Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
27/14.5T8CSC.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: RIBEIRO CARDOSO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS A CARGO DO RECORRENTE
Data do Acordão: 05/23/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ÓNUS A CARGO DO RECORRENTE QUE IMPUGNE A DECISÃO RELATIVA À MATÉRIA DE FACTO.
Doutrina:
-Aníbal de Castro, Impugnação das Decisões Judiciais, 2ª ed., pág. 111;
-Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 247.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 640.º, N.ºS 1, ALÍNEA B) E 2, ALÍNEA A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 05-04-1989, IN BMJ 386/446;
- DE 05-04-1989, IN BMJ, 386º/446;
- DE 23-03-1990, IN AJ, 7º/90, PÁG. 20;
- DE 31-01-1991, IN BMJ 403º/382;
- DE 12-12-1995, IN CJ, 1995, III/156;
- DE 18-06-1996, CJ, 1996, II/143;
- DE 09-07-2015, PROCESSO N.º 284040/11.OYIPRT.G1.S1;
- DE 29-09-2015, PROCESSO N.º 233/09;
- DE 14-07-2016, PROCESSO N.º 1183/09.0TTGMR.G1.S1;
- DE 22-02-2017, PROCESSO N.º 988/08.3TTVNG.P4.S1.



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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


- DE 07-03-1985, IN BMJ, 347º/477.
Sumário :
I - No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, é exigido ao Recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorretamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, enuncie a decisão alternativa que propõe e, tratando-se de prova gravada, que indique com exatidão as passagens da gravação em que funda a sua discordância com o decidido.

II – Tendo a recorrente omitido a indicação precisa do início e do termo das concretas passagens da gravação visadas, mas tendo no corpo das alegações procedido à transcrição dos excertos dos depoimentos que pretende ver reapreciados, cumpriu suficientemente o ónus imposto pelo art. 640º, nºs 1, al. b) e 2, al. a) do Código de Processo Civil.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça ([1]) ([2])

1 - RELATÓRIO

AA intentou a presente ação declarativa com processo comum contra o CENTRO HOSPITALAR ..., E.P.E., pedindo que se:

1) declare a existência de um contrato de trabalho entre A. e R., com início em 20 de janeiro de 1998, para o exercício de funções de médica do Serviço de Urgência, com horário mínimo de 14 horas semanais e remuneração de € 23,00, por hora de serviço diurno;

2) julgue ilícita a cessação do referido contrato por este efetuada através de comunicação escrita de 26.08.2013 com efeitos em 1.10.2013, devendo-lhe em consequência ser reintegrada como trabalhadora do R., com todas as consequências legais;

3) condene o mesmo a pagar-lhe a quantia já liquidada de € 17.834,99 (sendo € 14.133,24 a título de subsídios de férias e de Natal vencidos de 2009 a 2014 e € 3.701,75 de diferenças salariais vencidas até 30.5.2014) e ainda as diferenças salariais vincendas a partir de junho de 2014.

Como fundamento alegou que foi admitida ao serviço do Hospital de..., em 20.01.1998, para aí exercer funções no serviço de urgência, tendo em 1.09.2000 sido celebrado um contrato escrito denominado 'contrato de prestação de serviço em regime de avença', o qual foi sucessivamente renovado até 1 de maio de 2006, data em que foi celebrado novo contrato designado 'contrato de prestação de serviços em regime de tarefa', tacitamente renovado até 1 de outubro de 2013, data em que produziu efeitos a cessação do contrato, comunicada pela ré à autora em meados de setembro de 2013; que após a referida data foi novamente admitida a prestar serviço à R., embora com uma redução unilateral da retribuição.

Citado, o R. contestou, por exceção, invocando a incompetência absoluta do tribunal, bem como a exceção da nulidade do alegado contrato de trabalho, por violação do regime jurídico de vinculação à administração pública vigente em 1998 e, por impugnação, sustentando em síntese que a relação entre as partes não consubstanciava um contrato de trabalho.

A autora respondeu às exceções, pugnando pela respetiva improcedência.

Saneado o processo, no qual se conheceu e se julgou improcedente a exceção da incompetência do tribunal, realizou-se a audiência de julgamento e foi proferida a sentença na qual julgou a ação improcedente e se absolveu o R. do pedido.

