Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
98A1195
Nº Convencional: JSTJ00035821
Relator: GARCIA MARQUES
Descritores: LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DIREITO AO BOM NOME
OFENSAS À HONRA
RESPONSABILIDADE CIVIL
DANOS MORAIS
DOLO ESPECÍFICO
CULPA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ199902030011951
Data do Acordão: 02/03/1999
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N484 ANO1999 PAG339
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 6697/97
Data: 06/04/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR PERS / DIR RESP CIV.
Legislação Nacional: CONST97 ARTIGO 8 N1 ARTIGO 18 N1 ARTIGO 25 N1 ARTIGO 26 N1 ARTIGO 37.
CCIV66 ARTIGO 70 N1 N2 ARTIGO 71 N1 ARTIGO 483 ARTIGO 484 ARTIGO 487 N2 ARTIGO 496 N1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1973/03/20 IN BMJ N225 PAG222.
ACÓRDÃO STJ DE 1976/05/14 IN BMJ N257 PAG131.
ACÓRDÃO STJ PROC66255 DE 1976/07/09.
ACÓRDÃO STJ PROC79804 DE 1991/03/05.
ACÓRDÃO STJ DE 1992/11/03 IN BMJ N421 PAG400.
ACÓRDÃO STJ PROC82344 DE 1993/03/09.
ACÓRDÃO STJ DE 1996/03/05 IN CJSTJ ANOIV TI PAG122.
ACÓRDÃO STJ PROC87439 DE 1995/10/03.
ACÓRDÃO STJ DE 1997/05/27 IN CJSTJ ANOV TII PAG102.
Sumário : I - À responsabilidade civil por ofensas à personalidade física ou moral (artigo 7, n. 2, 1ª parte do C.Civil) são aplicáveis, em termos gerais, os artigos 483 e segs. do C.Civil.
II - O bom nome surge expressamente tutelado nos artigos 26, n. 1, da CONST97, e 484 do C.Civil.
III - Para subsumir o facto à previsão do artigo 484 do C.Civil basta que se verifique a mera culpa, não sendo de exigir que a afirmação ou difusão do facto seja voluntário,no sentido de haver, por parte de quem afirma ou difunde esse facto, a intenção de prejudicar o bom nome da pessoa a quem é imputado o facto afirmado ou difundido.
IV - Assim, pouco importa que o facto afirmado ou divulgado corresponda ou não à verdade, contanto que seja susceptível, dadas as circunstâncias do caso, de abalar o prestígio de que a pessoa goze, ou o bom conceito em que seja tida no meio social em que vive ou exerce a sua actividade.
V - A subsunção da realidade fáctica apurada pela Relação à cláusula geral da "diligência de um bom pai de família, a que alude o artigo 487, n. 2, cai no âmbito dos poderes do STJ por se tratar de aplicação de um critério legal.
VI - A gravidade do dano há-de aferir-se por um padrão objectivo que tenha em conta o circunstancialismo de cada caso, e não por padrões subjectivos resultantes de uma sensibilidade embotada ou, ao invés, especialmente sensível, cabendo ao tribunal dizer, em cada caso, se o dano, dada a sua gravidade, merece ou não tutela jurídica.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
Em acção declarativa de condenação, com processo ordinário, A, viúva de B, e os filhos deste, C, D, E, F e G, demandaram H, I, J, L e M, pedindo:
- que fosse "reconhecido que os RR., com os escritos de que assumiram a responsabilidade e autoria, ofenderam gravemente a honra, consideração e dignidade pessoal e profissional do Professor B, com isso tendo causado elevados danos morais aos ora AA.";
-que os RR. fossem "solidariamente condenados a pagar aos AA., a título de reparação dos danos não patrimoniais, uma indemnização que se computa em, no mínimo, 5000000 escudos, reafirmando os AA. o seu público compromisso de fazer reverter tal indemnização para as instituições referidas no artº 163º desta petição".
A acção foi contestada, tendo sido absolvidos da instância, por terem sido consideradas partes ilegítimas, os RR. I, J, L e M.
Foi julgada improcedente a excepção de caso julgado, deduzida pelo primeiro Réu. Houve despacho saneador, especificação e questionário, tendo, em audiência de julgamento, sido respondido aos quesitos pela forma constante de fls. 438-439.
Com data de 27 de Dezembro de 1994, foi proferida a sentença de fls. 446 a 453, a julgar a acção improcedente, com absolvição do (único) R. (H) do pedido.
Inconformados, os AA. interpuseram recurso, recebido como apelação.
Em 18-08-95 ocorreu o óbito da A. A, sendo seus herdeiros os restantes AA.
Em 15-01-96 ocorreu o óbito do R. Professor H, sendo seus herdeiros os seus filhos N, O e P.
Por acórdão de 04-06-98, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, confirmando a decisão da 1ª instância.
