Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:010/21.4BCLSB
Data do Acordão:01/27/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ADRIANO CUNHA
Descritores:TRIBUNAL ARBITRAL
JURISDIÇÃO
PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
PROCESSO SANCIONATÓRIO
ACESSO AOS TRIBUNAIS
DIREITO DE AUDIÊNCIA E DEFESA
Sumário:I - Embora esteja excluída da jurisdição do Tribunal Arbitral do Desporto, nos termos do nº 6 do art. 4º da Lei do TAD, por ser exclusiva da justiça desportiva, “a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva”, esta exclusão não abarca, por imperativo da garantia constitucional do direito de acesso aos tribunais (art. 20º nº 1 da CRP), decisões que afetem direitos fundamentais, constitucionalmente garantidos.
II - É o caso relativamente a questão de alegada preterição dos direitos de audiência e defesa garantidos ao arguido em processo sancionatório pelo nº 10 do art. 32º da CRP.
III - Se, no caso, ao arguido não foram concedidos os direitos de audiência e defesa no seguimento de efetivo conhecimento dos relatórios e autos que consubstanciavam a “acusação” contra si formulada e antes da prolação da decisão sancionatória, o procedimento é nulo desde essa fase, por preterição dos aludidos direitos constitucionalmente garantidos.
Nº Convencional:JSTA00071368
Nº do Documento:SA120220127010/21
Data de Entrada:12/15/2021
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:A...............
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:RECURSO DE REVISTA
Objecto:ACÓRDÃO TCA SUL
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIREITO DE ACESSO AOS TRIBUNAIS
Legislação Nacional:- Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, Lei nº 74/2013, de 6/9, alterada pela Lei nº 33/2014, de 16/6 (art. 4º nº 6) E CRP (arts. 20º nº 1 e 32º nº 10).
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:


I – RELATÓRIO

1. A “FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL (FPF)” veio interpor o presente recurso jurisdicional de revista do Acórdão proferido em 7/7/2021 pelo Tribunal Central Administrativo Sul, “TCAS” (cfr. fls. 1212 e segs. SITAF), o qual, negando provimento ao recurso que interpusera da decisão proferida pelo Presidente do “TCAS” em 1/2/2021 (cfr. fls. 677 e segs. SITAF), confirmou esta decisão que julgara procedente a presente providência cautelar, peticionada pelo Requerente A……………..,, de suspensão de eficácia da decisão tomada, em 27/1/2021, pelo Conselho de Disciplina da Requerida “FPF”, posteriormente confirmada pelo Pleno do mesmo Conselho de Disciplina, em 29/1/2021, que impôs ao Requerente a sanção disciplinar de um jogo de suspensão e, acessoriamente, a sanção de multa no montante de 153,00€.

2. A Requerida “FPF”, ora Recorrente, terminou as suas alegações neste recurso de revista com as seguintes conclusões (cfr. fls. 1243 e segs. SITAF):