Inconformada, a A. interpôs recurso, pedindo, para além do mais a alteração da decisão sobre a matéria de facto, tendo por base os depoimentos gravados e os documentos juntos aos autos.

A Relação escusou-se de apreciar o recurso no que tange à reapreciação da matéria de facto (com declaração de voto discordante) por entender não terem sido cabalmente cumpridos os ónus impostos pelo art. 640º, nº 1, al. b) e nº 2, al. a) do CPC, tendo sido proferida a seguinte deliberação:

«Termos em que se acorda negar provimento à apelação e manter a sentença recorrida.

Custas pela apelante (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais)».

A A., de novo inconformada, recorre agora de revista para este Supremo Tribunal, peticionando “a remessa dos autos à Relação para que seja apreciada a impugnação da decisão de facto e, em seguida, proceder à apreciação das restantes questões suscitadas na apelação”.

O recorrido contra-alegou pugnando pela inadmissibilidade do recurso e pela manutenção do julgado.

Por despacho do aqui relator, que não foi objeto de reclamação, foi considerado que, tendo a Relação rejeitado o recurso no que tange à reapreciação da prova, não existia dupla conforme, e o recurso foi recebido.

Cumprido o disposto no art. 87º, nº 3 do CPT, a Exmª Procuradora-‑Geral‑Adjunta emitiu douto parecer no sentido da procedência da revista.

Notificadas as partes, apenas o recorrido respondeu reiterando o que invocara nas contra-alegações no sentido na negação da revista.

Formulou a recorrente as seguintes conclusões, as quais, como se sabe, delimitam o objeto do recurso ([3]) e, consequentemente, o âmbito do conhecimento deste tribunal:

1. O artigo 640°, n° 2., a) do Código de Processo Civil ao impor ao recorrente que indique com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, tem de ser interpretado de acordo com os princípios previstos no artigo 9º do Código Civil, não sendo lícito ao intérprete sustentar um sentido que não tenha um mínimo de correspondência verbal na norma.

2. Os termos em que a norma está redigida não impõem ao recorrente que indique a localização temporal do início e do fim da passagem da gravação, pois se essa fosse a intenção do legislador ter-se-ia expresso em termos análogos aos constantes do artigo 155°, nº 1. do Código de Processo Civil, onde depois de referir que a audiência é gravada, a norma claramente afirma que da acta constará o início e o termo de cada depoimento.

3. Tendo a recorrente transcrito as partes do depoimento das testemunhas que identifica, sobre cada facto objecto de impugnação e que justificam resposta diversa do tribunal, deve ter-se por cumprido o ónus previsto no citado artigo 640º, nº 2., a).

4. Tendo sido ouvidas três testemunhas na primeira sessão de julgamento, com uma duração de 2 horas e as restantes 7 na segunda sessão, com uma duração total de 3 horas, nenhuma dificuldade existe na localização das transcritas passagens já que estamos perante depoimentos de curta duração.

5. A decisão recorrida, ao não conhecer da impugnação da matéria de facto, negando, em consequência provimento à apelação, incorreu em errada interpretação e aplicação do artigo 640º, nº 2., a) do Código de Processo Civil, sustentando uma interpretação contrária às regras previstas no artigo 9° do Código Civil, e ao princípio da proporcionalidade.”

O recorrido formulou nas contra-alegações as seguintes conclusões:

1.° O presente recurso de revista foi interposto pela Recorrente do douto e bem elaborado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 21.12.2017, nos termos do qual o douto Tribunal decidiu negar provimento à apelação e manter a sentença recorrida.

2.° A Recorrente configura o presente recurso como de revista, à luz do artigo 671.º, n.º 1, do CPC, porém tal não é admissível à luz das normais aplicáveis.

3.° De forma incorreta e bem percebendo que a decisão era irrecorrível, nos termos do artigo 671.º, n.º 3 do CPC, vem a Recorrente apresentar o seu alegado recurso de revista.

4.° A Recorrente percebeu - e bem - que não poderia vir recorrer excecionalmente, ao abrigo do 672.º do CPC, pelo que interpôs, embora não sendo possível, o presente recurso alegadamente de revista.

