Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
447/08.4TBCBR.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
REGISTO PREDIAL
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
PRESUNÇÕES LEGAIS
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
BOA FÉ
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO
PEDIDO IMPLÍCITO
REGISTO DA ACÇÃO
RECONVENÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 11/17/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA PARCIALMENTE
Sumário :
I - No nosso direito dá-se prevalência à usucapião e não ao registo, o qual, entre nós, não tem eficácia constitutiva, mas meramente declarativa.
II - Não obsta à aquisição do imóvel em causa, por usucapião, por parte da recorrida e ex-marido o facto de os recorrentes gozarem da presunção do registo na Conservatória, porquanto se trata de uma mera presunção e, portanto, ilidível.
III - Porque a autora/recorrida está de boa-fé, beneficia do prazo de 15 anos para adquirir por usucapião, previsto no art. 1260.º, n.º 2, do CC, estando ilidida a presunção contida neste artigo.
IV - Apesar de existir comunicação entre as duas habitações, a nível de rés – do – chão, comunicação utilizada por facilitismo ou comodidade dos 2.os réus, dadas as características do terreno, cada uma delas está perfeitamente delimitada e individualizada, pelo que aquela circunstância não se pode perspectivar como óbice à usucapião da aludida habitação.
V - Englobando a descrição 0000000000 também o imóvel que, com base na usucapião, foi adquirida pela recorrida e pelo ex-marido, impõe-se, por virtude dessa patente incompatibilidade, o cancelamento da inscrição de aquisição a favor dos recorrentes, ao abrigo do art. 13.º do CRgP, uma vez que abrange um objecto que não é agora aquele que corresponde ao direito dos respectivos titulares.
VI - O cancelamento do registo é uma consequência da procedência do pedido em que se pede se reconheça que o direito pertence a quem não é titular inscrito.
VII - Tendo-se omitido tal pedido expresso de cancelamento e tendo prosseguido a acção após os articulados, é de considerar que o mesmo se encontra implicitamente efectuado e, em consequência, deve ordenar-se o cancelamento do registo.
VIII - A registabilidade da acção determina-se, em princípio, pelos efeitos que ela visa produzir no conteúdo ou na estrutura (subjectiva ou objectiva) de algum dos direitos enunciados no art. 2.º, por força do prescrito no art. 3.º, ambos do CRgP.
IX - O registo da acção tem uma natureza cautelar, pois que com ele o autor assegura, desde logo, a exequibilidade da decisão final, relativamente a terceiros ou erga omnes (art. 271.º, n.º 3, do CPC).
X - Entre as partes, a acção produz efeitos, de forma plena, a partir da citação do réu em causa.
XI - O próprio tribunal poderia/deveria promover oficiosamente o registo da acção.
XII - Também os ora recorrentes poderiam ter promovido o registo da acção, porquanto, tendo deduzido reconvenção, é sempre registável o pedido de reconhecimento do direito de propriedade que o réu/reconvinte invoque perante o autor/reconvindo até porque a sua omissão tem como consequência directa a absolvição do reconvindo da instância por força do preceituado no n.º 3 do art. 501.º CPC.
XIII - O registo da acção não tem qualquer influência sobre a procedibilidade ou improcedibilidade do presente recurso, registo que, atenta a improcedência da reconvenção, configura uma inutilidade.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

AA intentou, na Vara de Competência Mista de Coimbra - 2ª Secção, acção declarativa de condenação com processo ordinário contra BB e CC e mulher DD, pedindo que os réus sejam condenados:

a) - A reconhecer que a autora AA e o 1º réu, seu marido, BB são os donos e legítimos proprietários do prédio urbano inscrito na matriz de S. Paulo de Frades sob o nº0000;

b) - Reconhecer que a autora e seu marido adquiriram o prédio em causa por usucapião e o terreno rústico onde o mesmo foi edificado por doação verbal;

c) - Reconhecer que o artigo 2041da freguesia de S. Paulo de Frades é um bem comum do casal constituído pela autora e 1º réu, sendo a sua casa de morada de família;

d) - A abster-se da prática de quaisquer actos que perturbem ou impeçam o exercício do direito de propriedade pela autora sobre o prédio em causa;

e) - Reconhecer que o nome do titular do prédio em causa não está conforme à realidade fáctica e de direito e que o proprietário não é CC e mulher;

f) - A colaborar, cooperando com a autora na prática de todos os actos materiais e jurídicos necessários à rectificação do nome do titular na matriz do prédio urbano 0000 da freguesia de S. Paulo de Frades;

g) - A proceder à sua inscrição, em nome da autora AA e do réu BB;

h) - A colaborar, para que seja efectuado o registo definitivo do prédio em causa na competente Conservatória, a favor da autora e seu marido, por aquisição por usucapião;

Alega, como fundamento da sua pretensão, que, sendo casada com o 1º réu e nora dos 2.os réus, estes últimos decidiram doar-lhes (à autora e 1º réu), ainda que verbalmente, em 1988, um terreno contíguo à respectiva casa de habitação, por forma a que ela e o marido ficassem a viver junto deles.

Nessas condições, logo começaram a praticar no imóvel todos os actos de posse inerentes, limpando-o, cuidando dele, à vista de toda à gente, sem oposição, continuadamente, como se de coisa sua se tratasse.

Nesse terreno, com a ajuda em materiais e mão – de - obra do pai da autora, que é construtor civil, levaram a cabo a edificação de uma moradia, que vieram a ocupar em 1991, cujo projecto encomendaram e custearam.

Essa nova casa foi objecto de inscrição nas Finanças em 22/06/93, como tendo 200 m.2 de área coberta e 1600 m.2 de área descoberta, e como estando implantada no prédio inscrito na matriz rústica respectiva sob o artigo 1780;

Desde 1991 até à data da acção (2008), sempre a autora e o 1º réu fizeram a manutenção da referida casa, ali habitando, comendo, dormindo e fazendo obras, pagando a água (embora fornecida pelos 2.os réus) e luz, recebendo visitas, igualmente à vista de todos, sem oposição, continuadamente, como se de coisa sua se tratasse; que só por não ter sido formalizada a doação verbal, essa sua casa ficou inscrita na matriz urbana de S. Paulo de Frades sob o número 0000, aí constando como seu titular, para efeitos fiscais, o 2º réu, marido, CC, apesar de não lhe pertencer, tal como o anterior prédio rústico, como os réus bem sabem.

Entretanto o 1º réu abandonou a autora e o filho do casal, deixando-os sós na casa que construíram, necessitando a autora de regularizar a situação do imóvel na Conservatória e nas Finanças.

Contestaram os 2.os réus, impugnando no essencial a matéria alegada pela autora e alegando, em síntese, que a edificação levada a cabo por esta e pelo 1º réu não é uma moradia autónoma mas antes uma dependência da casa dos contestantes, cuja construção por eles foi integralmente suportada, sendo que a ocupação da mesma foi por eles meramente consentida, representando um acto de mero favor.

Em reconvenção, pedem que (i) sejam declarados possuidores e proprietários do prédio urbano inscrito na matriz de S. Paulo de Frades sob o nº0000, identificado nos artigos 37 a 45 da contestação; (ii) ser a autora condenada a reconhecer que os réus adquiriram o direito de propriedade sobre o referido prédio por usucapião, e o terreno rústico onde o mesmo foi edificado pela escritura pública de partilha a que aludem; (iii) ser a autora condenada a abster-se da prática de quaisquer actos que perturbem ou impeçam o exercício do direito de propriedade dos réus.

Por seu turno, o 1º réu também contestou, impugnando os factos articulados pela autora e alegando, em síntese, que a construção em questão se tratou de uma ampliação da casa de seus pais, que despenderam diversas quantias na mesma e, se a autora e o réu contestante também o fizeram, foi com o consentimento daqueles, sabendo que a casa era dos 2.os réus e não um bem comum do casal.

Replicou a autora, sustentando a sua versão de que a casa cuja propriedade pretende ver reconhecida, embora haja sido construída em terreno que pertenceu aos 2.os réus, é independente da casa destes e não lhes pertence, formando com ela apenas um conjunto de casas geminadas, de tal modo que o terreno que lhes foi doado, sendo parte do artigo rústico 1780, originou o prédio inscrito na matriz urbana sob o artigo 2041, com 200 m.2 de área coberta e 300 de área descoberta.

