Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S2915
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: RECURSO DE AGRAVO
INADMISSIBILIDADE
COMPETÊNCIA HIERÁRQUICA
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ200712130029154
Data do Acordão: 12/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: DECIDIDO NÃO TOMAR CONHECIMENTO DO RECURSO.
Sumário : I - O Tribunal da Relação é competente, em razão da hierarquia, para julgar os recursos cujo valor exceda a alçada dos tribunais da 1.ª instância (actualmente € 3.740,98, de acordo com o art. 24.º da LOTJ, na redacção dada pelo art. 3.º do anexo ao Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro).
II - A referida regra não ofende os princípios da separação de poderes e regras constitucionais em matéria de organização hierárquica dos tribunais.
III - É inadmissível recurso de agravo em 2.ª instância, se o valor da causa se acha definitivamente fixado em € 3.740,99, e o recurso não tem por fundamento as situações previstas nos n.ºs 2, 3, 4, 5 e 6 do artigo 678.º do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. A ré Empresa-A, de AVEIRO interpôs recurso de agravo, com fundamento na violação das regras da competência em razão da hierarquia, do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que julgou procedente o recurso de apelação dos autores e revogou a sentença proferida pelo Tribunal do Trabalho de Aveiro, condenando a ré: (i) a reconhecer que os autores têm direito ao subsídio de regularidade previsto na cláusula 72.ª do CCT em causa, desde que cumpram os requisitos ali mencionados e que são condição essencial para a sua atribuição e efectuar o respectivo pagamento, com juros de mora à taxa legal desde os respectivos vencimentos; (ii) a pagar a cada um dos autores a quantia de € 340,75 por referência à Páscoa de 2002, a que acrescerão juros de mora à taxa legal desde o respectivo vencimento até integral pagamento.

Tendo-se considerado que não se podia conhecer do objecto do recurso de agravo, foi determinada a audição das partes, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 704.º do Código de Processo Civil.

A recorrente respondeu, sustentando que deveria: (a) reconhecer-se que o presente recurso de agravo tem por fundamento a violação das regras de competência em razão da hierarquia — com referência não apenas ao momento da admissão do recurso de apelação pelo Tribunal da Relação de Coimbra, mas também ao decurso de todo o demais processado nesse recurso, incluindo a douta decisão recorrida , e que, por isso, ele é admissível independentemente do valor da causa; (b) e, em consequência, admitir-se o recurso, como de agravo [cf. artigos 678.º, n.º 2, 754.º, n.º 1, 755.º, n.º 1, alínea b), e 758.º, todos do Código de Processo Civil].

Os recorridos não se pronunciaram.

Após ponderação da resposta apresentada pela recorrente, o relator proferiu despacho em que decidiu não tomar conhecimento do recurso de agravo interposto.

Discordando do despacho proferido pelo relator, a recorrente veio reclamar para a conferência, alegando, em síntese conclusiva:

