Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
98A1262
Nº Convencional: JSTJ00035803
Relator: RIBEIRO COELHO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
JUROS
NULIDADE DA DECISÃO
Nº do Documento: SJ199902030012621
Data do Acordão: 02/03/1999
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 151/98
Data: 05/11/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV. DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 342 N1 ARTIGO 483 ARTIGO 494 ARTIGO 496 N1 ARTIGO 498 ARTIGO 499 ARTIGO 510
ARTIGO 566 N1 N2 ARTIGO 798 ARTIGO 804 ARTIGO 805 N3.
CPC67 ARTIGO 661.
DL 262/83 DE 1983/06/16.
PORT 339/87 DE 1987/04/24.
PORT 117/95 DE 1995/09/25.
Jurisprudência Internacional: AC STJ DE 1974/06/04 IN BMJ N238 PAG204.
AC STJ DE 1975/11/18 IN BMJ N148 PAG274.
AC STJ DE 1978/02/02 IN BMJ N274 PAG196.
AC STJ DE 1978/05/30 IN BMJ N277 PAG284.
AC STJ DE 1979/07/10 IN BMJ N289 PAG242.
AC STJ DE 1993/01/17 IN CJSTJ ANO1993 TI PAG61.
AC STJ DE 1993/12/09 IN CJSTJ ANO1993 TIII PAG175.
AC STJ PROC284/97 DE 1997/11/25 1SEC
AC STJ PROC139/98 DE 1998/07/09 2 SEC.
Sumário : I - No plano teórico, são ressarcíveis os danos não patrimoniais decorrentes de um ilícito contratual.
II - Saber se as consequências da conduta lesante estão ao nível de simples contrariedades, irrelevantes para o efeito, ou se têm gravidade suficiente para serem indemnizadas será o resultado da valoração que for possível em função do conhecimento que delas se tenha em concreto.
III - Cancelados os depósitos bancários a prazo, não são devidos os juros remuneratórios para eles convencionados.
IV - Ainda que a sentença da 1ª Instância tivesse incorrido em nulidade por excesso de pronúncia, a mesma teria sido sanada pelo acórdão da 2ª instância, que manteve o decidio, mas a título diverso.
V - A obrigação de indemnizar os danos não patrimoniais decorrentes do não cumprimento contratual é uma obrigação ilíquida, embora o autor tenha formulado um pedido liquido (o que não implica a liquidez da obrigação).
VI - Todavia, não são devidos juros desde a citação, uma vez que tal responsabilidade, sendo contratual, está fora do âmbito da previsão do n. 3 do artigo 805, do C.Civil, pelo que os juros moratórios só são devidos a partir do trânsito em julgado da decisão condenatória.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A propôs pelo 2º Juízo Cível da comarca do Porto contra B uma acção declarativa com processo ordinário em que pediu a condenação do réu a:
a) Devolver-lhe o capital, no montante de 2315836 escudos e 80 centavos que indevidamente liquidou e transferiu da sua conta D/O, integrando-o nessa conta, acrescido de juros à taxa contratada de 12,5%, correspondentes ao período em que dela estiveram arredados, desde 3/6/93 e até efectivo reembolso, sendo de 183204 escudos e 90 centavos os já vencidos;
b) Pagar-lhe a quantia de 1000000 escudos, correspondentes ao montante dos lucros cessantes, e os respectivos juros legais nas condições referidas em a), sendo num total de 93.931 escudos e 50 centavos;
c) Pagar-lhe 500000 escudos como indemnização dos danos morais e respectivos juros legais, também nas mesmas condições, sendo de 47.465 escudos e 80 centavos os já vencidos.
Para tanto alegou que, sendo titular de duas contas de depósito a prazo na dependência que o réu tem na Foz, estas contas foram indevidamente e sem seu conhecimento e consentimento liquidadas, lançando o réu o saldo na conta D/O e aí debitando a importância referida em a) com o pretexto de se pagar de pretensos créditos seus sobre o autor. Alegou ainda que devido à indisponibilidade desse dinheiro perdeu a ocasião de realizar um negócio altamente lucrativo e sofreu vexame, desgostos e outras contrariedades, assim tendo cabimento as indemnizações pedidas.
