Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
770/12.3TBSLX.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: SEGURO AUTOMÓVEL
OBRIGAÇÃO DE SEGURAR
VEÍCULO FORA DE CIRCULAÇÃO
VEÍCULO PARADO EM TERRENO PARTICULAR
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
PRESSUPOSTOS DA SUB-ROGAÇÃO
Data da Decisão Sumária: 02/07/2017
Votação: ---
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REENVIO PREJUDICIAL
Decisão: SOLICITADO AO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA A RESOLUÇÃO DO REENVIO PREJUDICIAL
Área Temática:
DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL – CONTRATO DE SEGURO / FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL.
DIREITO EUROPEU - REENVIO PREJUDICIAL.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 503.º, N.º 1.
DEC. LEI N.º 522/85, DE 31 DE DEZEMBRO (ENTRETANTO REVOGADO E SUBSTITUÍDO PELO DEC. LEI Nº 291/07, DE 21 DE AGOSTO, POR VIA DA NECESSIDADE DE TRANSPOSIÇÃO DA DIRECTIVA 2005/14/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO): - ARTIGOS 1.º, N.º 1, 2.º, 8.º, N.ºS 1 E 2, 21.º, 25.º, N.º 1.
Legislação Comunitária:
DIRECTIVA DO CONSELHO 72/166/CEE, DE 24 DE ABRIL DE 1972: - ARTIGO 3.º.
DIRECTIVA DO CONSELHO 84/5/CEE, DE 30 DE DEZEMBRO DE 1983: - ARTIGO 1.º, N.º4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 2-3-2004, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

-DE 25-5-2004, COM SUMÁRIO DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

-DE 19-3-2015, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .

Jurisprudência Internacional:
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA:

-ACÓRDÃO, DE 4 DE SETEMBRO DE 2014, NO ÂMBITO DO REENVIO PREJUDICIAL C-162/13.
Sumário :
I. Por não existir contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, o Fundo de Garantia Automóvel ressarciu os lesados de um acidente de viação causado por veículo que, sem conhecimento e autorização da sua proprietária, foi subtraído do quintal particular (furto de uso) onde se encontrava imobilizado.

II. É questionável se a obrigatoriedade de celebração de contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel é de aplicar mesmo que o veículo automóvel, por opção do proprietário, se encontre imobilizado num prédio particular.

III. Também é questionável se o direito de sub-rogação que a lei reconhece ao Fundo de Garantia Automóvel relativamente ao proprietário do veículo automóvel decorre do simples facto de este não ter celebrado contrato de seguro ou se depende da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil do proprietário relativamente ao acidente causado, designadamente de se verificarem as circunstâncias referidas no art. 503º, nº 1, do CC (direcção efectiva do veículo).

IV. Ambas as dúvidas emergem da interpretação do direito nacional mas implicam também com a delimitação do âmbito objectivo da obrigação de celebração de contrato de seguro de responsabilidade civil, nos termos que resultam das Directivas da União Europeia.

V. Por isso se justifica o reenvio prejudicial dirigido ao Tribunal de Justiça da União Europeia com vista à resolução das seguintes questões:

1) Deve o art. 3º da Directiva do Conselho 72/166/CEE, de 24 de Abril de 1972 (em vigor na data do acidente) ser interpretado no sentido de que a obrigatoriedade de contratação de seguro de responsabilidade civil automóvel abarca mesmo as situações em que o veículo, por opção do proprietário, se encontra imobilizado num quintal particular, fora da via pública?

ou,

Independentemente da responsabilidade que venha a ser assumida pelo Fundo de Garantia Automóvel perante os terceiros lesados, designadamente em casos de furto de uso do veículo, naquelas circunstâncias não recai sobre o proprietário do veículo a obrigação de segurar?

2) Deve o art. 1º, nº 4, da Directiva do Conselho 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983 (em vigor na data do acidente) ser interpretado no sentido de que o Fundo de Garantia Automóvel que, por falta de contrato de seguro de responsabilidade civil, efectuou o pagamento da indemnização aos terceiros lesados por acidente de viação causado por veículo automóvel que, sem conhecimento e autorização do proprietário, foi retirado do terreno particular onde se encontrava imobilizado, tem o direito de sub-rogação contra o proprietário do veículo, independentemente da responsabilidade deste pelo acidente?

ou,

A sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel relativamente ao proprietário depende da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, designadamente do facto de, na ocasião em que ocorreu o acidente, o proprietário ter a direcção efectiva do veículo?

Decisão Texto Integral:

1. O FUNDO de GARANTIA AUTOMÓVEL intentou a presente acção declarativa, a seguir os termos da forma comum de processo contra AA (1ª Ré) e BB (2ª Ré).

Alegou o Autor que no dia 19-11-06 ocorreu um acidente de viação causado pelo despiste de um veículo automóvel de que a 1ª Ré era proprietária, o qual era conduzido pelo seu filho, pai da 2ª Ré. Desse acidente resultou a morte do condutor e de dois passageiros.

A 1ª Ré, na qualidade de proprietária do veículo, não tinha celebrado contrato de seguro de responsabilidade civil.