Inconformado com o decidido, o A. D interpôs o presente recurso de revista, oferecendo, ao alegar, as seguintes conclusões:
1. O Acórdão recorrido negou provimento ao recurso interposto pela simples razão de entender que em causa estavam apenas duas versões sobre os acontecimentos ocorridos em 1968 com a doença e falecimento de Salazar, mais tendo entendido que o recorrente e demais autores não lograram provar o animus difamandi, sendo indiferente provar-se, ou não, a versão dos factos;
2. A própria sentença recorrida reconheceu que a causa em discussão é uma questão complexa e muito delicada que só a avalanche de processos que vai submergindo os Tribunais não permitiu o estudo da questão com maior profundidade;
3. Neste recurso, este Venerando Supremo Tribunal de Justiça tem uma última oportunidade de julgar a complexidade de toda esta questão em que um artigo subscrito pelo Dr. H consumou um ataque feroz, público e violento, com difamações contra o bom nome e memória do saudoso e querido Professor B;
4. O Tribunal Colectivo, ao ter decidido remeter para o artigo susbcrito pelo Dr. H a resposta a dar aos quesitos 13 e 14, reconheceu que a ofensa à honra e memória dependia da análise objectiva desse mesmo artigo, conjugado com as respostas aos restantes quesitos e com todos os documentos juntos aos autos;
5. A intenção de difamar resulta de um juízo normativo a realizar, na falta de outro critério geral, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso concreto (artigo 487º do Código Civil). Tal animus difamandi e injuriandi deve ser determinado e julgado de acordo com a conduta normal do cidadão comum in abstracto, e não segundo a diligência do autor do escrito in concreto;
6. O referido escrito do Dr. H, com a sua versão dos factos, deveria ter respeitado o bom nome, honra e memória do Professor B, o que manifestamente não fez;
7. Desse escrito só se pode extrair a conclusão que o Dr.H insinuou que o Professor B era um mentiroso. Desse mesmo escrito também se conclui que o Dr. H insinuou que o Professor B era um incompetente;
8. Desse escrito resulta ainda que o Dr. H insinuou ser o Professor B venal e desonesto;
9. Ainda desse escrito se tem de retirar a conclusão de que o Dr. H insinuou ser o Professor B um médico negligente;
10. Por fim também se terá de concluir que o Dr. H, com o seu escrito, insinuou tratar-se o Professor B de um homem belicoso e rixão;
11. Estas conclusões tiram-se da análise objectiva do aludido escrito, quando o recorrente e demais autores conseguiram provar que, em diversas passagens, o Dr. H mentiu de forma consciente e deliberada. Com essas mentiras conseguiu dar uma imagem deplorável ou, como o Dr.... reconhece, "um retrato repugnante do Professor B, desde a incompetência profissional à mentira, passando pelo arrangismo político";
12. O próprio Conselho Disciplinar do Sul da Ordem dos Médicos, a fls. 31 dos autos, reconhece que o escrito do Dr. H contém numerosas alusões depreciativas ao falecido Professor B, sendo ofensivas à memória deste, sendo maldosas as insinuações feitas pelo Dr. H., que não teve um comportamento adequado à dignidade da sua profissão, violando um dever de solidariedade médica e lealdade para com um Colega;
13. Os próprios recorridos que uma versão dos mesmos factos relatada por um determinado jornalista logrou ofender o bom nome, honra e consideração do Dr. H (sic, no texto), pelo que reconhecem que a circunstância de se tratar de uma narração de factos com uma opinião pessoal dos mesmos não pode afastar, só por si, a censura e punibilidade desse mesmo escrito, como sucede com o artigo do Dr. H em que este sob a capa de uma pretensa narração desferiu um inacreditável (sic, no texto) ao bom nome e memória do saudoso Professor B;
14. Assim, o escrito do Dr.H constituiu uma ofensa à memória e ao bom nome do Professor B, enquadrando uma violação dos direitos consagrados nos artigos 70º a 73º do Código Civil e artigos 24º a 27º e 34º da Constituição da República, devendo os recorridos ser condenados a indemnizar o recorrente conforme pedido formulado na petição inicial.
O recorrente terminou, pedindo a revogação do acórdão recorrido, "(...) reconhecendo-se que o Dr.H, com o seu escrito de fls. 17 e 18, ofendeu gravemente a honra, consideração e dignidade pessoal e profissional do Professor B, devendo os recorridos ser condenados a pagar um montante não inferior a cinco milhões de escudos, que reverterá para as Bibliotecas B".
Os recorridos contra-alegaram, pugnando pela confirmação do decidido pelo Tribunal a quo.
II
Foi a seguinte a matéria de facto que as instâncias deram como provada:
- O semanário "O Jornal" publicou na sua edição de ..de ... de 1988 um dossier com o título "Mistérios da Queda de Salazar" em que cita escritos deixados pelo Professor A - alínea A) da Especificação.
- Nesses escritos o Professor B afirma que "o Dr. H foi chamado por mim por eu ter feito o diagnóstico de hematoma intracraneano, subdural e entender que era urgentíssima a intervenção cirúrgica. Fui eu que tive de assumir a responsabilidade do dignóstico e da intervenção cirúrgica, por os neurocirurgiões presentes não concordarem com o diagnóstico e fi-lo sempre na qualidade de médico assistente" - alínea B) da Especificação.
- O Professor ... foi durante mais de 20 anos, e até à sua morte, médico assistente de Salazar, e faleceu há mais de 15 anos - alínea C) da Especificação.
- A é viúva do Professor B e C, D, E, F e G são filhos do Professor B - alínea D) da Especificação.
- - O Professor H foi neurocirurgião e, nessa qualidade, presidiu à equipa médica que, em Setembro de 1968, efectuou a intervenção cirúrgica ao hematoma intracraneano subdural de que sofria Salazar - alínea E) da Especificação.
- O Professor H, na edição de.... ..de 1988 de "O Jornal", respondeu aos escritos do Professor B, dizendo, entre outras coisas:
- "O depoimento do Professor B, falseia toda a verdade";
- "Em 5 de Setembro disse-me que não se tratava de qualquer urgência, era um doente que estava até muito bem";
- "A 6 de Setembro, à tarde, disse-me que o Dr. Salazar estava perfeitamente bem, tinha dado uma queda mas que tudo se resolvera";
- "A partir desse momento só havia uma pessoa responsável - eu. Não tenho culpa que o Sr. Professor B tenha chegado à idade a que chegou sem compreender que o único responsável dum acto cirúrgico é o cirurgião. Não entra na cabeça dum cirurgião digno desse nome ir operar um paciente à responsabilidade de um médico assistente";
- "A partir daí começaram a surgir dificuldades por parte do Professor B que entendia que o doente devia voltar para casa apesar de poderem surgir complicações. Eu não tomava a responsabilidade de lhe dar alta antes de, pelo menos, duas semanas";
- "Sobre a sua isenção devo lembrar que uma tarde disparou-me "(...) assim que o Senhor Presidente do Conselho voltar para São Bento vai mandar fazer um Instituto de Cardiologia para mim (...)";
- Decorridos oito dias (...), Salazar sentiu-se muito mal após o almoço (...) estava em situação desesperada podendo morrer a qualquer momento. Dizem-me que o Professor B descreveu a Salazar a operação feita, seguramente com a perfeição que seria de esperar na descrição duma intervenção neurocirúrgica feita por um especialista em cardiologia";
- "Se tenho aceite a sugestão do Professor B de ele ir para São Bento ao 4º dia de operado tinha morrido";
- "As relações com o Professor B complicaram-se ainda mais. Certa vez tive que me meter entre o Professor X e ele para evitar uma cena de pugilato";
- "A ... de Dezembro, numa entreveita ao "Primeiro de Janeiro", o Professor B diz que os neurocirurgiões e os neurologistas não eram precisos para nada. Ao ler o jornal na frente do Presidente da República disse não ter dado qualquer entrevista e que eram intrujices habituais dos jornalistas";
- "Posto perante a evidência (do registo magnético) B confirmou que fez declarações e que se tinha esquecido da conversa telefónica tida com o jornal" - alínea F) da Especificação.