Após contestação em que o réu pediu a sua absolvição do pedido e réplica onde o autor acabou por pedir a condenação do réu em multa e indemnização por litigância de má fé, houve saneamento, condensação e audiência de discussão e julgamento, após o que se proferiu sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou o réu a pagar ao autor a quantia de 2315836 escudos e 80 centavos, com juros de mora à taxa de 12,5% desde 3/6/93 até efectivo reembolso, bem como a quantia de 500000 escudos como indemnização por danos não patrimoniais, com juros de mora à taxa legal desde 3/6/93 até efectivo pagamento.
Julgada improcedente pela Relação do Porto a apelação interposta pelo réu, trouxe ele a este STJ o presente recurso de revista em que, pedindo que se revogue o acórdão da Relação, formula, ao alegar, as seguintes conclusões:
1ª A acção "sub judice" tem por fundamento o alegado incumprimento de um contrato de depósito bancário, inscrevendo-se, portanto, no âmbito da responsabilidade contratual;
2ª Na esfera da responsabilidade civil contratual os danos não patrimoniais não são reparáveis. Isto porque, por um lado, o art. 496º do CC, que consagra a ressarcibilidade desses danos, inscreve-se, em termos sistemáticos, na subsecção da responsabilidade civil por factos ilícitos, o que claramente inculca que tais prejuízos só relevam em sede de responsabilidade aquiliana, e, por outro lado, a reparação dos danos morais no campo da responsabilidade contratual introduziria um factor de séria perturbação da certeza e segurança do comércio jurídico, alimentando propósitos especulativos e conduzindo à comercialização de valores morais - cfr., "inter alia", A Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. 1º, 7ª edição, pg. 599 e RLJ 123, 253/255; e J. Figueiredo Dias e Jorge Sinde Monteiro, BMJ 332, 41;
3ª Pelo que "in casu" a indemnização arbitrada pelo tribunal "a quo" a título de danos não patrimoniais deve improceder;
4ª Sem embargo, face à matéria de facto dada como provada, não assiste ao autor o direito à indemnização por danos morais; apenas se fez prova que o autor sofreu "contrariedades" que, consoante é entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência, não revestem a gravidade exigida no art. 496º do CC e, por consequência, não merecem a tutela do direito:
5ª Por outro lado, facto ilícito e prejuízo são realidades jurídicas distintas, não podendo confundir-se a existência do dano não patrimonial com as circunstâncias do incumprimento do contrato;
6ª Os juros peticionados sobre o capital das contas a prazo têm a natureza de juros remuneratórios; como tal, só são devidos enquanto estiver em vigor o contrato de depósito;
7ª Está assente nos autos que o autor solicitou verbalmente o cancelamento dos depósitos a prazo para a data do seu vencimento (3/6/93), pretensão que confirmou por escrito em 4/6/93, pelo que, independentemente da conduta do réu, tais contratos cessaram os seus efeitos nesse momento;
8ª Nesta conformidade, a condenação do réu no pagamento dos juros significa continuar a remunerar "contra legem" um capital cedido no âmbito de um contrato de depósito que de há muito ("rectius": desde 3/6/93) deixava de cobrar eficácia e validade;
9ª Por outro lado, a 1ª instância, ao condenar no pagamento dos juros, condenou em objecto diferente do pedido, em violação do art. 661º, nº 1, do CPC; não declarando tal nulidade cominada no art. 668º, nº 1, al. e) do CPC, o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento;
10ª De igual modo não deve proceder a condenação do réu no pagamento de juros de mora relativamente à indemnização por danos morais por isso que se trata de um (suposto) crédito ilíquido, que apenas poderá vir a tornar-se certo com o trânsito em julgado da decisão que eventualmente o fixar;
11ª Cuida-se de um corolário do princípio "in illiquido non fit mora" que, remontando ao direito romano, foi acolhido na nossa ordem jurídica;
12ª Tal regra não cede em face da nova redacção que o DL nº 262/83 deu ao nº 3 do art. 805º do CC, pois essa alteração legislativa restringiu o seu alcance à responsabilidade civil extracontratual e, na espécie, a fonte da obrigação de indemnizar é a responsabilidade contratual, cujo regime, mesmo em caso de concurso, absorve o da aquiliana;
13ª No douto acórdão recorrido violaram-se, nomeadamente, os arts. 496º, 804º e 805º do CC e os arts. 661º, nº 1 e 668º, nº 1 do CPC.