«1. O recurso ora interposto tem por objeto o Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, em 7 de julho de 2021, que decidiu manter a decisão sumária proferida pelo Presidente do TCA Sul em sede de medida cautelar requerida ao abrigo do disposto na Lei do TAD.
2. Entende a Recorrente que esta matéria tem complexidade jurídica que justifica a intervenção do STA bem como se trata de questão com relevância social assinalável.
3. No Acórdão recorrido, por via da confirmação da decisão proferida pelo Presidente do TCA Sul, é colocada em crise o sistema de resolução de litígios desportivos existente pelo menos desde a Lei n.º 1/90, de 13 de Janeiro (Lei de Bases do Sistema Desportivo, no caso o seu artigo 25.º), na qual foram delimitadas as esferas de competência entre tribunais estatais e os órgãos internos das federações desportivas, ditos órgãos jurisdicionais federativos, tendo sido conhecida questão estritamente desportiva.
4. O facto de ter sido proferida decisão matéria estritamente desportiva abre um perigoso precedente e potencia a tentativa de outros agentes desportivos em replicá-la nos seus casos concretos, trazendo para estes Tribunais Superiores a discussão de matérias – por exemplo, se um árbitro agiu bem ao admoestar o jogador com cartão amarelo, ou não – que claramente não têm dignidade para serem apreciadas por esta categoria de instâncias jurisdicionais.
5. A circunstância de estarmos perante decisão proferida no âmbito cautelar em nada belisca este fundado receio, porquanto o recurso ao mecanismo previsto no n.º 7 do artigo 41.º da Lei do TAD pode, com relativa facilidade, e dado este perigoso precedente, ser utilizado com frequência pelos agentes desportivos em casos semelhantes.
6. Não se ignora que as questões levantadas no presente recurso são complexas do ponto de vista jurídico e implicam um profundo conhecimento das especificidades da realidade e do direito desportivo, o que, salvo o devido respeito, pareceu falhar ao Exmo. Sr. Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul e ao coletivo de juízes do TCA Sul que apreciou o recurso interposto, tanto que subtilmente ignoraram o tema major aqui em causa nos autos.
7. A questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros. Apenas a título de exemplo, no mandato de 2016-2020 do Conselho de Disciplina da Recorrente foram decididos, em ambas as Secções daquele órgão – Profissional e Não Profissional – nada mais nada menos, que 39.129 processos sumários (dados retirados do Relatório do Mandato 2016-2020 do Conselho de Disciplina, publicado a 11.07.2020 (disponível em https: //www.fpf/Institucional/ Disciplina/Relat%C3%B3Rios). A tramitação célere do processo sumário, prevista desde logo na Lei, é a que permite que o órgão disciplinar possa tomar decisões em tempo útil e cumprir, afinal, o seu objetivo: equilibrar a competição desportiva.
8. Imaginemos se de cada um desses processos sumários – através dos quais, na sua maioria, são sancionados jogadores por amostragem de cartões amarelos e vermelhos no decurso de um jogo – se lançar mão deste expediente previsto na Lei do TAD; rapidamente o Presidente do TCA Sul ficaria completamente submerso de pedidos semelhantes todas as semanas e, consequentemente, o TCA Sul e este STA.
9. Existem fundamentos jurídicos para sustentar a revogação do Acórdão proferido e, bem assim, da decisão sumária proferida no âmbito cautelar, porquanto a mesma enferma de sérios erros de facto e de direito.
10. O TCA Sul não se pronuncia sobre a questão major aqui em causa, que é, precisamente, a de saber se está ou não em causa uma questão estritamente desportiva e se, por essa razão, o TAD – e por maioria de razão o Presidente do TCA Sul – estavam impedidos dela conhecer.
11. Também ignora completamente o facto, alegado pela Recorrente FPF, de que houve efetivamente audiência prévia – algo que o próprio TAD em sede de ação arbitral principal que correu termos com o n.º 4/2021 veio a reconhecer e julgar.
12. O que materialmente o Recorrido vem colocar em crise perante o Tribunal Arbitral do Desporto e perante o Presidente do TCA Sul é a amostragem do cartão amarelo durante um jogo. Tanto que reconhece – nem poderia ser de outro modo – que a aplicação da sanção de suspensão é uma sanção automática decorrente da cumulação de 5 cartões amarelos na competição na mesma época desportiva.
13. Ao pretender colocar em crise a factualidade subjacente à aplicação desta sanção automática, isto é, ao colocar em crise a correção da amostragem do cartão amarelo, o Recorrido pretende que o TAD se substitua no juízo técnico do árbitro do jogo em causa.
14. Da conjugação das normas, doutrina e jurisprudência assinaladas no recurso retira-se, com clareza, que a discussão sobre o tipo de questões trazidas ao conhecimento do TAD e do Presidente do TCA Sul - recorde-se, aplicação de sanção disciplinar automática decorrente da cumulação de cartões amarelos em determinada competição, ou, melhor, a anulação de um cartão amarelo regularmente amostrado em jogo pelo árbitro - cabe apenas dentro das instâncias desportivas, estando o seu conhecimento vedado ao Tribunal Arbitral do Desporto, porquanto é matéria relacionada com a aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva. Ou, numa leitura mais atualista, é, sem dúvida alguma, uma questão emergente da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.
15. Por ser colocada questão relativa à factualidade subjacente à aplicação desta sanção automática de suspensão, isto é, ao colocar em crise a correção da amostragem do cartão amarelo, o Tribunal Arbitral do Desporto é incompetente para conhecer da ação arbitral que aí foi intentada, de acordo com o disposto no n.º 6 do artigo 4.º da Lei do TAD. Assim sendo, também ao Presidente do TCA Sul estava vedada a possibilidade de decretar medidas cautelares sobre esta matéria, sendo incompetente para o efeito, pelo que a decisão sumária por si proferida enferma do vício de incompetência em razão da matéria.
16. Contudo, o Tribunal a quo pura e simplesmente não analisa este fundamento do recurso interposto, o que leva à sua nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, aplicável por via do artigo 666.º do CPC e do artigo 1.º do CPTA.
17. Ficou demonstrado que o Recorrido teve, no caso concreto, a oportunidade de ser ouvido antes do sancionamento em processo sumário, tendo-o sido efetivamente. Pelo que nenhuma nulidade pode ser assacada ao procedimento disciplinar neste caso concreto.
18. É que, pura e simplesmente, no caso vertente, não foi aplicado o artigo 214.º do RD da LPFP, porquanto existiu efetiva audiência prévia do Recorrido.
19. Não tendo sido aplicado o artigo 214.º, não tem, por isso, cabimento a alegação de que o mesmo é inconstitucional por violação do artigo 32.º, n.º 10 da CRP.
20. O ato proferido pelo Presidente do TCA Sul incorreu, pois, em erro nos pressupostos de facto, o que levou a um erro decisório.
21. Não existindo qualquer violação do direito de audiência prévia do Recorrido, não se encontra preenchido o critério do fumus boni iuris, pelo que a medida cautelar requerida nunca poderia ter sido decretada com esse fundamento, porém, foi exatamente esse o (único) fundamento a que o Presidente do TCA Sul recorreu para proferir a decisão ora recorrida. Pelo que se impunha a sua imediata revogação ao Tribunal a quo, que, mais uma vez mal, não o concedeu.
22. Cabe apenas ao Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul decretar as medidas cautelares urgentíssimas absolutamente necessárias para assegurar, em tempo útil, o direito alegadamente ameaçado.
23. Caso seja decretada a medida cautelar requerida ao Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul, depois, o Colégio Arbitral constituído junto do TAD tem de decidir sobre a manutenção, alteração ou revogação da medida cautelar decretada, decidindo o procedimento cautelar.
24. Nos presentes autos, efetivamente, houve remessa do processo, por despacho do Presidente do Tribunal Arbitral do Desporto, para o Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul para efeitos de exercício da competência prevista no n.º 7 do citado artigo 41.º da Lei do TAD, e posterior decisão, a ora recorrida. Tal decisão foi proferida sem que a FPF tenha sido previamente ouvida.
25. Ora, como vimos, o Presidente do TCA Sul decide declarar procedente a presente providência cautelar.
26. Ao decretar uma providência cautelar que não lhe foi requerida, o Presidente do TCA Sul, na decisão recorrida, excedeu claramente os seus poderes de pronúncia no caso concreto.
27. Assim, o Acórdão do TCA Sul, ao manter a decisão proferida, andou mal pelo que se impõe, também por esta via, a sua revogação.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis,
Deverá o presente recurso de revista ser admitido, sendo determinando procedente o recurso apresentado, e, consequentemente, revogado o acórdão proferido pelo TCA Sul, com as necessárias consequências, ASSIM SE FAZENDO O QUE É DE LEI E DE JUSTIÇA».

