sua dita madrinha.


Viveu a autora ate aos dezoito anos na ignorancia de quem fossem seus pais e considerando-se para sempre abandonada por eles.
So por essa altura a autora ouviu falar de sua mãe, a re, que, segundo lhe afirmaram, so então tambem soube do paradeiro da filha, a autora, e isto por revelação do proprio pai, que a re fornecera então todos os elementos para que a mesma autora pudesse ser conhecida e encontrada.
E assim, em 1930, a re, mãe da autora, escreveu a esta uma carta e mandou-lhe uma medalha com o seu retrato em esmalte e uma volta de ouro, como lembrança.


A diversas pessoas falou a re na sua filha, a autora, manifestando desejos de, logo que lhe fosse possivel, a levar para a sua companhia e com ela viver; e chegou a ter redigido um testamento em que reconhecia a autora como sua filha, e declarando-a, como tal, sua herdeira.


Concluiu pedindo que se julgasse procedente e provada a acção para todos os efeitos legais, e por via dela fosse a autora reconhecida como filha ilegitima da mencionada B e, como tal, com todos os direitos inerentes a essa qualidade.


Citada a re, pessoalmente, para a acção, não a contestou.


Apareceu a contesta-la E, solteiro, maior, do Porto, alegando:
Da legitimidade do contestante não pode duvidar-se, pois sendo, como e, filho legitimo da re e de seu ex-marido,F, ficaria evidentemente prejudicado pela procedencia da causa, e assim tem todo o interesse em contesta-la.
Havendo a autora nascido na data que diz e tendo sido decretado o divorcio da re e de seu marido em 25 de Julho de 1912, desta maneira, se a autora fosse filha da re, presumir-se-ia legitima (artigo 1, n. 2, do decreto de 25 de Dezembro de 1910); e assim, enquanto não houvesse impugnação de legitimidade, proposta pelo marido da suposta mãe da autora, esta não poderia intentar acção de investigação de paternidade ou maternidade ilegitima.
A acção resulta de um conluio entre a autora e a re, e que constitue mais uma tentativa por parte desta ultima para lesar o contestante.
A despeito dos esforços feitos, a re não tem conseguido levantar a interdição contra ela decretada a requerimento do curador geral dos orfãos, e, assim, não tem ela capacidade judiciaria perfeita.


Se a acção não fosse uma comedia, estranhavel seria que, dizendo a autora ter recebido da re, em Março de 1930, a carta a que se refere, so tres anos apos a sua maioridade ela haja dado os primeiros passos para a instauração do pleito.


Não se compreende que a re - se, na verdade, considerasse a autora sua filha - a não tivesse levado para a sua companhia.


E mais estranho seria que a re tratasse na carta com tanto carinho uma filha a quem não conhecia e abandonasse o filho, contestante, quando tinha pouca idade, apressando-se a requerer, logo apos a maioridade deste, a cessação de uma pequena pensão que ele estava recebendo, apesar de saber que ele e doente e se ve obrigado a estar de cama meses seguidos.
Pede que se julgue improcedente a acção.


Houve replica, em que a autora manteve as suas afirmações anteriores, e treplica, em que o filho Avelino persiste nos fundamentos alegados.
Mostrando-se dos autos que a re estava interdita por prodigalidade desde 5 de Dezembro de 1919 e lhe havia sido nomeado curador, foi este citado e tambem o curador geral dos orfãos.


O curador da interdita contestou a acção, dizendo:


Nunca a autora poderia ser julgada filha ilegitima da re, pois aquela, se fosse filha desta, como teria sido concebida ao tempo em que a dita re era ainda casada, seria filha legitima e não ilegitima.


Mas a autora não e filha da re.


Por ser evidente a inviabilidade ou a improcedencia do direito da acção, entende que se deveria decretar no despacho saneador.
E por ultimo pede que em qualquer altura se julgue inviavel ou improcedente a acção.


Houve replica da autora e treplica do curador da re.


No saneador ficou assente serem legitimas e estarem bem representadas as partes e não existirem nulidades, não se pronunciando o juiz nessa altura sobre a inviabilidade ou improcedencia, por entender que o processo não oferecia ainda os necessarios elementos.


O processo seguiu; e com intervenção do tribunal colectivo procedeu-se ao julgamento, em que se observaram as formalidades legais; e foi proferida, em seguida, sentença, que julgou procedente e provada a acção e declarou a autora filha ilegitima da re e condenou esta a assim a reconhecer, com todos os direitos inerentes e no mais da lei.


Apelou o curador da interdita; e a Relação do Porto confirmou a decisão recorrida.
Recorreu de revista o dito curador e este Supremo Tribunal, por acordão de folhas 269 e seguintes, negou-a e confirmou o acordão da Relação.
O curador da interdita recorreu ainda para o tribunal pleno, invocando contradição de julgados sobre o mesmo ponto de direito, isto e, entre o acordão de 15 de Julho de 1938, proferido neste processo, e os acordãos de 23 de Junho de 1933, de 3 de Abril de 1914 e de 5 de Fevereiro de 1929, sendo tal recurso admitido, e que se encontra devidamente minutado e contraminutado.


Foi proferido o acordão de folhas 329, que julgou manifesta a oposição com o primeiro acordão de 23 de Junho de 1933, e que so quanto a este ponto admitiu o recurso e não o aceitando quanto aos demais, por se tratar de diferentes hipoteses.