O recorrido defendeu, contra-alegando, a correcção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
A matéria de facto dada como assente nas instâncias não vem posta em causa, nem se vê que o deva ser por nossa iniciativa, pelo que a damos como reproduzida, ao abrigo do disposto no art. 713º, nº 6, do CPC.
As conclusões das alegações delimitam objectivamente o âmbito do recurso, sendo delas - de todas elas e, em princípio, só delas - que o tribunal deve conhecer.
Tais questões são apresentadas pelo recorrente pela seguinte ordem:
I- Ressarcibilidade, em abstracto, dos danos não patrimoniais no âmbito da responsabilidade contratual - conclusões 1ª a 3ª;
II- Ressarcibilidade, em concreto, dos danos não patrimoniais invocados pelo recorrido e provados - conclusões 4ª e 5ª;
III- Impossibilidade de serem pagos após a cessação dos contratos de depósito a prazo os juros para eles convencionados - conclusões 6ª a 8ª;
IV- Ter havido nulidade por excesso de pronúncia na medida em que, pedidos pelo recorrido juros remuneratórios, foi emitida condenação em juros moratórios, que não haviam sido pedidos - conclusão 9ª;
V- Falta de cabimento dos juros moratórios sobre a indemnização por danos não patrimoniais - conclusão 10ª a 12ª.

Questão I:
A primeira questão a versar de entre as que o recorrente foca nas suas conclusões é a da ressarcibilidade, no plano teórico, dos danos não patrimoniais que decorrem de um ilícito contratual.
A tese defendida no recurso é a de que tais danos não são ressarcíveis, argumentando-se com a localização sistemática da norma que prevê, pontualmente, a sua ressarcibilidade e com o risco de "comercialização" de valores morais.
Segue aqui o recorrente a ideia que é, entre nós, defendida na doutrina por Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, pg. 105 e na RLJ, ano 123º, pgs. 253-256, e ainda pelo mesmo autor com Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pgs. 501-502.
Diferente é, porém, a posição da maior parte da nossa doutrina, como se vê das posições de Vaz Serra, RLJ, ano 108º, pg. 222, Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, pg. 385-387, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª edição, pg. 523-524, e Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, pg. 31, nota 77.
Também este STJ se tem pronunciado diversas vezes neste último sentido - cfr., já em data recuada, os acórdãos de 4/6/74, 18/11/75, 2/2/78, 30/5/78, 10/7/79 e 30/6/81, publicados, respectivamente, nos BMJ nº 238, pg. 204, nº 251, pg. 148, nº 274, pg. 196, nº 277, pg. 284, nº 289, pg. 242 e nº 303, pg. 212.
Mais recentemente, podem citar-se os acórdãos de 17/1/93 e de 9/12/93, na Col. Jur. - STJ, 1993-I-61 e III-175, bem como os de 25/11/97, revista nº 284/97, 1ª secção, de 17/2/98, revista nº 799/97, 1ª secção, e de 9/7/98, revista nº 139/98, 2ª secção.
Não se vê que haja razões para alterar esta orientação.