3. O Requerente, ora Recorrido, apresentou contra-alegações, sem conclusões, onde defendeu, para além da inadmissibilidade da revista, a não verificação do alegado excesso de pronúncia na decisão do Presidente do TCAS; a impugnabilidade do ato praticado pela Recorrente, a necessidade do seu controlo jurisdicional e a competência do TAD e do TCA Sul; e o preenchimento do critério do “fumus boni iuris”, atentos os factos dados como provados, a efetiva falta de audição do Requerente/Recorrido e a inconstitucionalidade do artigo 214º do Regulamento de Disciplina da Liga Portuguesa de Futebol Profissional.
Termina alegando que deve:

«a) ser rejeitada a revista, nos termos do artigo 150.º CPTA, por falta de preenchimento dos pressupostos de que depende a respectiva admissibilidade;
b) subsidiariamente, ser mantido o douto acórdão recorrido e negado provimento ao recurso interposto pela Recorrente, com o que se fará justiça».

Juntou um parecer subscrito por um jurisconsulto.

4. O TCAS, por Acórdão de 9/9/2021 (cfr. fls. 1371/1372), indeferiu a arguição de nulidade do seu Acórdão, recorrido, de 7/7/2021, entendendo que o mesmo conheceu e decidiu das questões em litígio, e afirmando, designadamente, resultar manifestamente da sua leitura ter assumido «que a questão a tratar nada tinha a ver com a discussão e aplicação de qualquer “regra do jogo”, não consubstanciando matéria susceptível sequer de integrar aquilo que se entende por questão “estritamente desportiva”. Nunca se discutiu, nem estava em causa, a anulação do cartão amarelo exibido durante o jogo em questão. Em discussão estavam - estão – sim as decisões impugnadas na acção principal, as quais aplicaram ao RECORRIDO sanções de multa e de suspensão e a aplicação feita do regime legal de referência, avultando aí os princípios essenciais do procedimento administrativo sancionatório, tal como se identificou no acórdão em recurso».

5. O presente recurso de revista foi admitido por Acórdão de 25/11/2021 (cfr. fls. 1384 e segs. SITAF) proferido pela formação de apreciação preliminar deste STA, prevista no nº 6 do art. 150º do CPTA, designadamente nos seguintes termos:

«(…) 6. O Presidente do TCA/S julgou procedente a providência cautelar “sub specie” e suspendeu a eficácia da decisão tomada em 27.01.2021 pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol confirmada pelo Pleno do mesmo Conselho de Disciplina em 29.01.2021 [cfr. fls. 677/688], juízo este que o TCA/S manteve.
7. A aqui recorrente para além da relevância social e jurídica do litígio, sustenta a necessidade de melhor aplicação do direito, insurgindo-se, neste segmento, para além da nulidade de decisão, contra o que entende ser a errada interpretação e aplicação feita no acórdão recorrido do quadro normativo supra enunciado.
(…)
12. Cientes dos considerandos enunciados e entrando na análise do preenchimento dos pressupostos da revista “sub specie” impõe-se referir, desde logo a “quaestio júris” colocada revela-se, “in casu”, como dotada de relevância jurídica e social fundamental.
13. Com efeito, a matéria objeto de dissídio envolve e prende-se com a prévia delimitação/definição do conceito de «questão estritamente desportiva» e das suas implicações em termos da delimitação das esferas de competência entre tribunais estatais e os órgãos internos das federações desportivas, ditos órgãos jurisdicionais federativos, especificamente em sede de tutela cautelar, bem como da sua conexão com a tutela cautelar e impugnabilidade contenciosa das decisões sancionatórias destes órgãos, dos direitos de defesa e realização da tutela jurisdicional efetiva».

6. O Ministério Público junto deste STA, conquanto para tanto notificado, nos termos do art. 146º nº 1 do CPTA (cfr. fls. 1393 SITAF), não se pronunciou.

7. Sem vistos, por se tratar de processo cautelar, urgente (arts. 36º nºs 1 f), 2, 3 e 4 e 147º do CPTA), o processo vem submetido à Conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II - DAS QUESTÕES A DECIDIR

8. Constitui objeto do presente recurso e revista:

Como decorre do já acima exposto, a Requerida “FPF”, ora Recorrente, insurge-se contra o Ac.TCAS recorrido, desde logo arguindo-o de nulo por – segundo diz - não se ter pronunciado sobre a questão, que qualifica de “major”, relativa à alegada incompetência do TAD e do TCAS, em razão da matéria (impugnação de ato do Conselho de Disciplina no âmbito de “questão estritamente desportiva”); insurge-se, depois, contra o mesmo Acórdão por alegados erros de julgamento: a pressuposta competência do TAD e do TCAS, em razão da matéria (em “questão estritamente desportiva”); o entendimento de que houve violação do direito de audição prévia, sustentando a conclusão de verificação do “fumus boni iuris”; e, por último, a não consideração do alegado excesso de pronúncia por parte do Presidente do TCAS ao deferir, no seu despacho singular, a providência cautelar, não se limitando a decretar medida cautelar urgentíssima a ser reanalisada pelo Colégio Arbitral do TAD.

