Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
632/04.8TBOLH.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO AFONSO
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PROCURAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
ABUSO DE PODERES DE REPRESENTAÇÃO
Data do Acordão: 05/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL / PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA ).
Doutrina:
- Castro Mendes, Direito Civil, Teoria geral, Vol. III, p.398.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 258.º, 262.º, N.ºS 1 E 2, 265.º, N.º2, 269.º, 441.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 668.º, N.º 1, AL. D).
Sumário :
I - A nulidade a que se refere o art. 668.º, n.º 1, al. d), do CPC apenas se verifica quando o tribunal deixa de apreciar questões suscitadas pelas partes mas já não argumentos ou razões por elas empregues ou, ainda, documentos por ela juntos em sede de apelação.

II - A procuração é o acto pelo qual alguém confere a outrem poderes de representação, de tal forma que, se este celebrar o negócio jurídico para o qual tais poderes lhe foram concedidos, o mesmo produz efeitos na esfera jurídica de quem emite a procuração

III - Resultando da procuração que os réus conferiram poderes a um co-réu para negociar um contrato promessa de compra e venda com os autores, receber o sinal e dar a correspondente quitação, um declaratário normal colocado na posição do declaratário real (art. 236.º do CC) interpretaria tal declaração no sentido de que o investiram na qualidade de seu representante (e não de mero núncio) quer para a fase negociatória, quer para a fase decisória (i.e. para a outorga do contrato com efeitos vinculativos), pois ninguém entrega qualquer valor a título de sinal se não tiver concluído o contrato e um representante não tem que ter poderes para dar quitação se não os tiver para esse fim ou se o ajuste não tiver sido aceite pelos representados.

IV - Para que exista abuso de representação é necessário que o representante actue no âmbito formal dos poderes que lhe foram conferidos mas sirva-se deles para fim diverso daqueles a que se destinam ou com desrespeito das instruções recebidas e que a contraparte conheça ou deva conhecer esse desvio ou desrespeito.

V - Não resultando provado que os autores sabiam que o réu representante apenas tinha poderes para receber, a título de sinal, a quantia a que se referia a procuração, não podem os réus representados opor àqueles o facto do representante se ter apropriado indevidamente dos demais montantes por aqueles entregues também a esse título, podendo apenas exigir uma indemnização (o que equivale por dizer que o abuso de representação apenas tem, no caso, uma relevância interna).

Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça:



A)  Relatório:


Pelo 1ºjuízo do Tribunal Judicial da comarca de Olhão corre processo comum na forma ordinária em que é A AA, (por si e habilitada em substituição de BB, entretanto falecido), identificada nos autos e RR CC, mulher, DD, EE e mulher, FF, também identificados nos autos, pedindo a condenação solidária destes no pagamento de:

I - a.1) € 5.985,60, a título de danos patrimoniais, por conta das quantias entregues ao Engenheiro GG;

a. 2) € 68.300,00, a título de danos patrimoniais, por conta das quantias entregues a título de sinal e reforço de sinal;

a. 3) Danos não patrimoniais a fixar doutamente pelo Tribunal, de acordo com critérios de equidade, em valor nunca inferior a € 5.000,00;

b) A condenação solidária do 3º e 4º RR. na duplicação do sinal e reforço de sinal entregues – em mais € 68.300,00, além da mesma quantia já peticionada em a. 2).

Ou, subsidiariamente:

II - A condenação do 1º e 2º RR. na medida das suas culpas e responsabilidades no pagamento das quantias referidas supra em a.1), a.2) e a. 3);

E a condenação do 3º e 4º RR., na medida das suas culpas e responsabilidades, no pagamento do sinal e reforço de sinal em dobro, no montante de € 136.600,00, e ainda das quantias referidas supra em a.1) e a. 3).

III - Peticionam ainda a condenação dos réus no pagamento dos juros vencidos e vincendos e das custas e procuradoria condignas.

Baseiam o seu pedido na existência de um contrato promessa de compra e venda celebrado com o 1º réu, em representação dos 3º e 4º RR., nos termos do qual estes se obrigaram a vender, livre de ónus e encargos ou responsabilidades, aos autores uma parcela (a desanexar) do prédio misto denominado “Quinta HH”, sito em …, Olhão, por € 82.300,00.

A título de sinal e reforço de sinal, os autores entregaram ao 1º réu diversas quantias monetárias.

Por indicação do 1º réu, os autores contactaram e contrataram o Engenheiro GG, para avançar com o processo de construção de uma moradia no terreno.