- O Professor B é autor dos trabalhos científicos referidos de fls. 29 a 48 dos autos e o Professor H possui o "curriculum vitae" que se mostra fotocopiado de fls. 207 a 216 - alíneas G) e H) da Especificação.
- Com base nestes mesmos factos os Autores apresentaram queixa crime contra o Professor H que não chegou a ser pronunciado, decisão confirmada pela Relação de Lisboa - alínea I) da Especificação.
- O Réu hesitou, até ao último momento, sobre a necessidade de realizar a intervenção cirúrgica - Resposta ao quesito 1º.
- Até ser tomada a decisão de operar, o Réu hesitou no diagnóstico: hematoma ou trombose - Resposta ao quesito 4º.
- O Professor B, desde Agosto, falava na possibilidade de hematoma - Resposta ao quesito 5º.
- O Professor B só telefonou ao Réu no dia 5 de Setembro - Resposta ao quesito 6º.
- O Professor B não esteve presente ao almoço em que Salazar se sentiu muito mal - Resposta ao quesito 8º.
- A intervenção cirúrgica foi descrita a Salazar antes de se efectuar - Resposta ao quesito 9º.
- O Professor B, telefonicamente, respondeu a perguntas formuladas por jornalista de "- Primeiro de Janeiro"- tendo as suas respostas sido publicadas naquele jornal sob a forma de entrevista - Respostas aos quesitos 11º e 12º.
- Os Autores ficaram magoados com a publicação do artigo - Resposta ao quesito 16º.
- Os Autores continuam magoados e sentem-se revoltados - Respostas aos quesitos 17º e 18º.
Justificar-se-á ainda conhecer a formulação de alguns quesitos que o Colectivo veio a considerar como "não provados" ou aos quais veio a ser dada resposta limitativa.
Assim:
a) Foi dada a resposta de "Não Provado" aos quesitos 2º, 3º, 7º e 10º, respectivamente, do seguinte teor:
- Quesito 2º: (O Réu) só a realizou (a intervenção cirúrgica) por expressa determinação do Professor B?
- Quesito 3º: Que assumiu a responsabilidade pela sua realização?
- Quesito 7º: O Professor B nunca defendeu a ideia do regresso de Salazar a S. Bento poucos dias após a realização da operação?
- Quesito 8º: Nunca houve qualquer disputa entre os Profs. X e B?
b) Entretanto, obtiveram resposta limitativa os quesitos 4º, 5º, 11º e 12º, 13º, 14º e 15º. 16º, 17º e 18º.
Pelo interesse de que se reveste a formulação de alguns desses quesitos e as respostas que lhes foi dada, a seguir se reproduzem, na totalidade:
- Quesito 4º: O Réu sempre hesitou no diagnóstico: trombose ou hematoma? Resposta: Provado apenas que o Réu, até ser tomada a decisão de operar, hesitou no diagnóstico: hematoma ou trombose.
- Quesito 5º: Enquanto o Professor B, desde Agosto, falava na possibilidade de hematoma?
- Resposta: Provado apenas que o Professor B, desde Agosto, falava na possibilidade de hematoma.
- Quesito 11º: O Prof. B não deu qualquer entrevista ao "Primeiro de Janeiro"?
- Quesito 12º: Limitando-se a responder a um telefonema duma jornalista?
- Resposta aos quesitos 11º e 12º: Provado apenas que o Prof. B, telefonicamente, respondeu a perguntas formuladas por jornalista de "O Primeiro de Janeiro", tendo as suas respostas sido publicadas naquele jornal sob a forma de entrevista".
- Quesito 13º: Com o seu relato, o Réu insinuou que o Prof. B era mentiroso, incompetente, desonesto, negligente e belicoso?
- Quesito 14º: Com a intenção de ofender a sua memória?
- Quesito 15º: O Réu limitou-se a descrever, de forma clara e objectiva, os factos ocorridos?
- Resposta aos quesitos 13º, 14º e 15º: Provado apenas o que consta do documento de fls. 17 e 18.
- Quesito 16º: Desde a publicação dos artigos do Réu, os Autores vivem mergulhados no mais profundo constrangimento?
- Resposta: Provado apenas que os Autores ficaram magoados com a publicação do artigo.
- Quesito 17º: E são hoje pessoas profundamente magoadas e amarguradas?
- Resposta: Provado apenas que os Autores continuam magoados.
- Quesito 18º: E desde aquela data vivem na mais incontida ( e justificada) revolta?
- Resposta: Provado apenas que os Autores se sentem revoltados.
III
1 - O pano de fundo que envolve - e, de certo modo, explica - o conflito que opôs duas figuras respeitadas da medicina portuguesa deste século, tem que ver com o diagnóstico e tratamento de uma fase crítica da grave doença de Salazar que viria a conduzir à sua morte física, depois de ter mergulhado o País numa crise política que culminaria com a sua substituição no cargo de Presidente do Conselho de Ministros.
As distintas descrições das circunstâncias de facto que rodearam os acontecimentos, acrescendo à crispação das relações profissionais - e pessoais - entre os Professores intervenientes foram factores determinantes da evolução litigiosa verificada, para o que não terá deixado de contribuir o facto de nenhum dos protagonistas - bem como dos seus familiares próximos e queridos - aceitar ver o respectivo nome amarrado ao pelourinho da História como possível responsável por um insucesso médico na pessoa do estadista.
Num clima assim desenhado, onde são patentes o culto da imagem, a rivalidade pessoal e algum ciúme profissional, seriam, na prática, inevitáveis algumas reacções excessivas ou algumas desconfianças menos justificadas.
A circunstância de nos competir julgar, aplicando a lei com serenidade, objectividade e isenção, não nos impede de deixar, à guisa de preâmbulo, uma palavra de lamento pelas proporções que a discordância legítima de opiniões e uma divergência compreensível de diagnósticos entre profissionais distintos vieram a assumir no presente caso.