São, pois, estas as questões em causa no presente recurso de revista, tal como delimitadas pelas conclusões das alegações da Requerida/Recorrente.


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III - FUNDAMENTAÇÃO

III. A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

9. As instâncias (Presidente do TCAS e TCAS) deram como provados os seguintes factos:

«Com interesse para a decisão da presente providência cautelar, relevam os seguintes factos:

a) O requerente é jogador profissional de futebol da “Sporting Clube de Portugal – Futebol, AD”, a qual tem por objecto a participação em competições profissionais de futebol.
b) A entidade requerida é uma federação desportiva que, entre o mais, exerce poderes públicos de regulamentação, organização e disciplina sobre as competições nacionais de futebol.
c) No exercício desse poder disciplinar, o Conselho de Disciplina da entidade requerida sancionou o requerente, em processo sumário, com um jogo de suspensão e multa de € 153,00 (cento e cinquenta e três euros), sanção essa que foi notificada ao requerente através de mapa de castigos publicitado a 27-1-2021, pelas 21.54 horas (cfr. doc. nº 1, junto com o requerimento inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
d) A aludida decisão respeitava ao jogo disputado na véspera, dia 26 de Janeiro de 2021, entre a equipa da Sporting SAD e a Boavista SAD, em jogo oficial a contar para a 15ª jornada da Liga NOS, em que o aqui requerente participou, e sustentava-se no relatório do árbitro do encontro, onde aquele justificou a exibição ao requerente de cartão amarelo ao minuto 79 da seguinte forma: “Agarrou um adversário anulando um ataque prometedor” (idem).
e) No dia imediatamente seguinte ao jogo, 27-1-2021, ainda antes da divulgação da sanção que lhe foi aplicada, o requerente remeteu à requerida (pelas 18.14 horas) uma exposição, para consideração e realização de diligência previamente à decisão de processo sumário, em que explicitou as razões pelas quais entendia não dever ser disciplinarmente punido apesar e para além do cartão amarelo que lhe havia sido exibido no decurso do jogo, e requereu a audição do árbitro do encontro (cfr. doc. nº 2 junto com o requerimento inicial, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
f) Sobre esse requerimento não recaiu qualquer despacho, designadamente que se dignasse indeferir ou pronunciar sobre as diligências requeridas, não tendo o requerente qualquer evidência ou razão para crer que o mesmo tenha sido apreciado ou considerado previamente à prolação da decisão em processo sumário (cfr. doc. nº 3 junto com o requerimento inicial, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
g) O requerente não foi ouvido previamente à prolação da decisão sumária que o sancionou.
h) No dia 28 de Janeiro, pelas 10.26 horas, o requerente interpôs recurso administrativo para o pleno do Conselho de Disciplina da FPF, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 262º, nº 2 e 290º e seguintes do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RD), 46º do Regime Jurídico das Federações Desportivas (RJFD), e 199º do Código do Procedimento Administrativo (ibidem).
i) Tal recurso veio a ser julgado improcedente no dia 29-1-2021, por decisão notificada ao requerente pelas 23.17 horas (cfr. cópia integral do processo junto aos autos).
j) A sanção de suspensão por um jogo aplicada ao requerente é cumprida, nos termos do artigo 39º do RD, no jogo oficial seguinte, impedindo o jogador de nele tomar parte e, à luz do artigo 216º, nº 8 e 274º, nº 2, é executória a partir do dia imediatamente seguinte à notificação ao arguido.
k) O próximo jogo oficial a ser disputado terá lugar hoje, dia 1 de Fevereiro, pelas 21.30, contra o Sport Lisboa e Benfica, no Estádio José Alvalade».


III. B – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

10. Quanto à arguida nulidade do Ac.TCAS recorrido, por alegada omissão de pronúncia

Alega a Requerida/Recorrente que «O TCA Sul não se pronuncia sobre a questão “major” aqui em causa, que é, precisamente, a de saber se está ou não em causa uma questão estritamente desportiva e se, por essa razão, o TAD – e por maioria de razão o Presidente do TCA Sul – estavam impedidos dela conhecer».

O TCAS, no seu Acórdão de 9/9/2021 (cfr. fls. 1371/1372 SITAF) repudiou esta arguição de nulidade asseverando que «o Acórdão recorrido conheceu das questões em litígio e decidiu-as, assumindo, como resulta manifesto da sua leitura, que a questão a tratar nada tinha a ver com a discussão e aplicação de qualquer “regra do jogo”, não consubstanciando matéria susceptível sequer de integrar aquilo que se entende por questão “estritamente desportiva”».

E assim foi, efetivamente, uma vez que resulta claramente de toda a explanação e fundamentação do Acórdão recorrido o pressuposto do reconhecimento de que não se estava perante uma mera questão “estritamente desportiva” que excluísse a jurisdição do TAD ou do TCAS.

Acresce que, ainda que se entendesse que o Ac.TCAS recorrido deveria ter apreciado tal questão de forma mais autónoma ou circunstanciada, a verdade é que não se justificaria ordenar a baixa para o TCAS conhecer desta questão, uma vez que resulta claramente assumido, como se disse, no Acórdão recorrido, o entendimento – contrário ao pugnado pela Requerida/Recorrente – de não se estar perante uma questão “estritamente desportiva” e, portanto, não ser de declarar a sua inimpugnabilidade fora do âmbito da justiça desportiva.