Alterando o pedido inicial, passou então a formular o pedido de condenação dos réus:

a) – A reconhecer que a autora AA e o 1º réu (seu marido) BB são donos e legítimos possuidores do prédio urbano inscrito na matriz de S. Paulo de Frades sob o nº0000;

b) – A reconhecer a existência de dois prédios urbanos com as características de vivendas geminadas, completamente distintos entre si, com composição, áreas e confrontações diferentes;

c) – A reconhecer que a autora e seu marido adquiriram o prédio em causa por usucapião e o terreno rústico onde o mesmo foi edificado por doação verbal, prédio que tem a área de cerca de 500 m.2;

d) – A reconhecer que o artigo 2041 da freguesia de S. Paulo de Frades é um bem comum do casal, constituído pela autora e pelo 1º réu, sendo a sua casa de morada de família, e que tem cerca de 200 m.2 de área coberta e 300 m.2 de área descoberta;

e) – A reconhecer que o nome do titular do prédio em causa não está conforme à realidade fáctica e de direito, reconhecendo que o proprietário não é CC e mulher;

f) - A absterem-se da prática de quaisquer actos que perturbem ou impeçam o exercício do direito de propriedade pela autora sobre o prédio em causa;

g) - A colaborar, cooperando com a autora, na prática de todos os actos materiais e jurídicos necessários à rectificação do nome, área e confrontações do prédio urbano0000 da freguesia de S. Paulo de Frades, se necessário for, através do recurso à criação de fracções autónomas através da constituição da propriedade horizontal sobre o referido artigo ou sobre artigo a criar de novo, procedendo-se à inscrição do prédio descrito em nome da autora AA e do réu BB;

h) - A colaborar, para que seja efectuado o registo definitivo do prédio em causa na competente Conservatória do Registo Predial a favor da autora e marido por aquisição por usucapião;

i) - A colaborar e cooperar na prática de todos os actos necessários à legalização do prédio da autora e marido;

j) – A condenar os réus, como litigantes de má fé, em multa e indemnização à autora de 5.000 euros, no pagamento de todas as despesas que esta vier a efectuar com o processo, bem como na liquidação integral dos honorários do mandatário e técnicos que intervenham no processo (…).

Os réus treplicaram.

Admitida a reconvenção e alteração do pedido, foi proferida a sentença que (i) julgou a acção improcedente por não provada, absolvendo os réus do pedido e (ii) julgou a reconvenção parcialmente procedente, (a) declarando os réus CC e mulher proprietários do prédio descrito na matriz sob o artigo 2041 na Conservatória sob o nº 000, e (b) condenando a autora AA a tal reconhecer e bem assim a abster-se da prática de quaisquer actos que perturbem ou impeçam o exercício do direito de propriedade pelos réus sobre o prédio em causa.

Inconformada, apelou a autora para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 8 de Fevereiro de 2011, julgou a acção parcialmente procedente, no que concerne aos pedidos constantes das alíneas a), c), d) e f), condenando os réus a reconhecerem que a autora e o 1º réu são donos, por a haverem adquirido por usucapião, de parte do prédio inscrito na matriz urbana de S. Paulo de Frades, Coimbra, sob o artigo 2041, parte correspondente a uma edificação implantada em 137 m.2, com a descrição constante do n.º 50 dos factos provados, absolvendo-os de todo o demais peticionado; e julgou a reconvenção improcedente, absolvendo a autora do respectivo pedido.

Inconformados, recorreram os réus para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formularam as seguintes conclusões:

1ª - Os recorrentes consideram ter havido erro de aplicação e de determinação de normas legais aplicáveis e por isso o presente recurso nos termos do artigo 722º do Código de Processo Civil;

2ª - Impunha-se que as duas instâncias aplicassem as normas correctas da usucapião e do registo aos factos dados como provados, tal não foi feito, e se, no que toca à decisão da 1ª instância, tal erro não afectou os ora recorrentes, tal não se pode dizer da decisão recorrida e impugnada neste recurso.

3ª -Pretendendo a autora ver-lhe reconhecido o direito de propriedade sobre a edificação mais recente identificada nos autos, não pode para tal aquisição considerar-se em face da lei como possuidora de boa-fé nos termos do artigo 1260º do Código Civil.

4ª- Com efeito, para adquirir o pretendido direito de propriedade, a autora sabia que a posse, que alega, teria de excluir o direito de propriedade dos recorrentes sobre a edificação mais recente, em termos de poder alegar que tal posse se manifestou por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, conflituando com a posse dos recorrentes e excluindo a destes nos termos do artigo 1251º do Código Civil, o que não foi o caso.

5ª - E, no caso vertido, não foi o caso, porquanto, como resultou provado, os recorrentes nunca perderam a posse sobre a edificação mais recente, porquanto nela tinham de passar para entrar na edificação mais antiga bem como na garagem e arrumo.

6ª - Por isso, nunca antes da instauração desta acção a autora impediu tal posse dos recorrentes e só com a instauração da presente acção o desejo de tal impedimento começou a ocorrer, como este pleito o comprova onde conflituam as pretensões.

7ª - Por conseguinte, a posse juridicamente considerada, só pode considerar-se existente desde o momento em que a autora mostrou interesse em adquirir publicamente o direito de propriedade sobre a edificação em causa, opondo-se à dos recorrentes, de má-fé nos termos do artigo 1262º do Código Civil, isto é quando intentou esta acção.

8ª - Sendo o prazo a aplicar de aquisição por usucapião por parte da autora de 20 anos e não 15 como erradamente consta das duas decisões.

9ª - A situação relatada enquadra-se e configura uma típica situação de inversão do título de posse consagrada no artigo 1265º do Código Civil, cuja omissão das duas decisões resultou violado, porquanto o corpus traduzido no poder de facto sobre a coisa só pode juridicamente considerar-se uma detenção visto o facto dado como provado de os recorrentes serem obrigados a passar na edificação mais recente para acederem à mais antiga necessariamente traduzir e comprovar, que, estes recorrentes nunca perderam a posse sobre a edificação por onde sempre passaram e passam, agora contra a vontade da autora.

10ª - E a circunstância de ter sido dado como provado que para os recorrentes entrarem na edificação mais antiga são obrigados a passar pela mais recente prova que exercem e obrigatoriamente são obrigados a exercer poderes de facto sobre a edificação mais recente, senão não podiam entrar em casa, na garagem e arrumo, posse exercida de forma pública, pacífica, titulada, registada, à vista de todos inclusivamente da autora, nos termos dos artigos 1260º, 126lº, 1262º, 1268º do Código Civil que a decisão recorrida violou ao não o reconhecer.

11ª - Nesta sequência, podemos dizer com segurança que os recorrentes adquiriram o direito de propriedade sobre a edificação mais recente, de boa-fé, de forma titulada, registada, nunca perdida.

12ª - Os poderes de facto exercidos pela autora sobre a edificação mais recente necessariamente terão de se considerar como juridicamente enquadrados numa simples detenção por detentora ou possuidora precária tolerada pelos recorrentes nos termos do artigo 1253º do Código Civil não se podendo considerar donatária do mesmo.

13ª - Juridicamente a autora não se pode considerar donatária da edificação mais recente ou do terreno onde esta foi construída, mas sim uma simples detentora tolerada pelos recorrentes, até ao início deste pleito, nos termos do referido artigo 1253º do Código Civil, porquanto pela referida matéria dada como provada os recorrentes nunca perderam a posse.

14ª - Posse esta cujos factos que a indiciam e comprovam estão protegidos pelo registo cuja descrição se encontra inscrita em seu nome no prédio identificado nos autos, que a autora nunca contestou nem de facto nem de direito, inclusive nunca impugnando o registo da mesma em nome dos recorrentes.

15ª - Não se pode considerar juridicamente ilidida a presunção constante do artigo 1260º nº 2, in fine, porquanto a referida posse dos recorrentes supra identificada necessariamente exclui a da autora que até à instauração desta acção estava desprovida de animus domini.

16ª - A presunção legal deriva também do artigo 7º do Código de Registo Predial e é uma presunção tantum juris, que no caso em apreço legalmente nunca pode considerar-se ilidida porquanto a autora não impugnou os factos abrangidos pelo registo predial nem pediu simultaneamente o seu cancelamento como impunha à data da instauração da acção o Código de Registo Predial no seu artigo 8º n.os 1 e 2.

17ª - Prédio este que é uno, é composto pelas duas edificações que são parte integrante de um único prédio, assim descrito no registo predial, nele inscrito em nome dos autores e nunca impugnados os factos por eles abrangidos como não pedido o seu cancelamento.

18ª - A decisão recorrida ignora intencionalmente as supracitadas normas legais, não alterou a matéria dada como provada em 1ª instância, ignorou a descrição predial do imóvel bem como a decisão de facto que reconheceu não alterar e por isso errou na aplicação e determinação das normas aplicáveis.

19ª - Justifica a autonomia da edificação mais recente pretendida pela autora em contravenção da descrição predial não impugnada, ignorando a presunção não ilidida desta descrição que a autora não impugnou não tendo pedido o cancelamento do registo que engloba a descrição e inscrição registrais.

20ª - Não pode a autora invocar posse de boa-fé sem impugnar o registo efectuado em nome dos recorrentes e pedir simultaneamente o seu cancelamento.

21ª - Assim o pedido da autora sem tal cumprimento do ónus que o registo predial impõe e impunha não pode impugnar ou sequer colocar em causa quer a descrição predial quer a inscrição constante do registo em nome dos recorrentes.

22ª - Não pode pois considerar-se ilidida a presunção constante da descrição predial e por consequência não podia o acórdão recorrido fraccionar o prédio, descrito no registo, conferindo à edificação mais recente uma autonomia que ela não tem, como demonstra a prova produzida e a presunção da descrição registral não impugnada.