O Fundo de Garantia Automóvel age na qualidade de credor com direito de sub-rogação, uma vez que assumiu perante os terceiros lesados, passageiros do veículo, a responsabilidade pela indemnização dos danos que sofreram.

O Autor pediu a condenação de ambas as Rés no pagamento da quantia de € 437.345,85, com juros de mora vencidos e vincendos, e das despesas de liquidação e cobrança que se vierem a ser liquidadas.

A 2ª Ré, filha do condutor falecido, não apresentou contestação.

A 1ª Ré, proprietária do veículo, contestou e alegou que, por opção sua, por causa de uma doença de que padecia (insuficiência renal, com hemodiálise), o veículo estava recolhido no quintal da sua moradia, fora da via pública. E uma vez que o veículo não estava na via pública nem a Ré pretendia colocá-lo em circulação, entende que não estava obrigada à efectivação de contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel.

Alegou ainda que o veículo foi colocado em circulação pelo seu falecido filho, mas sem o seu conhecimento ou autorização, de modo que não deve ser responsabilizada pelo acidente.

O Fundo de Garantia Automóvel respondeu à contestação apresentada e alegou que o veículo da 1ª Ré encontrava-se apto para circular, de modo que a mesma estava obrigada a celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel.

Efectuado o julgamento, foi proferida sentença na 1ª instância que julgou o pedido formulado pelo Fundo de Garantia Automóvel parcialmente procedente, considerando que o facto de a proprietária do veículo não pretender colocá-lo em circulação e de o acidente ter ocorrido sem que à mesma pudesse ser imputada a responsabilidade pelo sinistro não afastava a obrigatoriedade de celebração de contrato de seguro. Para o efeito considerou a sentença que o contrato de seguro acautela o pagamento de indemnizações aos lesados mesmo em casos de furto do veículo.

A Ré AA interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação que, com fundamento na inexigência de contrato de seguro e na ausência de responsabilidade da proprietária do veículo, revogou a sentença e absolveu a mesma Ré do pedido.

O Fundo de Garantia Automóvel interpôs o presente recurso de revista no qual alegou, de essencial, que existem riscos próprios dos veículos que implicam a obrigatoriedade de seguro de responsabilidade civil mesmo quando não se encontram em circulação, motivo pelo qual deve ser revogado o acórdão recorrido e ser a Ré AA condenada nos termos em que o fez a 1ª instância.

A R. AA contra-alegou e defendeu a tese inversa de que não estava obrigada a contratar o seguro de responsabilidade civil, não devendo responder perante o Fundo de Garantia Automóvel.


2. Em face da divergência expressa nos autos e das dúvidas que suscita a interpretação quer do direito nacional, quer das Directivas da União Europeia, o ora relator suscitou, por despacho notificado às partes, a necessidade de ser enviado ao Tribunal de Justiça da União Europeia um pedido de reenvio prejudicial.

Ambas as partes responderam.

O Fundo de Garantia Automóvel, para além de declarar a sua concordância com o referido pedido de reenvio prejudicial, requereu que às perguntas projectadas pelo ora relator fosse acrescentado se o direito de sub-rogação que lhe é reconhecido é independente do regime interno de imputação da responsabilidade civil que consta do art. 503º, nº 1, do Código Civil. Requereu ainda que se concretizassem melhor as circunstâncias em que foi proferido o Ac. da Rel. de Lisboa, de 19-3-2015 que ilustra uma das soluções divergentes adoptada pelos tribunais portugueses.

A R. AA, para além de referir que a decisão recorrida não contradiz o que emerge das Directivas Europeias enunciadas no despacho do ora relator, requereu que se inquirisse ainda o TJUE se “a obrigatoriedade de contratação de seguro de responsabilidade civil automóvel para qualquer proprietário, incluindo aquele que, por doença, tenha decidido imobilizar a viatura no seu quintal particular, fora da via pública, colide com o art. 18º da Constituição”.

Neste contexto, revelam-se pertinentes as sugestões do Fundo de Garantia Automóvel, integrando-se no pedido de reenvio prejudicial as circunstâncias que podem ou não ser relevantes para efeitos de exoneração da responsabilidade da proprietária do veículo relativamente ao Fundo de Garantia Automóvel. Já a questão suscitada pela R. Alina Juliana não tem qualquer conexão com o Direito da União Europeia, sendo recusada a sua integração no mesmo pedido.


3. Elementos relevantes para o reenvio prejudicial:

3.1. O acidente ocorreu no dia 19 de Novembro de 2006, ainda antes do fim do prazo para a transposição da Directiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, que apenas findava em 11 de Junho de 2007.

Nos termos do art. 3º da Directiva do Conselho 72/166/CEE, de 24 de Abril de 1972 (correspondente ao art. 3º da Directiva 209/103/CE em vigor nesta data), “cada Estado Membro … deve adoptar todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro. Essas medidas devem determinar o âmbito da cobertura e as modalidades de seguro”.

