Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
235/16.4T8VLG.P1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: RIBEIRO CARDOSO
Descritores: PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
CAUSA PREJUDICIAL
PROCESSO PENAL
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA
Data do Acordão: 07/04/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS / GARANTIAS DE PROCESSO CRIMINAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA.
CONTRATO DE TRABALHO / INCUMPRIMENTO DO CONTRATO / PODER DISCIPLINAR / PROCEDIMENTO DISCIPLINAR E PRESCRIÇÃO.
Doutrina:
-Aníbal de Castro, Impugnação das Decisões Judiciais, 2.ª Edição, p. 111;
-Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, Situações Laborais Individuais, 5.ª Edição, p. 984;
-Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo civil, Volume III, p. 247.
Legislação Nacional:
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP):- ARTIGO 32.º, N. 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 615.º.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT): - ARTIGO 329.º, N.ºS 1, 2 E 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 05-04-1989, IN BMJ 386/446;
-DE 23-03-1990, IN AJ, 7.º/90, P. 20;
-DE 31-01-1991, IN BMJ 403.º/382;
-DE 12-12-1995, IN CJ, 1995, III/156;
-DE 18-06-1996, CJ, 1996, II, P.143;
-DE 01-10-2008, PROCESSO N.º 718/08;
-DE 05-11-2008, RECURSO N.º 10/08;
-DE 25-09-2014, PROCESSO N.º 414/12.3TTMTS.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


-DE 07-03-1985, IN BMJ, 347.º/477.


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ACÓRDÃO DO TRUBUNAL CONSTITUCIONAL:


-ACÓRDÃO N.º 338/10, IN DR 1.ª SÉRIE, DE 08-11-2010.
Sumário :
I - O procedimento disciplinar laboral, pese embora a sua natureza privada e o facto de ser levado a cabo por um dos sujeitos de uma relação jurídica obrigacional (que visa realizar fins próprios/privados) e que culmina sempre num “ato de parte”, poderá considerar-se um processo (em sentido amplo) de natureza sancionatória, enquanto conjunto ordenado de atos dirigido à eventual aplicação de uma sanção, sendo-lhe, por isso, extensíveis os direitos de audiência e de defesa, constantes do art. 32º, nº 2 da CRP.

II - A referida extensão, ainda que os factos imputados constituam ilícito criminal e tenha sido instaurado nas instâncias judiciais o respetivo procedimento, não acarreta a prejudicialidade do processo-crime relativamente ao procedimento disciplinar, ou qualquer situação de dependência entre eles.

III – Não viola o princípio da presunção da inocência a decisão do Tribunal da Relação que, na ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, reapreciando a prova, julgou provados factos que, para além de ilícito disciplinar, constituem ilícito criminal, sem que o trabalhador, no processo-crime, tenha sido julgado e condenado com trânsito em julgado.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça ([1])

1 - RELATÓRIO

AA apresentou requerimento de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento com invocação de justa causa, de que foi alvo, contra BB, Ld.ª.

Realizada a audiência de partes e frustrada a conciliação, a empregadora apresentou articulado a motivar o despedimento, com invocação de justa causa, alegando que o A. exercia as funções de delegado de informação médica (DIM), utilizando, para fim exclusivamente profissional, o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula -OH- e um telemóvel, ambos propriedade da Ré. No dia 18.11.2015, o A. faltou ao trabalho sem qualquer prévia comunicação, tendo a Ré sido contactada pela Polícia de Segurança Pública informando que tinham procedido à detenção do A. na madrugada desse dia e que os mencionados telemóvel e viatura haviam sido apreendidos. Informaram também que o motivo da detenção e apreensão desses bens deveu-se ao facto do A. estar fortemente indiciado por ligações ao tráfico de estupefacientes, sendo que naquela madrugada tinha sido detido em flagrante delito enquanto conduzia aquele veículo automóvel.

Nessa madrugada de 18.11.2015, o A. não se encontrava nem ao serviço da empresa nem a desempenhar as suas funções, antes utilizando o veículo da empresa para transporte/entrega de produtos estupefacientes, sendo o telemóvel utilizado para combinações de entregas dos mesmos, o qual contém também e-mails e informações confidenciais da empresa.

Só admitiu o A. ao seu serviço por ter um registo criminal limpo e só nesta condição é que, como titular de autorização de introdução ou colocação no mercado de medicamentos, se responsabiliza pelos seus trabalhadores junto do CC para obter a sua credenciação, sendo contra os seus princípios e regulamentos ter trabalhadores indiciados, acusados ou condenados por crimes, designadamente, crimes associados a estupefacientes e substâncias psicotrópicas.

O A. contestou arguindo a nulidade do processo disciplinar, porquanto a entidade empregadora durante a fase de instrução do processo disciplinar juntou ao mesmo uma listagem com o registo de todas as passagens nos pórticos das autoestradas e estradas semelhantes relativos a tal veículo, sem que tenha feito um aditamento à nota de culpa. Negou a prática dos factos de que é acusado, referindo quanto às ausências nos dias 18 e 19 de novembro, que a entidade empregadora sabia desde o dia 18 que ele se encontrava detido e que ele próprio comunicou a razão de tal ausência no dia 21 desse mês, através de e-mail.