23ª - Como também não podia tal acórdão recorrido considerar ilidida a presunção contida no artigo 1260º, in fine, porquanto os recorrentes nunca perderam posse alguma nem esta derivada do registo foi impugnada pois o mesmo não foi impugnado por não ter sido pedido o seu cancelamento.

24ª - Não pode a autora arrogar-se estar de boa-fé aceitando o registo em nome dos recorrentes tal como ele é antes e durante a pendência da presente acção sem impugnar os factos que ele abrange.

25ª - E a posse dos recorrentes é de acordo com o artigo 1260º do Código Civil titulada, de boa-fé, registada, nunca perdida pois continuaram a usar o prédio para entrar em casa, na garagem e arrumo.

26ª - O prazo para a autora adquirir o prédio objecto do pedido é pois de 20 anos e não de 15, e conta-se a partir da instauração da presente acção por inversão do título de posse ocorrido pelas sobreditas razões.

27ª - Acresce, como foi dito na decisão de 1ª instância, que corroboramos, não ser possível tal aquisição por usucapião pois tal edificação mais recente feita no aludido prédio não tem autonomia, pois inclusivamente serve a edificação mais antiga como resultou provado, dependendo esta daquela, verificando-se que para aceder à edificação mais recente a esta só se pode aceder por parte do prédio descrito e registado em nome dos recorrentes, como resultou provado.

28ª - O acórdão recorrido violou os artigos 7º e 8º n.os 1 e 2 Código do Registo Predial em vigor à data de interposição da acção e do pedido formulado e inalterado na réplica aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008 de 26/02, bem como o Decreto-Lei n.º 263-A/2007 de 23/07 e o Decreto-Lei n.º 533/99 de 11/12.

29ª - Resultou ainda violado o Decreto-Lei n.º 116/2008 de 04/07 que impõe o ónus de impugnação do registo já vinda do Decreto-Lei n.º 224/84 de 6 de Julho.

30ª - Os recorrentes são donos e legítimos proprietários e possuidores do prédio descrito sob o n.º 0000000000 da freguesia de São Paulo de Frades, Concelho de Coimbra inscrito na matriz sob o n.º0000, identificado nos autos, devendo por isso ser revogado o acórdão recorrido e julgar-se totalmente procedente a reconvenção, mantendo-se a decisão proferida em 1ª instância.

31ª - A autora não pode em juízo defender direitos do seu ex-marido o qual contestou o pedido da impetrante, pelo que resultaram violados os artigos 9º, 26º e 28º-A do Código de Processo Civil bem como os artigos 1407º e 985º do Código Civil.

32ª - A autora só pode defender em juízo a meação que invoca na dita construção mais recente edificada no prédio descrito, meação essa correspondente à metade alíquota dos 137 m 2 e que é indeterminada em face dos artigos 1403º e 1404º do Código Civil.

33ª - Sendo tal metragem de 68,50 m 2 correspondente à sua meação indivisível da restante e insusceptível de ser adquirida por usucapião por não corresponder a uma unidade predial física e concretamente individualizada e, por conseguinte, não ter autonomia predial e registral.

34ª - O acórdão recorrido é nulo pois violou os artigos 661º e 668º n.º l, alínea d), do Código de Processo Civil, porquanto, não tendo sido pedido o cancelamento do registo como condição necessária e indispensável para que os factos registados pudessem legalmente considerar-se impugnados, não podia o Tribunal da Relação de Coimbra, por falta de poder jurisdicional decorrente da não formulação do pedido pela autora, alterar a descrição do prédio e a sua inscrição em nome dos recorrentes.

A autora/recorrida contra – alegou.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2.

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1º - A autora contraiu casamento com o réu BB, sem convenção antenupcial, em 23 de Abril de 1988 e à data da instauração da acção decorria o processo de divórcio entre ambos (alínea a).

2º - Sob o nº0000 da matriz predial urbana da freguesia de São Paulo de Frades, concelho de Coimbra, encontra-se descrito em nome de CC, como proprietário pleno, o seguinte prédio urbano: prédio que se destina a habitação e se compõe de rés-do-chão, este com garagem, adega e duas arrecadações e 1º andar com 5 divisões, cozinha e 3 casas de banho, concluído em 4 de Junho de 1994, com a área coberta de 200 m.2 e descoberta de 1600 m.2, inscrito na matriz em 1994, o qual confronta do norte com EE, do sul com FF, do nascente com GG e do poente com estrada (doc. 32 da petição) (alínea b).

2º/A - Este prédio encontra-se registado no Registo Predial através da descrição nº 0000000000 e tem aí como proprietários os Réus CC e DD, encontrando-se a inscrição de aquisição sob a AP. 00de 000000000 por partilha de herança, conforme documento junto a fls. 376 (alínea b).

3º - Além da parte edificada referida no número que antecede, existe ainda no mesmo artigo matricial e descrição registral nº 0000000000, mais área edificada no espaço físico deste artigo matricial, a qual já existia antes de ser edificada aquela parte (mencionada na alínea b), espaço este já habitado pelos réus CC e esposa, na altura em que a autora casou e onde os mesmos réus continuam a habitar actualmente (alínea c).

4º - Após o casamento da autora com o réu BB, estes passaram a viver em casa dos 2.os réus, tratando-se da área identificada na mencionada alínea c) (alínea d).

5º - O projecto e toda a documentação apresentada na Câmara relativamente à edificação referida na alínea b) foram apresentados em nome do R. CC (alínea e).

6º - O projecto desta edificação é o que se encontra nos autos como documento n.º 2, de fls. 38 a 58 (alínea f).

7º - A licença de construção foi emitida em 17 de Outubro de 1991, com validade até 17 de Outubro de 1993 (alínea g).

8º - A edificação referida na alínea b) foi inscrita nas Finanças mediante o modelo 129, em 22 de Junho de 1993, onde se referiu que, no prédio composto de pinhal e mato, tinha sido construída uma nova casa de habitação com a área coberta de 200 m.2 e descoberta de 1600 m.2 e que anteriormente tal prédio se encontrava inscrito na matriz sob o artigo nº 1780 (alínea h).

9º - A autora e marido, o 1º réu, ocuparam esta edificação, habitando-a, em Maio de 1991, logo que a mesma ficou minimamente habitável, embora ainda não concluída, com água fornecida pelos bombeiros e aquela que recolhiam da chuva, e luz fornecida pelos 2.os réus, aos quais pagavam (alínea i).

10º - O termo de responsabilidade da instalação eléctrica foi redigido e assinado em 4 de Novembro de 1992 referindo-se a “habitação do Sr. BB” (alínea j).

11º - O pedido de fornecimento de energia eléctrica foi solicitado em 4 de Novembro de 1992 pelo 1º réu, marido da autora, encontrando-se o contrato emitido em nome do 1º réu marido e com autorização de débito em conta bancária da autora e marido sedeada no Banco Pinto e Sotto Mayor, balcão da Rua Ferreira Borges, conta nº000000000(alínea l).

12º - Desde que casaram, até terem mudado para a nova edificação, a autora e marido viveram sempre em casa dos 2.os réus, casa esta que no projecto junto como documento nº 2 da petição é referida como “o existente” (alínea l).

13º - A autora e marido, em 2003, colocaram caleira na edificação referida na alínea b), tendo despendido € 436,47, e colocaram, também nesse ano, um portão no imóvel referido na alínea b), pelo qual pagaram 242.581$00 a A......&C......., L.da (alínea m).

14º - Em 2001 a autora e marido mandaram efectuar obras na edificação referida na alínea b) que foram executadas pela empresa M............., a qual também colocou um tecto falso no sótão da edificação (alínea n).

15º - A autora e o marido, passado algum tempo sobre o casamento, decidiram construir uma vivenda na Junqueira, Cova do Ouro, para aí morarem, em terreno da avó do réu BB, a qual se dispunha a doar ao casal terreno para o efeito (quesito 1º).

16º - Foi então que os sogros da autora disseram verbalmente a esta e ao marido, em data não concretamente apurada, mas situada algum tempo antes de 1990, que lhes davam terreno em Carapinheira da Serra, contíguo à edificação mencionada na alínea c), para estes construírem a sua casa (quesito 2º).

17º - Os sogros da autora procederam assim porque pretenderam que a autora e marido ficassem a viver junto deles (quesito 3º).

18º - A partir desta data, a autora e marido passaram a considerar-se únicos e verdadeiros donos do terreno doado pelos sogros (quesito 4º).

19º - Logo tomaram posse do mesmo, limpando-o, preparando-o, para ali edificarem a sua casa, o que ocorreu durante período de tempo não concretamente apurado, tendo iniciado a construção dos alicerces da casa por volta de 1990/1991 (quesito 5º).

20º - O casal contratou uma máquina para proceder à remoção de terras e abrir espaço para as fundações e pilares da casa que pretendiam edificar (quesito 6º).

21º - O casal encomendou também o projecto da casa a um desenhador o qual foi assinado pelo Eng. JJ, tendo para o efeito dispendido para estes técnicos quantia não concretamente apurada (quesito 7º).