Por seu lado, nos termos do art. 1º, nº 4, da Directiva do Conselho 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983 (correspondente ao art. 10º da Directiva 209/103/CE, em vigor nesta data), cada Estado-membro deve criar ou autorizar a criação de um organismo que tenha por missão reparar … os danos materiais ou corporais causados por veículos … relativamente aos quais não tenha sido satisfeita a obrigação de seguro referida no nº 1”.


3.2. Na data em que ocorreu o acidente vigorava em Portugal o Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro (entretanto revogado e substituído pelo Dec. Lei nº 291/07, de 21 de Agosto, por via da necessidade de transposição da Directiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho), cujas disposições essenciais para o caso são as seguintes:

Art. 1º, nº 1:

Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semi-reboques, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos termos do presente diploma, coberta por um seguro que garanta essa mesma responsabilidade”.

Art. 2º:

A obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a referida obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário”.

Art. 8º, nºs 1 e 2:

O contrato garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 2º e dos legítimos detentores e condutores do veículo” (nº 1), e garante ainda “a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso do veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte” (nº 2).


No que respeita à responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel, determinava o art. 21º que lhe competia:

satisfazer, nos termos do presente capítulo, as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais”.

E previa o art. 25º, nº 1, que,

satisfeita a indemnização, o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a liquidação e cobrança” e que “as pessoas que, estando sujeitas à obrigação de segurar, não tenham efectuado seguro poderão ser demandadas pelo Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do n.º 1, beneficiando do direito de regresso contra outros responsáveis pelo acidente, se os houver, relativamente às quantias que tiverem pago”.


Para melhor compreensão da razão de ser deste reenvio prejudicial, interessa ainda referir que o art. 503º, nº 1, do Código Civil, sobre os pressupostos da responsabilidade civil pelos risco daquele que detém a direcção efectiva do veículo, designadamente do seu proprietário, com a epígrafe “Acidentes causados por veículos”, tem a seguinte redacção:

1. Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.

”.


3.3. No caso concreto, estamos perante uma acção através da qual o Fundo de Garantia Automóvel vem exercer o seu direito de sub-rogação legal contra a Ré AA, proprietária do veículo, no qual seguia, para além do condutor mais dois ocupantes, que faleceram em consequência do acidente.

O veículo automóvel ligeiro não dispunha de responsabilidade civil por acidentes de viação.

Ocorre, porém, que, por opção da sua proprietária, devida a insuficiência renal de que padecia, antes da data do acidente, mas em data não apurada, o veículo automóvel fora recolhido no quintal da sua moradia de onde não mais o retirou.

E foi sem o conhecimento e autorização da proprietária que o seu filho retirou as chaves de uma gaveta e, de seguida, retirou o veículo desse local, circulando com o mesmo no momento em que ocorreu o acidente de viação.

Com mais detalhe, resulta da matéria de facto provada o seguinte:


- No dia 19-11-06, ocorreu um acidente de viação em que foi interveniente o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula …-…-MS.

- À data desse sinistro o referido veículo era propriedade da Ré AA, não dispondo, na mesma data, de seguro de responsabilidade civil automóvel.

- Em virtude da insuficiência renal de que padecia e da hemodiálise que então tinha que realizar, a Ré AA, antes da data do acidente, havia deixado de conduzir o veículo automóvel …-…-MS, tendo-o recolhido no seu quintal de onde nunca mais o retirou.

- No dia 18 ou 19-11-06 CC (filho da Ré AA), sem o conhecimento e a autorização desta, retirou as chaves da viatura de uma gaveta do quarto desta e retirou o referido veículo do quintal da mesma, colocando-o em circulação.

- DD e EE seguiam no interior do veículo …-…-MS como passageiros.

- Em consequência do sinistro (que ocorreu no dia 19-11-2016, pelas 5 h e 10 m) faleceu o referido CC e DD.

- EE sofreu, em consequência do sinistro, feridas por todo o corpo, politraumatismo grave, traumatismo crânio-encefálico grave com edema cerebral difuso, teve morte cerebral e ficou em estado vegetativo, tendo entretanto falecido (fls. 181).

- O Fundo de Garantia Automóvel indemnizou extrajudicialmente os pais de DD, falecida no acidente, e atribuiu uma indemnização pelos danos sofridos pelo lesado EE.

- O Fundo de Garantia Automóvel enviou à Ré AA, que as recebeu, cartas datadas de 22-6-11 e 23-8-11, nas quais, solicitou o reembolso da quantia de € 422.345,85 (1ª carta) e de € 429.845,85 (2ª carta).


4. Justificação do reenvio prejudicial

4.1. É questionado no recurso de revista interposto neste Supremo Tribunal de Justiça, do qual emana este reenvio prejudicial, se a obrigatoriedade de contratação de seguro de responsabilidade civil relativamente ao proprietário de veículo automóvel decorre da simples titularidade do direito de propriedade ou se, apesar da garantia de ressarcimento dos danos causados a terceiros que é assegurada, nessas circunstâncias, pelo Fundo de Garantia Automóvel, aquela obrigação de seguro não se verifica quando o veículo, por opção do proprietário, se encontra imobilizado, fora da via pública.