Se este entendimento do Ac.TCAS recorrido (em confirmação da decisão do Presidente do TCAS), contraditado pela Requerida/Recorrente, consubstancia erro de julgamento, é questão diferente, que apreciaremos de seguida.

11. Quanto ao alegado erro de julgamento por não reconhecimento da incompetência do TAD e do TCAS para conhecimento e decisão do litígio, por estar em causa ato do Conselho de Disciplina em questão “estritamente desportiva

A Requerida/Recorrente “FPF” alega, a este propósito, que:

«O facto de ter sido proferida decisão matéria estritamente desportiva abre um perigoso precedente e potencia a tentativa de outros agentes desportivos em replicá-la nos seus casos concretos, trazendo para estes Tribunais Superiores a discussão de matérias – por exemplo, se um árbitro agiu bem ao admoestar o jogador com cartão amarelo, ou não – que claramente não têm dignidade para serem apreciadas por esta categoria de instâncias jurisdicionais» (cfr. conclusão 4ª);

«O que materialmente o Recorrido vem colocar em crise perante o Tribunal Arbitral do Desporto e perante o Presidente do TCA Sul é a amostragem do cartão amarelo durante um jogo. Tanto que reconhece – nem poderia ser de outro modo – que a aplicação da sanção de suspensão é uma sanção automática decorrente da cumulação de 5 cartões amarelos na competição na mesma época desportiva» (conclusão 12ª);

«(…) o Recorrido pretende que o TAD se substitua no juízo técnico do árbitro do jogo em causa» (conclusão 13ª);

«Da conjugação das normas, doutrina e jurisprudência assinaladas no recurso retira-se, com clareza, que a discussão sobre o tipo de questões trazidas ao conhecimento do TAD e do Presidente do TCA Sul - recorde-se, aplicação de sanção disciplinar automática decorrente da cumulação de cartões amarelos em determinada competição, ou, melhor, a anulação de um cartão amarelo regularmente amostrado em jogo pelo árbitro - cabe apenas dentro das instâncias desportivas, estando o seu conhecimento vedado ao Tribunal Arbitral do Desporto, porquanto é matéria relacionada com a aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva. Ou, numa leitura mais atualista, é, sem dúvida alguma, uma questão emergente da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva» (conclusão 14ª);

«Por ser colocada questão relativa à factualidade subjacente à aplicação desta sanção automática de suspensão, isto é, ao colocar em crise a correção da amostragem do cartão amarelo, o Tribunal Arbitral do Desporto é incompetente para conhecer da ação arbitral que aí foi intentada, de acordo com o disposto no n.º 6 do artigo 4.º da Lei do TAD. Assim sendo, também ao Presidente do TCA Sul estava vedada a possibilidade de decretar medidas cautelares sobre esta matéria, sendo incompetente para o efeito, pelo que a decisão sumária por si proferida enferma do vício de incompetência em razão da matéria» (conclusão 15ª).

Mas não tem razão.

É que, ao contrário do assim alegado, e como o Requerente/Recorrido tem repetido ao longo dos autos, não pretende ele, nem está em causa, ou foi admitido pelas instâncias (Presidente do TCAS e TCAS), a apreciação, discussão ou eventual alteração da decisão do juíz-árbitro do jogo de futebol em questão – no caso, a amostragem ao jogador/Requerente de um “cartão amarelo”. O que, sim, esteve em apreciação, na decisão do Presidente do TCAS, que concedeu a providência cautelar suspendendo a eficácia da sanção disciplinar, e no Ac.TCAS recorrido, que confirmou aquela decisão, foi (e continua a ser no presente recurso de revista), exclusivamente, o procedimento sancionatório disciplinar, e muito especificamente, a questão do direito de audiência e defesa do arguido no âmbito do procedimento sancionatório disciplinar.

De facto, como o Requerente/Recorrido assevera nas suas contra-alegações:

«Comece-se por esclarecer e tranquilizar (também) este Tribunal: não se discutirão nesta sede apitos ou cartões, rasteiras ou empurrões. Ao contrário do que afirma a Recorrente, o Recorrido não quer, nem pediu a qualquer Tribunal, a anulação do cartão amarelo que lhe foi exibido durante o jogo, porque com esse teve de conformar-se, por (desportivamente) injusto que fosse» (ponto 15);

«Em discussão estão sim, e apenas, princípios procedimentais e substantivos basilares e incontornáveis em qualquer procedimento administrativo sancionatório, como aquele que redundou nas decisões impugnadas na acção principal, as quais aplicaram ao Recorrido sanções de multa (lesando o seu direito de propriedade) e de suspensão (limitando o seu direito a exercer a sua profissão), sem sequer garantir a sua audição prévia (violando o seu direito de audiência e defesa)» (ponto 17);

«A questão em apreço contende com direitos fundamentais do Recorrido (…)» (ponto 18).

E como o TCAS claramente assumiu e expressou no seu Acórdão de 9/9/2021, de resposta à arguição de nulidade do Acórdão recorrido (cfr. fls. 1371/1372 SITAF):

«(…) o acórdão recorrido conheceu das questões em litígio e decidiu-as, assumindo, como resulta manifesto da sua leitura, que a questão a tratar nada tinha a ver com a discussão e aplicação de qualquer “regra do jogo”, não consubstanciando matéria susceptível sequer de integrar aquilo que se entende por questão “estritamente desportiva”. Nunca se discutiu, nem estava em causa, a anulação do cartão amarelo exibido durante o jogo em questão. Em discussão estavam - estão - sim as decisões impugnadas na acção principal, as quais aplicaram ao RECORRIDO sanções de multa e de suspensão e a aplicação feita do regime legal de referência, avultando aí os princípios essenciais do procedimento administrativo sancionatório, tal como se identificou no acórdão em recurso».