Em reconvenção peticionou que seja considerado ilícito o seu despedimento e, consequentemente, a Ré condenada a reintegrá-lo no seu posto de trabalho ou, em alternativa, a pagar-lhe uma indemnização, as retribuições e subsídios que deixou de auferir até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal acrescida de juros à taxa legal e a indemnização, a título de danos não patrimoniais, no montante de € 20.000,00.

Pediu ainda a condenação da R. como litigante de má-fé, dado esta saber qual o motivo da sua ausência ao trabalho nos dias 18 e 19 de novembro de 2015.

A Ré respondeu invocando a inexistência, quer da alegada nulidade do procedimento disciplinar, quer da litigância de má-fé, referindo, quanto a esta, que não houve qualquer omissão ou intenção de alterar os factos, apenas tendo mencionado que o trabalhador não enviou nenhuma declaração de justificação de falta relativamente a esses dias, conforme solicitado.

Saneado o processo, realizou-se a audiência de julgamento e foi proferida sentença com a seguinte decisão:

Pelo exposto, declaro ilícito o despedimento do trabalhador AA efetuado pela sua entidade empregadora “BB, Ldª” e consequentemente condeno-a a pagar-lhe:

I - uma indemnização por antiguidade, graduando-a em 15 dias de retribuição base por cada ano completo ou fração de ano, contada desde o dia 13 de Janeiro de 2003 e até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, que a esta data ascende a € 14.875 (catorze mil, oitocentos e setenta e cinco euros).

II – as retribuições líquidas que o trabalhador deixou de auferir desde a data do despedimento e até ao trânsito da sentença condenatória, deduzidas dos vencimentos que tenha auferido de outra entidade empregadora ou das quantias que tenha recebido da segurança social a título de subsídio de desemprego, quantia essa a ser apurada em incidente de liquidação.

No mais, vai a empregadora absolvida.

Tendo em consideração a data da entrada da apresentação do formulário pelo trabalhador e as deduções previstas no nº 1 als. a), b) e c) do Código de Processo do Trabalho não há lugar ao pagamento de qualquer retribuição intercalar por parte do Estado (artigo 98-N “a contrario” do C.P.T.).

Custas pelo trabalhador e empregadora na proporção de 1/3 e 2/3 respetivamente.

Valor da ação: € 34.875,00.

Inconformada, a R. apelou, impugnando a decisão sobre a matéria de facto e peticionando a revogação da sentença, tendo sido proferida a seguinte deliberação:

«Em face do exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso, em consequência do que se revoga, na parte impugnada, a sentença recorrida, a qual é substituída pelo presente acórdão em que se decide considerar ter ocorrido justa causa para o despedimento do A., AA, e absolver a Ré, BB, Ldª, dos pedidos contra esta formulados e em que havia sido condenada na sentença recorrida.

Custas da ação pelo A.

Custas do recurso pelo A., não sendo, todavia, devida taxa de justiça, uma vez que o mesmo, ao não ter contra – alegado, a ele não deu impulso processual (cfr. art. 6º, nºs 1 e 7º, nº 2, do RCP).»

Desta deliberação recorre o A. de revista para este Supremo Tribunal, impetrando a revogação do acórdão recorrido e a repristinação da sentença da 1ª instância.

A R. recorrida contra-alegou pugnando pela manutenção do julgado.

Cumprido o disposto no art. 87º, nº 3 do CPT, o Exmº Procurador-Geral-‑Adjunto emitiu douto parecer no sentido da confirmação do acórdão recorrido.

Notificadas, as partes não responderam.

Formulou o recorrente as seguintes conclusões, as quais, como se sabe, delimitam o objeto do recurso ([2]) e, consequentemente, o âmbito do conhecimento deste tribunal:

1. O Tribunal de que ora se recorre, proferiu acórdão que alterou a al. G) dos factos provados, que passou a ter a seguinte redação:

G) No dia 02 de Dezembro de 2015 foi elaborada Nota de Culpa pelo representante legal da Empregadora, BB, e remetida ao trabalhador suspenso, advertindo o Trabalhador da intenção de se proceder ao seu despedimento, nota de culpa essa da qual consta o seguinte:

(…) E cujo teor se dá por integralmente reproduzido de páginas 20 a 24 da douta decisão de que ora se recorre (no sentido de consignar a factualidade constante da nota de culpa, para onde se remeteu, dada a sua extensão).

Alterou ainda a al. W) da matéria de facto provada na sentença e foi aditada a al. W1) nos seguintes termos:

W) Na noite de 17 para 18 de Novembro de 2015, o A. conduziu o veículo “…..”, de matrícula -OH- para transportar DD que, com o conhecimento daquele, levava consigo uma embalagem de produto estupefaciente - heroína - com 9.707 gramas de peso líquido, para dela fazer entrega a terceiros.