5.° Foram assim manifestamente ignorados os exatos termos da Declaração de Voto do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.12.2017, a qual refere expressamente a concordância com a decisão final global, não obstante o intróito apresentando, pelo que aquela remete a inserção da situação deste recurso como uma situação enquadrável no n.º 3 do artigo 671° do CPC, ao que lhe restaria ponderar a revista excecional, o que não logrou fazer a Recorrente.

6.° Assim, é notório e evidente que o Acórdão ora recorrido se confirmou a decisão anterior sem voto vencido para os efeitos a Recorrente pretende aproveitar pois que sem essa tentativa que deve improceder, não teria possibilidade legal de recurso. O Acórdão posto em crise sequer se pronunciou, concretamente, sobre o mérito da causa, tendo-se limitado a confirmar a decisão proferida anteriormente, colocando o foco no não cumprimento, pela Recorrente, do ónus processual previsto no artigo 640.º do CPC.

7.° Face ao exposto, a interposição de um recurso de revista ao abrigo do n.º 1 do artigo 671.º do CPC não é admissível in casu requerendo-se, por isso, o desentranhamento das alegações juntas pela Recorrente e, bem assim, a rejeição do presente recurso.

8.° Sem prescindir, caso se venha a considerar procedente a interposição do recurso de revista, o que só por mera hipótese e mero dever de patrocínio se pondera e acautela, terá, ainda assim, que ser obrigatoriamente indeferido o peticionado pela Recorrente, dado que o não conhecimento da impugnação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que negou provimento à apelação, não incorreu em errada interpretação do artigo 640.º, n.º 2, alínea a) do CPC, devendo deste modo confirmar-se a decisão constante douto Acórdão recorrido.

9.° Do teor do artigo 640.º do CPC resulta que aquando da impugnação sobre a matéria de facto ao Recorrente cabe especificar, sob pena de rejeição "os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas".

10.° A Recorrente não cumpriu, as regras processuais previstas e impostas para o recurso sobre a matéria de facto, pois, tendo disponível a prova gravada, impõe a alínea b) do n.º 1 e o n.º 2, ambos do artigo 640.º do CPC, caberia à Recorrente indicar com precisão ("exatidão") as passagens da gravação, em que funda ou, proceder à transcrição dos depoimentos das testemunhas que, no seu entender, dariam uma diferente decisão da matéria de facto.

11.° Não foram identificadas e indicadas, com exatidão exigida, as passagens da gravação em que a Recorrente fundou o seu recurso de apelação, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte.

12.° Não foram respeitados pela Recorrente os ónus que possibilitam o exercício do contraditório à contraparte e ainda a facilitar ao Tribunal de recurso a concreta identificação da matéria impugnada.

13.° O aditamento de 10 dias ao prazo ordinário para alegar tem por base a previsão do tempo bastante para que se possa averiguar a prova gravada, não tendo tal sido respeitado pela Recorrente, tendo o recurso de apelação sido extemporâneo.

14.° A invocação da Recorrente no sentido em que atesta que "não pode, assim, aceitar-se que existia qualquer dificuldade em localizar as passagens dos depoimentos escritos" não pode proceder, pois, com o devido respeito tal não é verdade, pois as sessões de julgamento do processo em causa comportaram diversos depoimentos testemunhais, longos e maioritariamente por videoconferência pelo que a sua audição e transcrição afigura-se como um processo demorado, laborioso, monótono e difícil, que só com um labor desmedido e desproporcional poderia levar à reapreciação da prova pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

15.° Não é razoável exigir ao Tribunal da Relação a confirmação integral da correspondência - e até veracidade - dos depoimentos testemunhais invocados. Sem a indicação exata e precisa por parte de quem interpõe o recurso sobre a matéria de facto a tarefa jurisprudencial fica altamente dificultada. Não assiste à Recorrente utilizar critérios e que só indica a posteriori quando viu a sua alegação posta em crise, como sejam as generalidades de curta duração de depoimentos, sessão de julgamentos ou outros pois que mal andaríamos se de forma estanque não se atendesse a cada situação concreta e não seja o tribunal a decidir quanto a tais eventuais critérios.

16.° Por outro lado, a comparação com o artigo 155.º, n.º 1 do CPC levada a cabo pela Recorrente é incompreensível, tendo em conta que este versa sobre as regras dos atos processuais em geral, sendo a referência ao artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil despropositada.