22º - O facto referido na alínea e) ficou a dever-se à circunstância de autora e marido não figurarem na matriz predial como proprietários do terreno (quesito 8º).

23º - Foi paga a taxa de licença de construção no montante de 49.540$00 (quesito 9º).

24 - A edificação da obra a que se refere a alínea b) dos factos provados ficou a cargo de HH, pai da autora e construtor civil (quesito 10º).

25º - O pai da autora, no decurso da mesma, ofereceu parte da mão – de - obra e material para a construção de tal edificação (quesito 11º).

26º - Desde que casaram, até terem mudado para a nova edificação, a autora e marido viveram sempre em casa dos segundos réus, casa esta que no projecto junto como documento n.º 2 da petição é referida como «o existente» (quesito 12º).

27º - Devido ao desejo da autora e marido morarem em outro espaço habitacional, o pai da autora iniciou esta construção com o alvará de um seu cunhado, de nome KK, pois o seu pai à data ainda não tinha alvará próprio (quesito 13º).

28º - A edificação referida na alínea b) estava habitável por volta do ano de 1992/1993 e a autora e marido passaram a morar aí desde então (quesito 14º).

29º - Mas ainda faltava fazer o envernizamento do rodapé e das portas e outros acabamentos (quesito 15º).

30º - Mais tarde a autora e marido tornaram o sótão habitável para o que realizaram obras (quesito 16º).

31º - Anteriormente tinham construído o jardim, colocado uma churrasqueira e feito outros arranjos exteriores, obras que foram realizando pouco e pouco e de acordo com as suas poupanças (quesito 17º).

32º - A autora e marido efectuaram seguro de incêndio e multi-riscos habitação, que também pagam (quesito 18º).

33º - Receberam sempre ali as visitas, familiares amigos e colegas de trabalho (quesito 19º).

34º - As obras referidas na alínea m) foram pagas com as economias da autora e do então seu marido, ora 1º réu (quesito 20º).

35º - O que consta no quesito 11º, e que foi a autora e o então marido quem escolheu, encomendou e pagou, pelo menos, parte das contas das obras efectuadas e dos materiais adquiridos para o efeito (quesito 21º).

36º - Desde 1992/1993 até por volta de 2008, sempre foi a autora e marido quem habitou a casa, ali comendo e dormindo, limpando, cuidando, fazendo obras e, assim, foram concluindo a casa que tinham projectado ter, tendo ali passado o primeiro Natal ainda o filho II era bebé (quesito 22º).

37º - O que fica referido nos quesitos 4 a 7 e 14 a 22 foi feito à vista de toda a gente, de forma pacífica, sem oposição ou manifestação de desacordo de quem quer que fosse, com a convicção de que se tratava de coisa sua, de coisa comum do casal (quesito 22º-A).

38º - Os construtores e trabalhadores que ali prestaram serviços de pedreiro, carpinteiro, canalizador, electricista e demais profissionais da construção civil sabiam que o prédio era da autora e de seu marido (quesito 23º).

39º - A autora e marido pagaram o reboco exterior da edificação referida na alínea b) e adquiriram material para equipar a casa como, por exemplo, um sistema completo para lavagem de ar tipo RAINBOW SE (cfr. doc. 34) (quesito 24º).

40º - Os seguros do recheio da casa e de risco de incêndio sempre foram contratados com o marido da autora e pagos pela autora e pelo réu (documentos 42 a 44) (quesito 25º).

41º - A edificação referida na alínea b) é a única habitação do casal (quesito 26º).

42º - A Autora e marido equiparam a edificação referida na alínea b) com diversos elementos de conforto como ar condicionado, substituindo o que se estraga como por exemplo a canalização (quesito 27º).

43º - Foi neste espaço habitacional que o filho do casal cresceu e viveu ao longo dos quase 19 anos de vida que já tem (quesito 28º).

44º - Foi vontade dos sogros da autora que esta e o filho deles ali construíssem casa para viverem toda a sua vida de casados (quesito 29º).

45º - A água que abastecia a edificação referida na alínea b) passava pelo contador existente na edificação referida na alínea c) (quesito 36º).

46º - O marido da autora, ora 1º réu, requisitou um contador à EDP para assegurar a electricidade à construção referida na alínea b) (quesito 37º).

47º - Os benefícios referidos nas alíneas m) e n) e nos quesitos 23º e 24º foram feitos pelo filho dos segundos réus (quesito 38º).

48º - A edificação referida na alínea b) foi encostada à edificação mais antiga referida alínea c) (quesito 39º).

49º - A construção mais recente encosta à construção mais antiga. Não existe passagem de uma das partes da construção para a outra, pelo seu interior, ao nível do primeiro andar. No rés-do-chão, face à actual configuração das construções e dos anexos que nestas existem, as áreas comunicam entre si. As habitações têm entradas separadas e escadas próprias para acesso a cada uma delas. No entanto, para entrar na habitação mais antiga tem que se passar pela mais recente. Pela configuração do terreno, inclinado e situado a nível elevado em relação à via pública, existe uma rampa de acesso comum ao imóvel (quesito 40º).

50º - A edificação mais recente (referida na alínea b) é mais alta, com a água do telhado a sobrepor a construção mais antiga, e tem duas chaminés. O alçado posterior tem quatro janelas, o alçado principal tem uma janela, duas portas sacadas e uma porta de entrada. O alçado lateral esquerdo tem quatro janelas e o lateral direito uma janela (quesito 41º).

51º - A edificação referida na alínea c) tem janelas de madeira e está pintada a cor - de - rosa velho (quesito 42º).

52º - Cada uma das edificações tem caleiras distintas, que não comunicam entre si (quesito 44º).

53º - Quer a edificação referida na alínea b), quer a edificação referida na alínea c), encontram-se inseridas num prédio com a mesma descrição registral n.º 0000000000, o qual tem a área total de 1992 m.2, sendo que a edificação mais recente referida na alínea b) e que foi implantada no terreno referido no quesito 2º, tem 137 m.2 de área de implantação e ocupa ainda com logradouro e jardim uma parte do prédio referido, não concretamente apurada, e a edificação mais antiga (referida na alínea c), tem cerca de 75 m.2 (quesitos 45º e 46º).

3.

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este STJ conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artigos 683º, n. os 3 e 4, 690º, n.º 1 e 660º, n.º 2 CPC), as questões a decidir são as seguintes:

1ª – Se estão reunidas as condições legais de aquisição por usucapião por parte da autora;

2ª – Se as duas edificações que se encontram inseridas num único prédio com a mesma inscrição e descrição predial gozam ou não de autonomia, podendo ou não ser o aludido prédio urbano divisível;

3ª – Se, não tendo sido pedido, como não foi, o cancelamento do registo, tal facto implica que a descrição não possa ser cancelada e, por conseguinte, o prédio também não poderá ser fraccionado;

4ª – Se o acórdão recorrido errou ao julgar improcedente o pedido reconvencional dos réus;

5ª – Se a autora carece de legitimidade e de interesse em agir, atendendo à posição assumida pelo seu ex-marido nos autos;

6ª – Se o acórdão recorrido é nulo, por haver conhecido para além do pedido.

4.

A autora, intentando esta acção, invoca a aquisição originária (usucapião) do direito de propriedade sobre o prédio descrito no artigo matricial urbano com o n.º0000, onde se encontra implantada a casa que o então casal constituído pela autora e pelo 1º réu, (filho dos 2.os réus), naquele construiu, prédio esse que tem de área coberta 200 m.2 e de área descoberta 300 m.2 e que lhes foi doado verbalmente pelos 2.os réus. Aceita que os 2.os réus têm, também, construída a sua casa neste prédio mas que as duas vivendas (a dos 2.os réus e a sua e do 1º réu) são geminadas e autónomas.

Por seu turno, os 2.os réus invocam que não estamos perante uma moradia autónoma, mas de uma dependência da sua casa, a qual foi custeada por estes, sendo que a ocupação de tais anexos pela autora e seu filho (1º réu) se deu por mera tolerância daqueles.

Debruçando-se sobre a invocada aquisição da propriedade do imóvel em questão com base na usucapião, o acórdão recorrido, no que tange a este particular aspecto, confirmou a sentença, a qual havia considerado que estavam reunidos os requisitos da usucapião assente na posse levada a cabo por autora e 1º réu, salientando o acórdão, nomeadamente, o decurso do prazo legal de 15 anos para a posse de boa fé, que a autora pode invocar por haver ilidido a presunção decorrente do nº 2 do artigo 1260º do CC.

Discordam os recorrentes, defendendo que, ao contrário do que foi decidido, os autos não contêm todos os elementos de que depende a declaração do respectivo direito de propriedade fundado na usucapião.