A Requerida/Recorrente defende que, ainda assim, a questão está fora da competência de conhecimento por parte dos tribunais, uma vez que, sendo o procedimento disciplinar em causa uma decorrência automática da amostragem do “cartão amarelo” (e por se tratar, no caso, do 5º cartão amarelo mostrado na época ao jogador/Requerente), as questões que se prendam com tal procedimento disciplinar só podem ser apreciadas e decididas no foro desportivo (isto é, no âmbito da Federação, nomeadamente, pelos seus Conselhos de Disciplina e Conselho de Justiça), como resulta do quadro normativo aplicável – nomeadamente dos arts. 4º nº 6 da lei do “Tribunal Arbitral do Desporto (TAD)” (Lei nº 74/2013, de 6/9, na redação conferida pela Lei nº 33/2014, de 16/6) e 44º nº 1 e 53º g) do Regime Jurídico das Federações Desportivas (DL nº 248-B/2008, de 31/12, na redação conferida pelo DL nº 93/2014, de 23/6), os quais ditam a exclusão da jurisdição do “TAD” – e, consequentemente, do âmbito dos recursos jurisdicionais das suas decisões - «a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva».

Esta norma legal significa que, claramente, está fora da jurisdição do “TAD”, e de eventuais recursos jurisdicionais das suas decisões, a apreciação de decisões tomadas pelos árbitros dos “jogos” – como, v.g., a amostragem, num jogo de futebol, de um cartão (amarelo ou vermelho) a um jogador.

E, independentemente da discussão que, no seio desportivo, se faça sobre a aplicabilidade, ou eventuais exceções, à “field of play doctrine” – isto é, sobre a irreversibilidade das decisões tomadas “em campo” pelos árbitros -, eventuais reversões dessas decisões só podem ocorrer no seio desportivo. E isto ainda que, acaso, se venham a ter tais decisões como tecnicamente erradas (incluindo com eventual assunção de erro por parte do próprio árbitro). Poder-se-á, apenas, e no limite, admitir como exceções eventuais casos de corrupção, uma vez que, aí, para além do manifesto interesse público envolvido, a decisão não seria, propriamente, tomada por um árbitro, mas sim, por forças terceiras de quem o árbitro seria mero intermediário (descaracterizando, pois, a decisão como tomada por mera aplicação de normas técnicas ou disciplinares).

Aliás, para além da conformação teórica, razões pragmáticas militam, também, para que assim seja: repare-se – apenas como mero exemplo – que a sanção estabelecida para o caso que nos ocupa, é prevista no art. 164º nº 7 do RD da LPFP, norma que determina:
«O jogador que, na mesma época desportiva e em jogos diferentes, acumular uma série de cartões amarelos é punido com a sanção de suspensão por um jogo e, acessoriamente, com a sanção de multa de valor correspondente a 1,5 UC assim que atingir o quinto, o nono, o 12º e o 14º cartões amarelos dessa época desportiva».

Ora, se fosse permitido ao TAD, e a eventuais recursos jurisdicionais, apreciar a correção da amostragem dos cartões amarelos pelos árbitros, provavelmente, neste caso dos presentes autos, estaria (apenas) em causa a amostragem do 5º cartão amarelo ao Requerente/Recorrido. Mas nada obstaria, então, a que, uma vez sancionado nos termos do aludido art. 164º nº 7 do RD da LPFP, o mesmo viesse discutir outros dos cinco cartões amarelos que lhe foram mostrados, justificadores da sanção disciplinar, ou, até, a correção da amostragem de todos e cada um deles. E - imagine-se -, nada obstaria a que, nesse caso, um jogador, sancionado, nos termos da aludida norma, na mesma época desportiva, com um 5º, um 9º, um 12º e um 14º cartão amarelo, viesse impugnar junto do “TAD” (com direito a recursos jurisdicionais das respetivas decisões) a correção da amostragem de todos e cada um dos 14 cartões, invocando erros técnicos, acaso confirmados, nalguns casos, pelos próprios árbitros.

Foi isto que, certamente se quis evitar com as acima referidas normas constantes dos arts. 4º nº 6 da lei do “TAD” (lei nº 74/2013, de 6/9, na redação conferida pela Lei nº 33/2014, de 16/6) e 44º nº1 e 53º g) do Regime Jurídico das Federações Desportivas (DL nº 248-B/2008, de 31/12, na redação conferida pelo DL nº 93/2014, de 23/6) ao ditarem a reserva para a jurisdição desportiva da «resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva».

Na sequência, aliás, do que já anteriormente se previa a tal respeito, nas anteriores Leis de Bases do Desporto – art. 25º nº 2 da Lei nº 1/90, de 13/1; art. 47º da Lei nº 30/2004, de 21/7; art. 18º da Lei nº 5/2007, de 16/1 – bem como nos Regimes Jurídicos das Federações Desportivas – art. 8º nº 2 do DL nº 144/93, de 26/4, art. 12º do DL nº 248-B/2008, de 31/12 -, ainda que com uma antecedente formulação: «Não são suscetíveis de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva as decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas».

Este é, também, o entendimento explanado no parecer junto aos autos pelo Requerente/Recorrido (cfr. fls. 1318 e segs. SITAF), onde se afirma claramente que: «Não se discute nem se contesta, verdadeiramente, que a aplicação de um cartão amarelo por um árbitro não é passível de impugnação junto do TAD» (cfr. pág. 31 do parecer).