O Tribunal de Justiça da União Europeia já se pronunciou por Ac. de 4 de Setembro de 2014, no âmbito do reenvio prejudicial C-162/13 no sentido de que o “conceito de circulação de veículos” previsto no art. 3º, nº 1, da Directiva 72/166/CEE, do Conselho, de 24 de Abril de 1972, “abrange qualquer «utilização de um veículo» em conformidade com a função habitual desse veículo” e que pode “ser abrangida pelo referido conceito a manobra de um tractor com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro …”.

Tratava-se de decidir, então, se a Seguradora com quem o proprietário do veículo celebrara contrato de seguro seria ou não responsável perante o lesado pelos danos decorrentes do acidente. Mais concretamente se o concreto acidente ocorrido quando o veículo circulava num prédio rústico particular, e não na via pública, estaria ainda coberto pelo contrato de seguro de responsabilidade civil.


4.2. A situação dos autos difere, no entanto, daquela que foi apreciada em tal acórdão, uma vez que, não tendo sido celebrado contrato de seguro, o veículo, por opção da sua proprietária, estava imobilizado num terreno particular e foi colocado em circulação sem o seu conhecimento ou autorização.

Questiona-se se, em tal situação, ainda se pode considerar que o veículo automóvel representava um risco para a circulação cujos efeitos danosos deveriam ser cobertos por seguro de responsabilidade civil automóvel, independentemente da identificação do concreto responsável pelo sinistro causador dos danos. Ou seja, se, face ao que emana das Directivas Europeias aplicáveis ao caso, o proprietário de qualquer veículo automóvel, só por esse facto e independentemente de outras circunstâncias, estava obrigado a celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil.

A resposta parece ser negativa, considerando que, nos termos do art. 3º da Directiva do Conselho 72/166/CEE, de 24 de Abril de 1972, a obrigatoriedade do seguro está direccionada essencialmente para garantir, perante terceiros lesados, o pagamento das indemnizações, decorrentes da “responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos”.

Sem embargo da amplitude da responsabilidade que a final seja imputada à seguradora com quem o proprietário tenha celebrado contrato de seguro, nos termos em que posteriores Directivas o vieram a prever, a obrigação de segurar destina-se a garantir os terceiros lesados relativamente aos danos que decorram da responsabilidade civil que lhe seja directamente imputada na qualidade de proprietário do veículo, seja ou não o condutor do mesmo.

Parece, assim, que o incumprimento da obrigação de outorga do contrato de seguro apenas se verifica nas situações em que, por um lado, o proprietário do veículo o coloque em circulação ou em condições tais que importe um risco para a circulação automóvel e, por outro lado, que possa ser civilmente responsabilizado perante terceiros pelos danos decorrentes da circulação desse veículo. Parece excessivo concluir que tal obrigação deva ainda ser imposta ao proprietário nos casos em que tenha optado por retirar o veículo da circulação, para a eventualidade de ocorrerem acidentes em casos de apropriação ilícita do veículo ou da sua condução não autorizada pelo proprietário.

Mas, como se explicará mais adiante, esta resposta não é pacífica, ao menos na jurisprudência dos Tribunais Nacionais.


4.3. As dúvidas de interpretação verificam-se também quanto aos pressupostos do direito de sub-rogação que é concedido ao Fundo de Garantia Automóvel que tenha sido chamado a responder pelos danos causados a terceiros.

Nos termos do art. 1º, nº 4, da Directiva do Conselho 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983, a intervenção supletiva do Fundo de Garantia Automóvel está prevista unicamente para os casos em que, na sequência de acidentes de viação, seja chamado a “reparar … os danos materiais ou corporais causados por veículos … relativamente aos quais não tenha sido satisfeita a obrigação de seguro referida no nº 1”.

Ora, a delimitação desta intervenção indicia igualmente que o posterior direito de sub-rogação apenas se constitui relativamente a sujeitos que não tenham cumprido a obrigação de celebrar seguro de responsabilidade civil, nos termos anteriormente referidos. E que, por conseguinte, deixará de se verificar em casos em que o acidente ocorra devido a ilegítima apropriação do veículo que, por opção do seu proprietário, esteja retirado da circulação, recolhido num terreno particular, deixando de constituir fonte do risco que em condições normais envolve a circulação de veículos.

Com efeito, ainda que aquela disposição conceda a cada Estado-membro a faculdade de atribuir à intervenção do organismo de reparação carácter subsidiário e de regulamentar o direito de reembolso das quantias despendidas por causa do acidente de viação, a instituição daquele organismo para ressarcir danos causados na circulação de veículos automóveis parece constituir um sucedâneo da obrigatoriedade de celebração de contrato de seguro de responsabilidade civil.

Por outro lado, o direito ao reembolso é estabelecido, nos termos da referida Directiva, entre “este organismo e o ou os responsáveis pelo sinistro …”, o que igualmente nos coloca perante a dúvida interpretativa de apurar se, nos termos da Directiva, essa responsabilidade pode ser imputada ao proprietário do veículo só pelo facto de ser titular do direito de propriedade ou se está limitada aos casos em que a esse proprietário possa ser imputada a responsabilidade civil pelos danos decorrentes do acidente de viação.