W1) A entrega acabou por não ocorrer dada a detenção da referida DD, nessa noite, após ter saído do veículo e quando se afastara cerca de 15 metros, tendo o A. sido igualmente detido, quase em simultâneo, quando se encontrava estacionado ao volante do referido veículo para aguardar o regresso daquela, as detenções de ambos foram efetuadas pelos Agentes da Polícia de Segurança Pública, 1ª Esquadra de Investigação Criminal.

2. Em consequência da factualidade dada como provada e alterada pelo douto acórdão foi concedido provimento ao recurso, e em consequência foi revogada, a sentença recorrida, a qual foi substituída pelo douto acórdão de que ora se recorre e que considerou ter ocorrido justa causa para o despedimento do A., AA, e absolveu a Ré BB, Lda, dos pedidos contra esta formulados e em que havia sido condenada na sentença recorrida.

3. As respostas dadas pelo Tribunal a cada ponto da matéria de facto provada foram alteradas nos concretos pontos supra elencados.

4. O que determinou o provimento do recurso, e em consequência revogou a sentença recorrida, e que considerou ter ocorrido justa causa para o despedimento do Autor e em consequência absolveu a Ré dos pedidos contra esta formulados.

5. O que salvo melhor opinião não poderia ter ocorrido, porquanto existiu uma violação de direitos de defesa do Recorrente e de princípios constitucionais como sejam o princípio da presunção de inocência.

6. Na verdade, passou a constar da factualidade provada, factos que estão a ser ainda apreciados em sede de processo-crime, cujo julgamento ainda se encontra a decorrer, e sobre os quais ainda não incidiu qualquer decisão.

7. A douta decisão considerou provada factualidade que ainda não se mostra decidida no foro criminal, o que salvo o devido respeito e melhor opinião é claramente violador dos mais elementares direitos de defesa do aqui Recorrente, como sejam o Princípio da presunção de inocência, princípio constitucionalmente consagrado, artº 32 CRP;

8. Aliás pode até constar do douto acórdão de que ora se recorre factualidade provada, que não se venha a provar em sede do processo criminal, o que configura uma Nulidade e que pode até determinar decisões distintas relativamente aos mesmos factos.

9. Na verdade, a decisão de que ora se recorre já considerou o Recorrente culpado pela prática de factos, relativamente aos quais ainda nem sequer existe decisão, com trânsito em julgado;

10. Donde resulta que é clara e manifesta violação do princípio constitucional da presunção de inocência, contido no artº 32º, nº 2 da CRP de que “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação …”

11. Tal preceito constitucional respeita a direitos, liberdades e garantias e, por isso, com aplicação direta a todos os ramos do direito.

12. No caso em concreto o processo-crime com o nº 33/12.4PEPRT, que esteve na base do processo disciplinar instaurado ao A. e que culminou com o seu despedimento, encontra-se atualmente em fase de julgamento, sem que exista qualquer decisão transitada em julgado.

13. Importando ainda referir que na altura em que foi instaurado o processo disciplinar ao Recorrente, o processo estava em fase de inquérito e a coberto do segredo de justiça;

14. Assim, os efeitos da decisão de despedimento não podiam deixar de estar dependentes da decisão final, com trânsito em julgado, que viesse a ser proferida no processo-crime.

15. Não se pode considerar o trabalhador culpado em sede de processo disciplinar, sem que a sua culpa (mormente em processo crime) se encontre provada e decretada por sentença que não seja passível de recurso.

16. A justa causa tem de ser apreciada com referência à data da decisão de despedimento, pois só os factos contidos naquela decisão podem ser invocados em tribunal.

17. Pelo que dúvidas não subsistem que o despedimento do Recorrente é manifestamente ilícito e contrário à lei, pelo que bem andou o douto Tribunal de 1ª instância.

18. Encontrando-se o douto acórdão de que ora se recorre, ferido de Nulidade, atenta a inobservância do princípio da presunção de inocência, previsto no artº 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

19. Pelo que, deve o mesmo ser revogado atenta a invocada Nulidade.

20. Assim, e face à falta de prova dos factos decisivos que alicerçavam a decisão de despedimento, não restaria ao Tribunal recorrido outra decisão senão a de considerar ilícito tal despedimento e confirmar a sentença de 1ª instância.

21. Pelo exposto, o douto acórdão recorrido não poderia ter considerado como factualidade provada, factos que estão ainda a ser julgados em sede criminal, e sobre os quais ainda não existe decisão, com trânsito em julgado, o que é manifestamente contrário à lei.

22. Pelo que, o douto acórdão recorrido encontra-se ferido de Nulidade, o que constitui fundamento de recurso, pelo que nessa medida deve a mesma ser revogada no sentido de ser o despedimento de AA considerado ilícito, e ser a Recorrida condenada nos pedidos contra esta formulados e em que havia sido condenada na sentença de 1ª instância.”