E, desde já, se deixa registado, independentemente da decisão, que se verificam, ao longo destes autos, e de ambas as partes, exageros e excessos, apenas explicáveis em virtude do ambiente de intolerância que se instalou, e que se deplora.
2 - O acórdão recorrido, ao negar provimento à apelação, baseou-se fundamentalmente na interpretação que fez do artigo 484º do Código Civil, que, sob a epígrafe "Ofensa do crédito ou do bom nome", estabelece o seguinte:
Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados.
Sustentou o Tribunal a quo resultar da disciplina constante desse preceito que, para que se desse como assente que a conduta do Réu Dr. H era subsumível à respectiva previsão, se impunha que se pudesse concluir que o mesmo, no escrito que está em causa nos presentes autos, tivesse tido a intenção de prejudicar o bom nome do Prof. B.
Com efeito, escreve-se na decisão sob recurso que "o acto tem de ser voluntário, no sentido de que quem difunde ou afirma um facto deve, com esse acto, ter intenção de prejudicar o bom nome da pessoa a quem é imputado o facto difundido ou afirmado". Após o que se acrescenta, no acórdão recorrido, o seguinte:
Ora, no caso dos autos, aos AA. cabia, por isso, e nos termos do art. 342º, nº 1, do C. Civ., o ónus de provar que o R. inicial tinha tido a intenção de difamar a memória do prof. B - com as expressões que utilizou no artigo em que "respondeu" ao que constava em artigo anterior, no qual, invocando escritos daquele Prof. B, era mencionado o seu nome.
Assim, tendo o Tribunal recorrido considerado que a prova da mencionada intenção cabia aos AA. e que, "perante os factos provados e, em especial, as respostas dadas aos quesitos 13º e 14º, não se pode concluir que o Professor H tenha tido a intenção de ofender a memória do Prof. B - mas apenas que há divergência de opinião nos relatos que cada um fez do que se passou com a doença de Salazar", entendeu por bem negar provimento ao recurso.
Vejamos se assim é.
Justifica-se, no entanto, um prévio enquadramento teórico a respeito da natureza e conteúdo do direito ao bom nome e reputação, começando-se por um breve excurso no quadro do texto constitucional, após o que se passará para o âmbito das disposições aplicáveis do Código Civil.
3 - Qualquer cidadão goza dos direitos (fundamentais) à integridade pessoal, maxime, na sua componente da integridade moral, e ao bom nome e reputação - cfr. artigos 25º, nº 1, e 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa ( ) Segundo o artigo 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, cujas normas são objecto de automática recepção no nosso direito (artigo 8º, nº 1, da C.R.P.), ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei.).
O direito à integridade pessoal consiste, primeiro que tudo, num direito a não ser agredido ou ofendido, no corpo ou no espírito, por meios físicos ou morais. Escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira ("Constituição da República Portuguesa Anotada", 3ª edição revista, Coimbra Editora, pág 177), que, "sendo um direito organicamente ligado à defesa da pessoa enquanto tal, compreende-se não apenas a forma enfática utilizada pela Constituição, («...é inviolável»: nº 1) mas também a protecção absoluta que lhe confere, não podendo ser afectado mesmo no caso de suspensão de direitos fundamentais na vigência de estado de sítio ou de estado de emergência (artigo 19º, nº 6)".
E acrescentam: "Este direito vale, naturalmente, não apenas contra o Estado mas, igualmente, contra qualquer outra pessoa" (sublinhado agora)
Por sua vez, o direito ao bom nome e reputação (nº 1 do artigo 26º)."consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação (cfr. Código Penal, artigos 164º e 165º). Neste sentido, este direito constitui um limite para outros direitos (designadamente, a liberdade de informação e de imprensa)". (sublinhado agora) - cfr. loc cit, págs. 180 e 181.
Não só este direito constitui um limite para outros direitos, mas também, "os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas (artigo 18º, nº 1 da Constituição da República).
São normas dotadas de eficácia imediata, vinculando as entidades públicas (e privadas), a começar pelo Estado, quer como legislador ou responsável pelo exercício de actos próprios de qualquer dos poderes de soberania, quer enquanto administração, seja no âmbito da "administração coactiva", seja no contexto da "administração de prestações".
3.1. - Na abordagem a que procedeu a propósito das normas tipificadoras dos crimes de difamação e injúria ( ) Cfr. os artigos 407º e 410º do Código Penal de 1886), Beleza dos Santos, depois de escrever que estas infracções têm como objecto jurídico as duas ordens de interesses que se exprimem pelas palavras honra e consideração , caracterizou tais conceitos do seguinte modo:
A honra refere-se ao apreço de cada um por si, a auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social ( ) Cfr. "Algumas considerações jurídicas sobre os crimes de difamação e de injúria", in RLJ, Anº 92, nº 3152, págs. 164 e segs.) ( ) Desenvolvendo esta temática, pode ver-se o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº 114/82, no qual se regista, em nota marginal, que, além da "honra" e "consideração", também é frequente a lei falar em "bom nome e reputação" (é o caso da Constituição da República, no artigo 26º, nº 1). Com efeito, Beleza dos Santos (...) ensina que palavars como "dignidade", "decoro", "bom nome" e "reputação" traduzem, exacta ou aproximadamente, os mesmos conceitos de "honra" e "consideração".).
Reflectindo acerca destes conceitos, acrescenta, em nota de rodapé, Barbosa dos Santos:
O sentimento da honra e o apreço pela consideração dos outros não se encontram dissociados na generalidade das pessoas, antes se combinam, por modo que um dos motivos por que se aprecia a própria dignidade é o da consideração pública e uma das razões por que esta pode procurar-se é a de confirmar e estimular a afirmação do próprio valor perante nós mesmos. Em alguns casos predomina o desejo de a pessoa valer por si, em outros o de se fazer valer aos olhos dos outros.
É curioso, por exemplo, o que se lê a este respeito no Ensaio de alguns synonymos da lingua portuguesa, do Cardeal SARAIVA. «Tem honra» - diz este autor - «o homem que constantemente, e por um sentimento habitual, procura alcançar a estima, boa opinião e louvor dos outros homens e trabalha por o merecer ..." E acrescenta: «O sentimento de honra nasce de hum bem entendido amor de nós mesmos, e nos leva directamente à virtude e às acções generosas, como único meio de alcançarmos boa opinião e louvor dos outros homens». (Obras completas, tomo VII, págs. 186 e 187).