4.4. Este Supremo Tribunal poderia porventura apreciar o recurso de revista seguindo aquelas directrizes sumariamente enunciadas.

Ocorre, porém, que as questões expostas, sendo conexas com o direito da União Europeia, não encontram na jurisprudência nacional uma resposta uniforme.

No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2-3-2004 (www.dgsi.pt), por maioria de quatro juízes, com um voto de vencido, decidiu-se que:

“1. Satisfeita pelo FGA, ao abrigo do art. 21º do Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, a indemnização exigida pelos lesados em acidente causado por viatura não segura, o Fundo fica sub-rogado nos direitos dos lesados, podendo, nos termos do art. 25º do mesmo diploma legal, exigir o reembolso dessa indemnização contra os responsáveis pelo acidente, isto é, contra qualquer das pessoas a quem possa ser imputada responsabilidade culposa ou pelo risco nos termos dos arts. 500º e 503º do CC.

2. O regime imposto pela lei do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não afasta a aplicação do art. 503º, nº 1, do Código Civil, que não foi revogado.

3. O direito ao reembolso conferido ao FGA contra o dono da viatura - sujeito da obrigação de segurar fixada no art. 1º, nº 1, do Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro - não existe se o proprietário não puder ser responsabilizado civilmente pelos prejuízos que tal viatura cause.

4. Não pode ser responsabilizado pelos danos emergentes da circulação da sua viatura o proprietário que, embora não beneficiando de seguro, não tinha, na altura do acidente, a direcção efectiva dessa viatura, a qual foi posta a circular sem o seu conhecimento e contra a sua vontade por desconhecidos que a furtaram do interior da garagem onde estava recolhida”.


Tratava-se de um caso em que, como se refere no acórdão, emergia dos seguintes factos:

…o Réu era proprietário do automóvel ligeiro de passageiros de matrícula SQ;

estando recolhido numa garagem, em Lisboa, o automóvel foi dela removido a 13 ou 14 de Outubro de 1994 por desconhecidos, que o utilizaram até ao dia 8-11-1994;

em 30-10-1994, a viatura, que não estava segura em qualquer companhia de seguros, deu causa a um acidente de viação (atropelamento de duas pessoas);

na acção indemnizatória que lhe foi movida pelos lesados o Fundo de garantia Automóvel transigiu, pagando-lhes PTE 4.000.000$00 e obrigando-se a suportar as despesas hospitalares em dívida a dois hospitais”.


Na respectiva fundamentação refere-se, além do mais, que:

“… é certo que o réu, enquanto proprietário da viatura causadora do acidente ajuizado, é sujeito da obrigação de segurar fixada no art. 1º, nº 1 (cfr. art. 2º, nº 1) [do Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro]. .Mas esta obrigação, como decorre do texto legal, é imposta para que a viatura possa circular e na justa medida em que o seu dono possa ser civilmente responsável pela reparação de danos por ela causados.

O direito que o art. 25º confere ao Fundo de Garantia Automóvel contra o dono da viatura não existe se esta não é para circular, nem se aquele, por qualquer motivo, não puder ser responsabilizado civilmente pelos prejuízos que o veículo cause a terceiros.

Esta conclusão é retirável do próprio texto do art. 25º, nº 3. Este preceito diz que as pessoas sujeitas à obrigação de segurar que não tenham efectuado o seguro poderão ser demandadas pelo FGA, beneficiando do direito de regresso contra outros responsáveis pelo acidente, se os houver, relativamente às quantias que tiverem pago. Também o art. 21º, nº 2, al. a), aponta exactamente no mesmo sentido, ao dizer que o FGA garante, por acidente originado por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, as indemnizações devidas quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido e eficaz.

Ao falar em responsável a lei está a referir-se, obviamente, a responsável civil, ou seja, à situação em que se encontra aquele que está obrigado a indemnizar o lesado dos prejuízos que lhe causou. No que toca, porém, ao dono do veículo causador do acidente esta obrigação não se filia na simples circunstância de não ter cumprido a obrigação de o segurar. Se, designadamente, a viatura tiver sido posta a circular sem o seu conhecimento e contra a sua vontade, provocando nessa situação um acidente que causa danos a terceiros, a lei não consente, em tal caso, a sua responsabilização. Na verdade, o regime imposto pela lei do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não afasta a aplicação do art. 503º, nº 1, do Código Civil, que não foi revogado.

Segundo esta norma, aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação. Acontece que o réu alegou expressamente factos concretos que, caso se provem, mostram que não tinha a direcção efectiva do seu automóvel na ocasião do acidente. Alegou (arts. 14º a 18º da contestação) que o veículo foi furtado por desconhecidos da garagem onde estava recolhido, facto que ocorreu a 13 ou 14 de Outubro de 1994 e motivou a apresentação de queixa criminal na Polícia Judiciária logo a 18 desse mesmo mês e ano; e alegou ainda que a viatura furtada só lhe foi restituída em 8.11.94 (portanto, já após o acidente ajuizado).