Porque tal erro, no que toca à sentença, não afectou os recorrentes, ao contrário do que ora sucede, referem não ter suscitado, senão agora, a aludida questão, focalizando, em essência, os seguintes aspectos:

a) - Se, em face do disposto nos artigos 1288° e 1290° do CC, a autora e marido (1º réu) são meros detentores ou possuidores precários, não detendo a posse do imóvel objecto dos autos, por não estarem reunidos na sua titularidade os elementos integrante do instituto possessório - o corpus e o animus;

b) – Se, mesmo a entender-se deforma contrária, nunca a posse se manteve na sua disponibilidade em termos aptos a constituir a usucapião, pois que a mesma nunca pode ser considerada de boa-fé (artigo 1260° do CC), nem decorreu o prazo de vinte anos (artigo 1296° do CC), em termos públicos, pacíficos e continuados.

Exposta a posição assumida pelas partes, em resultado da sentença e do acórdão recorrido, passemos a apreciar este 1º segmento do recurso:

A noção de posse é dada, no nosso sistema jurídico, pelo artigo 1251º do Código Civil, que a define como o “poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.

São conhecidas as concepções objectivista e subjectivista, em relação aos elementos integradores da posse. Para a primeira, a posse conforma-se com um elemento material “o corpus” que se identifica com os actos materiais praticados sobre a coisa, ou seja, com o exercício de certos poderes sobre a coisa. Para a segunda, exige-se, além do “corpus”, um elemento psicológico – “animus” – que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados.

A nossa lei acolheu a concepção subjectivista, como claramente resulta dos artigos 1251º e 1253º. Para haver posse, é necessário, além da situação material de exercício de um poder de facto sobre a coisa, a vontade de se comportar como titular do direito correspondente aos actos que se praticam. Se falta o “animus” estamos perante uma mera detenção ou posse precária.

Assim, possuidor é apenas aquele que, actuando por si ou por intermédio de outrem (artigo 1252º, n.º 1 CC), além do corpus possessório, tenha também o animus possidendi, ou seja, a intenção de exercer sobre a coisa um direito real próprio.

Donde, por força do disposto no artigo 1253º, deve qualificar-se como simples detenção (e não como posse) todo o poder de facto que se exerça sobre as coisas sem o “animus possidendi”.

O facto de a lei exigir o “corpus” e o “animus” para efeito de haver posse implica que o possuidor tenha de provar a existência dos dois elementos para poder, por exemplo, adquirir por usucapião.

Porém, sendo necessário o “corpus” e “animus”, o exercício daquele faz presumir a existência deste (artigo 1252º, n.º 2 Código Civil).

O animus é inferível. Exprime-se pelo poder de facto. A intenção de domínio não tem de explicitar-se e muito menos por palavras. O que importa é que se infira do próprio modo de actuação ou de utilização.

O STJ, em acórdão de uniformização de jurisprudência, de 14/05/96, publicado no DR, II, de 24/06/96, aplicou esta doutrina, ao extrair a seguinte conclusão:

“Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.

O artigo 1258º do Código Civil menciona quais os caracteres da posse, merecendo estes desenvolvimento nos normativos subsequentes, sendo estas diversas características relevantes para vários efeitos.

Assim, pode, em primeiro lugar, ser titulada ou não titulada, destrinça que tem importância para efeitos de usucapião. Na verdade a usucapião obedece a prazos diversos, consoante a posse que a fundamenta é titulada ou não titulada.

O artigo 1259º, n.º 1, estatui que a posse só é titulada quando assente num acto susceptível de, em abstracto, constituir ou transferir o direito real que lhe corresponde, enquanto o n.º 2 do artigo 1260º, por seu turno, consagra uma presunção juris tantum, preceituando que “a posse titulada se presume de boa fé e a não titulada, de má fé”.

Infere-se do artigo 1259º Código Civil que a posse titulada é a que se funda num modo legítimo de adquirir, ou seja, funda-se num modo que segundo o seu tipo geral é idóneo para provocar uma aquisição, independentemente de, no caso concreto, o transmitente ter ou não o direito a transmitir e independentemente da validade substancial do negócio jurídico.

Quer dizer, um negócio, que, por seu tipo geral, é idóneo para transmitir um direito, titula a posse, mesmo que haja um motivo substancial de invalidade. Mas se faltar no título, no negócio realizado, um requisito formal de validade, a posse é não titulada.

O artigo 1261º do Código Civil fala de posse pacífica, ou seja, aquela que foi adquirida sem violência, a que se contrapõe a posse violenta, enquanto o artigo 1262º do Código Civil fala de uma posse pública, ou seja, aquela que se exerce de modo a ser conhecida pelos interessados, contrapondo-se a esta posse pública uma posse clandestina ou oculta.

Outra distinção é a que se faz entre posse de boa fé e posse de má fé. “A posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem[1]”, donde se infere, a contrario sensu, “a noção de má fé”.

Reportando-nos ao caso sub judice, verifica-se, atendendo aos factos provados, que a autora contraiu casamento com o réu BB, em 23 de Abril de 1988, passando o casal, após o casamento, a viver em casa dos 2.os réus, sogros da autora e pais do seu marido, a qual se encontra edificada no artigo matricial (hoje) com o artigo 2041, encontrando-se o prédio registado na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 000, com inscrição de aquisição de 13/06/90 a favor dos 2.os réus.

Este espaço era, pois, já habitado por estes réus, antes da autora haver casado com o seu filho: Após o casamento da autora com o filho dos 2.os réus, passaram a habitar nessa casa, por deferência dos réus, enquanto construíram a sua própria casa.

Com efeito, a autora e o marido, passado algum tempo sobre o casamento, decidiram construir uma vivenda na Junqueira, Cova do Ouro, para aí morarem, em terreno da avó do réu BB, a qual se dispunha a doar ao casal terreno para o efeito.

Foi então que os sogros da autora disseram verbalmente a esta e ao marido (seu filho), algum tempo antes de 1990, que lhes doavam terreno em Carapinheira da Serra, contíguo à sua edificação, para ali construírem a sua casa, pois pretendiam que a autora e o marido ficassem a viver junto deles toda a sua vida de casados.

A partir desta data, a autora e marido passaram a considerar-se únicos e verdadeiros donos do terreno doado pelos sogros daquela e pais deste.

Logo tomaram posse do mesmo, limpando-o, preparando-o, para ali edificarem a sua casa, contratando uma máquina para proceder à remoção de terras e abrir espaço para as fundações e pilares da casa que pretendiam edificar, tendo iniciado os alicerces da casa por volta de 1990/1991.

O casal encomendou o projecto da casa a um desenhador, mas assinado por um engenheiro, tendo dispendido com estes técnicos as quantias acordadas.

O projecto e toda a documentação apresentada na Câmara relativamente à edificação que a autora e marido pretendiam executar foram apresentados em nome do réu BB, sogro da autora, uma vez que esta e o marido não figuravam na matriz predial como proprietários do terreno, mas era a autora e o marido quem suportava os respectivos custos.

Devido ao assinalado desejo da autora e marido morarem noutro espaço habitacional, foi o pai da autora, que é construtor civil, quem iniciou a construção, ficando a mesma a seu cargo, tendo oferecido parte da mão – de – obra e material para a dita construção mas foi a autora e o marido quem escolheu e encomendou os materiais, tendo pago o grosso das obras efectuadas e dos materiais adquiridos para o efeito.

Esta edificação estava habitável por volta do ano de 1992/1993, data a partir da qual a autora e o marido passaram a morar nela, sendo certo que até essa data sempre viveram na casa dos 2.os réus. Assim, desde essa data (1992/1993) até por volta de 2008, sempre foi a autora e marido quem habitou a casa, ali comendo e dormindo, limpando, cuidando, fazendo obras e assim foram concluindo a casa que tinham projectado, tendo ali passado o primeiro Natal ainda o filho de ambos era bebé.

Os construtores e trabalhadores que ali prestaram serviços de pedreiro, carpinteiro, canalizador, electricista e demais profissionais da construção civil sabiam que o prédio era da autora e do seu marido. Estes pagaram o reboco exterior da edificação e adquiriram material para equipar a casa como, por exemplo, um sistema completo para lavagem de ar tipo RAINBOW SE.

Já depois de nela habitarem, envernizaram o rodapé e as portas, tornaram o sótão habitável, realizando as obras necessárias, equiparam a casa com diversos elementos de conforto, construíram o jardim, colocaram uma churrasqueira, fizeram outros arranjos exteriores, obras que foram realizando pouco a pouco e de acordo com as suas poupanças, colocaram nessa edificação uma caleira e um portão, suportando todas as despesas.

Mais se provou que todos os actos acima referidos e praticados pelo casal, após a doação verbal do terreno pelos 2.os réus, foi feito à vista de toda a gente, de forma pacífica, sem oposição ou manifestação de desacordo de quem quer que fosse, com a convicção de que se tratava de coisa sua, de coisa comum do casal, sendo certo que os 2.os réus habitavam na casa ao lado.

Resulta, assim, do exposto que foi doado, verbalmente, à recorrida e ex – marido, pelos recorrentes, há mais de vinte anos, um terreno onde esta e o ex – marido construíram a sua casa de morada de família, onde sempre habitaram e que fruíram, de forma autónoma, até ao divórcio, ou seja, até por volta de 2008.

