Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P2299
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: INSTRUÇÃO CRIMINAL
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
Nº do Documento: SJ200309240022993
Data do Acordão: 09/24/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 2549/03
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário : 1. 5. A instrução, que é uma das fases preliminares do processo penal, visa, como dispõe o artigo 286°, n°l, do Código de Processo Penal, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

2. O requerimento de abertura da instrução constitui o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas autónoma dentro do tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.

3. O requerimento de abertura da instrução, embora não sujeito a formalidades especiais, deve conter, mesmo em súmula, os elementos que são enunciados no artigo 287°, n° 2, do Código de Processo Penal: a indicação «das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende levar a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros se espera provar.

4. Na definição do objecto processual que vai ser submetido ao conhecimento e decisão do juiz há uma similitude processual de função, e por isso, uma assimilação funcional entre a acusação do Ministério Público e o requerimento do assistente para a abertura de instrução no caso de não ter sido deduzida acusação.

5. O requerimento do assistente deve, em termos materiais e funcionais, e revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A", devidamente identificado no processo, participou de B, ao tempo no exercício de funções como procurador-adjunto na comarca de Almada, imputando-lhe a prática de um crime de denegação de justiça, previsto no artigo 369º do Código Penal, que teria sido integrado pela dedução contra o queixo de uma acusação, que considera infundamentada, e pela promoção de medidas de coacção que considerou desajustadas.

Remetida a participação ao Ministério Público junto do tribunal competente (Tribunal da Relação de Lisboa), teve lugar o inquérito, findo o qual foi proferido despacho de arquivamento, nos termos do artigo 277º, nº 1, do Código de Processo Penal, por «não ter sido violada qualquer norma legal nem proferida nenhuma decisão contra direito ou emitida qualquer decisão que, por lei, devesse ser tomada», e também, por não resultar «demonstrado, nem sequer indiciado, qualquer propósito, por parte do denunciado, de não realizar a justiça no caso concreto ou de deliberada violação do direito aplicável e, também, de que tenha havido qualquer propósito de prejudicar» o denunciante.

2. O denunciante, entretanto admitido a intervir como assistente, veio requerer a abertura de instrução, invocando como fundamento da «acusação contra direito» que deveria ter conduzido à acusação do arguido pelo crime que lhe imputava, o seguinte:

«Sem factos ilícitos, não pode nem deve haver acusação e o Magistrado do |Mº Pº Dr. B serviu-se ao processo para perseguir profissional e politicamente o Advogado A ».
«O Exmº. Magistrado fabricou factos criminais e a partir daí, introduziu no texto acusatório uma lava persecutória imperdoável».
«Os factos concretos são duma inocência simplicidade cristalina perfeitamente entendida por qualquer cidadão comum, de forma que qualquer ilação ou interpretação criminal constitui uma brutalidade processual e substancial».
«Efectivamente, o Exmo. Magistrado Dr. B procedeu com desvio de poder, com vindicta, com intenção de perseguir profissional e politicamente o Advogado A , de forma a atingi-lo no seu "bom nome e reputação, a que tem jus».
«Inexistiam quaisquer indícios ilícitos e o eventual procedimento criminal estava prescrito».
«A conduta ilícita do Exmº. Magistrado B é flagrante, exorbitando das suas funções e competências porque completamente contrárias aos factos óbvios e ao direito mais elementar, pelo que violou a norma do arte 369º do C. Penal, cometendo crime de denegação de justiça e prevaricação, com dolo intenso, estando demonstrado não só o propósito de não realizar a Justiça no caso concreto e de deliberada violação do direito aplicável, mas também o intento de prejudicar o Advogado A e de beneficiar o advogado Dr. C, contra quem também pende processo criminal».