Por seu turno a recorrida apresentou nas contra-alegações a seguinte síntese conclusiva:

1. A Recorrida interpôs recurso da douta sentença proferida pelo Tribunal da 1.ª Instância, em que foi declarado ilícito o despedimento do trabalhador, AA e, consequentemente, a Recorrente condenada a pagar uma indemnização por antiguidade, em 15 dias de retribuição base por cada ano completo ou fração de ano, contada desde o dia 13 de Janeiro de 2003 e até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, e as retribuições líquidas que o trabalhador deixou de auferir desde a data do despedimento e até ao trânsito da sentença condenatória, deduzidas dos vencimentos que tenha auferido de outra entidade empregadora ou das quantias que tenha recebido, e absolvendo-a quanto ao demais.

2. A Recorrida não se conformando com aquela decisão recorrida, impugnou a matéria de facto e de direito e requereu a reapreciar a prova gravada, corroborada com a prova documental, a fim de dar como provados que o Trabalhador, ora Recorrente, utilizou o veículo e telemóvel da empresa para outros fins, nomeadamente para o transporte/entrega de estupefacientes, sendo que tais factos considerados provados são suficientes para julgar como válida e lícita a aplicação da sanção disciplinar de despedimento.

3. Posteriormente, por meio de acórdão, o Tribunal da Relação do Porto alterou a matéria de facto considerada como provado, concluiu em suma que constitui justa causa de despedimento o comportamento do trabalhador delegado de informação médica, que, com o seu conhecimento, transportou em viatura da empregadora, que lhe estava afecta para utilização profissional, pessoa que levava consigo produto estupefaciente (heroína) para entregar a um contacto desta.

4. Assim, o Tribunal da Relação decidiu dar provimento ao recurso interposto pela ora Recorrida, BB, e revogar, na parte impugnada, a sentença proferida pelo Tribunal da 1.ª Instância. Proferindo que, a sentença recorrida deve ser substituída pelo douto Acórdão do Tribunal da Relação, considerando ter ocorrido justa causa para o despedimento do Recorrente AA e absolver a Recorrida BB dos pedidos contra esta formulados e em que havia sido condenada em 1.ª instância.

5. Inconformado com este Acórdão, o Recorrente vem interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, fundamentando o mesmo na alteração à matéria de facto considerada como provada pelo Tribunal da Relação, a qual não poderia servir para determinar o provimento aquele recurso por violação dos direitos de defesa e princípio da presunção de inocência do Recorrente, por o processo crime ainda se encontrar em curso.

6. Primeiramente, os fundamentos do Recorrente quanto à alteração da matéria de facto considerada como provada devem ser julgados improcedentes, por inadmissíveis.

7. Efectivamente, o Tribunal da Relação do Porto efectuou a reapreciação da matéria de facto, tendo para esse efeito procedido à audição, por meio de transcrição, dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, incluindo as declaração de parte do próprio Autor, e analisado todos os documentos juntos aos autos, após o que, fundamentando a sua convicção, com referência ao tais elementos de prova ponderados e excertos dos depoimentos produzidos pelas respectivas testemunhas, alterou a redação dos alguns pontos G) e W) da matéria de facto e aditou, ainda, o ponto W1) à matéria de facto considerada como provada.

8. Nos termos do n.º 4 do art. 662.º do Código de Processo Civil, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça as decisões da Relação ao abrigo dos poderes de apreciação da matéria de facto, pelo que o presente recurso deverá ser considerado inadmissível.

9. Mais, quando está em causa a decisão de matéria de facto, apenas é admissível recurso de revista nos casos em que o Tribunal da Relação não tenha cumprido os deveres processuais a que estava obrigada quando é suscitada a reapreciação da prova, nomeadamente, a modificação da decisão da matéria de facto, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 647.º do CPC, ou, quando se demonstre a existência de violação de direito probatório material, nos termos do n.º 2 do art. 682.º e n.º 3 do art. 674.º ambos do CPC, o que não se verifica no caso em apreço.

10. O Recorrente impugna, tout court, a alteração da matéria de facto e o aditamento de nova matéria, sendo que não alega nem apresenta qualquer justificação no caso em concreto, de uma das situações/normas supra mencionadas. Razão pela qual, não existe motivo algum que sustente a procedência do recurso de revista quanto a esta questão da matéria de facto considerada como provada, porquanto nenhuma violação normativa lhe pode ser assacada.

11. O Recorrente alega, ainda, que o acórdão é violador dos direitos de defesa e do principio da presunção da inocência, fundamentando a sua convicção “os efeitos da decisão de despedimento não podiam deixar de estar dependentes da decisão final, com trânsito em julgado, que viesse a ser proferida no processo-crime” (…) “ Não se pode considerar o trabalhador culpado em sede de processo disciplinar, sem que a sua culpa (mormente em processo crime) se encontre provada e decretada por sentença que não seja passível de recurso.”