Encontra-se, assim, ilidida a presunção contida no n.º 2 do artigo 1260º do Código Civil, pelo que, estando a recorrida de boa fé, beneficia do prazo de 15 anos, contados desde antes de 1993, por força do disposto no artigo 1296º do Código Civil.

Por último, apurou-se que, quer a edificação construída pela autora e marido, quer a edificação dos 2.os réus, encontram-se inseridas num prédio com a mesma descrição registral n.º 0000000000, o qual tem a área de 1992 m.2, sendo que a edificação mais recente, e que foi implantado no terreno que os 2.os réus doaram ao filho e nora, tem 137 m.2 de área de implantação e ocupa ainda com logradouro e jardim uma parte do prédio referido, não concretamente apurada, e a edificação mais antiga tem cerca de 75 m.2.

Porém, os 2.os réus registaram a seu favor a aquisição da propriedade sobre o prédio em causa na acção (na sua unidade).

O registo, nos termos do artigo 7º do CRP, confere ao respectivo titular o benefício da presunção de que o direito registado lhe pertence, nos termos naquele consignados, cabendo ao interessado ilidir a presunção derivada do registo, alegando e provando factos demonstrativos do contrário (vide artigo 350º do CC). O registo confere assim uma presunção de titularidade que cede perante a prova da aquisição originária, ou seja, pela prova da usucapião.

Com efeito, os efeitos do registo predial não têm carácter absoluto, porque, salvo o caso da hipoteca, nos termos do seu artigo 4º, n.º 2, não têm efeito constitutivo. Como diz o Prof. Oliveira Ascensão[2], “os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros legais, nos termos do n.º 1 do citado artigo 4º. E a presunção derivada do registo, mesmo relativamente a terceiros, cede perante a aquisição fundada na aquisição, porque é esta que constitui a base de toda a nossa ordem imobiliária e não o registo”. Por isso, “esta em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais; vale por si. Por isso, o que ficou no registo passa à frente dos títulos substantivos existentes mas nada pode contra a usucapião”. O registo é tão só uma presunção legal que pode ser ilidida pela prova da usucapião, dada a função essencialmente publicista daquele.

No mesmo sentido, a jurisprudência tem entendido que, no nosso direito, se dá prevalência à usucapião e não ao registo[3], de tal sorte que a presunção derivada do registo cede mesmo relativamente a terceiros pela aquisição fundada em usucapião[4].

Aqui chegados, poder-se-á perguntar se estão reunidas as condições legais para se poder falar de aquisição do direito de propriedade por usucapião sobre o prédio constituído pela casa construída e terreno onde a mesma se encontra implantada com a área de construção 200 m.2 e de logradouro 300 m.2.

Começando pela análise dos invocados requisitos da usucapião, parece-nos incontroverso que o corpus e o animus estão integralmente verificados.

Esta posse revestirá as características de pública, porque vem sendo exercida com conhecimento e à vista de toda a gente e de pacífica, porque vem sendo exercida sem perturbação ou oposição de quem quer que seja.

No caso vertente, a posse é não titulada, atento o vício formal de que enferma a doação, já que carecendo esta de ser celebrada por escritura pública, para poder ser válida, (vide artigos 947º do CC e 80º, n.º 1 do Código do Notariado), foi feita verbalmente. Como tal, presume-se de má fé (artigo 1260º, n.º 2), o que nos remete para o prazo de 20 anos.

Porém, tal presunção pode ser ilidida com a prova de boa fé, como aconteceu no caso presente.

Citando Pires de Lima e Antunes Varela[5], o conceito de boa fé é de natureza psicológica e não ética ou moral, consistindo na simples ignorância de se estar a lesar os direitos de outrem”, resultando essa ignorância, na generalidade dos casos, da convicção (positiva) de que se está a exercer um direito próprio, adquirido por título válido, por se desconhecerem, precisamente, os vícios da aquisição. Mas a lei não exige que assim seja, devendo considerar-se de boa fé a posse que resulta negócios não titulados, como a venda efectuada de modo informal. Ponto, obviamente, é que exista a convicção de se não lesarem direitos alheios”.

Ora, atendendo à sinopse dos factos provados, não restam dúvidas que a autora e seu marido actuaram na convicção de que o terreno lhes pertencia e de não lesarem direitos de outrem. Foram os 2.os réus que lhes doaram o terreno, para que estes ali construíssem a casa, com vista a que os mesmos ficassem a viver junto deles, tendo sido por vontade daqueles que o casal ali construiu a casa para viverem a sua vida de casados. Foi, assim, na sequência da vontade manifestada pelos 2.os réus, que o casal veio a efectuar a construção, ora em discussão, e da qual vieram a usufruir, na convicção de que o faziam no uso de um direito próprio como proprietários.

Aliás, enquanto iam construindo a casa, habitavam, ali ao lado, em casa dos 2.os réus, os quais iam assistindo ao evoluir da construção a expensas da autora e marido.

Tal actuação é elucidativa da posse de boa fé, pelo que, tendo a autora e marido iniciado a posse do terreno, onde se encontra implantada a casa em 1990 e tendo a acção sido intentada em 2008, mostram-se decorridos mais de 15 anos, prazo esse suficiente para a aquisição por usucapião.

5.

A segunda questão consiste em saber se as duas edificações que se encontram inseridas num único prédio com a mesma inscrição e descrição predial gozam ou não de autonomia, podendo ou não ser o aludido prédio urbano divisível.

Defendem os recorrentes que a ora recorrida não poderia ter adquirido o imóvel em causa através do instituto da usucapião, porquanto “nunca perderam a posse sobre a edificação mais recente porquanto nela tinham que passar”.

Os recorrentes apoiam-se na decisão proferida na 1ª instância. Com efeito, a sentença, não obstante ter concluído que se verificavam todos os requisitos, para que a aquisição de propriedade sobre o aludido imóvel se operasse por usucapião, realçou o facto de, “para entrar na habitação mais antiga, tem que se passar pela mais recente”, concluindo que se lhe afigurava “não ser possível a aquisição de uma parte de tal unidade através da figura da usucapião, sob pena de se colocar em causa a harmonia do sistema jurídico, dos vários institutos, quer de direito público, quer de direito privado convergentes na questão decidenda (…). E que “a concretização da usucapião cindia a unidade predial em duas partes urbanas, sem que houvesse verdadeira autonomia entre elas, o que em termos práticos criaria uma situação insustentável do ponto de vista jurídico na medida em que implicaria uma divisão do prédio em lotes, à margem do processo legalmente estabelecido, para além de que necessariamente ficava afectada a sua substância em termos de uso e fruição (…)”.

Chamado a pronunciar-se sobre esta questão, o acórdão recorrido considerou e, em nosso entender, bem, que, o facto de existir uma passagem utilizada pelos recorrentes em nada implica nem é incompatível com os direitos da recorrida e ex – marido.

Inaceitável seria que, atentos os factos dados como provados relativos à doação do terreno, bem como, tendo sido a recorrida e ex – marido a construir, a habitar e fruir a sua casa de morada de família, não procedesse a sua aquisição por usucapião.

Com efeito, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião (artigo 1287º CC).

A única causa da usucapião é a posse e esta é uma relação ou poder de facto sobre uma coisa, tendo por objecto certa extensão dessa coisa. Os limites da aquisição pela prescrição positiva são os limites do exercício do senhorio de facto que se verificou, o que está traduzido na conhecida máxima tantum praescriptum quantum possessum.

Como os factos comprovam, “a construção mais recente encosta à construção mais antiga. Não existe passagem de uma das partes da construção para a outra pelo seu interior, ao nível do primeiro andar. No rés – do – chão, face à actual configuração das construções e dos anexos que nelas existem, as áreas comunicam entre si: As habitações têm entradas separadas e escadas próprias para acesso a cada uma delas. No entanto, para entrar na habitação mais antiga, tem que se passar pela mais recente. Pela configuração do terreno, inclinado e elevado em relação à via pública, existe uma rampa de acesso comum ao imóvel”

Esta circunstância não se pode perspectivar como óbice à usucapião relativamente a qualquer das referidas edificações.

Apesar de existir a comunicação entre habitações, a nível de rés – do – chão, utilizada por facilidade ou comodidade dos 2.os réus, dadas as características do terreno, cada uma das edificações dispõe de entradas separadas, estando cada uma delas perfeitamente delimitada e individualizada.

Extrai-se do exposto que a autora e o ex – marido permitiram que os réus entrassem na sua casa pelos fundos da casa da autora e marido, apenas por facilidade e comodidade destes, mas ambas as edificações são distintas e autónomas.

A edificação mais recente, ou seja a da autora e ex – marido, é mais alta, com a água do telhado a sobrepor a construção mais antiga e tem duas chaminés. O alçado posterior tem quatro janelas, o alçado principal tem uma janela, duas portas sacadas e uma porta de entrada. O alçado lateral esquerdo tem quatro janelas e o lateral direito tem uma janela.

As janelas são diferentes e a cor com que estão pintadas é também diferente. Cada uma das edificações tem caleiras distintas que não comunicam entre si.