As instâncias não consideraram estes factos, que não foram oportunamente inseridos na base instrutória. Se, porém, vierem a demonstrar-se, é certo que o réu, conforme se disse, não responde pelo risco, dada a falta do apontado requisito (direcção efectiva); e menos ainda, claro está, a título de culpa. Ora, não sendo o Réu responsável, o FGA, embora sub-rogado no direito dos lesados a partir do momento em que lhes satisfez a indemnização, não poderá exercer contra ele o direito de crédito de que em razão de tal facto se tornou titular; nessa hipótese, com efeito, o devedor da obrigação há-de ser o autor do furto, aquele que, na ocasião do acidente, tinha o poder real sobre o veículo. Como consequência disto, o pedido formulado nesta acção terá então de improceder.

Analisando agora as coisas numa perspectiva complementar da já exposta, pode dizer-se que se retira claramente dos textos citados (arts. 21º e 25º do Dec. Lei nº 522/85) a ideia de que o FGA é um responsável meramente subsidiário, ao contrário da seguradora, que responde directamente perante o lesado por força das obrigações decorrentes do contrato de seguro. Por isso é que a seguradora, paga a indemnização, passa a ter um direito de regresso contra os responsáveis, mas apenas nos casos especiais previstos no art. 19º; o FGA, diversamente, fica sub-rogado nos direitos do lesado, podendo exigir o reembolso da indemnização cuja satisfação garantiu contra qualquer das pessoas a quem possa ser imputada responsabilidade pelo risco ou culposa, nos termos dos arts. 500º e 503º do Código Civil. Ao cabo e ao resto, o significado prático da norma do art. 25º, nº 3, é o seguinte: o FGA escolhe, selecciona quem demanda para exercer os direitos em que ficou sub-rogado; não está obrigado a accionar todos os responsáveis simultaneamente, em litisconsórcio; o seu direito, no entanto, dirige-se tão-somente contra quem seja responsável pelo facto danoso; e o responsável demandado, por seu turno, exercerá depois o direito de regresso contra outros responsáveis que o FGA não tenha accionado. Quer dizer: tendo em atenção a posição de mero responsável subsidiário do Fundo, o legislador pretendeu tornar mais fácil e expedita a concretização do seu direito ao reembolso; mas não foi ao ponto de lho conceder contra o dono da viatura que, embora não segura, foi posta a circular sem o seu conhecimento e contra a sua vontade, e que, por essa razão, não pode ser considerado, face à lei, responsável pelo acidente entretanto ocorrido.

Salvo o devido respeito, o argumento de que no caso em apreço o réu só poderia eximir-se à responsabilidade se alegasse e provasse que a sua viatura não se destinava a circular em nenhuma circunstância não invalida a conclusão a que se chegou. Trata-se de argumento que prova demais e é falacioso: demonstrado que o carro recolhido numa garagem foi furtado e que o autor do furto teve um acidente com ele antes de a viatura ser recuperada, fica preenchido o condicionalismo para isentar o dono de responsabilidade, apesar do veículo não se encontrar seguro; é que naquela concreta circunstância - e só essa importa à definição do responsável civil - ele não a pôs a circular, não quis que tal acontecesse, nem fez nada que tivesse contribuído para tal”.


Tal acórdão foi aprovado por quatro dos cinco juízes, com um voto de vencido assim justificado:

“1. Para que o veículo possa circular o seguro é obrigatório quanto ao seu proprietário civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais - arts. 1º, nº 1 e 2º, nº 1.

2. O seguro garante a satisfação de indemnização devida pelos autores do furto do veículo - art. 8º, nº 2.

3. Neste caso, o responsável é o autor do furto que tem a direcção efectiva do veículo e o conduz no seu próprio interesse (art. 503º, nº 1, do Código Civil), garantindo a seguradora a reparação por danos de que não são responsáveis os sujeitos obrigados a segurar - arts. 2º e 8º, nº 1.

4. Tem consequentemente a seguradora direito de regresso contra o autor do furto causador do acidente, que não beneficia do seguro - arts. 8º, n.º 3 e 19º b).

5. O FGA substitui as seguradoras quando o obrigado a segurar não beneficia de seguro válido ou eficaz - art. 21º, nºs 1 e 2.

6. O autor do furto do veículo não beneficia da garantia do FGA - art. 24º, nº 2. Satisfeita a indemnização, o FGA fica sub-rogado nos direitos do lesado, podendo demandar em acção de reembolso o obrigado a segurar que não tenha efectuado seguro; este, por sua vez, tem direito de regresso contra o responsável pelo acidente - art. 23º e 25º, nºsº 1 e 3.

7. Resulta daqui que não aproveita ao proprietário do veículo que não efectuou o seguro a que estava obrigado, alegar que a circulação do veículo se fez contra sua vontade por lhe ter sido furtado”.