3.2. - Versando sobre a "tutela geral da personalidade", o nº 1 do artigo 70º do Código Civil, diploma a que pertencerão os preceitos que se indiquem sem outra menção, dispõe o seguinte:
A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral ( ) Escreve Capelo de Sousa, in "O Direito Geral de Personalidade", 1995, pág. 117: "Poderemos definir positivamente o bem de personalidade humana juscivilisticamente tutelado como o real e potencial físico e espiritual de cada homem em concreto, ou seja, o conjunto autónomo, unificado, dinâmico e evolutivo dos bens integrantes da sua materialidade física e do seu espírito reflexivo, sócio-ambientalmente integrado". ).
E o seu nº 2 inclui expressamente a responsabilidade civil entre os meios gerais de tutela da personalidade física ou moral.
Já o Anteprojecto do Professor Manuel Andrade - BMJ nº 102, pág. 155 - no seu artigo 6º, parágrafo 1, estipulava que "a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita à sua personalidade". Paralelamente, o Professor Vaz Serra, no projecto sobre requisitos de responsabilidade civil - BMJ nº 92, págs. 82 e segs., 99, 111 e 135 -, reconhecia, no seu artigo 1º, a existência de um direito geral de personalidade, "direito de exigir de outrém o respeito da própria personalidade, na sua existência e nas suas manifestações".
Numa perspectiva de tutela juscivilística, escreve Capelo de Sousa que "a honra abrange desde logo a projecção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela natureza igualmente a todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância (...).
-Em sentido amplo, inclui também o bom nome e reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político" ( ) Cfr. loc. cit. na nota anterior, págs. 303 e 304.).
Por sua vez, nos termos do nº 1 do artigo 71º, sob a epígrafe "Ofensas a pessoas já falecidas", os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular.
À responsabilidade civil por ofensas à personalidade física ou moral (cfr. artigo 70º, nº 2, 1ª parte) são aplicáveis, em termos gerais, os artigos 483º e seguintes.
O princípio geral em matéria de responsabilidade por actos ilícitos consta justamente do artigo 483º, que estabelece o seguinte:
1 - Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
2 - Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.
Por outro lado, o artigo 484º dispõe, como já se viu, que quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados.
O bom nome surge, pois, expressamente tutelado nos artigos 26º, nº 1, da CRP e no artigo 484º. Refira-se, a propósito, o Acórdão deste STJ de 09-07-76, processo nº 66255, em cujo sumário se pode ler:
I - Os artigos 70º e 484º do Código Civil que estabelecem a defesa dos direitos de personalidade abrangem o direito ao bom nome e à reputação, cuja violação, por antijurídica e culposa, é fonte de indemnização.
Como se observa no Acórdão deste STJ de 03-10-95, processo nº 087439, para além das duas disposições básicas de responsabilidade civil, constantes do artigo 483º, nº 1 - violação dos direitos de outrem e violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios - o nosso legislador recebeu uma série de previsões particulares que concretizam ou completam aquelas. É justamente o caso do artigo 484º, a par dos artigos 485º e 486º, estes agora desprovidos de relevo.
Daí que, escreve-se no local citado, reproduzindo o Acórdão deste STJ de 14-05-76, BMJ nº 257, pág. 131, "a ofensa ao crédito e bom nome prevista no artigo 484º não é mais do que um caso especial de facto antijurídico definido no artigo 483º, pelo que se deve considerar subordinada ao princípio geral do artigo 483º".
3.3. - Já se disse que o acórdão recorrido considerou ser de exigir que a afirmação ou difusão do facto a que se refere o artigo 484º seja voluntária, no sentido de haver, por parte de quem afirma ou difunde esse facto, a intenção de prejudicar o bom nome da pessoa a quem é imputado o facto afirmado ou difundido.
Ou, à semelhança do que defende o Recorrido, exigir-se-ia, para haver lugar a responsabilidade civil, o animus injuriandi vel difamandi - cfr. verbi gratia, a conclusão 9ª da contra-alegação.
Não é, no entanto, essa a melhor interpretação do preceito em causa, bastando que se verifique mera culpa para que ocorra também o caso de responsabilidade civil a que se refere o artigo 484º.
3.3.1. - Vejamos alguns elementos doutrinários.
Referindo-se ao que apelida de "casos especiais de ilicitude" previstos no Código Civil, Mário Júlio Almeida Costa, depois de considerar que um desses casos é justamente o da ofensa do crédito ou do bom nome, escreve o seguinte:
Como se infere da lei, tem de haver a imputação de um facto, não bastando alusões vagas e gerais. Parece indiferente, todavia, que o facto afirmado ou difundido seja verdadeiro ou não. Apenas interessa que, dadas as circunstâncias concretas, se mostre susceptível de afectar o crédito ou reputação da pessoa visada (...)"(7) Cfr. "Direito das Obrigações", 4ª edição, pág. 371.).
Por sua vez, Antunes Varela, abordando o que qualifica de factos antijurídicos especialmente previstos na lei, esclarece o seguinte: "Além das duas directrizes de ordem geral fixadas no artigo 483º sobre o conceito da ilicitude como pressuposto da responsabilidade civil, o Código trata de modo especial (à semelhança do que faz a lei civil alemã) alguns casos de factos antijurídicos.
"O primeiro é o da afirmação ou divulgação de factos capazes de prejudicarem o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa" ( ) Cfr. "Das Obrigações em Geral" - Vol I, 7ª edição, Coimbra, 1973, págs. 539 e segs.).
"(...). Pouco importa que o facto afirmado ou divulgado corresponda ou não à verdade, contanto que seja susceptível, dadas as circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as sua obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua actividade" ( ) Cfr., verbi gratia, Pires de Lima/Antunes Varela, "Código Civil Anotado", volume I, 4ª edição revista e actualizada, págs. 485 e 486.).
Apreciando, sob a temática dos "delitos específicos", os problemas suscitados pelo artigo 484º, Menezes Cordeiro, depois de entender que o "delito de ofensa da crédito ou do bom nome" está sujeito às regras gerais dos delitos, conclui que « (...) quem com dolo ou mera culpa" violar o direito ao bom nome e reputação de outrém, é responsável».