12. Quanto ao princípio de defesa do Recorrente, certamente o Recorrente deve estar equivocado, porquanto foram assegurados todos os procedimentos e meios necessários para o mesmo poder apresentar a sua defesa e provas com vista a garantirem a sua argumentação.

13. Não se vislumbra, em todo o processado decorrente da 1.ª Instância, qualquer violação do princípio da defesa, ao Recorrente foram garantidos todos os meios processuais para contestar, apresentando testemunhas ao processo, o que ocorreu e, prosseguiu-se para julgamento e alegações.

14. Em sede de recurso para o Tribunal da Relação, Tribunal de 2ª Instância, foram garantidos os formalismos processuais, com a notificação do Recurso, Alegações e Conclusões, ao Recorrente foi garantida a faculdade de apresentar contra-alegações e se opor a reapreciação da matéria de facto. Contudo, no caso em apreço, o Recorrente optou por não utilizar essa faculdade que lhe é concedida e não respondeu.

15. Facilmente se verifica que os formalismos legais se encontram todos verificados, inexistindo qualquer preterição de princípios de defesa do Recorrente.

16. Quanto à alegada violação do princípio da presunção da inocência, o Recorrente certamente, por desespero, pretende fazer crer que existe uma relação de prejudicialidade entre a acção disciplinar, do foro laboral, e a acção crime, o que no caso em apreço não se verifica.

17. Na acção laboral decidiu-se pela licitude do despedimento, por o empregador ter conseguido provar as infrações em cuja prática fundamentou a decisão de despedir. Efectivamente, o Trabalhador violou as normas internas da empresa e colocou em causa a relação de confiança existente entre empregador e trabalhador. O trabalhador ao utilizar os meios da empresa, telemóvel e o veículo da empresa para outros fins que não laborais violou os deveres a que se encontrava adstrito, com a agravante de o veículo pertencente a uma empresa de medicamentos e este ter sido utilizado para transportar pessoas que levavam consigo produto estupefaciente – heroína – para entregar a terceiros.

18. Acresce que, a entidade patronal aquando da acção juntou todos os elementos documentais e testemunhais, nomeadamente, os agentes policiais que procederam à detenção do trabalhador, sendo a prova lícita e válida, para confirmar a utilização do veículo para outros fins que não laborais e associados a ilícitos criminais. Ficou, assim, provado a violação dos deveres laborais pelo trabalhador.

19. Já na acção penal o trabalhador está acusado do crime de tráfico de estupefacientes pela prática de alguns dos factos que deram origem ao do processo de despedimento. Ou seja, em sede penal não se vai discutir a quem pertencia o carro que era utilizado pelo trabalhador, bem como se o trabalhador teria autorização para utilização do veículo indiscriminadamente, se o veículo estaria associado a uma empresa da indústria farmacêutica e se os factos a que deram origem ao processo crime poderiam colocar a empresa numa situação complicada a nível de licenças e autorizações.

20. Face ao exposto inexiste qualquer nulidade, devendo, pois, ser mantido a decisão proferida no Acórdão do Tribunal da Relação.

2 – ENQUADRAMENTO JURÍDICO

- Os presentes autos respeitam a ação de impugnação da regularidade e licitude do despedimento intentada em 4 de fevereiro de 2016.

- O acórdão recorrido foi proferido em 20.11.2017.

Assim sendo, são aplicáveis:

- O Código de Processo Civil (CPC) na versão conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho;

- O Código de Processo do Trabalho (CPT), na versão operada pelo DL n.º 295/2009, de 13 de outubro, entrada em vigor em 1 de janeiro de 2010.

3 - ÂMBITO DO RECURSO – DELIMITAÇÃO

Face às conclusões formuladas, as questões submetidas à nossa apreciação consistem em saber:

1 - Se constituindo os factos imputados ilícito criminal e não tendo ainda o arguido sido condenado no processo-crime, com trânsito em julgado, a Relação ao alterar a decisão sobre a matéria de facto e ao dá-los como provados violou o princípio da presunção da inocência consagrado no art. 32º da CRP;

2 – Se a decisão no procedimento disciplinar está dependente do trânsito em julgado da decisão a proferir no processo-crime.

FUNDAMENTAÇÃO

4.1 - OS FACTOS

Foram os seguintes os factos julgados provados pelas instâncias:

“A) - A Empregadora BB, Lda. é uma empresa da indústria farmacêutica que se dedica ao fabrico, comercialização, importação, exportação, distribuição, promoção e publicidade de produtos farmacêuticos e hospitalares.

B) - No dia 13 de Janeiro de 2003, o Trabalhador, AA, foi admitido ao serviço, mediante contrato de trabalho, para, sob autoridade e direção da empresa, exercer as funções de Delegado de Informação Médica (DIM).

C) - O Trabalhador em Janeiro de 2016 auferia a retribuição ilíquida mensal de € 2.125,00.