«a) A admissão, o processamento e o julgamento, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, do recurso de Apelação deduzido pelos autores nos presentes autos foram feitos com violação do disposto, v.g., no n.º 1 do artigo 678.º do mesmo CPC e das regras da competência em razão da hierarquia, vício esse que determina a incompetência absoluta do tribunal (cfr., v.g., arts. 71.º e 101.º do CPC, e arts. 17.º/1, 19.º/1/2 e 24.º da LOFTJ);
b) Na verdade, havendo nos autos litisconsórcio activo voluntário, dever-se-á atender, para efeitos de alçada, ao valor do pedido de cada um dos autores, e não à soma de todos eles, pelo que, e considerando o valor da causa, o recurso de apelação não deveria ter sido admitido, processado nem julgado, pois a Relação, salvo o devido respeito, não tinha nem tem legalmente poder jurisdicional para emitir a decisão; tendo-a proferido, a mesma encontra-se viciada de incompetência absoluta (cfr., v.g., arts. 71.º e 101.º do CPC, e arts. 17.º/1, 19.º/1/2 e 24.º da LOFTJ);
c) Nos termos do n.º 1 do art. 102.º do CPC, a incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa;
d) Este regime mais severo de arguição revela que, havendo infracção de regras de competência que se traduzam em incompetência absoluta — como é o caso da falta de jurisdição devido a violação das regras da competência em razão da hierarquia —, estão em causa interesses públicos essenciais ligados à boa administração da justiça;
e) Sendo estes os fundamentos do presente recurso, ele deverá, salvo o devido respeito, ser admitido como de agravo, e reconhecer-se que o caso dos autos cabe no âmbito do n.º 2 do art. 678.º do Código de Processo Civil (cfr., v.g., arts. 678.º/2, 754.º/1, 755.º/1/b, 758.º), uma vez que tem por fundamento a violação das regras de competência em razão da hierarquia, com referência não apenas ao momento da admissão do recurso de Apelação pelo Tribunal da Relação de Coimbra, mas também ao decurso de todo o demais processado nesse recurso, incluindo a douta decisão recorrida;
f) À orientação apontada não obsta também qualquer caso julgado formal que se tenha formado nos presentes autos, e nomeadamente com o despacho de admissão do recurso de Apelação, ainda que não impugnado pela recorrente nos dez dias seguintes à respectiva notificação: nem tal despacho incidiu sobre as questões suscitadas neste recurso de Agravo, nem o âmbito do Agravo se limita à questão da admissibilidade do recurso de Apelação;
g) A inadmissibilidade do recurso de Apelação é apenas uma das manifestações da incompetência absoluta do Tribunal da Relação em razão da hierarquia, para julgar o caso dos autos: e não é o facto de esse recurso ter sido admitido, tal como não são os factos de o recurso ter sido processado e julgado, que fazem sanar o vício, ou que dão à Relação o poder jurisdicional que por lei ela não tinha nem tem;
h) Para além disso, acresce ainda que, salvo sempre o maior respeito, sempre seria inconstitucional — por violação do princípio da separação de poderes (rectius, da “separação e interdependência dos órgãos de soberania”, no sentido da separação de funções do Estado e da sua distribuição por aqueles órgãos) consagrado no art. 114.º da Constituição (CRP), bem como das regras constitucionais em matéria de organização hierárquica dos tribunais (consagradas, v.g., nos arts. 211.º e 212.º da CRP — a alteração, por decisão judicial, das regras legalmente estabelecidas em matéria de competência em razão da hierarquia (in casu, alargando a competência jurisdicional do Tribunal da Relação de Coimbra para além do permitido pelas disposições dos arts. 17.º/1, 19.º/1/2 e 24.º da LOFTJ, correctamente interpretadas, v.g., no que respeita aos casos de coligação), as quais dão concretização a interesses públicos essenciais ligados à boa administração da justiça [a recorrente não fechou o terceiro parênteses empregue];
i) Tal como, salvo o devido respeito, sempre seria errada a aplicação das referidas regras legalmente estabelecidas em matéria de competência em razão da hierarquia (cfr. arts. 17.º/1, 19.º/1/2 e 24.º da LOFTJ, correctamente interpretados no que respeita aos casos de coligação activa voluntária), se e quando interpretadas no sentido de que o âmbito da jurisdição dos tribunais legalmente estabelecido em função da hierarquia pudesse ser alterado no sentido do seu alargamento, caso uma decisão errada de admissão de recurso por um tribunal sem jurisdição para julgar a espécie não fosse impugnada no prazo de 10 dias. E isto também porquanto, se interpretadas nesse sentido, sempre seriam de julgar tais regras inconstitucionais, por violação dos referidos princípio e regras constitucionais: a entender-se de outro modo, estaria o julgador a substituir-se ao legislador, e pôr-se em causa os interesses públicos essenciais ligados à boa administração da justiça plasmados nas regras constitucionais sobre a organização hierárquica dos tribunais.»


Termina pedindo que sobre a matéria do despacho reclamado recaia acórdão, que deverá: (a) reconhecer que o presente recurso de agravo tem por fundamento a violação das regras de competência em razão da hierarquia — porquanto, v.g., essa nulidade se verificou não apenas no momento da admissão do recurso de Apelação pelo Tribunal da Relação de Coimbra, mas também no decurso de todo o demais processado nesse recurso, incluindo a douta decisão recorrida, e que, por isso, ele é admissível independentemente do valor da causa; (b) e, em consequência, admitir o recurso, como de agravo [cf. artigos 678.º, n.º 2, 754.º, n.º 1, 755.º, n.º 1, alínea b), e 758.º, todos do Código de Processo Civil].