Por fim a resposta aos quesitos 45º e 46º, esclarece cabalmente que as duas edificação estão perfeitamente delimitadas e individualizadas. Embora, quer a edificação mais recente, quer a edificação mais antiga, se encontrem inseridas num prédio com a mesma descrição registral, o qual tem a área de 1992 m.2, a edificação mais recente tem 137 m.2 de área de implantação e ocupa ainda com logradouro e jardim uma parte do prédio referido, não concretamente apurada, e a edificação mais antiga tem cerca de 75 m.2. ou seja, a edificação propriamente dita realizada pela autora e ex – marido está perfeitamente delimitada e individualizada, pelo que a posse exercida pela autora/recorrida e pelo seu ex – marido da referida edificação, por mais de 15 anos, conduz à aquisição da referida edificação através do instituto da usucapião.

6.

Mesmo admitindo que a presunção do registo tenha efectivamente sido ilidida, pois ficou inequivocamente demonstrado que a autora e marido adquiriram o direito de propriedade sobre a aludida edificação por usucapião, afirmam os recorrentes resultar do registo predial que são proprietários do prédio acima referido na alínea b), ou seja, o prédio construído pela autora e marido.

Perante esta contradição, defendem os recorrentes que, não tendo sido pedido, como não foi, o cancelamento do registo, tal facto implica que a descrição não possa ser cancelada e, por conseguinte, o prédio também não poderá ser fraccionado;

Que dizer?

Decorre do princípio da presunção de verdade ou da exactidão (também chamado da legitimação registral a regra prevista no artigo 8º do CRP, na redacção anterior ao DL 116/2008).

Analisando este preceito, considerava Mouteira Guerreiro[6], que, “se o registo definitivo faz presumir que o direito existe e pertence ao titular inscrito «nos precisos termos em que o registo o define», não faria sentido atacar judicialmente essa verdade publicitada, sem simultaneamente atacar o próprio registo”. “Por isso, quem pretender contestar a veracidade dos factos tabularmente consignados terá igualmente de pedir o cancelamento do registo. Se o não fizer, a acção não prosseguirá após os articulados, porque haveria o risco de se chegar a uma efectiva contradição: por um lado, ter uma sentença declarando juridicamente irrelevantes ou inverídicos certos factos e, pelo outro, existir um registo a fazer presumir erga omnes a veracidade e validade desses mesmos factos.

É claro que a lei não quer esta incoerência. Não é, pois, possível demonstrar que o facto registado é falso ou inexistente e, ao mesmo tempo, não atacar o próprio registo, que permaneceria publicando o contrário. Porque ele não deve subsistir contra a verdade, é então necessário cancelá-lo”. Como já frisou o Supremo, “o reconhecimento da impugnação, feita em juízo, dos factos comprovados pelo registo, é condicionado pela formulação do pedido de cancelamento do registo[7]”.

E se o pedido não tiver sido expressamente formulado?

In casu, não foi expressamente formulado o pedido de cancelamento do registo. Perante a falta de pedido e encontrando-se revogado o artigo 477º do CPC (redacção de 1962), o juiz deveria convidar a autora a suprir a deficiência, findos os articulados (artigo 508º CPC).

Tem-se entendido que a omissão do pedido de cancelamento na petição inicial não constitui nulidade processual, mas antes excepção dilatória enquadrável na disposição genérica da alínea e) do n.º 1 do artigo 288 CPC. Hoje as excepções dilatórias somente subsistem enquanto a respectiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do artigo 265º, n.º 2 do CPC[8].

Certo é que, in casu, a autora teve prosseguimento após os articulados.

Ora, como se entendeu, no Parecer do Conselho Técnico dos Registos e do Notariado, de 22 de Novembro de 2008[9], nem em todo o tipo de acções era aplicável o disposto no n.º 1 deste preceito, como, por exemplo, na acção de preferência. E mesmo relativamente às demais acções é entendimento estabilizado do STJ que, sendo o cancelamento uma consequência do pedido, mesmo que não exista pedido expressamente formulado deve considerar-se implícito e, consequentemente, deve ordenar-se o cancelamento do registo, se for o caso.

Com efeito, como se refere, entre outros, no acórdão do STJ de 22/01/98, “o cancelamento do registo é uma consequência da procedência do pedido em que se pede se reconheça que o direito pertence a quem não é o titular inscrito[10]”, e isto porque a parte interessada, munida do acórdão transitado, sempre poderia requerer o cancelamento do registo.

Assim, “tem sido nítido o esforço interpretativo no sentido de obviar a consequências de rigor absoluto. Do que se disse, resulta já a consideração de que, tendo-se omitido tal pedido expresso de cancelamento e tendo a acção prosseguido após os articulados é de considerar que o mesmo se encontra implicitamente efectuado e, em consequência, deve ordenar-se o cancelamento do registo[11]”.

In casu, a declaração da usucapião sobre a edificação construída no mesmo artigo e, bem assim, na descrição nº 0000000000 (vide o facto provado em 2) é, a todas as luzes, incompatível ou contraditória com a inscrição da respectiva aquisição a favor dos réus CC e mulher (inscrição pela AP 00de 13/06/90 aludida na parte final daquele facto nº 2). É que, como se vê da citada matéria provada, aquela descrição engloba também o imóvel que, com base na usucapião, foi adquirido por autora e 1º réu. Por virtude dessa patente incompatibilidade impõe-se o cancelamento, ao abrigo do artigo 13 do CRP, da inscrição de aquisição a favor dos 2.os réus, uma vez que abrange um objecto que não é agora aquele que corresponde ao direito dos respectivos titulares, não podendo, consequentemente, obstar à procedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade da autora e ex – marido sobre o prédio usucapido o facto desta ter omitido o pedido de cancelamento do registo existente a favor dos 2.os réus.

Consubstanciando esta doutrina, institui-se, no artigo 8º-B da Reforma, um regime amplo de comunicação entre os serviços da Administração Pública e procedeu-se também ao alargamento das situações de oficiosidade na promoção e instrução dos pedidos de registo a que, desta feita, nem os tribunais escaparam, dispondo a alínea a) do n.º 3 do artigo 8º-B que “estão ainda obrigados a promover o registo, os tribunais no que respeita às acções, decisões e outros procedimentos e providências judiciais”. Ou seja, a presente Reforma veio acolher as referidas posições, fazendo-as reflectir na nova redacção do artigo 8º.

Não decidiu, pois, correctamente, o acórdão recorrido, quando considerou que, quanto ao registo do prédio urbano que passa a ser integrado pela edificação construída pela autora, aludido na alínea b), ele ficará ao alcance da autora a partir da decisão agora proferida, com o fundamento de que o pedido deduzido formulado pela autora não contempla esse efeito jurídico, pelo que não há que decretar tal consequência ex vi do artigo 661º do CPC.

Ao contrário do decidido, resulta, do que se deixou exposto, que, sendo o cancelamento uma consequência do pedido, apesar da autora não ter expressamente formulado esse pedido, deve considerar-se implícito e, consequentemente, deve ordenar-se o cancelamento do registo.

7.

Alegam, ainda os recorrentes não ter a autora registado a mera posse que invoca desde 1993 e que, nos termos do artigo 3º, n.º 1 do CRP, “estão igualmente sujeitas a registo as acções que tenham por fim principal ou acessório o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção de algum dos direitos referidos no artigo anterior…”, pretendendo, com isso, reforçar a tese por eles defendida de que a autora e ex-marido não adquiriram o direito de propriedade sobre o aludido imóvel por usucapião.

Entendemos que também, neste particular, não assiste razão aos recorrentes.

O registo predial, em geral, destina-se a tornar conhecida a situação jurídica das coisas, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário.

Citando o aludido Parecer, “a função do registo, em particular, é a de assegurar ao autor que os efeitos materiais da sentença favorável vinculam aqueles que, não sendo intervenientes na acção, tenham adquirido ou venham a adquirir sobre a coisa litigiosa direitos incompatíveis com os que o autor fez valer em juízo”.

“O registo das acções tem, portanto, uma natureza cautelar, pois que se destina a evitar que algum interessado possa prevalecer-se dos direitos que sobre o prédio venha a adquirir do réu em momento posterior ao daquele registo, ou até que tenha já adquirido mas não tenha obtido o registo”.

No fundo, este registo mais não é do que a antecipação do registo da própria sentença transitada, com a condição de que se acolha o pedido do autor nos seus precisos termos.

“A prioridade do registo e a oponibilidade perante terceiros tem, nas acções, consequências de natureza adjectiva ou processual. O autor que regista a acção dispensa-se de instaurar novo processo contra quem eventualmente tenha adquirido o prédio do réu.

Com efeito, sempre que o autor da acção a tenha registado antes do sub - adquirente registar a aquisição do direito litigioso, a sentença, quando procedente, produz efeitos em relação a este, afectando os direitos que ele tenha constituído, por força do disposto no n.º 3 do artigo 271º do CPC.

Consequentemente, o registo da acção prioritariamente obtido assegura a exequibilidade da decisão final em relação a terceiros ou erga omnes”.