Os réus tinham conhecimento de que o terreno em causa se encontrava onerado com a acção pauliana e sabiam, à semelhança dos 3º e 4º RR., que a acção judicial não tinha ainda desfecho à vista, o que poderia impossibilitar o cumprimento pontual do prazo previsto para o cumprimento do contrato promessa e o 1º réu induziu-os em erro, omitindo-lhes tais factos e convencendo-os a pagar os reforços de sinal.

Os RR. não marcaram a escritura definitiva no prazo estipulado entre as partes nem no prazo concedido pelos autores para o efeito.

Regularmente citado contestou o 3º réu, alegando ser parte ilegítima na acção, por não conhecer a autora nem haver outorgado o contrato promessa em causa nos autos e por não haver recebido qualquer quantia, a título de sinal ou de reforço de sinal.

Alega o 3º réu que o 1º réu outorgou o referido contrato promessa como seu procurador, contudo a referida procuração não existe, ou seja, diz que sabia que o contrato promessa em causa nos autos havia sido celebrado, nunca havendo negado a qualidade de procurador de que o 1º réu se arrogou perante a autora, negando contudo que lhe haja conferido uma procuração com poderes especiais.

Diz ainda que acordou com o 1º R. (seu pai) que lhe disponibilizaria uma área a demarcar do prédio denominado “Quinta HH”, a vender pela melhor oferta, cabendo ao 1º réu a angariação de compradores e o pagamento das despesas necessárias e limitando-se o 3º réu a outorgar as escrituras e contratos que se afigurassem necessários.

Acordaram que o 3º réu nada auferiria com as referidas vendas, sendo que de todo o dinheiro apurado faria a entrega imediata ao 1º réu.

Deduz o 3º réu pedido reconvencional, no qual peticiona o pagamento por parte dos autores das quantias que deixou de auferir com o abate de árvores no seu terreno, que o privou de um rendimento anual de € 5.000,00, e ainda da quantia de € 8.000,00, pela destruição do sistema de rega existente.

Pede a condenação dos autores como litigantes de má fé e a improcedência da acção.

Contestou a 4ª ré, nos mesmos termos e ainda que nem sequer é proprietária do bem prometido vender, o qual é um bem próprio do seu marido.

O 1º e 2º RR. apresentaram contestação, na qual aproveitam, em seu benefício, tudo o que foi proferido e articulado nas contestações apresentadas pelos 3º e 4º RR e alegando ainda que:

O 1º R. outorgou o contrato promessa em causa nos autos;

O 1º R. recebeu as quantias mencionadas pelos autores;

O 1º R. não o fez com o intuito de enganar e de se locupletar indevidamente à custa dos autores;

Acordou verbalmente com o 3º R., seu filho, a venda de uma parcela do terreno propriedade deste, mas desconhecia que sobre este impediam ónus.

As verbas que os AA. entregaram por sua iniciativa, foram por si no pagamento de despesas com a destruição do pomar e posterior terraplanagem do terreno, assim como nos projectos e documentação com vista à desanexação, legalização e construção urbana na parcela prometida vender;

A 2ª R. é parte ilegítima na acção, pois não outorgou o contrato promessa em causa nos autos, nem emitiu qualquer procuração, o bem não lhe pertence e não recebeu qualquer quantia;

Terminam peticionando a improcedência da acção e a condenação dos autores como litigantes de má fé.

Findos os articulados, foi realizada audiência preliminar, na qual se decidiu pela inadmissibilidade do pedido reconvencional formulado e julgadas improcedentes as excepções.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais, conforme da acta consta.

Houve reclamação ao despacho de fixação da matéria de facto, do 3º e 4º RR., julgada improcedente.

Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:

Absolveu a 2ª R. DD dos pedidos formulados;

Condenou os 1º, 3º e 4º RR, solidariamente, no pagamento aos autores das quantias de:

€ 5.985,60 (cinco mil, novecentos e oitenta e cinco euros e sessenta cêntimos);

€ 68.300,00(sessenta e oito mil e trezentos euros);

€ 5.000,00 (cinco mil euros);

Condenou ainda o 3º e 4º RR, solidariamente, no pagamento aos autores do valor correspondente ao dobro do sinal entregue, ou seja, em mais € 68.300,00 (sessenta e oito mil e trezentos euros), além dos supra referidos;

Às supra referidas quantias acrescem juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Julgou improcedente, por não provado, o pedido de litigância de má fé formulado pelos réus e, em consequência, absolveu os autores do mesmo.