D) - No exercício das suas funções o Trabalhador utilizava o veículo ligeiro de passageiros da marca … modelo … com a matrícula -OH-, Telemóvel de marca Iphone, modelo …, ..., com o IMEI n.º …, cor preta, com o cartão SIM ... e respetivos acessórios, computador portátil ... e cartão ..., tudo pertença da Empregadora BB, Lda.

E) - Enquanto DIM, o Trabalhador integrava a Direcção de Vendas da Ré, surgindo hierarquicamente abaixo de EE, seu superior hierárquico direto e Chefe Regional de Vendas, e de FF, Chefe Nacional de Vendas.

F) - No dia 18 de Novembro de 2015 a Empregadora instaurou um procedimento disciplinar ao AA tendo decidido suspendê-lo preventivamente no decurso de tal procedimento disciplinar.

G) – (Alterado pela Relação) - No dia 02 de Dezembro de 2015 foi elaborada Nota de Culpa pelo representante legal da Empregadora, BB, e remetida ao trabalhador suspenso, advertindo o Trabalhador da intenção de se proceder ao seu despedimento, nota de culpa essa da qual consta o seguinte:

«(…)».

H) - O Trabalhador respondeu à Nota de Culpa, arrolando cinco testemunhas que foi recebida no dia 23 de Dezembro de 2015.

I) - No culminar do procedimento disciplinar, no dia 14 de Janeiro de 2016 a Empregadora comunicou ao Trabalhador o seu despedimento com invocação de justa causa.

J) - A Empregadora BB, Lda. procedeu ao levantamento junto da PSP do referido automóvel às 19 horas do dia 18 de Novembro de 2015 após o mesmo ter sido apreendido.

K) - O AA não compareceu ao trabalho quer no dia 18 de Novembro de 2015, quer no dia 19 de Novembro de 2015.

L) - No decurso do 1º interrogatório judicial foi-lhe aplicada a medida de coação de apresentação diária no posto policial da área da sua residência cumulada com a proibição de contacto com os restantes arguidos.

M) - Dá-se por integralmente reproduzido o teor do Auto de Apreensão junto aos autos a fls. 173.

N) - Nada consta do registo disciplinar do trabalhador enquanto esteve ao serviço da empregadora.

O) - No dia 18 de Novembro de 2015 o trabalhador AA faltou ao trabalho sem ter precedido de qualquer comunicação ao seu superior hierárquico, EE ou a qualquer outra pessoa da “BB”.

P) - Da parte da tarde daquele dia, a “BB” foi contactada telefonicamente e, posteriormente por e-mail, pela Polícia de Segurança Pública, 1ª Esquadra de Investigação Criminal, através do Sr. Agente GG, que informou que tinham procedido à detenção do AA, durante a madrugada do dia 18 de Novembro de 2015, que tinha sido apreendido o automóvel de matrícula “-OH-”, marca "…", modelo …, no âmbito do processo crime n.º 33/12.4PEPRT, que aquele trabalhador encontrava-se fortemente indiciado, por ligações ao tráfico de estupefacientes, tendo que naquela madrugada detido em flagrante delito enquanto estava a conduzir aquele veículo automóvel, que estava a ser utilizada para transporte/entrega de estupefacientes.

Q) - O Sr. Agente GG informou que estava a contactar aquela empresa, dado ter sido verificado que essa viatura não ser propriedade do AA, pertencendo a uma empresa de leasing com contrato celebrado com a “BB”, importando diligenciar pela entrega da viatura a esta empresa.

R) - No dia 19 de Novembro de 2015, à noite, o trabalhador AA telefonou à sua chefia direta, Sr. EE, confirmando que tinha estado detido nos dias 18 e 19, tendo então combinado encontrarem-se na manhã do dia seguinte.

S) - O AA não enviou para a “BB” nenhuma declaração de justificação da falta ao trabalho relativa e esses dias 18 e 19 de Novembro de 2015.

T) - A viatura de marca “…”, modelo “…”, matricula “-OH-”, foi colocada no dia 7 de fevereiro de 2014, à disposição do trabalhador AA para o exercício das suas funções profissionais, podendo pontualmente ser utilizada pelo trabalhador para seu uso pessoal, custeando o mesmo as despesas de combustível em viagens particulares.

U) - O horário de trabalho do AA era das 9h às 19h, com 2 horas para almoço, de segunda a sexta-feira.

V) - Na madrugada de 18 de Novembro de 2015 o AA não se encontrava nem ao serviço da empresa nem a desempenhar as suas funções.

W) – (Alterado pela Relação) - Na noite de 17 para 18 de novembro de 2015, o A. conduziu o veículo “…”, de matrícula -OH- para transportar DD que, com o conhecimento daquele, levava consigo uma embalagem de produto estupefaciente – heroína – com 9,707 gramas de peso líquido, para dela fazer entrega a terceiros.

