Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
279/07.7TBMRA.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO AFONSO
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
MINISTÉRIO PÚBLICO
RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
OMISSÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ÁGUAS
ÁGUAS PÚBLICAS
ÁGUAS PARTICULARES
SERVIDÃO
COLISÃO DE DIREITOS
DIREITO DE PROPRIEDADE
Data do Acordão: 11/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO ADMINISTRATIVO – RECURSOS HÍDRICOS / MARGEM E LARGURA / TITULARIDADE / UTILIZAÇÃO COMUM DOS RECURSOS HÍDRICOS DO DOMÍNIO PÚBLICO / SERVIDÕES ADMINISTRATIVAS SOBRE PARCELAS PRIVADAS DE LEITOS E MARGENS DE ÁGUAS PÚBLICAS - CLASSIFICAÇÃO DAS ÁGUAS E EXERCÍCIO DA PESCA.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE / ATRAVESSADOUROS.
DIREITO CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTATAIS - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTATIS / DIREITOS E DEVERES ECONÓMICOS - FISCALIZAÇÃO CONCRETA / LEGITIMIDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - SENTENÇA / VÍCIOS.
Doutrina: - Guilherme Moreira, As águas no Direito Civil Português, Livro I, p.254.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC):- ARTIGOS 335.º, 1302.º, 1305.º, 1384.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC):- ARTIGOS 660.º, N.º2, 668.º, N.º1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 2.º, 18.º, 58.º E SS., 62.º, N.º1.
DL Nº280/2007 DE 7-8: - ARTIGOS 15.º E 18.º.
LEI N.º 2097, DE 6 DE JUNHO DE 1959: - BASE VII
LEI Nº83/95, DE 31-8: - ARTIGO 16.º.
LEI N.º 54/2005, DE 15-11: - ARTIGO 11.º, N.ºS1, 4 E 6, 21.º, N.º1,
LEI N.º 58/2005 DE 29-12: - ARTIGOS 58.º
LEI ORGÂNICA SOBRE A ORGANIZAÇÃO FUNCIONAMENTO E PROCESSO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL (LOOFPTC): - ARTIGOS 70.º, ALÍNEAS G), H) E I), 72.º, N.º3.
Referências Internacionais: DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM (DUDH): - ARTIGO 17.º, N.º2.
Sumário :

I - Não existe omissão de pronúncia – determinante da nulidade de acórdão – se a Relação, mesmo não tomando conhecimento de todos os argumentos apresentados ou não se pronunciando expressamente quanto aos pedidos formulados, apreciou os problemas fundamentais e necessários à justa decisão da lide.
III - São públicas as águas que pertençam ao Estado e a outros entes públicos e que se destinem ao gozo directo de todos, bem como as águas que nasçam ou caiam em prédios particulares, logo que ultrapassem, abandonadas os limites do prédio onde sejam aproveitadas como águas particulares ao abrigo de um direito e que atinja, directa ou indirectamente o mar.
III - Estando autor e ré de acordo em classificar as águas da albufeira em questão como sendo públicas, tem plena aplicação o art. 58.º da Lei n.º 58/2005 de 29-12 que dispõe que «os recursos hídricos do domínio público são de uso e fruição comum, nomeadamente nas suas funções de recreio, estadia e abeberamento, não estando este uso e fruição sujeito a título de utilização (…)».
IV - Para que o público possa fazer uso e fruição das águas, o art. 21.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, de 15-11, veio dizer que «todas as parcelas provadas de leitos ou margens de águas públicas estão sujeitas às servidões estabelecidas por lei e nomeadamente a uma servidão de uso público, no interesse geral de acesso às águas e de passagem ao longo das águas de pesca, da navegação e da flutuação, quando se trate de águas navegáveis ou flutuáveis …».
V - A lei não consagra nenhuma servidão administrativa de passagem por terreno particular para além da referida em V ou da que concede o direito de passagem ou estacionamento, durante o exercício efectivo da pesca, nos prédios que marginem as águas públicas (Base VII da Lei n.º 2097, de 06-06.1959).
VI - A colisão de direitos – entre o direito subjectivo dos pescadores e o direito ao respeito da propriedade privada – deve ser resolvida de harmonia com o disposto no art. 335.º do CC.
VII - Colocados em confronto o direito de propriedade da ré e a concretização da sua função económica e social (com cultivo e exploração de gado) e os direitos subjectivos dos pescadores – que esporadicamente exercem pesca desportiva –, dúvidas não existem em afirmar que, in casu, se deve considerar superior o direito de propriedade e, como tal, prevalecer sobre os demais direitos dos pescadores.
VIII - O direito de passagem e estacionamento em propriedade alheia, consagrado na lei, prevalece apenas se o direito de propriedade, analisado nas suas vertentes económica e social, não se lhe sobrepuser.