Os recorridos defendem a confirmação do despacho reclamado.

Vem o processo à conferência sem vistos dada a sua simplicidade.
II
1. No caso, o recurso de agravo interposto tem por fundamento a violação das regras de competência em razão da hierarquia, ao abrigo do n.º 5 do artigo 81.º do Código de Processo do Trabalho e do n.º 2 do artigo 678.º do Código de Processo Civil, invocando-se, em concreto, que «havendo nos autos litisconsórcio activo voluntário, dever-se-ia ter atendido, para efeitos de alçada, ao valor do pedido de cada um dos autores no momento em que a acção foi proposta, e não à soma de todos eles, pelo que, e considerando o valor da causa, o recurso de apelação não deveria ter sido admitido, e, em consequência, não deveria ter sido julgado (artigos 305.º, n.os 1 e 2, 308.º, n.º 1, 678.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)».

Em suma, a recorrente defende que a Relação não tinha poder jurisdicional para emitir a decisão, faltando-lhe, para tanto, o pressuposto processual do nexo de competência; porém, tendo-a proferido, a mesma padece de incompetência absoluta (cf. artigos 71.º e 101.º do Código de Processo Civil, e artigos 17.º, n.º 1, 19.º, n.os 1 e 2, e 24.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, doravante LOFTJ), incompetência que, nos termos do n.º 1 do artigo 102.º do Código de Processo Civil, pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.

2. Como é sabido, a competência é a medida de jurisdição atribuída a cada um dos diferentes tribunais, sendo regulada conjuntamente nas leis de organização judiciária e na respectiva lei de processo, e reparte-se, na ordem interna, segundo a matéria, a hierarquia judiciária, o valor da causa, a forma do processo aplicável e o território (cf. artigos 17.º, n.º 1, da LOFTJ, 62.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil, 1.º, n.º 2, alínea a), e 12.º a 19.º do Código de Processo do Trabalho).

No tocante aos tribunais da Relação, a competência interna é principalmente delimitada em função da hierarquia, já que, em razão da matéria, são tribunais de jurisdição plena, e em razão do valor, não têm restrições de princípio, excepto as que lhes advêm, reflexamente, da alçada dos tribunais de 1.ª instância.

Com efeito, os tribunais da Relação conhecem dos recursos e das causas que por lei sejam da sua competência, competindo-lhes «o conhecimento dos recursos interpostos de decisões proferidas pelos tribunais de 1.ª instância» (artigos 71.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil e 19.º, n.os 1 e 2, e 56.º, n.º 1, alínea a), da LOFTJ).

Sublinhe-se que, nos termos do artigo 24.º da LOFTJ, na redacção dada pelo artigo 3.º do anexo ao Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro, «em matéria cível, a alçada dos tribunais de Relação é de € 14.963,94 e a dos tribunais de 1.ª instância é de € 3.740,98» (n.º 1).

3. No concreto dos autos, não está em causa o nexo de competência entre o recurso de apelação e o tribunal da Relação que o decidiu, já que não oferece dúvida que o Tribunal da Relação de Coimbra é competente, em razão da hierarquia, para julgar recursos cujo valor exceda a alçada dos tribunais judiciais de 1.ª instância (cf. artigos 62.º, n.os 1 e 2, e 71.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil, 17.º, n.º 1, e 19.º, n.os 1 e 2, da LOFTJ), sendo que o valor atribuído à causa, definitivamente fixado em € 3.740,99, excede aquela alçada.

Não ocorre, pois, a invocada violação das regras da competência, em razão da hierarquia, nem a pretendida incompetência absoluta do tribunal da Relação.

O exacto objecto da presente controvérsia reconduz-se, isso sim, à alegada inadmissibilidade do recurso, figura claramente diferente da incompetência, em razão da hierarquia, e a que corresponde um regime próprio de impugnação, cabendo ao relator e à conferência do tribunal para que se recorre decidir sobre essa questão, sendo o acórdão da conferência susceptível de recurso, nos termos gerais (cf. artigos 687.º, n.º 4, e 700.º, n.os 1 a 5, do Código de Processo Civil).