W1) - (Aditado pela Relação) - A entrega acabou por não ocorrer dada a detenção da referida DD, nessa noite, após ter saído do veículo e quando se afastara cerca de 15 metros, tendo o A. sido igualmente detido, quase em simultâneo, quando se encontrava estacionado ao volante do referido veículo para aguardar o regresso daquela; as detenções de ambos foram efetuadas pelos agentes da Polícia de Segurança Pública, 1ª Esquadra de Investigação Criminal.

X) - O telemóvel da “BB” modelo Apple I Phone 4s e IMEI …, com o número de telefone ..., entregue ao AA para desempenho das suas funções foi apreendido nessa ocasião.

Y) - Esse telemóvel era para uso estritamente profissional.

Z) - Tal telemóvel continua apreendido à ordem do referido processo-crime.

AA) - Só é permitido o exercício da atividade profissional dos Delegados de Informação Médica se devidamente identificados e credenciados, sendo que essa credenciação é obtida mediante registo junto do CC, promovida pela entidade patronal.

AB) - A “BB” só admite ao seu serviço trabalhadores para desempenharem as funções de Delegado de Informação Médica, que não estejam indiciados pela prática de crimes, designadamente de tráfico de substâncias estupefacientes, por ser contra os seus princípios e só nessa condição se responsabiliza pelos seus trabalhadores junto do CC para obter a sua credenciação.

AC) - O AA era um trabalhador zeloso e diligente no exercício da sua atividade profissional, sendo um trabalhador dedicado à sua entidade empregadora, obtendo boas qualificações nas avaliações efetuadas por esta, mantendo um bom relacionamento profissional tanto com clientes como com colegas.

AD) - O AA ficou muito abatido pelo facto de ter sido despedido.”

4.2 - O DIREITO

Vejamos então as referidas questões (que por facilidade e porque interligadas apreciaremos em conjunto), esclarecendo-se, porém, que este tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações e conclusões, mas apenas as questões suscitadas ([3]).

4.2.1 – Se constituindo os factos imputados ilícito criminal e não tendo ainda o arguido sido condenado no processo-crime, com trânsito em julgado, a Relação, ao alterar a decisão sobre a matéria de facto e ao dá-los como provados, violou o princípio da presunção da inocência consagrado no art. 32º da CRP.

4.2.2 – Se a decisão no procedimento disciplinar está dependente do trânsito em julgado da decisão a proferir no processo-crime.

Nas alegações o recorrente qualifica o referido procedimento da Relação como nulidade do acórdão.

É inquestionável, porém, face ao estabelecido no art. 615º do CPC, que não se trata de qualquer nulidade do acórdão, mas, a proceder, de um erro de julgamento.

Estabelece o art. 32º da CRP:

(Garantias de processo criminal)

1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.

3. O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.

4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.

5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

6. A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento.

7. O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei.

8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.

9. Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.

10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.”

Pese embora a epígrafe do preceito ao referir “Garantias de processo criminal”, pareça limitar o princípio constitucional da presunção de inocência aos processos de natureza criminal, o nº 10 do preceito estende a garantia dos direitos de defesa e de audiência a quaisquer processos sancionatórios.

Como referiu o Tribunal Constitucional (Ac. 338/10, publicado no DR 1ª série, de 08/11/2010), o procedimento disciplinar laboral «enquanto conjunto ordenado de atos dirigido à eventual aplicação de uma sanção,… poderá considerar-se um processo (em sentido amplo) de natureza sancionatória”», pese embora a sua natureza privada e o facto de ser «levado a cabo por um dos sujeitos de uma relação jurídica obrigacional (que visa realizar fins próprios/privados) e [que] culmina sempre num “ato de parte”, ato que nas situações mais graves configura tipicamente uma declaração resolutória (como é o caso do despedimento)» ([4]).

Como refere Maria do Rosário Palma Ramalho ([5]), «são genericamente extensíveis os direitos de audiência e de defesa, constantes do art. 32º, nº 2 da CRP», ou seja, o princípio da presunção da inocência também existe no procedimento disciplinar, na medida em que o Código do Trabalho consagra o princípio do contraditório (arts. 329º, nº 6, 353º e segs.), isto é, não pode o trabalhador ser punido disciplinarmente sem que seja feita a prova dos factos integradores de infração disciplinar e se lhe dê a oportunidade de se defender.

Todavia, «[o] princípio da presunção de inocência, consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, tendo a sua projecção plena no âmbito do apuramento da responsabilidade criminal, a efectuar em procedimento que se caracteriza por não ser um processo de partes e do qual está afastada a imposição ao arguido de qualquer ónus probatório, não vigora, com o mesmo alcance, em processos sancionatórios emergentes do incumprimento de deveres inseridos em relações jurídicas de carácter obrigacional, relativamente aos quais, a lei fundamental (n.º 10 do referido artigo 32.º) apenas exige que sejam assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa» ([6]).