No mais, o requerimento para abertura da instrução não contém qualquer elemento processualmente atendível, limitando-se a considerações adjacentes e, no mínimo, gravemente deselegantes para os magistrados com intervenção no processo.
O Tribunal da Relação rejeitou, contudo, o requerimento do assistente, não declarando aberta a instrução, «em conformidade com os artigos 32º, nº 5, da Constituição, e 4º, 137º, 287º, nº 2, 283º, nº3, alíneas b) e c), 303º, nº 3 e 309º, nº1 do Código de Processo Penal.

3. Inconformado com a decisão de rejeição do requerimento para abertura da instrução, o assistente interpôs recurso para o Supremo Tribunal, que motivou, terminando com as seguintes conclusões:
1ª- O Assistente considera que o seu direito de intervenção processual (a sua queixa de 19-3-99) não tem tido tutela jurisdicional efectiva, arrastando-se os autos penosamente no Tribunal, em prazo desrazoável e mediante processo não equitativo porque o ora arguido Magistrado do MP é mais igual, gozando de superioridade processual face ao cidadão assistente, dizendo o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que o referida arguida goza de injustificado privilégio dos órgãos de administração da justiça, o que constitui violação flagrante dos artºs 20º, nº 4 e 5, 22º e 32°, nº7, da Constituição;

2ª- O assistente, no requerimento de abertura de instrução cumpriu os requisitos exigidos pelas normas dos artigos 287º, nº 2, e 283º, nº 3, b) e c) do «CPC», dado que narrou os factos, com as circunstancias de tempo, lugar, modo e motivação, e indicou as normas incriminadoras, impugnando veemente e circunstancialmente a acusação criminosa formulada pelo arguido;

3ª- O Venerando Tribunal da Relação de Lisboa refugia-se no "salvo melhor opinião" e no '"salvo o muito devido respeito", rejeitando por rejeitar, sem perfilar um único argumento válido ou verídico, atentando inclusivamente contra o direito de cidadania do assistente, a quem considera como "pessoa menor" face ao apregoado e mal entendido privilégio aristocrático de que goza o arguido enquanto Magistrado do MP, um "ente superior" ao comum dos mortais que está posicionado acima da lei e da Constituição;

4ª- O assistente não aceita, salvo também o devido respeito, esta auréola de superioridade de determinado membro da Magistratura do MP, quando esse Magistrado actue, como no caso dos autos, com vindicta e perseguição pessoal, profissional e política, à laia comunista;

5ª- O despacho impugnado interpretou de forma inconstitucional as normas dos arts. 287º, nº 2 e 283º, nº 3, b) e c) do CPP, porque violou as garantias de intervenção processual do assistente, introduzindo um discurso judicial desadequado e inverídico.
O Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu à motivação, considerando que a decisão recorrida «não merece reparo e que deve ser integralmente mantida».

4. No Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral manifestou opinião no sentido de que o recurso «é manifestamente improcedente, porquanto não refere quaisquer factos ou razões que contrariem o despacho recorrido, limitando-se a produzir abundantes considerações impertinentes e suspeições sem qualquer suporte objectivo», devendo ser rejeitado.
O recorrente respondeu ao Parecer do Exmº Procurador-Geral Adjunto, reiterando a posição que manifestou no recurso.
Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

5. A instrução, que é uma das fases preliminares do processo penal, visa, como dispõe o artigo 286º, nº1, do Código de Processo Penal, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a cauda a julgamento.
Deduzida acusação, ou arquivado o inquérito pelo Ministério Público, os sujeitos processuais afectados por tais actos com os quais, conforme os casos, se encerra uma outra das fases preliminares do processo - o inquérito - , podem fazer comprovar judicialmente a decisão de acusar ou de arquivar o inquérito; a instrução tem, assim, carácter facultativo - artigo 286º, nº 2, do Código de Processo Penal.

A instrução constitui uma fase judicial (a direcção da instrução compete a um juiz de instrução criminal - artigo 288º,nº 1, do Código de Processo Penal), formada pelo conjunto de actos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo, e obrigatoriamente por um debate instrutório, oral e contraditório - artigo 289º, nº 1, do mesmo diploma.