Segundo este Autor, o artigo 484º, em rigor dispensável, nada mais faz do que precisar, em determinado sentido, algo que o artigo 483º, nº 1, já previra. Em sequência do que, escreve ainda o seguinte: "Sendo assim não é possível determinar a priori se a divulgação do facto atentatório deve reportar-se a factos falsos ou, também, verdadeiros. É indubitável que a divulgação dum facto verdadeiro pode, em certo contexto, atentar contra o bom nome e reputação duma pessoa. Por outro lado, a divulgação dum facto falso e atentório pode não constituir um delito - por carência, por exemplo, de elemento voluntário.
"Concluímos, pois, que a solução deve resultar do funcionamento global das regras de imputação delitual. Em abstracto, contudo, Antunes Varela tem razão, quando afirma que pode advir responsabilidade da divulgação de factos verdadeiros" ( ) Cfr. "Direito das Obrigações", vol. II, págs. 348 a 350.).
3.3.2. - A posição enunciada tem também indiscutível acolhimento na jurisprudência deste Supremo Tribunal.
Assim:
- Lê-se no sumário do Acórdão de 14 de Maio de 1976, Processo nº 66.144, in BMJ nº 257, págs. 131 e seguintes:
- A ofensa do crédito e bom nome prevista no artigo 484º do Código Civil não é mais do que um caso especial de facto antijurídico definido no artigo precedente, pelo que se deve considerar subordinada ao princípio geral do artigo 483º não só quanto aos requisitos fundamentais da ilicitude, como também relativamente à culpabilidade.
Este mesmo entendimento foi perfilhado nos acórdãos deste Tribunal de 09-03-93, proc. nº 82.344, de 03-10-95, já citado, e de 05-03-91, Revista nº 79.804.
- Por sua vez, no sumário do Acórdão do STJ de 27-05-97, in Col. Jur. - Acórdãos do STJ, Ano V, Tomo II, págs. 102 e segs., pode ler-se o seguinte:
(...)
III - O direito de livre expressão não é absoluto devendo respeitar o direito à honra e ao bom nome, salvo casos excepcionais.
IV - A expressão de facto verdadeiro, se injustificada, pode ser passível de sanção legal.
V - O dever de indemnizar não está dependente de intencionalidade ofensiva bastando a mera culpa ( ) Para além dos pontos acima reproduzidos, pode ler-se ainda com interesse no referido sumário: "I - O direito-dever de expressar o pensamento não está, nem pode estar, sujeito a qualquer tipo de censura; mas identicamente tem de ser exercido com claro índice cívico, de respeito do Homem pelo Homem; (...) VII - A informação deve pautar-se por regras éticas e deontológicas rigorosas, adequadas a uma natural convivência cívica".).
É certo que, em anotação ao artigo 484º, na 1ª edição, 1967, do seu "Código Civil Anotado", Pires de Lima e Antunes Varela escreveram o seguinte: "Não basta a afirmação ou difusão dum facto susceptível de pôr em perigo o crédito ou o bom nome duma pessoa. É preciso que haja o animus injuriandi". A verdade, porém, é que, na 4ª edição revista e actualizada da citada obra, na anotação ao referido artigo 484º, já não se faz qualquer alusão à exigência do falado animus injuriandi.
Também Rodrigues Bastos, nas observações que faz ao disposto no artigo 484º, considerando que tal preceito não abrangia as hipóteses da difamação e da injúria, escreve o seguinte: "Não haverá, assim a nosso ver, que ter em conta, para surgir, neste caso, o direito à indemnização, os elementos típicos daqueles ilícitos penais, designadamente o seu elemento subjectivo, o animus injuriandi vel diffamandi.
Tanto quanto parece, a apontada exigência do referido animus, que se encontra mais ligada às disposições que, no Código Penal de 1886, sancionavam a difamação e a injúria, constituindo aquilo que alguns designavam por "dolo específico" e o que outros denominavam "especial intenção", terá a ver com a redacção que, após a primeira revisão ministerial, teve o preceito do anteprojecto do CC, a que corresponde o actual artigo 484º - o artigo 463º. Preceito que dispunha o seguinte: "Quem afirmar ou difundir um facto susceptível de pôr em perigo o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, com ânimo de injuriar, responde pelos prejuízos causados, especialmente se o facto não for verdadeiro e o autor conhecer ou dever conhecer a sua inexactidão ou se, dolosa ou culposamente, apresentar o facto com uma visão deformada".
Todavia, e tal como se salienta no já citado Acórdão do STJ de 14-05-76, « (...) na 2ª revisão ministerial e no projecto foi suprimida essa referência, por forma a chegar-se à redacção actual. Certamente se teve em vista que, sistematizada a matéria de responsabilidade por factos ilícitos, e enunciado o princípio fundamental de que ela depende de dolo ou culpa, tornava-se desnecessário nos casos particulares logo a seguir previstos reafirmar esse princípio.
"Não é, portanto, no ângulo da difamação ou injúria penal, mas no puro domínio daquela responsabilidade civil que deve entender-se a exigência de culpa, no seu sentido lato".
Como Antunes Varela ensina, em nota de rodapé constante de páginas 559 do seu I volume de "Das Obrigações em Geral, 7ª edição, "para haver culpa, no caso de afirmação ou divulgação de factos susceptíveis de prejudicar o crédito ou o bom nome de alguém, basta, em princípio, que o agente queira afirmar ou difundir o facto, pouco importando que ele soubesse ou não que, em consequência disso, o lesado perderia um negócio vantajoso ou uma colocação rendosa ou veria desfeito o seu noivado. Desde que o agente conheça ou devesse conhecer a ilicitude ou o carácter danoso do facto, é justo que sobre ele recaia o encargo de reparar os danos efectivamente causados por esse facto".
IV
1 - Em face do exposto, vejamos as consequências a retirar para a decisão do caso sub judice.
Reportamo-nos ao peso assaz determinante dado pelo acórdão recorrido às respostas dadas aos quesitos 13º e 14º. Ora, perante as considerações acima desenvolvidas, a circunstância, extraída, no essencial, a partir de tais respostas, de não se poder concluir que o Réu tenha tido a intenção de ofender a memória do Prof. B não conduziria, só por si, à solução de afastar a aplicação do disposto pelo artigo 484º.