A inserção sistemática do art. 496º do CC - diploma ao qual pertencerão as disposições legais que adiante referirmos sem menção de a outro pertencerem -, integrado na regulamentação da responsabilidade extracontratual, não implica a não extensão do princípio contido no seu nº 1 à responsabilidade contratual. Conhecida pelo legislador a existência, tanto no direito alemão como no direito italiano, de normas restringindo a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais aos casos em que a lei a previsse - veja-se, a este propósito, a informação constante da citada RLJ, ano 123º, pg. 255 e do também citado Código Civil Anotado, pg. 502 -, parece razoável entender-se que a adesão a este princípio deveria ter sido, da mesma forma, manifestada de forma clara.
Acresce que se não vêem razões que desaconselhem seriamente a extensão analógica do art. 496º, nº 1, à responsabilidade contratual ou, por outra via, uma interpretação ampla dos arts. 798º e 804º quando falam em "prejuízo" e em "danos" sem concretizar o seu âmbito. Será suficiente, para não estender demasiadamente o risco de incerteza no plano negocial, a observância cuidadosa do princípio segundo o qual os danos não patrimoniais só são indemnizáveis quando a sua gravidade o justifique.
E não se argumente com a ideia segundo a qual o CC terá regulado de forma estanque as duas formas de responsabilidade civil - a contratual e a extracontratual -, aproveitando a secção dedicada à obrigação de indemnização para aí regulamentar os pontos comuns a uma e a outra; é que ninguém poderá negar que é no campo da responsabilidade contratual que se encontra uma disposição específica para os casos de mora na responsabilidade extracontratual - o art. 805º, nº 3.

Questão II:
O ilícito culposo que nestes autos foi já reconhecido e se não discute agora consistiu em o recorrente, depois de em 7/6/93, mas com data-valor de 3/6/93, ter liquidado dois depósitos a prazo abertos em nome do recorrido, haver lançado o produto dessa liquidação na conta D/O e ter-se apropriado de 2315836 ecudos e 80 centavos, sem o conhecimento e consentimento do recorrente, para se pagar de créditos não vencidos que sobre este detinha, após o que se recusou a restituir-lhe essa importância apesar do protesto imediato e das diligências posteriores do recorrido nesse sentido.
A basear o pedido de danos não patrimoniais o recorrido alegou na petição inicial que: a) a devolução, pelo recorrente, de um cheque seu, emitido pelo montante de 2200000 escudos, por alegada falta de provisão tornou-se conhecida e teve ampla repercussão, quer no seio do Banco Comercial de Macau, de que era cliente e onde o depositara, quer do público em geral (concorrência e clientes), onde foi comentada em termos que não eram abonatórios para o recorrido - art. 23º; b) tudo isto foi motivo de vexame, desgostos, mal-entendidos e contrariedades para si, que é e sempre foi reputado comerciante sério e cumpridor e que assim se viu a sofrer injustamente as consequências do acto ilícito e criminoso do demandado - art. 24º.
De entre a factualidade provada retiram-se, com pertinência para esta questão, os seguintes factos:
1- Ao efectuar a transferência do produto líquido dos dois depósitos a prazo da conta de depósito à ordem do autor para uma outra o réu provocou a devolução, por falta de provisão, do cheque nº 3266876135, de esc. 2200000 escudos, que o autor havia entretanto depositado no Banco Comercial de Macau;
2- Apesar de o autor ter tornado o réu sabedor da emissão deste cheque e da necessidade de ser honrado o seu pagamento;
3- A devolução do cheque sacado pelo autor tornou-se conhecida no Banco Comercial de Macau, onde o autor era cliente e foi motivo de contrariedades para o autor.

Estes factos foram, pelas instâncias, tidos como idóneos para fundar uma indemnização de 500000 escudos a título de danos não patrimoniais.
O constante de 3. resultou das respostas restritivas dadas aos quesitos 7º - onde se perguntara se "... a devolução do cheque sacado pelo autor tornou-se conhecida e teve ampla repercussão, quer no Banco Comercial de Macau, onde o autor era cliente, quer na concorrência e clientes do autor, onde foi comentada em termos não abonatórios para o autor" - e 8º - onde se perguntara se "... foi motivo de vexame, desgostos, mal entendidos e contrariedades para o autor, que é e sempre foi reputado comerciante sério e cumpridor".