17.° Nos termos aqui defendidos, veja-se, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16.03.2016, processo n.º 1598/14.1T8LRA.C1 "sempre que o recorrente impugne a decisão sobre a matéria de facto, deve observar o ónus de impugnação previsto no art. 640º do nCPC, nomeadamente deve indicar as exatas passagens da gravação dos depoimentos testemunhais em que se baseia para discordar do decidido, sob pena de rejeição do recurso quanto à reapreciação da prova".

18.° E ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.02.2015, relevante para a causa dos autos, que afirma que "I - Não cumpre o ónus da impugnação da decisão da questão de facto, o recorrente que não procede à indicação exacta, precisa, das passagens da gravação em que o fundamenta, limitando-se a indicar o início e o terminus dos depoimentos e a proceder à transcrição parcial deles. II - A insatisfação desse ónus não é suprível através do convite ao aperfeiçoamento da alegação".

2 – REGIME JURÍDICO ADJETIVO APLICÁVEL

A ação foi intentada no dia 19.09.2014.

O acórdão recorrido foi proferido em 21.12.2017.

É assim aplicável o Código de Processo Civil (CPC) na versão atual, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

O Código de Processo do Trabalho (CPT), na versão anterior à que entrou em vigor em 1.01.2010.

3 - ÂMBITO DO RECURSO – DELIMITAÇÃO

Face às conclusões formuladas a questão submetida à nossa apreciação consiste em saber se foram cumpridos pela recorrente os ónus estabelecidos no art. 640º, nº 1, al. b) e nº 2, al. a) do CPC.

Tendo em conta a questão proposta torna-se desnecessária a consignação da matéria de facto que as instâncias declararam provada, pelo que passaremos de imediato à apreciação do objeto da revista.

4 - O DIREITO

Vejamos então a referida questão que constitui o objeto do recurso, mas não sem que antes se esclareça que este tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações e conclusões, mas apenas as questões suscitadas ([4]).

Determina o art. 640º do CPC:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Aplicando este preceito ao caso dos autos referiu a Relação:

«Note-se que estes ónus tanto se destinam a possibilitar à contra-parte o exercício do contraditório, como também a facilitar ao tribunal de recurso a identificação da matéria assim impugnada, a sua fundamentação e o sentido da decisão que deve ser proferida no recurso, sobretudo quando é sabido que em geral os depoimentos testemunhais ou as declarações das partes ou de peritos tendem a ser extensos e a incidir sobre diversos factos mas o seu relevo para os recursos a circunscrever-se a aspectos pontuais e pertinentes a este ou àquele facto nele impugnado. De outro modo, a única forma de determinar da realidade dessas transcrições seria o tribunal de recurso proceder à audição integral de cada um dos depoimentos a que respeitam, o que manifestamente contraria a letra e o espírito da exigência legal da sua delimitação segundo o gravado no suporte digital, pelo que tal referência seria uma pura inutilidade.

E é neste ponto que estamos no recurso: no que concerne aos depoimentos das testemunhas que a recorrente pretendeu nele relevar, a apelante não especificou nenhuma passagem, por referência ao suporte digital em que foram gravados, tanto na alegação como nas conclusões, embora naquela tenha feito o que refere como sendo transcrições de algumas passagens desses depoimentos. Mas que, a propósito, o apelado refere não poder confirmar a sua realidade precisamente porque a apelante as não especificou nos termos legais.

Assim sendo, dado que a recorrente não respeitou os ónus estabelecidos para a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, naturalmente que dela se não poderá conhecer. E por isso também o não poderemos fazer com base apenas nos outros meios de prova indicados nas conclusões do recurso, vale dizer, os diversos documentos aí referidos pela recorrente, uma vez que a sentença recorrida e as próprias conclusões do recurso, como de resto delas flui ex abundanti, para além desses meios de prova convocou depoimentos testemunhais que não podem aqui ser considerados.”

Ou seja, entendeu a Relação que a recorrente cumpriu cabalmente o estipulado nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 640º do CPC, não tendo, todavia, observado o estabelecido nas alíneas b) do nº 1 e a) do nº 2, porquanto não indicou com exatidão as passagens da gravação em que se funda a sua discordância, limitando-se a consignar partes dos depoimentos que refere como sendo transcrições “[m]as que, a propósito, o apelado refere não poder confirmar a sua realidade precisamente porque a apelante as não especificou”.