Inconformados com a sentença, recorreram o 1º, 3º e 4º RR tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente o recurso.


Deste acórdão recorrem, de revista excepcional o 1º e 4ª RR alegando, em conclusão, o seguinte:

A recorrente não pode ser condenada ou vinculada a um contrato que não outorgou, nem deu poderes a terceiro para o outorgar. Esses poderes e essa procuração nem sequer vêm referidos no contrato-promessa de compra e venda;

Para se ser procurador é necessário juntar ou exibir procuração da qualidade em que se actua;

A única procuração que foi junta muitos anos depois aos autos, é uma procuração que dá apenas poderes para negociar e não outorgar e para receber e dar quitação de uma quantia que não chega sequer a 2% do valor total do contrato;

Esta procuração não dá poderes para celebrar um contrato de promessa, mas sim poderes para negociar o contrato promessa a celebrar com, o que é bem diferente;

Ao decidir, como decidiu, a Relação violou o disposto nos arts.258º e 259º e os arts.471º e 1157º a 1184º, todos do Código Civil, violou também o disposto no nº1 do art.406º do Código Civil;

Aceitar que esta procuração seria suficiente para outorgar este contrato promessa sempre limitaria a responsabilidade da recorrente e do seu marido, às cláusulas desse mesmo contrato;

Ora o contrato de promessa de compra e venda apenas prevê pagamentos em dois momentos distintos: aquando do recebimento do sinal de 1.500,00 € e posteriormente aquando da escritura;

A procuração que deu poderes para negociar um contrato promessa a celebrar com, não deu poderes para fazer aditamentos ao contrato promessa (teria de o dizer no seu texto), nem poderes para receber outro dinheiro que não fossem os 1.500,00 € de sinal;

Os recorridos sabiam que a pessoa com a qual outorgavam não tinha poderes para os recebimentos a latere da procuração aqui junta e do próprio contrato promessa. Estes recebimentos resultaram de uma relação paralela que se estabeleceu entre o 1º Réu e os ora recorridos;

Se houve recebimentos a latere deste contrato, não poderão ser exigidas responsabilidades em relação aos mesmos, à recorrente e ao seu marido, porquanto foram alheios aos referidos recebimentos. Decidir em sentido contrário ao aqui exposto é violar o disposto nos arts.268º e 269º do Código Civil;

A recorrente não pode ser condenada a pagar em dobro uma quantia que foi provado não ter recebido. Esta injustiça resulta agravada no caso da recorrente, uma vez que esta última nem sequer é proprietária do bem prometido vender;

A recorrente dá aqui novamente por inteiramente reproduzidos, para todos os efeitos legais, os restantes três argumentos em que assentaram as suas alegações para a Relação designadamente no que diz respeito à nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão, conforme dispõe a alínea c) do nº1 do art.668º do CPC e a violação do princípio do dispositivo, versus a interpretação demasiado extensiva do princípio do inquisitório;

Por outro lado, acopladas às alegações da recorrente, foram juntos ao processo pelo seu co-réu, também co-apelante, 10 requerimentos explicativos que fazem parte integrante das alegações para a Relação;

A Relação não alude no seu acórdão a nenhum destes requerimentos que faziam parte integrante das alegações, deixando, uma vez mais, de se pronunciar sobre questões que deveria ter apreciado, em manifesta violação do disposto na alínea d) do nº1 do art.668º do CPC.

Face ao exposto requer: a procedência total da presente revista com revogação da sentença da 1ª instância, absolvendo os RR do pedido.


Não foram produzidas contra-alegações.


A formação a que se refere o art.672ºnº3 do Código do Processo Civil entendeu não haver lugar a revista excepcional por processualmente não se lhe aplicar a dupla conforme.



***



Tudo visto,

Cumpre decidir:


B) Os Factos:


As instâncias deram como provados os seguintes factos:


1) A autora e BB são cidadãos de nacionalidade britânica, não dominam a língua portuguesa e encontram-se reformados.

2) Os AA procuravam encontrar casa para residir em Portugal, onde pretendiam passar o seu tempo de reforma, tendo, para esse efeito, contactado a mediadora II.

3) A referida mediadora apresentou-lhes um terreno no Sítio de Murtais, em Moncarapacho, afirmando que aí se poderia construir uma moradia com a área coberta aproximada de 300 m2, cuja desanexação se encontrava ainda por realizar.