Tese semelhante à que fez vencimento no anterior acórdão do Supremo Tribunal de Justiça foi adoptada mais recentemente no Ac. da Rel. de Lisboa, de 19-3-15 (www.dgsi.pt), em cujo sumário se refere que:

“1. O direito ao reembolso do FGA contra o proprietário do veículo ou outrem a quem este tenha conferido a direcção efectiva temporária do mesmo - como o garagista ou equiparado - ambos sujeitos à obrigação de segurar (arts. 1, nº 1, e 3º, nºs 1 e 3, ambos do DL n.º 522/85), não se consubstancia se estes não puderem ser responsabilizados civilmente pelos prejuízos causados pelo veículo.

2. E estes não poderão ser responsabilizados se, embora sem seguro obrigatório automóvel, não tinham, aquando do acidente, a direcção efectiva do veículo, por colocado em circulação mediante acto abusivo de outrem e assim abusivamente utilizado pelo condutor causador culposo do acidente”.


Tratava-se de veículo (motociclo) que foi colocado para venda num stand de venda de automóveis de onde foi furtado, tendo ocorrido um acidente de viação.


De acordo com a matéria de facto provada em tal acção:

“…

2. Na data referida em 8. o motociclo com a matrícula …-…-PC encontrava-se para venda no stand/oficina do Réu A...;

3. O motociclo com a matrícula …-…-PC foi retirado do stand/oficina do Réu A... por N...;

4. N... nas circunstâncias descritas em 3. actuou sem o conhecimento e/ou consentimento quer do Réu A... quer do Réu M...;

5. Na data referida em 8. o motociclo com a matrícula …-…-PC era conduzido por N...;

6. Na data referida em 8. o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula …-…-ZJ era conduzido por A... e era propriedade de F... ;


8. No dia 17 de Junho de 2005, cerca das 4h 00, no IC 19, ao km 2, Alfragide, na Amadora, ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes o motociclo com a matrícula …-…-PC e o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula …-…-ZJ;


12. Na sequência do referido em 8. faleceram os dois ocupantes do motociclo com a matrícula …-…-PC - N... e J...


14. À data do acidente o motociclo com a matrícula …-…-PC não dispunha de seguro válido e eficaz, porquanto não tinha transferida a responsabilidade civil de circulação automóvel para nenhuma empresa seguradora;

15. Na sequência do referido em 8. o Autor pagou:

a. Aos herdeiros de R... a quantia de 60.000 €;

b. A F... a quantia de 996,50 € relativa à reparação dos estragos do veículo automóvel de matrícula ZJ;

c. A D... a quantia de 308,55 €”.


Todavia, já no Acórdão da Relação de Coimbra de 25-5-04 (de que apenas dispomos do sumário que consta de www.dgsi.pt), decidiu-se por unanimidade de três juízes que:

“1. Sempre que haja lugar a indemnizações decorrentes de lesões materiais provenientes de acidente de viação originados pelos veículos referenciados no art. 21º, nº 1, do Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, não beneficiando o responsável de seguro válido ou eficaz, é ao Fundo de Garantia Automóvel que compete satisfazer essas indemnizações.

2. Não podendo o proprietário do veículo vir a ser responsabilizado civilmente pelos danos causados (quer a título de responsabilidade civil subjectiva, quer em sede de risco), mas competindo, ao Fundo de Garantia Automóvel garantir o pagamento da indemnização devida ao terceiro lesado, este fica investido num direito de regresso contra esse proprietário que não cumpriu o dever de efectuar o seguro de responsabilidade civil, nos termos do nº 3 do art. 25º do mesmo diploma.

3. A responsabilidade do proprietário deve buscar-se aqui na omissão em efectuar o seguro obrigatório.

4. Compete ao proprietário do veículo para que este possa circular, efectuar o respectivo seguro automóvel. O mesmo sucederá quando o proprietário não pretender, no momento próximo, circular com o veículo. É que, nos termos do art. 8º, nº 2, do Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, “o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso de veículo ou de acidente de viação dolosamente provocados ... “, donde resulta que se o seguro houvesse sido efectivamente celebrado, poderia sempre o lesado demandar a Seguradora, mesmo em caso de furto da viatura. Ou seja, o seguro tem um efeito útil independentemente da circulação ou não do veículo.

5. Acresce que, no caso, o Réu não alegou (e provou) que o veículo estava incapacitado de circular pelos seus próprios meios. Evidentemente que ao deixar o automóvel na via pública com as chaves de ignição no respectivo lugar, propiciou ou pelo menos facilitou a circulação efectiva da viatura, donde se conclui que nessa medida também ele contribuiu para essa movimentação. Daí que também por este prisma, deveria ter procedido à realização do seguro obrigatório”.


Como decorre do sumário, tratava-se de veículo que não estava coberto por seguro de responsabilidade civil, mas que se encontrava na via pública, com a chave na ignição, tendo sido objecto de furto.

Ainda assim, considerou-se que o proprietário deveria reembolsar o Fundo de Garantia Automóvel, apesar de na ocasião do acidente aquele não deter a direcção efectiva do veículo que lhe fora furtado.


A divergência é ainda nítida no caso concreto, pois a primeira instância e a Relação adoptaram entendimentos inversos relativamente ao condicionalismo de que depende o reconhecimento do direito de sub-rogação contra a proprietária do veículo.