A referida extensão, ainda que os factos imputados constituam ilícito criminal e tenha sido instaurado nas instâncias judiciais o respetivo procedimento, não acarreta a prejudicialidade do processo-crime relativamente ao procedimento disciplinar, ou qualquer situação de dependência entre eles.

Como se disse, o procedimento disciplinar tem natureza privada, é um processo de partes, visando sancionar uma delas pelo incumprimento das obrigações contratuais. Já o processo-crime reveste natureza pública e visa o sancionamento do arguido pela prática de atos violadores de deveres ou obrigações sociais e que a lei penal qualifica como crime. Naquele é exercido o poder punitivo privado (do empregador) e neste é o poder punitivo do Estado que está em causa.

«A decisão absolutória ou condenatória do processo penal não condiciona nem prejudica a decisão que aprecia a justeza do despedimento, ainda que os factos a que se reporta a decisão disciplinar possam coincidir (total ou parcialmente) com os factos constantes da acusação criminal, na medida em que os pressupostos e objectivos dos dois processos são distintos: enquanto no laboral se analisam os factos em termos de infracção disciplinar, de forma a apreciar se os mesmos constituem justa causa de despedimento, no processo penal averigua-se se constituem crime, na perspectiva da eventual aplicação de uma pena criminal» ([7]).

O processo-crime não detém o monopólio da elisão da presunção da inocência com a sentença condenatória transitada em julgado. Basta pensar-se no caso mais comum em que os atos imputados apenas têm relevância disciplinar. Como é evidente, é no âmbito do procedimento disciplinar e depois em sede de impugnação judicial que a presunção de inocência será eventualmente ilidida.

Acresce que a absolvição do arguido (trabalhador) no processo-crime, com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, apenas constitui, em quaisquer ações de natureza civil, nomeadamente na ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário (art. 624º, nº 1, do CPC). Ou seja, não tem força de caso julgado.

O Código do Trabalho limita a repercussão do processo-crime no âmbito disciplinar, rectius, dos factos que, para além de infração disciplinar, constituem crime, ao prazo de prescrição do direito de exercer o poder disciplinar, que passa a ser o da lei penal, em vez do prazo geral de um ano (art. 329º, nº 1).

Por outro lado, impondo o nº 2 do art. 329º que o procedimento disciplinar se inicie nos 60 dias subsequentes ao conhecimento da infração pelo empregador ou pelo superior hierárquico com competência disciplinar, se a decisão disciplinar só pudesse ser proferida depois da decisão penal transitada, como pretende o recorrente, o procedimento disciplinar teria que ser suspenso até esta decisão. Ora, o Código do Trabalho não prevê tal suspensão, impondo, ao invés, que o mesmo seja concluído no prazo de um ano sob pena de prescrição do procedimento disciplinar (art. 329º, nº 3).

Não existe assim qualquer prejudicialidade do processo-crime relativamente ao procedimento disciplinar nem violação do princípio da presunção de inocência.

Importa finalmente referir que não vem questionada a justa causa e a licitude do despedimento no caso de se considerar, como se considerou, não merecer censura o acórdão revidendo na medida em que alterou a decisão sobre a matéria de facto. Ou seja, o recorrente não submeteu à apreciação deste Supremo Tribunal a questão de saber se os factos que foram julgados provados pela Relação constituem justa causa de despedimento.

Termos em que, concluímos, não merecer censura o acórdão recorrido.

DECISÃO

Pelo exposto delibera-se:

1 – Negar a revista.

2 – Confirmar o acórdão recorrido.

3 – Condenar o recorrente nas custas da revista.

Anexa-se o sumário do acórdão.

                            Lisboa, 4.07.2018

Ribeiro Cardoso (Relator)

Ferreira Pinto

Chambel Mourisco



_______________________
[1] Acórdão redigido segundo a nova ortografia com exceção das transcrições (em itálico) em que se manteve a original.
[2] Cfr. 635º, n.º 3 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil, os Acs. STJ de 5/4/89, in BMJ 386/446, de 23/3/90, in AJ, 7º/90, pág. 20, de 12/12/95, in CJ, 1995, III/156, de 18/6/96, CJ, 1996, II/143, de 31/1/91, in BMJ 403º/382, o ac RE de 7/3/85, in BMJ, 347º/477, Rodrigues Bastos, in “NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL”, vol. III, pág. 247 e Aníbal de Castro, in “IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS”, 2ª ed., pág. 111.    
[3] Ac. STJ de 5/4/89, in BMJ, 386º/446 e Rodrigues Bastos, in NOTAS AO Código de Processo CivIL, Vol. III, pág. 247.
[4] Ac. STJ de 25.09.2014, proc. 414/12.3TTMTS.P1.S1 (Mário Belo Morgado), in www.dgsi.pt.
[5] Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 5ª edição, pág. 984.
[6] Ac. do STJ de 1.10.2008, recurso n.º 718/08 (Vasques Dinis).
[7] Ac. do STJ de 5.11.2008, recurso n.º 10/08 (Sousa Grandão).