Traduziam estes quesitos aquilo que pelo autor, ora recorrido, fora alegado nos arts. 23º e 24º da petição inicial.

Os danos não patrimoniais consistem, essencialmente, no sofrimento físico ou moral decorrente de ofensas à integridade física ou moral do lesado, podendo especificar-se, dentro deste âmbito, as dores físicas, os desgostos por perda de saúde ou de capacidade e integridade físicas ou intelectuais, a vergonha ou os desgostos resultantes de má imagem de carácter para com terceiros, etc..
Só são indemnizáveis quando, conforme exige o art. 496º, nº 1, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
A avaliação desta gravidade tem que ser feita segundo um padrão objectivo - cfr. Antunes Varela, obra citada, Vol. I, 9ª edição, pg. 628.
É orientação já consolidada na jurisprudência aquela segundo a qual as meras contrariedades não justificam, por falta da necessária gravidade, a atribuição de indemnização a título de danos não patrimoniais - cfr. os acórdãos do STJ de 12/10/73, BMJ nº 230, pg. 107, e de 18/11/75, BMJ nº 251, pg. 148.
Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, Vol. I, 4ª edição, pg. 499, referem, sem criticar, a existência desta orientação jurisprudencial.
Dela podemos dizer que tem algum apoio na lei na medida em que a noção corrente de uma simples contrariedade ou incómodo possa traduzir um nível de gravidade objectiva insuficiente para os efeitos do nº 1 do art. 496º.
Mas, de qualquer modo, há que entender que a referida orientação jurisprudencial não é mais do que uma orientação que será, ou não, de aplicar consoante a valoração que se fizer das consequências da conduta do lesante.
Saber se essas consequências estão ao nível das simples contrariedades irrelevantes para o efeito ou se têm gravidade suficiente para serem indemnizadas será o resultado da valoração que for possível em função do conhecimento que delas se tenha em concreto.
Este conhecimento, no caso em exame, não foi obtido de maneira modelarmente expressiva.
Basta comparar, para assim se concluir, o facto nº 3 acima enunciado e as redacções que tiveram os quesitos 7º e 8º; na verdade, aquele facto fala, "tout court", em contrariedades e não consagra a existência de comentários pouco abonatórios para o recorrido.
O dano não patrimonial não pode residir na simples recusa de pagamento do cheque, nem no simples conhecimento público desse facto, nem sequer na deslealdade do banco em relação ao seu cliente, mas nas consequências de ordem moral que podem daí advir; e sobre elas, bem vistas as coisas, alegou o recorrido factos que não provou completamente - o que era seu ónus, face ao art. 342º, nº 1.
É, porém, de reter que o recorrido era cliente do Banco Comercial de Macau e que este teve conhecimento da recusa de pagamento do cheque, cujo montante era alto.
Disse-se no acórdão recorrido que nestas circunstâncias as contrariedades sofridas pelo recorrido são significativas, sabendo-se, como é sabido, que a qualidade das relações entre um banco e um seu cliente estão fortemente condicionadas por factores com repercussão na confiança que é, necessariamente, afectada por ocorrências como a havida.
Estando, assim, verificada uma gravidade que justifica a protecção da lei, justifica-se a concessão de indemnização cujo montante foi acertadamente fixado pelas instâncias, designadamente considerando os factores aplicáveis de acordo com os arts. 496º e 494º - dos quais se destacam a equidade e o grau de culpa do lesante.
Questão III:
Reage o recorrente contra a sua condenação a pagar os juros convencionados como remuneratórios em período temporal onde os contratos não vigoravam já.