Mas, tendo concluído que a amostragem de um cartão amarelo por um árbitro não é passível de impugnação junto do TAD – nem também, portanto, de consequente recurso jurisdicional -, tal não significa que os atos do procedimento sancionatório decorrente de tal amostragem gozem do mesmo estatuto de inimpugnabilidade fora do seio desportivo. E, na verdade, tal já não sucede, ou não sucede sempre – contrariamente ao defendido pela Requerida/Recorrente “FPF”.

Concluindo o expressado no aludido parecer junto aos autos, depois de assumir, como vimos, que “a aplicação de um cartão amarelo por um árbitro não é passível de impugnação junto do TAD”, continua (a nosso ver, também corretamente): «(…). No entanto, já poderemos chegar a uma conclusão diferente quando nos referimos à aplicação de uma sanção “automática” pelo órgão de resolução de conflitos desportivos».

E, tal como no caso aqui em discussão, «(…) não havendo intenção de “impugnar” o cartão amarelo, ou a sequência acumulada de cartões amarelos, nada impede que um jogador possa impugnar o acto sancionatório “automático” aplicado pelo órgão de resolução de conflitos desportivos que compete, “in casu”, ao Conselho de Disciplina».

É que esta impugnabilidade de atos da aplicação de sanções disciplinares (multas ou suspensões) é imposta quando esteja em causa a afetação de direitos fundamentais, constitucionalmente garantidos, designadamente dos direitos de defesa em processos sancionatórios administrativos, especificamente, o direito de audiência prévia dos arguidos.

É o que este STA sempre tem afirmado, desde a sua ponderação sobre a qualificação de “questões estritamente desportivas” (cfr. Acórdão de 10/9/2008, proc. 0120/08):
«Face à garantia constitucional do direito ao recurso contencioso de todos os actos administrativos lesivos, impõe-se uma interpretação restritiva do art. 25º, 1 da Lei 1/90, de modo a não se considerarem questões estritamente desportivas subtraídas à jurisdição do Estado, as decisões que ponham em causa direitos fundamentais, direitos indisponíveis ou bens jurídicos protegidos por outras normas jurídicas para além dos estritamente relacionados com a prática desportiva».
Expressa-se neste Acórdão:
«(…) Impõe-se, claramente, uma interpretação restritiva pois o acesso aos Tribunais é uma garantia fundamental – art. 20º da CRP – com particular e especial consagração no art. 268º, n.º 4 da CRP. Neste sentido GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada – anotação ao art. 205º, actual 202º - consideram como limites constitucionais à “auto-justiça” das Federações Desportivas as questões que ponham em causa “bens indisponíveis, ou direitos liberdades e garantias”, não podendo precludir ou prejudicar “o recurso à via jurisdicional”.
Em suma, uma questão é estritamente desportiva desde que a decisão em causa tenha por fundamento a aplicação de normas de natureza técnica ou disciplinar, respeitantes às “lei do jogo” (regras sobre o funcionamento da própria competição ou sobre a sua organização), desde que tais normas não versem sobre direitos indisponíveis, não afectem direitos fundamentais, nem violem normas que protegem outro tipo de valores (v. g. corrupção)».
No mesmo sentido, o Ac.STA de 21/9/2010, proc. 0295/10.

E, como se elencou no Acórdão deste STA de 10/7/2013, proc. 01119/13:
«(…) Como se refere no Ac. desta formação no P. 197/12, Ac. de 20/6/2012 “pronunciaram-se sobre questões relacionadas os Ac. STA de 19.05.1992 – Proc. 027207, de 30.04.1997 (Pleno) – Proc. 027407, e, mais recentemente, de 07.06.2006 – Proc. 0262/06 e de 10.09.2008 – Proc. 120/08, todos eles se ancorando na garantia constitucional do direito fundamental ao recurso contencioso dos actos administrativos, e na consequente necessidade de interpretação restritiva das disposições das Leis de Bases do Desporto que atribuem aos órgãos das Federações Desportivas a competência para a decisão sobre “questões estritamente desportivas”, tendo tais arestos procedido igualmente à definição e sentido deste conceito legal».

Ora, no âmbito do procedimento disciplinar em causa nos presentes autos, o Requerente/Recorrido, ali arguido, contesta, precisamente, o desrespeito pelo seu direito a audiência prévia, sendo certo que foi, também, por este motivo que o Presidente do TCAS, na sua decisão, confirmada pelo Ac.TCAS recorrido, entreviu o “fumus boni iuris” que o levou a conceder a providência cautelar peticionada.

Improcede, assim, o entendimento defendido pela Requerida/Recorrente “FPF” quanto à ininmpugnabilidade do ato sancionatório em causa para o TAD, e, em suma, quanto à incompetência do TAD, ou do TCAS, em razão da matéria, para apreciar e decidir da concessão da presente providência cautelar.

12. Quanto ao alegado erro de julgamento por alegadamente não se ter verificado violação do direito de audição prévia, a qual sustentou a conclusão de verificação do “fumus boni iuris

A Requerida/Recorrente “FPF” alega, a este propósito que (cfr. conclusões 17ª a 21ª):

«Ficou demonstrado que o Recorrido teve, no caso concreto, a oportunidade de ser ouvido antes do sancionamento em processo sumário, tendo-o sido efetivamente. Pelo que nenhuma nulidade pode ser assacada ao procedimento disciplinar neste caso concreto.
É que, pura e simplesmente, no caso vertente, não foi aplicado o artigo 214.º do RD da LPFP, porquanto existiu efetiva audiência prévia do Recorrido.
Não tendo sido aplicado o artigo 214.º, não tem, por isso, cabimento a alegação de que o mesmo é inconstitucional por violação do artigo 32.º, n.º 10 da CRP.
O ato proferido pelo Presidente do TCA Sul incorreu, pois, em erro nos pressupostos de facto, o que levou a um erro decisório.
Não existindo qualquer violação do direito de audiência prévia do Recorrido, não se encontra preenchido o critério do “fumus boni iuris”, pelo que a medida cautelar requerida nunca poderia ter sido decretada com esse fundamento, porém, foi exatamente esse o (único) fundamento a que o Presidente do TCA Sul recorreu para proferir a decisão ora recorrida. Pelo que se impunha a sua imediata revogação ao Tribunal “a quo”, que, mais uma vez mal, não o concedeu».