Vejamos.

Este Supremo já se pronunciou, por diversas vezes, sobre os requisitos a observar pelo recorrente quando o recurso tenha por objeto a reapreciação da prova gravada, e no sentido de que o recurso não deve ser rejeitado sempre que o recorrente indique nas alegações os concretos pontos de facto que pretende ver alterados, o sentido dessa alteração e os concretos meios de prova que impõem a alteração da decisão no sentido pretendido, assim cumprindo o estabelecido no nº 1 do preceito em análise.

Quanto à indicação exata das passagens da gravação em que se funda a sua discordância [nº 2, al. a)] tem entendido este Supremo que não deve adotar‑se uma posição excessivamente formal, considerando que é dado cumprimento ao ónus em causa, quando o recorrente faça uma indicação que possibilite à Relação o acesso, sem dificuldade, ao excerto da prova visado, designadamente com a transcrição dessas concretas passagens, ainda que omitindo a indicação do respetivo início e termo, por referência à gravação.

Vejam-se os seguintes acórdãos:

- Ac. STJ de 09/07/2015, proc. nº 284040/11.OYIPRT.G1.S1, 7ª Secção (Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza):

(…)

«IV – Tendo o apelante, nas suas alegações de recurso, (i) identificado os pontos de facto que considerava mal julgados, por referência aos quesitos da base instrutória, (ii) indicado o depoimento das testemunhas, que entendeu mal valorados, (iii) fornecido a indicação da sessão na qual foram prestados e do início e termo dos mesmos, apresentado a sua transcrição, (iv) bem como referido qual o resultado probatório que nos seu entender deveria ter tido lugar, relativamente a cada quesito e meio de prova, tanto bastava para que a Relação tivesse procedido à reapreciação da matéria de facto, ao invés de a rejeitar».

- Ac. STJ, datado de 29/09/2015, P. nº 233/09 (Relator: Lopes do Rego):

«1. Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação – que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do nº 1 do art. 640º do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do art. 640º, nº2, al. a) do CPC).

2. Este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento – como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento, tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso».

Acs. STJ, datado de 14/07/2016, P. nº 1183/09.0TTGMR.G1.S1 ([5]) e datado de 22.02.2017, proc. n.º 988/08.3TTVNG.P4.S1 (deste mesmo coletivo):

«1 - No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, é exigido ao Recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorretamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, enuncie a decisão alternativa que propõe e, tratando-se de prova gravada, que indique com exatidão as passagens da gravação em que funda a sua discordância com o decidido.

2 – Tendo o recorrente omitido nas alegações a indicação precisa do início e termo das concretas passagens da gravação visadas, mas tendo no corpo das alegações procedido à transcrição dos excertos dos depoimentos, que pretende ver reapreciados, para além de ter juntado a respetiva transcrição integral, cumpriu suficientemente o ónus imposto pelo art. 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil.»

No caso dos autos, é certo que a recorrente não procedeu à indicação numérica e precisa do princípio e do fim das passagens que, no seu entendimento, foram incorretamente apreciadas pela 1ª instância. Todavia, transcreveu no corpo das alegações os excertos dos depoimentos que justificavam a sua discordância e constituíam, a seu ver, o fundamento para ser alterada a decisão sobre a matéria de facto.

Para além disso, a transcrição foi feita por referência a cada um dos factos visados.

A indicação precisa do início e termo das concretas passagens destina-se, tão só, a simplificar a tarefa da Relação na reapreciação da prova gravada, não só chamando a atenção para aquela parte do depoimento, como tornando mais fácil e célere a respetiva localização na gravação.

E se é verdade que essa indicação precisa é de primordial importância quando estão em causa depoimentos longos, já a mesma se afigura pouco relevante no caso de depoimentos de curta duração, como no caso dos autos.

Por outro lado, impondo-se, atualmente, que a Relação crie a sua própria convicção relativamente à prova produzida e à matéria de facto impugnada no recurso, cremos que tal desiderato dificilmente se atingirá com a mera reapreciação de excertos dos depoimentos, o que não significa que se transforme ou deva transformar a reapreciação da prova num novo julgamento, que nunca será, uma vez que a mesma se limita aos pontos de facto indicados pelo recorrente. Não podem, aliás, olvidar-se os poderes/deveres de averiguação oficiosa conferidos pela al. b) do nº 2 do art. 640º do CPC e que apenas são alcançáveis se a Relação não se limitar a uma audição parcial e, necessariamente, truncada dos depoimentos.