Decisão Texto Integral:


ACÓRDÃO


         Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça:

         A) Relatório:

         AA, com residência na Rua ..., intentou acção popular como acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra Sociedade Agrícola ..., S.A., com sede na Rua .., alegando, em síntese, o seguinte:

A Ré é proprietário da Herdade ..., sita em ... e é servida por um caminho público que sai da Estrada Nacional n.º ..., serve várias propriedades, e termina na Ribeira da ..., servindo outras propriedades para lá dessa ribeira, caminho esse que foi barrado pela Ré com a colocação de uma cancela, fechada a cadeado, em todo o seu comprimento;

Além disso, a Ré com a sua actuação impede o acesso a albufeira de águas púb1icas sita no interior da sua propriedade.

Conclui pedindo que juntos os pareceres administrativos, deverá decidir-se a) pela retirada da cancela a montante e a jusante de forma a permitir-se o acesso de todos os cidadãos às águas da albufeira e da Ribeira da ...;

b) permissão de pescar na albufeira durante todo o dia;

c) retirada do gado e águas da albufeira, bem como do caminho, que devem ser cercados de forma a não pôr em perigo os seus utentes.

A Ré contestou, defendendo-se por excepção e por impugnação.

Por excepção:

Por falta de causa de pedir quanto ao pedido da alínea a), por ininteligibilidade ou falta de causa de pedir quanto ao da alínea b) e por falta de causa de pedir quanto à alínea c), assim sustentando a ineptidão da petição inicial;

Por impugnação:

Negando que o caminho público continue pela propriedade até à Ribeira da ..., antes termina no início da Herdade que se encontra delimitado com um portão, sendo que o cadeado só é colocado durante a noite e para evitar furtos ou danos na propriedade, pelo que as pessoas podem ter acesso à propriedade;

Os caminhos no interior da propriedade são particulares da Ré, inexistindo qualquer caminho que conduza directamente à albufeira ou sequer trilho;

A Ribeira da ... não se situa dentro da propriedade da Ré, antes marca a extrema da mesma, separando-a de propriedades contíguas, sendo possível o acesso a tal local por outros caminhos públicos, como o caminho do Castelo.

Replicou o Autor defendendo a improcedência das excepções e apresentou requerimento autónomo onde requer a litigância de má fé da Ré por alegar factos falsos em multa e indemnização.

Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais, conforme da acta consta, tendo sido proferida sentença que julgando a acção improcedente por não provada, absolveu a Ré de todos os pedidos.

Inconformado recorreu o Autor para o Tribunal da Relação de Évora o qual decidiu negar provimento à apelação.

         Desta decisão recorre o A para o STJ alegando, em conclusão, o seguinte:

         Verifica-se nulidade do aresto, nos termos do art.668ºnº1 d) do Código do Processo Civil (CPC), por terem-se decidido, apenas, questões parcelares dos pedidos e não conjugadas com este como um todo;

         Houve violação da lei de processo por falta de intervenção do MºPº maxime para os efeitos do art.16º da Lei nº83/95 de 31 de Agosto e nº3 do art.72º da LTC;

         Se foram consideradas que as águas são públicas e estão sujeitas a servidões, a acção deveria ter procedido nesta parte, pois as restrições não são impedimentos, não deixando de fazer proceder o pedido;

         O caminho é público e existe servidão administrativa;