Com efeito, mesmo que fosse de excluir a existência do dolo, haveria, ainda assim, de indagar da verificação da mera culpa. Questão que, como é óbvio, não se colocou ao Tribunal a quo, em virtude, justamente, da interpretação dada ao disposto nesse artigo, que, desde logo, a afastava.
Importa, todavia, dar um passo em frente e cuidar de averiguar se as expressões constantes do escrito do Prof. H eram ou não susceptíveis de prejudicar o bom nome do Prof. B.
Para tanto, é útil recordar uma afirmação, já acima reproduzida, do acórdão recorrido. Aí se escreveu o seguinte:
Perante os factos provados e, em especial, as respostas dadas aos quesitos 13º e 14º, não se pode concluir que o Professor H tenha tido a intenção de ofender a memória do Prof. B - mas apenas que há divergência de opinião nos relatos que cada um fez do que se passou com a doença de Salazar.
Cumpre, a este respeito, fazer as duas seguintes observações:
a) Uma coisa é o relato, pelo Réu, dos factos que, em sua opinião, ocorreram no período, que acompanhou, da doença de Salazar, sendo compreensíveis e, no plano da responsabilidade civil, irrelevantes, as divergências que tal relato apresente com o efectuado pelo Professor B; Coisa diversa são as expressões ou frases que, não sendo essenciais para a apresentação da sua versão dos factos, foram utilizadas nesse relato pelo Réu, frases e expressões susceptíveis de pôr em causa, atingindo-os, o bom nome e a reputação do Prof. B. Parece evidente do excerto acima reproduzido que o Tribunal da Relação pôs o acento tónico na apreciação da primeira das perspectivas acima enunciadas, o que se revela redutor.
b) Recorde-se ainda que aos quesitos 13º e 14º, nos quais se indagava se, com o seu relato, o Réu insinuou que o Prof. B era mentiroso, incompetente, desonesto, negligente e belicoso (13º), com a intenção de ofender a sua memória (14º), foi dada a resposta: "Provado apenas o que consta do documento de fls. 17 e 18". Deixando agora de lado a questão de saber se, atento o conteúdo conclusivo da matéria de que tais quesitos versam, as respostas afirmativas que sobre eles, eventualmente, recaíssem, não seriam de considerar como não escritas, cumpre reconhecer que a resposta que lhe foi dada não equivale à falta de demonstração do objecto dos quesitos em referência. Significa tão-somente que a resposta a tal matéria há-de ser encontrada, além do mais, mediante a análise do documento para o qual tal resposta remete.
2 - Como se pode ler no já citado Acórdão do STJ de 27-05-97, a imputação do facto ao agente pressupõe, naturalmente, um juízo jurídico-normativo a realizar, na falta de outro critério geral, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (nº 2 do artigo 487º do C. Civil), ou seja, em abstracto, de acordo com a conduta normal do cidadão comum, e com a ética, a deontologia, o civismo exigíveis à generalidade das pessoas".
Por outro lado, a subsunção da realidade fáctica apurada pela Relação à cláusula geral da "diligência de um bom pai de família", a que alude o artigo 487º, nº 2, cai no âmbito dos poderes do Supremo Tribunal de Justiça, por se tratar de aplicação de um critério legal ( ) Neste sentido, pode ver-se o Acórdão do STJ de 03-11-92, processo nº 081997, in BMJ nº 421, pág. 400.).
Falece, assim, razão às conclusões da contra-alegação do recorrido que sustentam solução contrária.
3 - Apreciando o documento de fls. 17 e 18, repete-se o que já se disse. Não está em causa o exercício, por parte do Prof. H, da liberdade de expressão, mediante o legítimo uso do direito de resposta ou de crónica, traduzido no relato ou na descrição dos factos, tal como, na sua ocorrência, os viveu e sentiu.
Mas toda a liberdade, ainda que se traduza no exercício de um direito fundamental, como acontece com a liberdade de expressão (artigo 37º da CRP), tem limites lógicos, isto é, consubstanciais ao próprio conceito de liberdade ( ) Cfr. Nuno e Sousa, - A Liberdade de Imprensa"; Coimbra, 1984, págs. 255 e seguintes. Veja-se também o Acórdão do STJ de 5 de Março de 1996, in CJ - Acórdãos do STJ -, Ano IV, Tomo I, 1996, págs. 122 e segs. Do sumário deste acórdão, extractam-se os seguintes pontos: "(...) III ... O conceito de honra importa sempre um juízo de valor, pelo que aformulação de tal juízo implica matéria de direito. IV - Havendo conflito entre direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, a sua harmonização concreta depende de critérios metódicos, abstractos, tal como o prncípio de concordância prática ou a ideia do melhor equilíbrio possível entre os direitos colidentes. V - A liberdade de expressão deverá ser exercida sem subordinação a qualquer forma de censura, autorização, caução ou habilitação prévia, mas com respeito pela Constituição e leis ordinárias. VI - É ilícita a conduta que atinge a honra de outrem já que atribui a este factos desonrosos, sem apoio em fontes seguras e já depois de terem sido objecto de desmentidos credíveis. VII - É assim devida indemnização quanto a danos não patrimoniais.).
*
Ora, deve considerar-se atentatório do bom nome e reputação do Prof. B, dizer-se dele, pondo em causa a sua isenção e o seu comportamento deontológico, o seguinte: "Sobre a sua isenção devo lembrar que uma tarde ele disparou-me: "(...) assim que o Senhor Presidente do Conselho voltar para S. Bento vai mandar fazer um Instituto de Cardiologia para mim (...)".
Também se revela atentatório do bom nome e reputação do visado, porque destinado a apoucar ou diminuir as suas capacidades intelectuais e/ou profissionais, escrever-se o seguinte: "Não tenho culpa que o Sr. Professor B tenha chegado à idade a que chegou sem compreender que o único responsável dum acto cirúrgico é o cirurgião".
Igualmente se apresenta como passível de atingir o visado no seu bom nome e reputação a difusão que o Réu faz da inverosímil - e não provada - versão que visa relacionar o agravamento do estado de saúde de Salazar com a descrição, que lhe teria sido feita pelo Professor B, da intervenção cirúrgica a que foi submetido. Recorde-se o essencial do que o Prof. H escreveu a esse propósito: "Decorridos oito dias (...), Salazar sentiu-se muito mal após o almoço (...) estava em situação desesperada podendo morrer a qualquer momento. Não sei o que se passou nessa refeição, dizem-me que o Professor B descreveu a Salazar a operação feita, seguramente com a perfeição que seria de esperar na descrição duma intervenção neurocirúrgica feita por um especialista em cardiologia".