A este propósito interessa a seguinte factualidade apurada nas instâncias:
4- Na dependência que o recorrente tem na Foz, Porto, o recorrido abriu uma conta de depósito à ordem com o nº 008/200006170;
5- Na mesma dependência abriu também duas contas de depósito a prazo, uma de 39319 escudos e 40 centavos com vencimento em 29/6/93, outra de 2375225 escudos e 90 centavos com vencimento em 3/6/93 mas automaticamente renovável;
6- Em 7/6/93, mas com data de 3/6/93, o recorrente liquidou os depósitos a prazo e lançou o produto dessa liquidação na conta de depósito à ordem referida em 4. e apropriou-se de 2315836 escudos e 80 centavos, fazendo-se pagar de créditos, não vencidos, que detinha sobre o recorrido e sem o conhecimento nem o consentimento deste;
7- Apesar do protesto imediato do autor e das diligências posteriores que realizou com vista a ser integrado dessa quantia, o recorrente recusou-se a restituí-la;
8- O recorrido solicitou verbalmente o cancelamento dos depósitos a prazo em 3/6/93, confirmando essa sua pretensão em 4/6/93;
9- O recorrido não pediu nem aceitou a liquidação antecipada com o fim que lhe dado pelo recorrente.

Há acordo das partes em que nesses depósitos a prazo foi contratada para os juros a taxa de 12,5%; afirmou-o o autor, ora recorrido, na petição inicial e não o contrariou o réu, ora recorrente, na contestação; e nesse pressuposto são elaboradas as alegações produzidas por ambas as partes nesta revista.

Na sentença da 1ª instância o ora recorrente foi condenado, além do mais que aqui não interessa, a pagar 2315836 escudos e 80 centavos acrescidos de juros de mora à taxa de 12,5% desde 3/6/93.
Disse-se no acórdão recorrido que: a) o ora recorrido não cancelou as contas de depósito a prazo, tendo sido o ora recorrente quem unilateralmente o fez, b) a referência a juros moratórios constante da sentença, em vez de aí se falar em juros remuneratórios, não é relevante por nela se ter pretendido, efectivamente, pagar o rendimento convencionado contratualmente para o capital.
O recorrente defende ter havido condenação indevida em juros remuneratórios, e o recorrido diz, diversamente, que é a este título que eles são devidos.
"Quid iuris"?
A razão está do lado da sentença da 1ª instância.
O acórdão recorrido incorre em manifesto lapso quando disse que o ora recorrido não cancelou os depósitos a prazo, tendo sido o Banco quem unilateralmente o fez.
Esta afirmação só pode explicar-se por se não ter atentado no teor do facto, também enunciado no acórdão recorrido, que acima transcrevemos com o nº 8.
E, conjugando este facto com o nº 6, não há outra conclusão a tirar que não seja a de que a liquidação operada pelo Banco quanto aos mencionados depósitos a prazo teve lugar a pedido do depositante.
Tal liquidação, no tocante a juros remuneratórios, deveria conter os que, de acordo com a condições contratuais, fossem devidos, designadamente tendo em conta que um deles era liquidado antecipadamente.
Mas não é essa liquidação que está a ser discutida.
Por outro lado, na petição disse-se, nos arts. 27º e 28º, que o crédito total do ora recorrido, quanto a capital, era de 3815836 escudos e 80 centavos e que, porque houvera interpelação e se tratava de facto ilícito, o mesmo vencia juros.
Na sequência desta afirmação, formulou-se, entre outros, o pedido que do relatório deste acórdão consta sob a al. a).
Os juros constantes deste pedido - que, como é infelizmente frequente, enferma da falta de menção das disposições legais aplicáveis - só podem ser entendidos como moratórios; de outro modo, careceria de qualquer sentido lógico a referência, só compreensível à luz do art. 805º, à intimação e à natureza ilícita do facto como razão jurídica do direito aos juros.
Só que os juros moratórios foram pedidos em montante igual ao dos que haviam sido estipulados como remuneratórios nos depósitos a prazo cancelados por acordo das partes.