         Não se verifica a aplicação dos arts.24ºnº1 e 34º da Constituição da Portuguesa (CRP), que não foram violados;

         A única restrição que se verifica na Base VII da Lei nº2087 de 6/6/1959 é a que dela consta quanto às vedações;

         Aceitar-se na mesma mais restrições, por violação do art.62ºnº1 da CRP, considerando-a inconstitucional parcialmente, é ilegal, pois estando em confronto bens do domínio público e a propriedade privada, prevalecem aqueles face aos arts.5º e 84º da CRP, não existindo colisão de direitos e sendo vedadas restrições ao uso e fruição dos mesmos;

         As Leis ns.54/2005 e 58/2005, respectivamente de 15/11 e 29/12, são aplicáveis ao caso sub judice, tal como o são vários outros diplomas legislativos;

         Verifica-se erro na interpretação e aplicação das normas aplicáveis  e das que deviam ter sido aplicadas e não foram, como a do art.58º da Lei nº58/2005 de 29/10; do art.21ºnº1 da Lei nº54/2005 de 15/11; da Base VII da Lei nº2087 de 6/6/1959; do art.565º do Código Civil (CC)) e do art.27º da Lei nº7/2008 de 15/2; dos arts.13ºnº2 e 17ºnº1 j) da Lei nº103/2009 de 15/5; do art.1384º do CC; dos arts.1543º e segs do CC e dos arts.15º e 18º do Decreto-Lei nº280/2007 de 7/8, todos por má aplicação dos arts.8ºnº3, 9º e 10º do CC;

         Sendo a aplicação conjugada destas normas, no sentido dado de, por elas ser permitida restrições ao uso e fruição de águas públicas, inconstitucional, por violação dos arts.1º, 3º, 5º, 9º, 84º, 110º, 111º e 202º da CRP, por tal originar um “confisco” ou “expropriação” do domínio público em favor de privado, o que implica numa perda de soberania.

         Contra-alegou a R pugnando pela confirmação do acórdão recorrido

***

         Tudo visto,

         Cumpre decidir:

         B) Os Factos:

         A Ré encontra-se registada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa -3.” Secção sob a matrícula n.º 500263663 e dedica-se, além do mais,  criação de gado bovino (alíneas C) e D) dos factos assentes);

Na conservatória do Registo Predial de ... encontra-se descrita sob o n.º 512 a denominada “Herdade das ...”, sita em ..., imóvel que se mostra inscrito no Serviço de Finanças de ... sob o artigo 1.º – Secção N, constando como seu titular a Ré (alíneas A) e B) dos factos assentes);

A herdade identificada em A) é servida por um caminho que sai da EM ... que liga ... (alínea E) dos factos assentes);

Tal caminho começa num lugar chamado “Ponte Primeira” e serve ao longo do seu trajecto de 6 kms várias propriedades (alínea F) dos factos assentes);

As entradas para as referidas propriedades situam-se ora nas bermas do caminho ou em novos caminhos que saem deste por bifurcação (alínea G) dos factos assentes);

Apenas o caminho que termina na entrada da herdade da Ré é mantido e conservado das entidades municipais (resposta ao artigo 27.º da base instrutória);

A Ré colocou um portão em toda a largura da entrada da herdade descrita em A) da matéria considerada assente (resposta ao artigo 1.º da base instrutória);

A Ré colocou um cadeado no portão no início da sua propriedade que, normalmente, se encontra aberto durante o dia, só se trancando quando é necessário transportar gado de um lado para outro da herdade e à noite para evitar furtos ou danos na herdade (resposta aos artigos 3.°,4.°,19.° a 21.° e 34.º da base instrutória);

Têm-se verificado vários furtos e danos na região onde se situa o prédio identificado em A), e propriedades similares, algumas mesmo da Ré, tendo sido furtado gado, alfaias agrícolas e outros bens (alínea M) dos factos assentes);

O caminho identificado em E) é acompanhado, ao longo do seu trajecto, por um riacho cujas águas correm para uma albufeira situada no interior da herdade da Ré identificada em A) (alínea H) dos factos assentes);