A instrução pode ser requerida pelo arguido ou pelo assistente, conforme a natureza do acto que os afecte e que lhes confira o interesse em fazer comprovar judicialmente o acto de encerramento do inquérito: o arguido pode requerer a instrução no caso de ter sido deduzida acusação, e o assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, no caso de arquivamento, isto é, relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação - artigo 287º, nº 1, alíneas a) e b) do referido diploma.

A estrutura acusatória do processo exige, porém, que a intervenção do juiz não seja oficiosa e, além disso, que tenha de ser delimitada pelos termos da comprovação que se lhe requer sobre a decisão de acusar ou, se não tiver sido deduzidas acusação, sobre a justificação e a justeza da decisão de arquivamento.

Por isso, e não obstante o juiz investigar autonomamente o caso submetido a instrução, tem de ter em conta e actuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura da instrução: «tendo em conta a indicação constante do requerimento de abertura da instrução», como refere o nº 4 do artigo 288º do Código de Processo Penal.

6. O requerimento de abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas autónoma dentro do tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.

Este requerimento, embora não sujeito a formalidades especiais, deve conter, mesmo em súmula, os elementos que são enunciados no artigo 287º, nº 2, do mencionado diploma: a indicação «das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende levar a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros se espera provar [...]». O requerimento, sendo livre de fórmulas, não o é de conteúdo material vinculante.

Deste modo, constituem elementos essenciais ao requerimento para abertura da instrução a enunciação das razões de facto e de direito da discordância em relação à decisão de acusação ou de arquivamento.

Porém, não tanto pelas fórmulas, mas pelo conteúdo, o requerimento para abertura da instrução terá de ser necessariamente diverso conforme o arguido pretenda fazer comprovar judicialmente a decisão de acusar, ou o assistente pretenda fazer intervir o juiz de instrução para confrontar a decisão de arquivamento.

Destinando-se o inquérito a investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (artigo 262, nº 1, do Código de Processo Penal), esta decisão há-de ser tomada quando o Ministério Público considerar encerrado o inquérito e avaliar a existência (ou inexistência) de indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente.

A acusação fixa então doravante no processo os termos da questão submetida a decisão (a vinculação temática), tanto que, mesmo quando requerida instrução pelo arguido, e comprovada judicialmente a decisão de acusar, o despacho de pronúncia não pode pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos na acusação.

Mas, sendo assim no que respeita à decisão de acusação, de modo simétrico tem de ser no que respeita ao requerimento do assistente no caso de arquivamento: o pressuposto da vinculação temática do processo só pode ser constituído pelos termos desse requerimento, que há-de definir as bases de facto e de direito da questão a submeter ao juiz. Na definição do objecto processual que vai ser submetido ao conhecimento e decisão do juiz há, assim, uma similitude processual de função, e por isso, uma assimilação funcional entre a acusação do Ministério Público e o requerimento do assistente para a abertura de instrução no caso de não ter sido deduzida acusação.

Deste modo, o requerimento do assistente não pode, em termos materiais e funcionais, deixar de revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório: o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui uma verdadeira acusação, que é a acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida pelo Ministério Público (cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, "Curso de Processo Penal", vol. III, pág,141).

O requerimento do assistente, não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve, pois, constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo (da instrução), e por isso, os termos e os limites dos poderes de conhecimento e de decisão do juiz de instrução - artigos 308º e 309º do Código de Processo Penal (cfr., v. g., o acórdão do Supremo Tribunal, de 23 de Maio de 2001, proc. 151/01).

A instrução não constitui uma base para o exercício da acção penal, nem um suplemento autónomo de investigação.
Assim, o requerimento do assistente com que pretenda, de modo processualmente necessário, útil e eficaz, fazer abrir a fase de instrução, e definir o seu objecto, tem de conter, ainda que de forma sintética, a narração dos factos que fundamentem a aplicação de uma pena, incluindo o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, e quaisquer outras circunstâncias relevantes - artigo 283º, nº 3, do Código de Processo Penal.