De facto, para efeitos de alçada e consequente admissibilidade de recurso, a questão que se coloca na coligação activa voluntária, tal como na apensação de acções, é a de saber se o que releva é o valor de cada uma das causas cumuladas ou apensadas ou antes a soma dos valores de todas elas, enquanto que na incompetência, em razão da hierarquia, a questão controvertida prende-se com o reconhecimento ou não de uma relação de subordinação entre dois tribunais, que permita a um deles conhecer, em recurso, das causas cujo valor exceda a alçada do outro.

Trata-se, pois, de questões autónomas e com regimes jurídicos distintos.

Ora, na decisão sobre a admissibilidade ou inadmissibilidade de recurso com fundamento no n.º 2 do artigo 678.º do Código de Processo Civil é sindicável a verosimilhança e pertinência da específica fundamentação produzida, não bastando a mera invocação de algum dos fundamentos previstos naquele normativo.

Assim, o presente recurso de agravo é inadmissível, já que o valor da causa se acha definitivamente fixado em € 3.740,99, que não é superior ao valor da alçada do Tribunal da Relação (€ 14.963,94), e porque não tem por fundamento as situações previstas nos n.os 2, 3, 4, 5 e 6 do artigo 678.º do Código de Processo Civil.

4. Resta examinar a invocada violação do princípio da separação de poderes consagrado, segundo a recorrente, no artigo 114.º da Constituição, bem como das regras constitucionais em matéria de organização hierárquica dos tribunais (artigos 211.º e 212.º da Constituição).

A Constituição da República Portuguesa de 2 de Abril de 1976, na redacção decorrente da Lei Constitucional n.º 1/2005, de 12 de Agosto, que decretou a sétima revisão constitucional, rege no seu artigo 114.º sobre os partidos políticos e o direito de oposição, matéria claramente arredada da temática em apreciação, pelo que a recorrente, ao invocar a violação do princípio da separação de poderes, certamente pretendia referir-se ao n.º 1 do artigo 111.º da Lei Fundamental.

Os artigos 211.º e 212.º citados referem-se, respectivamente, à competência e especialização dos tribunais judiciais e aos tribunais administrativos e fiscais, sendo que apenas o n.º 4 daquele artigo 211.º alude aos tribunais da Relação, estabelecendo que «podem funcionar em secções especializadas».

Em primeira linha, a recorrente alega que, por violação dos ditos princípio e regras constitucionais, seria inconstitucional «a alteração, por decisão judicial, das regras legalmente estabelecidas em matéria de competência em razão da hierarquia (in casu, alargando a competência jurisdicional do Tribunal da Relação de Coimbra para além do permitido pelas disposições dos arts. 17.º/1, 19.º/1/2 e 24.º da LOFTJ, correctamente interpretadas, v.g., no que respeita aos casos de coligação), as quais dão concretização a interesses públicos essenciais ligados à boa administração da justiça».

Porém, como se explicitou supra, no concreto dos autos, não está em causa a competência em razão da hierarquia do Tribunal da Relação de Coimbra para conhecer de um recurso de apelação, já que a lei de processo lhe atribui competência para conhecer, em recurso, das causas cujo valor exceda a alçada dos tribunais judiciais de 1.ª instância e o valor atribuído à presente causa excede aquela alçada.

Não se vislumbra, pois, a invocada a alteração, por decisão judicial, das regras legalmente estabelecidas em matéria de competência em razão da hierarquia.

Por outro lado, a recorrente propugna que seriam inconstitucionais as regras legalmente estabelecidas em matéria de competência em razão da hierarquia, nos artigos 17.º, n.º 1, 19.º, n.os 1 e 2, e 24.º da LOFTJ, «se e quando interpretadas no sentido de que o âmbito da jurisdição dos tribunais legalmente estabelecido em função da hierarquia pudesse ser alterado no sentido do seu alargamento, caso uma decisão errada de admissão de recurso por um tribunal sem jurisdição para julgar a espécie não fosse impugnada no prazo de 10 dias».

O certo é que, seja no despacho reclamado, seja no presente acórdão, não se acolhe semelhante interpretação do conjunto normativo enunciado.

Assim, não se verifica a ofensa dos invocados princípio da separação de poderes e regras constitucionais em matéria de organização hierárquica dos tribunais.

III
Em face do exposto, decide-se confirmar o despacho do relator e não tomar conhecimento do recurso.

Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

Lisboa, 13 de Dezembro de 2007
Pinto Hespanhol (Relator)
Vasques Dinis
Bravo Serra