Como é referido na “exposição dos motivos” da Lei 41/2013 de 26.06 “…cuidou-se de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada. Para além de manter os poderes cassatórios…, são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material. Com efeito, se os elementos constantes do processo, incluindo a gravação da prova produzida na audiência final, não forem suficientes para a Relação formar a sua própria convicção sobre os pontos da matéria de facto impugnados, tem a possibilidade, mesmo oficiosamente, de ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento e de ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova.”

É certo que o recorrido alegou não saber se a transcrição feita pela recorrente era fidedigna pelo facto de esta não indicar o início e o fim das passagens da gravação transcrita.

Mas este argumento carece de consistência.

Efetivamente, como se vê das contra-alegações que apresentou na apelação, o mesmo, em cumprimento do estabelecido no art. 640º, nº 2, al. b) do CPC, procedeu à transcrição das passagens dos depoimentos que, no seu entendimento infirmavam as conclusões da recorrente e fê-lo indicando o início e o fim das respetivas passagens da gravação.

É assim evidente que procedeu à audição da gravação dos depoimentos (cinco das testemunhas que indica são também indicadas pela recorrente), com o que, seguramente, se inteirou da correção das transcrições levada a cabo pela recorrente. De outro modo não colocaria a questão da fidedignidade em termos de dúvida mas de certeza.

Acresce que a recorrente pede a alteração do facto nº 29, com base no “teor dos documentos juntos aos autos, conforma dado como provado sob nº 4 e 11” e não nos depoimentos.

Do mesmo passo pede o aditamento de um novo facto com o nº 38 com alicerce nos diplomas legais que indica e na factualidade provada sob o nº 22.

Por conseguinte, sempre teria que ser apreciada a pretendida alteração ao facto nº 29 e o referido aditamento.

Em suma, pese embora não tenha indicado o início e o termo de cada uma das passagens da gravação em que fundamenta a sua discordância quando ao decidido e que pretende ver reapreciado pela Relação, ao proceder à transcrição desses excertos, cumpriu suficientemente os requisitos estabelecidos nas alíneas b) do nº 1 e a) do nº 2 do art. 640º do CPC, motivo pelo qual a rejeição do recurso de apelação no tocante à reapreciação da matéria de facto não pode ser acolhida, impondo-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para reapreciação da prova de acordo com o invocado pela recorrente.

5. DECISÃO

Pelo exposto delibera-se:

1 – Conceder a revista e revogar o acórdão recorrido na parte em que rejeitou a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

2 – Determinar a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para conhecimento do recurso de apelação no que concerne à reapreciação da decisão sobre a matéria de facto nos termos impugnados, com posterior conhecimento das questões jurídicas suscitadas no recurso.

3 – Condenar nas custas a parte vencida a final.

Anexa-se o sumário do acórdão.

Lisboa, 23.05.2018

Ribeiro Cardoso (Relator)

Ferreira Pinto

Chambel Mourisco

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[1] Relatório elaborado tendo por matriz o constante no acórdão recorrido.
[2] Acórdão redigido segundo a nova ortografia com exceção das transcrições (em itálico e ou entre aspas) em que se manteve a original.
[3] Cfr. 635º, n.º 3 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil, os Acs. STJ de 5/4/89, in BMJ 386/446, de 23/3/90, in AJ, 7º/90, pág. 20, de 12/12/95, in CJ, 1995, III/156, de 18/6/96, CJ, 1996, II/143, de 31/1/91, in BMJ 403º/382, o ac RE de 7/3/85, in BMJ, 347º/477, Rodrigues Bastos, in “NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL”, vol. III, pág. 247 e Aníbal de Castro, in “IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS”, 2ª ed., pág. 111.    
[4] Ac. STJ de 5/4/89, in BMJ, 386º/446 e Rodrigues Bastos, in NOTAS AO Código de Processo CivIL, Vol. III, pág. 247, ex vi dos arts. 663º, n.º 2, 608º, n.º 2 e 679º do CPC.
[5] Relatado pelo também aqui relator.