4) Perante o interesse dos AA, a referida mediadora apresentou-lhes CC, como procurador dos proprietários, bem como a solicitadora para lhes prestar assessoria jurídica, JJ.

5) Foi referido aos AA que a parcela que pretendiam adquirir (10.000 m2) necessitava ainda de ser objecto de desanexação, implicando, por sua vez, a sua desafectação, o que passaria pela realização de um estudo da parcela prometida vender, no sentido de limpar as árvores de fruto laranjeiras e convertê-la em terreno hortícola de regadio, após a aprovação da Direcção Regional de Agricultura do Algarve.

6) E ainda que era necessário obter o parecer favorável da Câmara Municipal de Olhão, quanto à construção, no dito prédio, de uma moradia com área coberta de 300 m2, nada mais se tendo referido relativamente ao mesmo, nomeadamente no que diz respeito à existência de qualquer ónus ou encargos registados naquela data.

7) EE, casado com FF, no regime de bens de comunhão de adquiridos, desde 17.10.1996, tem inscrito a seu favor o prédio misto denominado “Quinta da HH”, composto de figueiras, cultura arvense, pomar de citrinos, nespereiras, oliveiras, vinha, 2 noras, poço, furo artesiano, tanques, levadas – 96.200 m2 e 4 edificações, uma térrea com 2 divisões, outra térrea com 3 divisões assoalhadas e outras com 2 divisões assoalhadas.

8) EE adquiriu o referido prédio, por doação da anterior titular inscrita, DD, casada com CC, em regime de separação de bens.

9) Em 27.10.1997, foi registada uma acção de impugnação pauliana nº 23/97, do 2º Juízo deste Tribunal, movida pelo Banco KK contra DD, EE e FF, em que pediu o primeiro a declaração de ineficácia da doação exarada na escritura de 08.10.1996, declarando-se que este tem direito de obter a satisfação integral do seu crédito à custa do prédio referido em 7 dos factos provados.

10) Em 06.04.2001, foi registada uma penhora em que figurava como exequente a Fazenda Nacional e como executada DD, sendo a quantia exequenda de 56.319$00, a qual foi declarada caducada.

11) Em 15.06.2001, foi registado arresto para segurança da quantia de € 382.000,00, em que foi requerente o Banco KK, SA e sujeitos passivos EE e mulher, FF.

12) Em 24 de Janeiro de 2002, por escrito, CC, arrogando-se da qualidade de procurador de EE e mulher, FF, declarou que estes acordavam com BB e mulher, AA em celebrar no futuro um acordo definitivo, pelo qual entregavam aos AA, livre de ónus e encargos, e mediante a entrega de € 82.300,00, uma parcela de 10.000m2, a desanexar do prédio referido em 7 dos factos provados.

13) Naquele escrito também se consignou que o acordo definitivo seria celebrado por escritura pública, no prazo máximo de 240 dias, a contar de 24 de Janeiro de 2002, podendo ser prorrogado por acordo de ambas as partes no caso de não ter sido obtido o parecer favorável para a construção de uma moradia de 300 m2.

14) Declarou-se igualmente que, pela celebração do referido acordo, era entregue a quantia de € 6.730,00, a título de sinal e princípio de pagamento, a qual ficaria à guarda de JJ, solicitadora, e cuja quitação se considera efectuada por este documento, após ser obtido o parecer favorável emitido pela Câmara Municipal de Olhão quanto à construção, na parcela de terreno a entregar, de moradia com a área coberta de 300 m2, data em que será entregue o dinheiro aos 3º e 4º RR (EE e FF).

15) A quantia de € 1.500,00 também a título de sinal, que é entregue aos 3º (EE) e 4º RR (FF).

16) O restante, no valor de € 74.070,00 será entregue na data da celebração do acordo definitivo.

17) Consignou-se ainda no escrito que, caso a não celebração do contrato definitivo fosse da responsabilidade dos 3º e 4º RR, a quantia entregue a título de sinal e princípio de pagamento seria devolvida em dobro aos AA.

18) O R. CC assinou aquele escrito no local destinado à assinatura do 3º (EE) e 4º RR (FF).

19) Em 11 de Abril de 2002, os AA e CC, arrogando-se da qualidade de procurador do 3º e 4º RR, acordaram alterar o anterior acordo relativamente à entrega dos € 6.730,00, que passou logo a ser entregue aos 3º e 4º RR, dando logo a respectiva quitação.

20) Em 11.04.2002, pela solicitadora foi emitido, a favor de CC, um cheque, sacado sobre o BES, titulando a quantia de € 6.730,00.