Enquanto na sentença de 1ª instância se considerou que era indiferente para o caso que a proprietária do veículo tivesse optado por retirá-lo da circulação ou mesmo que tivesse circulado sem o seu conhecimento e autorização, julgando procedente o pedido de reembolso apresentado pelo Fundo de garantia Automóvel. Já a Relação concluiu que nas circunstâncias do caso não existia obrigação de celebrar o contrato de seguro, negando ao Fundo de Garantia Automóvel o direito de sub-rogação.


4.5. Nos casos em que existe contrato de seguro, a Seguradora responde perante o lesado mesmo que a proprietária do veículo não detenha a sua direcção efectiva e ainda que o veículo tenha sido posto em circulação na sequência de furto ou de furto de uso (art. 8º, nº 2, do Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, aplicável ao caso, atenta a data do acidente).

Se não existir contrato de seguro, mas ocorrer algum acidente de viação com intervenção do veículo automóvel, a reparação dos danos causados a terceiros pode ser exigida directamente ao Fundo de Garantia Automóvel, independentemente do modo como o veículo entrou em circulação, ou seja, independentemente de estar a circular sob a direcção efectiva do proprietário ou de ter havido uma apropriação ilegítima, como ocorre em casos de furto de uso de veículos.

Foi nesta base que, no caso presente, o Fundo de Garantia Automóvel foi chamado a responder perante os terceiros lesados.

Suscitam-se-nos, no entanto, dúvidas de interpretação quanto ao verdadeiro sentido das Directivas supra identificadas e quanto ao efeito útil dessas Directivas projectado do direito nacional, designadamente quanto a saber se a obrigatoriedade de contratação do seguro decorre automaticamente do simples facto de alguém ser proprietário de um veículo automóvel, ainda que por sua opção seja retirado da circulação e colocado num terreno particular, ou se, nesta situação, é de admitir a exclusão dessa obrigatoriedade.

Esta dúvida está ligada a uma outra relacionada com o condicionalismo a que deve ser submetida a sub-rogação por parte do Fundo de Garantia Automóvel, mais concretamente se a mesma é sempre exercida contra o proprietário do veículo que não observou a obrigação de contratação do seguro, independentemente de lhe ser imputada a responsabilidade civil pelo acidente, ou se tal sub-rogação depende sempre da verificação dos pressupostos da sua responsabilidade civil na esfera do proprietário, designadamente do facto de manter a direcção efectiva do veículo (nos termos que, atento o direito nacional, emergem do nº 1 do art. 503º do Código Civil).

Mais concretamente, importa apurar se, em face das Directivas mencionadas, a sub-rogação existe mesmo que o proprietário não detenha a direcção efectiva do veículo devido ao facto de o veículo ter sido objecto de furto de uso, ou se, pelo contrário, tal depende da verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil relativamente ao proprietário em face do acidente que foi causado com a circulação do mesmo veículo.

A par das divergências que emanam da jurisprudência dos Tribunais Nacionais relativamente à interpretação e aplicação do regime interno do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, na perspectiva da delimitação da sua obrigatoriedade e dos pressupostos do direito de sub-rogação legal reconhecido ao Fundo de Garantia Automóvel, essas divergências partem, em primeira linha, da interpretação que deve ser dada às normas das Directivas identificadas.


5. Conclusão:

Neste contexto, consideramos que se justifica o reenvio prejudicial, solicitando-se ao Tribunal de Justiça da União Europeia resposta às seguintes questões prejudiciais:

1) Deve o art. 3º da Directiva do Conselho 72/166/CEE, de 24 de Abril de 1972 (em vigor na data do acidente) ser interpretado no sentido de que a obrigatoriedade de contratação de seguro de responsabilidade civil automóvel abarca mesmo as situações em que o veículo, por opção do proprietário, se encontra imobilizado num quintal particular, fora da via pública?

ou,

Independentemente da responsabilidade que venha a ser assumida pelo Fundo de Garantia Automóvel perante os terceiros lesados, designadamente em casos de furto de uso do veículo, naquelas circunstâncias não recai sobre o proprietário do veículo a obrigação de segurar?


2) Deve o art. 1º, nº 4, da Directiva do Conselho 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983 (em vigor na data do acidente) ser interpretado no sentido de que o Fundo de Garantia Automóvel que, por falta de contrato de seguro de responsabilidade civil, efectuou o pagamento da indemnização aos terceiros lesados por acidente de viação causado por veículo automóvel que, sem conhecimento e autorização do proprietário, foi retirado do terreno particular onde se encontrava imobilizado, tem o direito de sub-rogação contra o proprietário do veículo, independentemente da responsabilidade deste pelo acidente?

ou,

A sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel relativamente ao proprietário depende da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, designadamente do facto de, na ocasião em que ocorreu o acidente, o proprietário ter a direcção efectiva do veículo?


6. Face ao exposto:

6.1. Determina-se que seja solicitado ao Tribunal de Justiça da União Europeia a resolução do reenvio prejudicial nos termos anteriormente enunciados.

6.2. Entretanto suspende-se a instância no presente recurso até que seja obtida a resposta a tal reenvio.

Notifique.


Lisboa, 7-2-17


Abrantes Geraldes