A referida albufeira afluem, designadamente, as águas tratadas na estação de tratamento da Câmara Municipal de ... (alínea I) dos factos assentes);

A albufeira referida em H) foi construída pelos anteriores proprietários da herdade da ré com vista a garantir a rega da propriedade e a servir de bebedouro aos animais (resposta ao art.º 33.º da base instrutória);

A Água da Albufeira destina-se à rega da herdade da Ré e possibilita a realização de pesca desportiva (resposta aos artigos 14.º a 16.º da base instrutória);

A actividade de pesca desportiva exercida na albufeira tem um carácter apenas esporádico (resposta ao artigo 32.º da base instrutória);

O gado bravo que a Ré cria no interior da Herdade tem acesso livre às águas da albufeira referida em H), sendo que o mesmo se banha (respostas aos artigos 11.º e 12.º da base instrutória);

O gado criado no interior da herdade da ré, identificada em A), bebe água da albufeira (alínea J) dos factos assentes);

Para aceder à albufeira é possível utilizarem-se vários caminhos particulares que existem no interior da propriedade da Ré, mas dentro da propriedade da Ré não existe qualquer caminho que leve directamente à albufeira, sendo necessário atravessar terras de cultivo ou pasto (respostas aos artigos 22.º a 24.º da base instrutória);

Os caminhos no interior da herdade da Ré foram por ela abertos e mantidos com a finalidade de serem utilizados pelos seus trabalhadores (resposta aos artigos 25.º e 26.º da  base instrutória);

No âmbito da Providência Cautelar que correu termos neste tribunal sob o n.º 279/07.7TBMRA-A, Autor e Ré acordaram provisoriamente o acesso livre à albufeira situada na herdade da Ré às sextas-feiras, sábados, domingos e feriados, durante o dia (alínea L) dos factos assentes);

A Ribeira da ... marca a extrema da herdade, separando-a das propriedades contíguas (resposta ao artigo 28.º da base Instrutória);

E possível aceder à mesma por diversos caminhos situados fora da Herdade da Ré, entre os quais o caminho público que leva ao Castelo (respostas aos artigos 29.º e 30.º da base instrutória);

O caminho referido em 30.º da base instrutória é o actualmente utilizado pela população (resposta ao artigo 31.º da base instrutória).

         C) O Direito:

         Delimitando o thema decidendum tem-se das conclusões do recorrente a existência de três questões: nulidade do aresto, nos termos do art.668ºnº1 d) do Código do Processo Civil (CPC), por se ter decidido, apenas, questões parcelares dos pedidos não conjugadas com este como um todo; violação da lei de processo por falta de intervenção do MºPº maxime para os efeitos do art.16º da Lei nº83/95 de 31 de Agosto e nº3 do art.72º da LTC; erro na interpretação e aplicação das normas aplicáveis  e das que deviam ter sido aplicadas e não foram, como a do art.58º da Lei nº58/2005 de 29/10; do art.21ºnº1 da Lei nº54/2005 de 15/11; da Base VII da Lei nº2087 de 6/6/1959; do art.565º do Código Civil (CC)) e do art.27º da Lei nº7/2008 de 15/2; dos arts.13ºnº2 e 17ºnº1 j) da Lei nº103/2009 de 15/5; do art.1384º do CC; dos arts.1543º e segs do CC e dos arts.15º e 18º do Decreto-Lei nº280/2007 de 7/8, todos por má aplicação dos arts.8ºnº3, 9º e 10º do CC.

         Há omissão de pronúncia quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (art.668ºnº1 d) do CPC).

         A nulidade prevista  na 1ª parte da alínea d) do nº1 do art.668º está directamente relacionada com o comando fixado no nº2 do art.660º do CPC, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

         E o Tribunal deve resolver todas as questões que forem suscitadas pelas partes e não todos os argumentos ou razões por elas invocados.