21) No dia 29 de Outubro de 2002, em aditamento ao acordo referido em 12 dos factos provados, CC, arrogando-se da qualidade de procurador do 3º e 4º RR, declarou ter recebido dos AA, naquela data, a título de reforço de sinal, a quantia de € 2.000,00.

22) No dia 14 de Novembro de 2002, em aditamento ao acordo referido em 12 dos factos provados, CC, arrogando-se da qualidade de procurador do 3º e 4º RR, declarou ter recebido dos AA, naquela data, a título de reforço de sinal, a quantia de € 5.070,00.

23) No dia 14 de Novembro de 2002, em aditamento ao acordo referido em 12 dos factos provados, CC, arrogando-se da qualidade de procurador do 3º e 4º RR, declarou ter recebido dos AA, naquela data, a título de reforço de sinal, a quantia de € 53.000,00.

24) Por carta datada de 20 de Novembro de 2003, os AA comunicaram a EE que entregaram quase a totalidade do valor acordado para a entrega dos 10.000 m2, mas, devido à existência de ónus (acção pauliana e arresto) estavam impossibilitados de concretizar o acordo definitivo e a desanexação da parcela de 10.000 m2 da “Quinta da HH”.

25) Mais deram até ao final de 2003 a possibilidade do 3º R de resolver esse ónus, para permitir a outorga da escritura da forma acordada e, caso não sucedesse, exigiam a devolução dos € 68.300,00. Esperavam que tudo se resolvesse, pois já haviam esperado muito tempo, suportaram a despesa do projecto de arquitectura e não tinham casa própria.

26) Por carta datada de 3 de Março de 2004, enviada ao 3º e 4º RR pelos AA, e recebida, estes consignaram que a parcela de 10.000m2 devia ser vendida livre de ónus e encargos ou responsabilidades. O prazo da escritura foi sendo prorrogado, pois tem faltado da V. parte o registo predial prévio para que a mesma se faça. Informaram ainda a intenção deles de denunciar o acordo a partir de 15 de Março de 2004, a não ser que até tal data comunicassem que:

27) Estão em condições de proceder à mesma escritura;

28) E de, para isso, facultar-lhes o registo da parte a vender;

29) E que sobre ela não incidem ónus.

30) E que, no caso de efectividade da denúncia, pediam a devolução em dobro dos valores entregues como sinal, o qual devia efectuar-se no máximo de 15 dias.

31) Volvidos esses 15 dias, os RR nada disseram, não facultaram o registo da parte pretendida pelos AA, nem demonstraram que sobre ela já não incidiam ónus.

32) O processo de desanexação da parcela de terreno nas Finanças sempre correu em nome de DD.

33) Em Agosto de 2003, através do gabinete de projectos do Engenheiro GG, foi pedida a emissão de licença de construção, tendo, nessa altura, por indicação do 1º R, os AA entregue directamente àquele Engenheiro a quantia de € 2.992,80.

34) A Câmara Municipal de Olhão respondeu em 4 de Setembro de 2003 que o projecto de arquitectura apresentado tinha sido aprovado, necessitando-se apenas a apresentação de alguns projectos de especialidades.

35) A 9 de Janeiro de 2004, os AA pagaram igual quantia de € 2.992,80 ao Engenheiro GG.

36) O 3º R soube que o 1º R se intitulou de seu “procurador” junto dos AA.

37) O 3º R soube das negociações para a entrega de 10.000 m2 da “Quinta da HH” aos AA.

38) Desde 25 de Setembro de 1997 que a 2ª e o 3º RR foram citados na impugnação pauliana nº 23/1997 e a 4ª R desde 13 de Outubro de 1997.

39) Em 29.07.2003, na Conservatória do Registo Predial de Olhão, foi exibida uma procuração emitida por EE a CC, que serviu para este último pedir o registo de aquisição provisória, por natureza, do prédio da freguesia de ... a BB e a AA.

40) BB faleceu no dia 1 de Fevereiro de 2007, no estado de casado com AA.

Constantes da Base Instrutória:

41) O 3º (EE) e 4º RR (FF) incumbiram o 1º R (CC) de, em nome deles, intervir no acordo escrito referido em 12 dos factos provados, nos termos exactos nele consignados.

42) Conferiram-lhe esses poderes por escrito.