Se, neste enquadramento - o dos juros moratórios - o pedido foi bem ou mal formulado e os mesmos foram bem ou mal fixados, é questão de direito que não vem levantada explicitamente pelo recorrente, mas que deve ser tida como implícita na defesa, por si feita, de que, uma vez findos os depósitos a prazo, os juros remuneratórios neles convencionados não relevam mais.
Por isso será ela abordada de seguida.
Quando o Banco se pagou indevidamente de créditos sobre o seu cliente depositante, usou para o efeito dinheiro creditado na conta de depósito à ordem.
Os depósitos a prazo haviam já sido, como se viu, cancelados, e com toda a regularidade.
Daí que as condições contratadas para estes de nada interessem já, ao contrário do que poderia entender-se se aquele cancelamento tivesse sido irregular.
Por isso, e não discutindo o recorrente a data que as instâncias consagraram como sendo a do início da contagem destes juros, apenas há que cuidar da taxa aplicável.
Ela era, em 3/6/93, a de 15% ao ano, por força dos arts. 806º e 559º e da Portaria nº 339/87, de 24/4.
Passou, por força da Portaria nº 1171/95, de 25/9, a ser a de 10% a partir de 30 desse mês.
Porém. observar-se-á, até esta última data, a taxa de 12,5%, e não a de 15%, por ser a pedida na acção e por imperativo do art. 661º do CPC.
Questão IV:
A solução a dar a esta conclusão ressalta com nitidez do que acabou de ser dito.
A conclusão 9ª, enquanto referida, como o foi, à sentença da 1ª instância não tem sentido na medida em que o acórdão recorrido manteve, mas a título diverso - como juros remuneratórios -, os juros atribuídos na sentença quanto à quantia de 2315836 escudos e 80 centavos.
Logo, se nulidade tivesse havido, estaria sanada pelo acórdão recorrido.
E o acórdão recorrido não incorreu, minimamente, no vício apontado.
Interessa, em todo o caso, salientar que a sentença da 1ª instância não infringiu princípio segundo o qual o tribunal não pode condenar em objecto diferente do pedido.
E isto porque, como se deixou já dito, a petição inicial só pode ser entendida como contendo, nesta matéria, um pedido de juros moratórios.
Questão V:
Contesta o recorrente a condenação que foi emitida no sentido de serem devidos juros de mora desde 3/6/93 quanto à indemnização concedida por danos não patrimoniais.
E defende que esses juros só poderão contar-se a partir do trânsito em julgado da decisão que os fixar.

A doutrina recorre habitualmente à noção de indeterminação ou desconhecimento quando quer referir-se à iliquidez da dívida; assim o fizeram Vaz Serra - cfr. Mora do Devedor, BMJ nº 48, pg. 38 - e, mais recentemente, Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª edição, pg. 254, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 6ª edição, pg. 114, nota 1.
Por isso, sempre que a fonte da obrigação contém os elementos necessários para, por si só ou conjugada com o recurso a regras supletivas da lei, evidenciar o que é devido, a obrigação será líquida.
Não o será quando essa fonte, criando embora, de forma inequívoca, a obrigação, não define, sem mais, o seu conteúdo.
Assim, é ilíquida a dívida emergente de um contrato quando o seu montante depende da prestação de contas através do encontro, ainda não feito, entre créditos e débitos, ou quando está em causa a indemnização devida pelo não cumprimento, por parte do devedor, da obrigação a que está vinculado. Assim se encontra em Antunes Varela, ibidem, nota 1, a exemplificação da iliquidez com os casos de gestão, mandato e obrigação de indemnização; e também Galvão Telles, obra citada, pg. 304, refere a indemnização pecuniária.
Ainda tratando da obrigação de indemnizar, encontram-se na anotação escrita por Antunes Varela na RLJ, ano 102º, pgs. 85-93, noções que confirmam esta linha de orientação.