Seabra de Magalhães[12], sublinha que o registo das acções apenas encontra justificação quando possa desencadear um efeito mínimo que seja de oponibilidade processual em relação a terceiros.

Entre as partes, a acção produz efeitos, de forma plena, a partir da citação do réu para a causa.

Deste modo, a falta do registo não gera uma privação genérica de oponibilidade, (visto que os factos não registados podem ser invocados inter partes ou seus herdeiros). O que sucede é que registado o facto passa a ser oponível a terceiros.

E é oponível porque, em razão do registo, presume-se iuris et de iure que os terceiros têm um virtual conhecimento do facto registado, não havendo obstáculo a que seja contra eles invocado.

Assim, como no nosso ordenamento jurídico o registo não prevalece sobre a usucapião, também o registo da acção apenas assegura a exequibilidade da decisão final em relação a terceiros ou erga omnes, não sendo motivo para tornar o recurso procedente ou improcedente.

Independentemente do registo existente a favor dos recorrentes, a recorrida poderá registar, transitada em julgado a decisão que reconheça o seu direito sobre o prédio usucapido, pelo que a usucapião terá de proceder independentemente do registo ou não da acção.

8.

Defendem, seguidamente, os recorrentes que o acórdão recorrido errou ao julgar improcedente o pedido reconvencional dos réus.

Ao contrário do pretendido pelos 2.os réus, a reconvenção deve ser julgada improcedente, o que se apresenta, a contrario, como corolário lógico da tese sufragada pela autora de que lhe deveria ser reconhecido o seu direito de propriedade sobre todo o artigo 2041 da matriz urbana de S. Paulo de Frades. É certo que essa sua pretensão não obteve total acolhimento.

No entanto, a declaração da usucapião sobre a edificação construída no mesmo artigo e, bem assim, na descrição nº 0000000000, (vide o facto provado em 2), é, a todas as luzes, incompatível ou contraditória com a inscrição da respectiva aquisição a favor dos réus CC e mulher (inscrição pela AP 00 de 13/06/90 aludida na parte final daquele facto nº 2).

É que, como se vê da citada matéria provada, aquela descrição engloba também o imóvel que, com base na usucapião, foi adquirido por autora e 1º réu.

Por virtude dessa patente incompatibilidade impõe-se o cancelamento, ao abrigo do artigo 13 do CRP, da inscrição de aquisição a favor dos 2.os réus, uma vez que abrange um objecto que não é agora aquele que corresponde ao direito dos respectivos titulares.

9.

Referem, finalmente, os recorrentes que a autora não pode em juízo defender direitos do seu ex – marido o qual contestou o pedido impetrante, pelo que teriam resultado violados os artigos 9º, 26º e 28º-A do CPC.

Trata-se de uma questão nova, porque só agora suscitado.

Sendo os recursos meios processuais pelos quais se submetem as decisões judiciais a uma nova apreciação por outro tribunal, não pode esta questão ser agora apreciada.

Ainda que tal questão houvesse sido suscitada, que não foi, é manifesto que a autora tem interesse directo em demandar, pois da procedência da acção resulta o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio em causa a favor do casal, pelo que, mesmo que o casamento se encontre dissolvido, por se tratar de um bem adquirido na constância do matrimónio, a autora tem direito à sua meação.

É natural que o seu ex – marido se tenha conluiado com os seus pais, porque, na improcedência da acção, seria ele, indirectamente, o único beneficiário.

Nada obsta a que a autora tivesse intentado, desacompanhada do seu ex-marido a acção. Pelo facto da autora intentar a acção desacompanhada do ex – marido, pelas razões expostas, a perda da acção não implicaria a perda do bem. A perda do bem, em relação à autora, resultaria, isso sim, se a acção não tivesse sido proposta.

10.

Consideram, finalmente, os recorrentes que o acórdão recorrido é nulo, por alegada violação dos artigos 661º e 668º, n.º 1, alínea d) do CPC, porquanto, não tendo sido pedido o cancelamento do registo, como condição necessária e indispensável, para que os factos registados pudessem legalmente considerar-se impugnados, não podia a Relação, por falta de poder jurisdicional decorrente da não formulação do pedido pela autora, alterar a descrição do prédio e a sua inscrição em nome dos recorrentes.

Porque o assunto foi acima profundamente debatido, relembra-se aos recorrentes que o cancelamento do registo é uma consequência da procedência do pedido em que se pede se reconheça que o direito pertence a quem não é titular inscrito.

Assim, tendo-se omitido tal pedido expresso de cancelamento e tendo a acção prosseguido após os articulados é de considerar que o mesmo se encontra implicitamente efectuado e, em consequência, deve ordenar-se o cancelamento do registo.

Concluindo:

1ª - No nosso direito dá-se prevalência à usucapião e não ao registo, o qual, entre nós, não tem eficácia constitutiva, mas meramente declarativa.

2ª - Não obsta à aquisição do imóvel em causa, por usucapião, por parte da recorrida e ex-marido o facto de os recorrentes gozarem da presunção do registo na Conservatória, porquanto se trata de uma mera presunção e, portanto, ilidível.

3ª – Porque a autora/recorrida está de boa-fé, beneficia do prazo de 15 anos para adquirir por usucapião, previsto no artigo 1260º, nº 2 do CC, estando ilidida a presunção contida neste artigo.

4ª – Apesar de existir comunicação entre as duas habitações, a nível de rés – do – chão, comunicação utilizada por facilitismo ou comodidade dos 2.os réus, dadas as características do terreno, cada uma delas está perfeitamente delimitada e individualizada, pelo que aquela circunstância não se pode perspectivar como óbice à usucapião da aludida habitação.

5ª – Englobando a descrição 0000000000 também o imóvel que, com base na usucapião, foi adquirida pela recorrida e pelo ex-marido, impõe-se, por virtude dessa patente incompatibilidade, o cancelamento da inscrição de aquisição a favor dos recorrentes, ao abrigo do artigo 13º do CRP, uma vez que abrange um objecto que não é agora aquele que corresponde ao direito dos respectivos titulares.

6ª - O cancelamento do registo é uma consequência da procedência do pedido em que se pede se reconheça que o direito pertence a quem não é titular inscrito.

7ª - Tendo-se omitido tal pedido expresso de cancelamento e tendo prosseguido a acção após os articulados, é de considerar que o mesmo se encontra implicitamente efectuado e, em consequência, deve ordenar-se o cancelamento do registo.

8ª – A registabilidade da acção determina-se, em princípio, pelos efeitos que ela visa produzir no conteúdo ou na estrutura (subjectiva ou objectiva) de algum dos direitos enunciados no artigo 2º, por força do prescrito no artigo 3º, ambos do CRP.

9ª – O registo da acção tem uma natureza cautelar, pois que com ele o autor assegura, desde logo, a exequibilidade da decisão final, relativamente a terceiros ou erga omnes (artigo 271º, n.º 3 do CPC).

10ª - Entre as partes, a acção produz efeitos, de forma plena, a partir da citação do réu em causa.

11ª - O próprio tribunal poderia/deveria promover oficiosamente o registo da acção.

12ª - Também os ora recorrentes poderiam ter promovido o registo da acção, porquanto, tendo deduzido reconvenção, é sempre registável o pedido de reconhecimento do direito de propriedade que o réu/reconvinte invoque perante o autor/reconvindo até porque a sua omissão tem como consequência directa a absolvição do reconvindo da instância por força do preceituado no nº 3 do artigo 501º CPC.

13ª - O registo da acção não tem qualquer influência sobre a procedibilidade ou improcedibilidade do presente recurso, registo que, atenta a improcedência da reconvenção, configura uma inutilidade.

DECISÃO:

Pelo exposto, negando parcialmente a revista, confirma-se o acórdão recorrido, impondo-se, ao abrigo do artigo 13º do Código de Registo Predial, o cancelamento da inscrição de aquisição a favor dos 2.os réus, uma vez que abrange agora um objecto que não é aquele que corresponde ao direito dos respectivos titulares.

Custas pelos recorrentes no STJ, fixando-se em ambas as instâncias na proporção de ¾ para os réus e ¼ para a autora, como decidido no acórdão recorrido.

Lisboa, 17 de Novembro de 2011

Granja da Fonseca (Relator)

Silva Gonçalves

Pires da Rosa

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[1] Artigo 1260º, n.º 1 do Código Civil
[2] Direitos Reais, 4ª edição, página 367.
[3] Ac. do STJ de 9/01/97, in CJSTJ, 1997, Tomo I, página 37
[4] Ac. do STJ de 3/06/92, in BMJ 418º, 773.
[5] Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição, página 20/21
[6] Noções de Direito Registral, 2ª edição, páginas 71/72.
[7] Ac. do STJ de 4/07/1972, in BMJ 219º/196
[8] Artigo 288º, n.º 3 do CPC.
[9] Alterações ao Código de Registo Predial, in www.fd.uc.cenor.pt.
[10] In CJSTJ, 1998, Tomo I, página 26.
[11] Acórdão do STJ de 22/01/1998, citado, página 26.
[12]Estudos de Direito Predial, 1986, páginas 18 e seguintes.