43) O 3º (EE) e 4º RR (FF) incumbiram, por escrito, o 1º R (CC) de, em nome deles, receber o sinal e princípio de pagamento, consignado na Cláusula Segunda, alínea b) do contrato promessa celebrado, no montante de € 1.500 (mil e quinhentos euros), bem como dar quitação do recebimento, desse quantitativo.

44) Nos meses de Setembro/Outubro de 2002, o 1º R entrou em contacto com os AA e começou a ganhar a sua confiança pessoal, declarando-se totalmente disponível para os auxiliar na futura construção da moradia que estes pretendiam erigir na parcela de terreno, nomeadamente indicando-lhes engenheiro que poderia dar início ao processo camarário de licenciamento para a dita construção e irem adiantando serviço.

45) Para ganhar confiança, convidou os AA e ofereceu-lhes 3 ou 4 vezes o jantar fora, apresentou-os à sua mulher, DD (2ª R), fazendo-os entrar na intimidade da sua vida familiar.

46) O 1º R (CC) sabia da existência da acção de impugnação pauliana relativa à “Quinta da HH” e omitiu tal facto aos AA.

47) Em Outubro e Novembro de 2008, os AA entregaram a CC, a pedido deste:

48) A quantia de € 2.000,00, que este referiu precisar para adquirir um carro novo;

49) A quantia de € 5.070,00 que este referiu precisar para cortar as laranjeiras existentes na parcela prometida vender aos AA;

50) A quantia de € 53.000,00 que este referiu precisar para resolver problemas de saúde da sua mulher, a 2ª R (DD).

51) Consciente da pendência da acção de impugnação pauliana e omitindo tal facto aos AA, o 1º R insistiu junto dos AA para que dessem início às obras de construção.

52) BB sofria de diabetes.

53) Perante a entrega de € 74.285,60 e a não celebração do acordo definitivo de entrega da parcela de terreno de 10.000m2 da “Quinta da HH”, os AA sofreram um choque e uma enorme decepção, e ficaram nervosos.

54) Em virtude de EE ter ficado beneficiado com a entrega gratuita da “Quinta da HH”, em 17.10.1996, e porque CC precisava de dinheiro, EE comprometeu-se a compensar monetariamente CC.

55) O R EE nunca conseguiu, com a exploração dos prédios agrícolas que havia recebido, extrair numerário suficiente para pagar a CC, fosse o que fosse.

56) Por isso acordou com CC em disponibilizar uma área de 3,5 hectares, a demarcar do seu prédio denominado “Quinta da HH”.

57) EE e CC preocuparam-se em demarcar a área que seria desanexada.

58) Mais acordaram que o melhor seria vender a terceiros os 3,5 hectares, pela melhor oferta.

59) O 1º R (CC) trataria da angariação dos compradores, despenderia todas as despesas necessárias e o 3º R (EE) limitar-se-ia a outorgar as escrituras e contratos que se afigurassem necessários.

60) O 3º R nada recebia com a entrega desses bens a terceiros, sendo todo e qualquer valor recebido pelo 1º R.

61) Os 10.000 m2 que os AA pretendiam adquirir faziam parte desses 3,5 hectares.


C) O Direito:


Delimitando o “thema decidendum” três são as questões colocadas à apreciação deste STJ: omissão de pronúncia; inexistência de procuração que conferisse poderes de outorga do contrato promessa; inexigibilidade de quaisquer outras quantias que não seja a decorrente dos 1.500,000 € prestados aa título de sinal.

As conclusões do recurso, nos termos do art.685º-A do Código do Processo Civil (CPC) aplicável a este processo (Decreto-Lei nº303/2007 de 24 de Agosto), ex vi do disposto no art.726º do CPC, delimitam as questões a apreciar na revista. E todas as questões devem estar contidas nas conclusões das alegações da revista e desenvolvidas nas ditas alegações não tendo o STJ que atentar no que foi dito nas alegações da apelação nem operar quaisquer transposições para o recurso de revista. Assim, não se tomará conhecimento das questões enunciadas por remissão para o recurso de apelação.


No que à omissão de pronúncia tange, dispõe o art.668ºnº1 d) do CPC que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões que não podia tomar conhecimento.

A nulidade prevista na 1ª parte da alínea d) do nº1 do art.668º do CPC está directamente relacionada com o comando fixado no nº2 do art.660º do mesmo código, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Ora, só existe omissão de pronúncia quando o Tribunal deixe de apreciar questões submetidas pelas partes à sua apreciação, e não quando deixe de apreciar os argumentos ou o conteúdo de documentos explicativos desses argumentos invocados a favor da versão por elas sustentada, não sendo de confundir o conceito de “questões” com o de “argumentos” ou “razões”.