         O recurso para o STJ é do acórdão da Relação e não das decisões proferidas em primeira instância. Ora do acórdão recorrido não se verifica qualquer omissão de pronúncia uma vez que o Tribunal da Relação apreciou todas as questões ali colocadas pelo recorrente a saber: nulidade da sentença proferida na primeira instância; a existência de caminho público e de servidão predial. O Tribunal da Relação não omitiu pronúncia por não ter atendido os pedidos formulados pelo A na sua petição inicial. Não era isso que estava em causa na apelação e só o estaria se o acórdão da Relação tivesse dado algum provimento ao recurso, não o tendo feito, confirmando a sentença da 1ª instância que julgou a acção improcedente por não provada, não vemos como tenha sido violado o art.668ºnº1 d) do CPC, por o Tribunal não atender os pedidos formulados pelo recorrente.

Não há omissão de pronúncia, mesmo que se não tome conhecimento de todos os argumentos apresentados, ou que não se pronuncie expressamente quanto aos pedidos formulados, desde que se apreciem, como o fez o Tribunal “a quo”, os problemas fundamentais e necessários à justa decisão da lide e, em consequência, se confirme a improcedibilidade da acção.

O Ministério Público, nos termos do art.16º da Lei nº83/95 de 31 de Agosto, fiscaliza a legalidade e representa o Estado quando este for parte na causa, os ausentes, os menores e os demais incapazes. No âmbito da fiscalização da legalidade, o Ministério Público poderá, querendo, substituir-se ao autor em caso de desistência da lide, bem como de transacção ou de comportamentos lesivos dos interesses em causa.

De acordo com o art.72ºnº3 da Lei Orgânica sobre a Organização Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LOOFPTC) o recurso é obrigatório para o Ministério Público quando a norma cuja aplicação haja sido recusada por inconstitucionalidade ou quando se verifiquem os casos previstos nas alíneas g), h) e i) do art.70º da LOOFPTC.

Por um lado, decorre dos autos que o MºPº foi notificado do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação (pag.473) pelo que, tendo dele tomado conhecimento, sempre poderia ter suscitado a existência de qualquer ilegalidade processual. Por outro lado o Tribunal “a quo” não recusou a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade nem aplicou norma já anteriormente julgada inconstitucional pelo que não se tem por verificado o vício de violação da lei de processo invocado pelo recorrente.

Mas mesmo que o MºPº, uma vez notificado, não tivesse agido conforme a lei dispõe, não compete ao Supremo sindicar os seus actos.

No que ao mérito da questão diz respeito entende o A, aqui recorrente, que foram indevidamente interpretadas e aplicadas as normas respeitantes à utilização e fruição de águas púbicas.

Em primeiro lugar poder-se-ía questionar se as águas da albufeira situada no interior da herdade da R, aqui recorrida, a qual foi construída pelos anteriores proprietários da herdade com vista a garantir a rega da propriedade e a servir de bebedouro aos animais, são públicas ou privadas.

Podemos dizer que de uma maneira geral são públicas as águas  que pertençam ao Estado  e a outros entes públicos e que se destinem ao gozo directo de todos. São ainda públicas as águas que nasçam ou caiam em prédios particulares, logo que ultrapassem, abandonadas os limites do prédio onde sejam aproveitadas como águas particulares ao abrigo de um direito e que atinjam directa ou indirectamente o mar.

Quaisquer águas em que se dêem estas condições não podem deixar de se considerar públicas.

Não basta, porém, que um terreno seja público para que a água nele existente se considere pública também. O princípio de que a água tem a mesma natureza do terreno onde brote ou corre não tem aplicação sempre que ela deixe de ser considerada como um acessório do terreno, constituindo de per si objecto de um direito. É assim que em terrenos públicos pode haver águas particulares, do mesmo modo que em prédios particulares pode haver águas que, sendo utilizadas por todos, se devem considerar públicas, ou em relação às quais há uma limitação ao direito de propriedade em virtude de um direito que está no domínio público.

Na individualização das águas públicas, diz o Prof. Guilherme Moreira (in As águas no Direito Civil Português, Livro I, pag.254) devem determinar-se, pois, não só os elementos componentes e acessórios das águas que são como tais consideradas, mas ainda os direitos que, em virtude do uso público, se constituem sobre as águas particulares.