Todas as referidas afirmações assumem um alcance perceptível pelo cidadão médio que, a partir delas, poderá construir um juízo desfavorável a respeito das qualidades profissionais do Prof. B, mormente, das suas capacidades, isenção e bom senso. Tudo potenciado pelo facto de tais afirmações provirem de um destacado médico cirurgião, à partida, personalidade qualificada, porque conhecedora das "leges artis", para se poder pronunciar acerca dos atributos de um outro médico.
Ora, como se diz no Acórdão deste STJ de 20-03-73, in BMJ nº 225, pág. 222 e segs., "atribuir a alguém uma conduta contrária e oposta àquela que o sentimento da generalidade das pessoas exige do homem medianamente leal e honrado, é atentar contra o seu nome, reputação e integridade moral".
É manifesta a natureza ilícita da difusão dos referidos factos, tal como consta do escrito do Professor Vasconcelos Marques, sendo, assim, subsumível à previsão do artigo 484º. Com efeito, tais factos, a serem verdadeiros, levariam a considerar o visado destituído das mais convenientes credenciais profissionais e, quiçá, de personalidade, para o exercício das funções de médico assistente do Presidente do Conselho de Ministros.
E ainda que inexistisse, da parte do Réu, a intenção de prejudicar, no seu bom nome e reputação, afectando-o na sua honra e consideração, o Prof. B, o mesmo não será possível dizer da mera culpa, essa manifestamente presente.
Como se explanou com desenvolvimento em diferentes acórdãos deste STJ, e tal como já se disse oportunamente, o direito-dever de exprimir o pensamento e de expressar a liberdade de expressão tem de ser exercido com clara preocupação cívica e com respeito pelos outros homens. Mesmo a expressão de facto verdadeiro, se injustificada, é passível de sanção legal.
A punibilidade do excesso de expressão não depende de intencionalidade ofensiva. Havendo mera culpa - e os demais elementos próprios da responsabilidade civil - existe dever indemnizatório. Tratar-se de dolo ou mera culpa concorre, sim, para a graduação indemnizatória ( ) Cfr. o já citado Acórdão do STJ de 27-05-1997.).
4 - Atento o exposto, e tendo presente o já citado artigo 71º, é devida indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, pois que, atenta a natureza da ofensa feita ao Professor B, e o facto de a mesma ter sido concretizada através do semanário "O Jornal", atingiram gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito, nos termos do nº 1 do artigo 496º.
Na lição de Antunes Varela e de outros civilistas, a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo, que tenha em conta o circunstancialismo de cada caso e não por padrões subjectivos, resultantes de uma sensibilidade embotada ou, em contrapartida, especialmente sensível, cabendo ao tribunal dizer, em cada caso, se o dano, dada a sua gravidade, merece ou não tutela jurídica ( ) Cfr. Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", vol. I, 7ª edição, pág. 600 e Almeida Costa, "Direito das obrigações", 5ª edição, pág. 484.).
Assim sendo, afigura-se, como se disse, que, neste caso, os danos não patrimoniais merecem a tutela do direito, havendo, por isso, que compensá-los com uma indemnização.
No que respeita ao montante da indemnização, há que fixá-lo equitativamente, atendendo às circunstâncias referidas no artigo 494º, de acordo com o preceituado na primeira parte do nº 3 do artigo 496º. Cumpre, pois, atender ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso.
No caso em apreço há que reconhecer, por um lado, que a ofensa ao bom nome e reputação do Prof. B não atingiu especial gravidade. E, por outro, que não é particularmente grave o grau de culpabiliddae do Réu.
Com efeito, tornou-se evidente que o escrito do Prof. H se inseriu numa querela jornalística, visando responder a um texto anterior em que, a partir de afirmações atribuídas ao Prof. B, se visava minimizar a importância do papel assumido pelo Réu na intervenção cirúrgica de Salazar.
Se bem que não desculpabilizante, tais antecedentes são de molde a constituir um contexto de atenuação da culpabilidade do agente.
Por outro lado, à data da publicação dos referidos escritos já tinham decorrido vinte anos sobre a verificação dos factos relativos à doença e operação de Salazar. O tempo decorrido contribuíu, pois, para um inevitável amortecimento do impacto da querela que opôs os principais protagonistas naqueles eventos históricos. Para muitos leitores, tratava-se de acontecimentos tão distantes e longínquos que haviam perdido grande parte do enquadramento político e social que, à data da sua verificação, os tornou factos centrais na vida do País. O seu impacto reduziu-se a franjas mais circunscritas da população que, pela idade, interesse cultural ou profissional (a comunidade médica, acima de tudo) continuavam a acompanhar com curiosidade a troca de relatos (e de mimos) entre partidários e amigos dos dois vultos da medicina.
As respostas dadas aos quesitos 16º, 17º e 18º são de molde a apoiar o que já se disse.
Às perguntas sobre se, desde a publicação dos artigos do Réu, os Autores vivem mergulhados no mais profundo constrangimento, e se são hoje pessoas profundamente magoadas e amarguradas, as respostas foram no sentido de que ficaram e ainda continuam magoados com a publicação do artigo do Réu. E, ao quesito sobre se, desde aquela data vivem na mais incontida ( e justificada) revolta, a resposta foi a de que apenas se provou que os Autores se sentem revoltados.
Nesta conformidade, um julgamento equitativo baseado no bom senso e na justa ponderação das realidades da vida aponta para uma quantia indemnizatória pelos danos não patrimoniais pouco mais do que simbólica e, por isso, muito inferior aos 5000 contos pedidos.
Pelo que se afigura ajustada a indemnização de 300000 escudos.
Termos em que, concedendo parcial provimento ao recurso, se decide:
a) Reconhecer que o Réu Professor H, com o escrito de fls. 17 e 18, ofendeu o bom nome do Professor B;
b) Condenar os Recorridos a pagar ao Recorrente a quantia de 300000 escudos.
Custas na proporção do vencimento.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 1999.
Garcia Marques.
Ferreira Ramos.
Ribeiro Coelho.