O ponto, portanto, a averiguar e a decidir e este somente.


No acordão recorrido disse-se, embora com argumento subsidiario, que "sem forçar demasiadamente os principios se poderia dizer que a disposição alterada - paragrafo unico do artigo 101 do Codigo Civil, modificado pelo decreto n. 19126, de 16 de Dezembro de 1930 - apenas deu a orientação razoavel e justa ao que estava ate ao legislado, e assim poderia considerar-se como meramente interpretativa, tendo de aplicar-se aos casos anteriormente ocorridos, nos termos do artigo 8 do Codigo Civil".
O acordão que se cita em oposição com este e o de 23 de Junho de 1933, o qual se juntou por certidão a folhas 312 e seguintes, e que julgou:
"Considerando que os documentos autenticos que nos autos existem são os proprios a comprovar a filiação do menor Arnaldo e a de seu pai, aquele Antonio Rodrigues da Silva, e assim não pode duvidar-se que de direito aquele e neto do inventariado, representando o filho falecido, como vem julgado pelo juiz do inventario e pela Relação, visto que a filiação constante do registo de nascimento tem de manter-se e produzir efeitos enquanto pelo meio competente o respectivo assento não for anulado;
Considerando que, embora o casamento dos pais do menor tenha sido dissolvido por divorcio decretado e o menor tenha nascido depois dos trezentos dias posteriores ao deposito judicial da mãe, mas dentro dos trezentos seguintes aquela dissolução, a presunção da legitimidade continua, enquanto não for ilidida ou anulada, desde que ao caso dos autos não e aplicavel a actual disposição da ultima parte do paragrafo unico do artigo 101 do Codigo Civil, por ela não poder ser considerada interpretativa e portanto de aplicação imediata...".


Havendo, como ha, conflito de jurisprudencia, tem de ser resolvido nos precisos termos do paragrafo 1 do artigo 768 do novo Codigo de Processo Civil.
Como as instancias deram como everiguado e demonstrado nos autos, a B casou no Brasil com F, vindo depois o casal para Portugal.
Divorciaram-se mais tarde, em acção distribuida em 10 de Novembro de 1911, e que foi julgada por sentença que "decretou o divorcio de 25 de Julho de 1912 e que transitou, tendo ficado um filho desse matrimonio, de nome de E.


Ficou provado no processo que a B requereu em 4 de Novembro de 1911, isto e, alguns dias antes da propositura da acção, o deposito judicial, conforme lhe era permitido pelo artigo 20 da lei do divorcio, deposito que teve lugar em 6 do dito mes e ano.


Prova-se que o nascimento da autora teve lugar em 26 de Setembro de 1912, havendo ela sido encontrada numa das ruas do Porto em 27 do dito mes.
Como o deposito teve lugar, como se disse, em 6 de Novembro de 1911 e o nascimento em 26 de Setembro de 1912, assim ela nasceu mais de trezentos dias depois dessa separação dos conjuges; e a data do deposito vigorava o artigo 101 do Codigo Civil da sua primitiva redacção.
Entendia-se que esta disposição tendo em vista atender ao tempo pelo qual cessa a coabitação entre os conjuges, enquadrava em si o caso do deposito judicial da mulher casada, em que e intuitiva a impossibilidade para os conjuges de praticarem a copula a partir da efectivação do deposito, que solenemente fica a marcar o momento ou data da saida da mulher da companhia do marido e a inadmissibilidade da continuação de relações carnais posteriores.

A filiação legitima prova-se pelo registo de nascimento que, e claro, não existia, e assim a presunção a tirar e a de que a filha de B não podia ser filha do marido e foi gerada pela copula com outro individuo, e tanto o tribunal colectivo como a Relação deram como cabalmente apurado e provado que a autora e filha da re, mas fruto de uma paixão violenta e de uma união irregular.
Ainda mesmo que o caso do deposito se não pudesse considerar rigorosamente compreendido no texto expresso da lei, não podia deixar de estar abrangido pelo seu espirito.
Para cortar duvidas e que veio a modificação esclarecedora introduzida pelo decreto n. 19126, e que, interpretando a lei, deu a justa e moralizadora orientação.
Pode por isso dizer-se que e interpretativo o paragrafo unico do artigo 101, aditado por aquele decreto, na parte referente ao deposito judicial.
Sendo de manter a jurisprudencia adoptada pelo acordão recorrido, pelos fundamentos aqui expostos e pelas mais razões que do mesmo constam, negam provimento ao recurso e condenam o recorrente nas custas.
E, concluindo, este Supremo Tribunal da Justiça estabelece o seguinte assento:
Para o efeito da acção de investigação de maternidade ilegitima e havido por ilegitimo o filho nascido mais de trezentos dias apos a data do deposito judicial da mãe, pois que o paragrafo unico do artigo 101 do Codigo Civil, aditado pelo decreto n. 19126, e de natureza interpretativa.


Lisboa, 02 de Dezembro de 1939

Sampaio Duarte - Adolfo Coutinho - M. Pimentel - Lopes Cardoso - Carlos Alves - Miranda Monteiro - Adriano Fernandes - Avelino Leite - Luiz Osorio - F. Mendonça -
- Magalhães Barros - Cesar A. Santos.