7. O requerimento formulado pelo recorrente, com que pretendeu fazer declarar aberta a fase da instrução, não participa das características de uma acusação em sentido material, não respeitando, por isso, as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo artigo 287º, nº 2, do diploma referido.

Desde logo, como bem decidiu o tribunal da Relação, o recorrente, nesse requerimento, não apresentou factos que, indiciados, ou presumivelmente indiciados no inquérito, pudessem (e devessem) ter levado o Ministério Público a deduzir acusação, limitando-se, ao contrário, a formulações, genéricas umas, conclusivas outras, sem nenhuma valia em termos processuais.

Com efeito, pela análise da parte assinalada e ainda susceptível de valoração do requerimento em causa (no restante contém apenas afirmações sem qualquer dimensão processualmente relevante), vê-se que o recorrente não referiu, com a necessária identificação, quais os factos que constituiriam uma actuação contra direito, o tempo e lugar, os motivos por que a actuação teria sido dolosamente praticada, quais os fundamentos de facto, indiciados ou presumivelmente indiciados, que permitiriam a conclusão sobre a alegada intenção específica de prejuízo do recorrente - tudo elementos do tipo objectivo e subjectivo descrito no artigo 369º do Código Penal que imputa ao arguido.

Deste modo, o requerimento que o assistente apresentou para abertura da instrução não contém os elementos essenciais à função processual que lhe é assinalada; não é processualmente prestável para tal finalidade, o que equivale a dizer que não pode cumprir a função processual a que estaria vocacionado.

Em termos processuais tudo se passa, assim, como se não tivesse havido requerimento, o que determina a impossibilidade de abertura da fase de instrução.

8. O recorrente invoca também, para o caso de assim se decidir, a violação do seu direito a tutela jurisdicional efectiva e a decisão em prazo razoável - artigos 20, nºs 4 e 5, e 22º da Constituição.

O direito a tutela jurisdicional efectiva - a cada direito deve corresponder um meio adequado para o tornar efectivo em caso de violação - não significa, no entanto, como parece estar pressuposto na invocação, o não respeito por imposições e condições processuais de exercício, nem direito a obter decisão positiva e favorável sobre as pretensões manifestadas.

O recorrente, com efeito, teve e tem na sua disponibilidade todos os meios e instrumentos processuais aptos à tutela do seu direito, no sentido de poder obter uma decisão (como, aliás está a fazer) nas instâncias competentes.

Mas a realização do direito a uma tutela efectiva está conformada pela utilização dos meios processuais próprios, que os interessados devem respeitar.

O respeito pelas exigências e imposições processuais é mesmo condição da tutela efectiva dos direitos, e o direito a tutela efectiva não é afectado por tais imposições processuais, salvo se estas se configurarem de tal modo intensas e desproporcionadas que esvaziem o direito da sua própria substância.

Não é manifestamente o caso das exigências, minimamente ordenadoras em termos de definição do objecto processual, que a lei assinala ao requerimento para abertura da instrução.

9. No que respeite ao direito a decisão em prazo razoável é questão que está fora do âmbito do recurso.
Porém, o recorrente, se assim entender, tem ao seu dispor meios internos acessíveis e adequados para fazer aí discutir o direito invocado (cfr., v. g., as Decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 22 de Maio de 2003, requêtes nºs 58698/00, A. M. Paulino Tomás c. Portugal, e 65305/01, M. L Gouveia da Silva Torrado c. Portugal).

10. Nestes termos, acordam em negar provimento ao recurso.
Taxa de justiça: 3 UCs.

Lisboa, 24 de Setembro 2003
Henriques Gaspar
Antunes Grancho
Políbio Flor