O Tribunal, devendo embora “resolver as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação”, não está vinculado a apreciar todos os argumentos (incluindo os explicativos constantes de documentos juntos) utilizados pelas partes, tal como, e obviamente, não está impedido de, na decisão, usar considerandos por elas não produzidos.

O facto de o Tribunal da Relação não se ter pronunciado sobre os dez documentos juntos pelos apelantes como parte integrante da sua alegação de recurso e explicativos dos argumentos naquela explanados não conduz à nulidade do acórdão pretendida pela recorrente já que a omissão de pronúncia só existe quando Tribunal deixa de apreciar questões submetidas pelas partes à sua apreciação, e não quando deixa de apreciar, como se disse supra, argumentos invocados a favor da versão por elas sustentadas.

A expressão questões não abrange os argumentos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, por ser o Juiz livre na qualificação jurídica dos factos, mas reporta-se, apenas, às pretensões formuladas ou aos elementos inerentes ao pedido e à causa de pedir.


Apreciemos agora a questão da inexistência de procuração que conferisse poderes de outorga do contrato promessa

O art.262º nº1 do Código Civil (CC) reza: “Diz-se procuração o acto pelo qual alguém atribui a outrém, voluntariamente, poderes representativos” e o nº2 do mesmo artigo diz que “Salvo disposição legal em contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar”.

A procuração é, pois, o acto pelo qual alguém confere a outrém poderes de representação, tendo por consequência que, se o procurador celebrar o negócio jurídico para cuja conclusão lhe foram dados esses poderes, o negócio produz os seus efeitos em relação ao representado.

“Chama-se representação – diz o Prof. Castro Mendes (in Direito Civil, teoria geral, Vol.III, pag.398) à situação em que uma pessoa pode fundadamente agir em nome de outrém e no interesse de outra: “nomine alieno; contemplatio domini”, isto é, colocada juridicamente na posição desta, tudo se passando em princípio como se fosse esta a actuar”.

O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último (art.258º do CC).

Mas também no seu interesse, ou por sua conta, isto é destinando-se a sua actuação a prosseguir interesses do representado.

Para estarmos perante a figura da representação é necessário que o representante tenha poderes de representação ou poderes representativos, que lhe podem ser conferidos (como no caso vertente) pela vontade do representado através de um acto unilateral dito procuração, chamando-se também procuração ao documento de que constam esses poderes.

In casu verifica-se que o 3º e 4º RR constituíram o 1ºR seu bastante procurador através de uma procuração a quem “conferiram plenos poderes para negociar contrato promessa de 10.000 m2 desafectos do prédio misto denominado Quinta HH II…” a celebrar com os AA “…e de por ele receber o sinal e princípio de pagamento, consignado na cláusula Segunda alínea b), do aludido contrato no montante de 1.500,00 €, bem como dar quitação do recebimento desse quantitativo”

Os 3º e 4º RR ao passarem procuração ao 1º R, constituindo-o seu bastante procurador, conferindo-lhe poderes para negociar o contrato promessa, estavam a investi-lo na qualidade de seu representante e não apenas de núncio (mero transmissor de uma declaração de vontade). E, ao fazê-lo, concederam-lhe poderes quer para a fase negociatória que se inicia com o primeiro contacto dos interessados em ordem à eventual celebração de um contrato como para a fase decisória, ou seja, para a outorga de um contrato com efeitos vinculativos.

E não se diga que se trata de ignorância da língua portuguesa como refere a recorrente, nas suas alegações, comentando o acórdão do Tribunal da Relação. Se a palavra negociar podia, “primo conspectu”, induzir a ideia de que o 1º R só tinha plenos poderes para a fase negociatória do contrato promessa, devendo, no mais comportar-se como um núncio, tal interpretação é afastada pelos poderes conferidos no final da procuração: receber sinal e dar quitação.

Um declaratário normal, (nos termos do art.236º do CC), colocado na posição do real declaratário deduziria perante aquela procuração que o representante tinha todos os poderes para outorgar o contrato promessa em nome dos representados. Ninguém entrega qualquer valor a título de sinal e princípio de pagamento se o contrato promessa não tiver sido celebrado. E o representante não tem que ter poderes para receber e dar quitação de um tal sinal se os não tiver para outorgar o contrato, ou se o contrato não tiver sido outorgado ou aceite pelos representados.