Por um lado, dá conta de que esta obrigação, quer seja de natureza contratual ou extracontratual, é ilíquida na maior parte dos casos, só o não sendo quando "... a lei ou as partes fixaram antecipadamente o seu montante ou o critério rígido da sua determinação."
Por outro lado, acompanha Henri de Page quando este distingue entre as obrigações que "ab initio" têm por objecto uma soma em dinheiro e aquelas em que só o têm em momento posterior; estas últimas correspondem à obrigação de indemnizar, como se vê, além do mais, da circunstância de a indemnização pecuniária ser um sucedâneo da indemnização natural - art. 566º, nº 1; aliás, o próprio critério de fixação da indemnização assente na teoria da diferença, tal como a define o nº 2 deste artigo, mostra como, por natureza, é incompatível com ela a contagem simultânea de juros de mora.
Do exposto pode concluir-se, com segurança, que a obrigação de indemnizar os danos não patrimoniais decorrentes do não cumprimento contratual - que sobre o ora recorrente se disse já impender - é uma obrigação ilíquida; esta conclusão não é prejudicada pelo facto de o autor haver formulado nesta matéria um pedido líquido, o qual não implica a liquidez da obrigação.
Por isso, e de acordo com a versão inicial que o nº 3 do art. 805º, não determinaria a entrada em mora, nem a contagem dos respectivos juros, enquanto não fosse convertida em obrigação líquida, o que, na falta de acordo das partes, exigia a prolação de sentença com esse conteúdo.
Porém, com o DL nº 262/83, de 16/6, aquele nº 3 passou a prever a entrada em mora desde a citação quanto a uma obrigação ilíquida se se tratar de um caso de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco.
A coincidência dos termos literais usados aponta para a ideia segundo a qual a lei está aqui a referir-se apenas aos casos de responsabilidade regulados nas subsecções I - arts. 483º a 498º - e II - arts. 499º a 510º -, uma e outra integradas na secção que, sob a epígrafe "Responsabilidade civil", rege os casos de responsabilidade civil extracontratual que não provêm de factos lícitos.
Esta ideia é expressamente confirmada pelo preâmbulo deste DL, na medida em que diz que se estabelece, no tocante apenas à responsabilidade extracontratual, um termo inicial específico da mora do lesante-devedor.
Daí que se conclua que a responsabilidade agora discutida, sendo contratual, está fora do âmbito daquela nova previsão do nº 3 do art. 805º - neste sentido já este STJ se pronunciou no acórdão de 14/2/95, publicado na Col. Jur. - STJ, 1995-I-79.
Diferença de regime quanto à responsabilidade contratual que se compreende, quer porque as consequências humanas desta se configuram de forma sistematicamente menos dramática e gravosa, quer porque, de algum modo, o aqui responsável foi escolhido pelo prejudicado ao celebrar com ele o contrato e assim se colocando, voluntariamente, em condições propiciadoras da produção dos danos.
Assim, é a maior dose de infortúnio por parte do lesado na responsabilidade extracontratual que explicará aquela diferença.
Não pode, pois, manter-se a condenação no pagamento de juros desde 3/6/93 sobre a quantia de 500000 escudos arbitrada como compensação de danos não patrimoniais.
E, dando-se a entrada em mora com a liquidação, haverá juros de mora, a pagar pelo recorrente, à taxa anual de 10% a partir do momento em que a mesma se tornar definitiva - isto é, a partir do trânsito em julgado deste acórdão.
Na sequência do exposto, e concedendo-se parcialmente a revista, revoga-se o acórdão recorrido e a por ele confirmada sentença da 1ª instância apenas na parte em que estatuíram sobre os juros de mora devidos com referência à indemnização por danos não patrimoniais - que se contarão à taxa anual de 10% a partir do trânsito em julgado deste acórdão -, mantendo-se o demais decidido.
Custas desta revista e também as da apelação a cargo de ambas as partes na proporção de 9/10 para o recorrente e 1/10 para o recorrido.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 1999.
Ribeiro Coelho,
Garcia Marques,
Ferreira Ramos.