De qualquer forma A e R estão de acordo, nos autos, em classificar as águas da referida albufeira como públicas.

Sendo públicas as águas em causa tem plena aplicação, relativamente a elas, o disposto no art.58º da Lei nº58/2005 de 29 de Dezembro que reza que: “os recursos hídricos do domínio público são de uso e fruição comum, nomeadamente nas suas funções de recreio, estadia e abeberamento , não estando este uso e fruição sujeito a título de utilização…”.

Para que o público possa fazer uso e fruição das águas veio o art.21ºnº1 da Lei nº54/2005 de 15 de Novembro dizer que “todas as parcelas privadas de leitos ou margens de águas públicas estão sujeitas às servidões estabelecidas por lei e nomeadamente a uma servidão de uso público, no interesse geral de acesso às águas e de passagem ao longo das águas da pesca, da navegação e da flutuação, quando se trate de águas navegáveis ou flutuáveis…”.

Mas as servidões previstas no artigo transcrito restringem-se às margens de águas públicas, entendendo-se por margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas a qual para as não navegáveis ou flutuáveis tem a largura de 10 metros que se conta a partir do limite do leito (art.11ºns.1, 4 e 6 da citada Lei nº54/2005).

A lei não consagra nenhuma servidão administrativa de passagem por terreno particular para além das previstas para as margens das águas, ou da que parece decorrer da  Base VII  da Lei nº2097 de 6 de Junho de 1959 que concede o direito de passagem e estacionamento, durante o exercício efectivo da pesca, nos prédios que marginem as águas públicas. Só que, quanto a esta última, tem a mesma de ser compaginada com os demais incisivos constitucionais e legais do direito de propriedade.

O art.62º da Constituição da República Portuguesa (CRP)  dispõe que a todos é garantido o direito de propriedade privada e o Código Civil no art.1302º determina qual o objecto do direito de propriedade e no art.1305º qual o conteúdo desse direito

Como bem se refere no acórdão da Relação, uma interpretação meramente literal e restritiva do preceito legal contido na Base VII tornaria esta inconstitucional.

O direito de propriedade tal como está concebido no art.62ºnº1 da CRP tem que ser apercebido quer num contexto imediato e mais próximo que o correlaciona com outros tipos de direitos [como o direito ao trabalho, o direito à habitação ou o direito ao ambiente (arts.58º e segs. da CRP)] quer num contexto mais vasto que o correlaciona com a realização da democracia económica, social e cultural (art.2º da CRP).

Em primeiro lugar, consignando a propriedade privada, a Constituição, garante o direito de apropriação, o direito de aquisição de bens ou, mais amplamente, de direitos patrimoniais pelos particulares. Os particulares sejam pessoas singulares ou colectivas, gozam do direito de ter bens em propriedade. As pessoas, assim como têm direitos de liberdade, de associação ou de defesa, têm também o direito de ter coisas ou direitos de significado económico. Neste sentido o direito de propriedade, direito real máximo, é uma garantia institucional e um direito fundamental.

Por outro lado, da circunstância de o art.62º da CRP não estabelecer restrições explícitas à propriedade privada não pode extrair-se que elas sejam vedadas.

Qualquer Constituição não imbuída de um espírito liberal radical tem de admitir que a lei declare a existência de restrições ao direito de propriedade, nomeadamente, as que possam advir da constituição de servidões administrativas. Só que tais restrições como a que decorre da Base VII da Lei nº2097, não têm carácter absoluto: por lado, a própria Base em apreço estabelece como restrição aos pescadores no acesso à propriedade privada para pescar o respeito pelas vedações; por outro lado, quaisquer restrições impostas têm de respeitar o feixe de regras do art.18º da CRP. Acresce que a restrição ao direito de propriedade tal como vem concebida na mencionada Base VII não pode colidir com a função económica que a propriedade realiza nem com o direito que qualquer pessoa tem de não ser privada de um direito patrimonial que esteja na sua esfera (art.17ºnº2 da Declaração Universal) ou arbitrariamente condicionada no seu exercício.