O representante, no caso em apreço, face à procuração junta aos autos, não é simples órgão de transmissão ou exteriorização de uma vontade alheia. Ele, em colaboração com a outra parte (os AA) deu vida ao negócio jurídico na totalidade dos seus aspectos porque para tal estava legitimado pela procuração que lhe foi dada pelos 3º e 4º RR.

Aliás, não consta da matéria de facto dada como assente que a procuração passada ao 1º R alguma vez tenha sido revogada nos termos do art.265ºnº2 do CC ou que o contrato promessa tenha sido denunciado com fundamento em ilegitimidade do representante.


A última questão a apreciar respeita à inexigibilidade de quaisquer outras quantias que não seja a decorrente dos 1.500,000 € prestados a título de sinal.

Entende a recorrente que a única quantia a que está vinculada a título de sinal é de 1.500,00 € a que a procuração se refere.

Do contrato promessa não denunciado pelo 3º e 4º RR consta entre outras cláusulas:

- que a título de sinal seria paga a quantia de 6.730,00 €, que ficaria à guarda da SRª Solicitadora, cuja quitação apenas se consideraria efectuada após o parecer favorável da Câmara Municipal de Olhão quanto à construção no prédio prometido vender;

- um segundo sinal, no valor de 1.500,00 €;

- o restante, no valor de 74.070,00, seria pago no acto de celebração da escritura definitiva de compra e venda.

Em relação às cláusulas ínsitas no contrato promessa, nomeadamente, as supra transcritas, não consta da matéria de facto que a recorrente e seu marido as não tenham aceitado, denunciado ou de qualquer forma contestado, não tendo sido objecto de apreciação no Tribunal “a quo” pelo que de tal matéria não tem o STJ que tomar conhecimento.

Quanto à entrega de diversos quantitativos (6.730,00 €, 1.500,00 €, 2.000,00 €, 5.070,00 € e 53.000,00 €) como antecipação ou princípio de pagamento não estavam os AA com promitentes-compradores legalmente impedidos de o fazer, podendo os promitentes-vendedores por si ou pelo seu representante aceitar ou não. Dispõe o art.441º do CC que: “ No contrato promessa de compra e venda presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador, ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço”.

A questão que se coloca é a de saber se o 1º R, na qualidade de procurador dos 3º e 4º RR tinha poderes para aceitar tais quantias e se ao aceitá-las houve abuso de representação nos termos do art.269º do CC.

Para haver abuso de representação é necessário que o representante actue dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, mas serve-se deles, conscientemente, para fim diverso do fim a que se destinam ou com desrespeito das instruções recebidas e a outra parte saiba ou devia saber desse desvio ou desse desrespeito. Ainda que se tenha verificado a aceitação indevida das diversas quantias não consignadas na procuração, não se provou que os AA soubessem ou devessem saber desse eventual abuso de representação. Assim sendo, o abuso de representação só tem relevância no relacionamento interno entre os representantes e o representado e é irrelevante no relacionamento externo entre os representados (3º e 4º RR) e os AA.

O abuso só poderia ser oposto aos AA se estes conhecessem ou não devessem desconhecer tal abuso.

Como bem se diz no acórdão recorrido “se o 1ºR recebeu quantias a título de sinal pelo contrato que celebrou em representação dos 3º e 4º RR e se não os entregou aos contraentes, ficando, indevidamente, com os mesmos, tal facto só é relevante na relação interna entre o representante e os representados, ficando estes vinculados na relação externa face àqueles perante quem a representação foi invocada”.

Assim, o 3º e 4º RR podem exigir do 1º R, se for caso disso, indemnização pelos danos sofridos mas não podem opor aos AA o abuso da representação salvo se tivessem provado, o que não lograram, que estes conheciam ou deviam conhecer tal abuso.

A recorrente e seu marido ao concederem poderes de representação ao 1º R correram o risco do abuso, o que sobre eles recai. Se lhes foi cómoda a actuação do representante que escolheram têm de assumir os incómodos de um eventual abuso de representação o qual pelas razões expostas não é oponível aos AA. (“ubi commodum, ibi incommodum”).

Não tendo sido cumprido o contrato promessa por culpa exclusiva dos promitentes-vendedores colocaram-se estes na situação de indemnizar os promitentes-compradores conforme o decidido pelas instâncias.

Não pode, pois o presente recurso deixar de naufragar.


Nesta conformidade, por todo o exposto, acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça em negar revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 07 de Maio, de 2015


Orlando Afonso (Relator)

Távora Victor

Granja da Fonseca