È com este sentido que deve ser interpretada a Base em apreço, sendo que a colisão de direitos (o direito subjectivo dos pescadores e o direito ao respeito da propriedade privada) deve ser resolvida de harmonia com o disposto no art.335º do CC.

Resulta da matéria dada como provada que a R colocou um portão em toda a largura da entrada da herdade e que colocou um cadeado no portão no início da sua propriedade que, normalmente se encontra aberto durante o dia, só se trancando quando é necessário transportar gado de um lado para o outro da herdade e à noite para evitar furtos, sendo certo que se tem verificado furtos e danos quer na região quer mesmo no interior da herdade da R

A matéria de facto descrita legitima a actuação da R em defesa da sua propriedade e demonstra que o acesso dos pescadores à albufeira não se encontra de todo impedido como pretende o A. Aliás não ficou provada a existência de qualquer caminho público no interior da propriedade da R ( o caminho público existente termina à entrada da herdade da R) como bem se analisou no acórdão recorrido, cuja fundamentação sufragamos, nem há lugar à existência de qualquer atravessadouro reconhecido nos termos do art.1384º do CC. Para que tal fosse considerado necessário seria estar provado, o que não se verifica, a posse imemorial do atravessadouro que se dirigisse a ponte ou fonte de manifesta utilidade. Para além da imemorialidade que não se demonstrou, é inexistente a fonte de manifesta utilidade, entendendo-se por tal o lugar em que a água é aproveitada para quaisquer usos domésticos, ou utilizada ali mesmo ou colhida em vasilhas e levada para casa.

Acresce, e tal resulta da matéria de facto, que é possível aceder à albufeira por diversos caminhos situados fora da herdade da R, pelo que o acesso às águas públicas por parte da população em geral não está de todo vedado

facto de o gado da herdade se servir das águas da albufeira não significa nenhuma apropriação privada das águas do domínio púbico. De notar que a albufeira foi criada pelos anteriores proprietários da herdade para garantir a rega e servir de bebedouro aos animais. A albufeira tem para a R um interesse económico primordial quer no que diz respeito ao cultivo quer no que tange à criação do gado.

Colocados em confronto o direito de propriedade da R e a concretização da sua função económica e social (com cultivo e exploração de gado) e os direitos subjectivos dos pescadores que esporadicamente exercem a pesca desportiva, não temos dúvida, perante direitos de espécie diferente, em afirmar que se deve considerar superior, in casu, o direito de propriedade e como tal prevalecer sobre os demais direitos dos pescadores, nos termos do art.335ºnº2 do CC pelo que a interpretação da Base VII da Lei nº2097 de 6 de Junho de 1959 tem, necessariamente, de se orientar pela solução dada à colisão de direitos existente. O direito de passagem e estacionamento em propriedade alheia consagrado na lei prevalece se o direito de propriedade analisado nas suas vertentes económica e social não se lhe sobrepuser.

Finalmente, não se mostram violados os normativos indicados pelo recorrente, nomeadamente os ínsitos nos arts.15º e 18º do Decreto-Lei nº280/2007 de 7 de Agosto por não estarmos perante qualquer ofensa à inalienabilidade dos imóveis do domínio público ou à titularidade de tais imóveis. A interpretação dada à Base VII da Lei nº2097, numa situação de colisão de direitos não implica a inconstitucionalidade alegada pelo recorrente por não se verificar a violação de quaisquer dos artigos da CRP que o mesmo invoca.

O facto da R ter posto um portão na entrada da sua propriedade não gera nenhuma situação de confisco ou de expropriação de bens do domínio público em favor de privado. Como se referiu supra, não ficou o acesso às águas da albufeira vedado ao público quer porque o dito portão não impede completamente o acesso quer porque o mesmo pode ser realizado por outro caminho.

Assim, nenhuma razão assiste ao recorrente.

Nesta conformidade, por todo o exposto, acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça, em negar revista confirmando o douto acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Orlando Afonso (Relator)
Távora Victor
Sérgio Poças