O Ac.TCAS recorrido julgou improcedente esta alegação da Recorrente uma vez que, atenta a matéria de facto fixada pelo Presidente do TCAS na sua decisão singular – matéria de facto não impugnada -, ficou estabelecido que «o requerente não foi ouvido previamente à prolação da decisão sumária que o sancionou» (cfr. facto sob alínea g) da matéria fáctica considerada provada), pelo que a decisão não poderia ter sido diferente.

O Requerente/Recorrido, nas suas contra-alegações afirma que, efetivamente, foi violado o seu direito de audiência prévia, pois que, considerando os factos fixados em 1ª instância (despacho do Presidente do TCAS), não impugnados, resulta que «pese embora tenha até manifestado expressamente essa pretensão, o Recorrido não foi ouvido previamente à prolação da decisão sumária que o sancionou; o Recorrido procurou, com diligência que nem se lhe impunha, suprir essa inconstitucionalidade, mas nem assim a Recorrente o atendeu».

Quanto a esta questão, começaremos por notar que, para além do facto fixado sobre a aludida alínea g) - «o requerente não foi ouvido previamente à prolação da decisão sumária que o sancionou» -, as instâncias deram também como provado, sob alíneas e) e f), que:

- «No dia imediatamente seguinte ao jogo, 27-1-2021, ainda antes da divulgação da sanção que lhe foi aplicada, o requerente remeteu à requerida (pelas 18.14 horas) uma exposição, para consideração e realização de diligência previamente à decisão de processo sumário, em que explicitou as razões pelas quais entendia não dever ser disciplinarmente punido apesar e para além do cartão amarelo que lhe havia sido exibido no decurso do jogo, e requereu a audição do árbitro do encontro (cfr. doc. nº 2 junto com o requerimento inicial, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)» - alínea e); e

- «Sobre esse requerimento não recaiu qualquer despacho, designadamente que se dignasse indeferir ou pronunciar sobre as diligências requeridas, não tendo o requerente qualquer evidência ou razão para crer que o mesmo tenha sido apreciado ou considerado previamente à prolação da decisão em processo sumário (cfr. doc. nº 3 junto com o requerimento inicial, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)» - alínea f).

É com base nesta remessa, pelo Requerente/Recorrido, de exposição à Requerida/Recorrente, que esta sustenta – contra o entendimento das instâncias – que teria havido, afinal, efetiva audiência do arguido anteriormente ao seu sancionamento. E, sendo assim, isto é, tendo havido essa necessária audiência, não se coloca a questão da inconstitucionalidade do art. 214º do RD da LPFP, que prevê a dispensa de audiência prévia, pois que, na realidade, foi norma não aplicado no caso.

Mas esta argumentação da Recorrente não colhe, uma vez que parece partir do pressuposto – incorreto - de que o direito de audiência e defesa garantido na Constituição ao arguido de quaisquer processos sancionatórios pelo nº 10 do art. 32º (nos mesmos moldes, aliás, do que no art. 269º nº 3) pode ser dispensado nos termos previstos no art. 124º do CPA, designadamente, como admite a alínea e) do nº 1 deste artigo, quando os “interessados” «já se tiverem pronunciado no procedimento sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas».

Só que o estatuto do visado, em processo criminal ou em processo sancionatório, não é o de mero “interessado”, mas o de “arguido”, razão porque a forma de exercício desse direito de audiência e defesa tem, sempre, de poder ser efetiva. Se assim não fosse, bastaria à entidade sancionatória invocar, v. g., a “urgência da decisão” (cfr. art. 124º nº 1 a) do CPA) para “dispensar” o direito do arguido constitucionalmente garantido; e sendo certo que, nos procedimentos sancionatórios desportivos, a “urgência” até configura um imperativo universalmente reconhecido, sempre a dispensa de audiência prévia seria invocável, e admissivelmente - se não brigasse (como o Tribunal Constitucional já por mais de uma vez julgou) com direitos fundamentais constitucionalmente garantidos.

Assim, o direito de audiência e defesa, constitucionalmente garantido aos arguidos em processo criminais ou sancionatórios, implica o prévio conhecimento da “acusação” e a previsão de uma fase de “defesa” no âmbito da qual, o arguido se deve poder pronunciar, contestando a acusação e requerendo diligências instrutórias.

Como se refere em “Constituição Portuguesa Anotada”, de Jorge Miranda/Rui Medeiros, Universidade Católica Editora, 2ª edição revista, Fevereiro/2017, Vol. I, pág. 537:
«O nº 10 [do art. 32º] garante aos arguidos em quaisquer processos de natureza sancionatória os direitos de audiência e de defesa. Significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas».

E, a propósito dos procedimentos disciplinares (em anotação ao art. 269º, Vol. III, pág. 562):
«(…) A garantia de audiência (qualificada …) (…) constitui um dos instrumentos da defesa, a par de outros, como o de conhecer inteiramente as imputações disciplinares deduzidas, o da assistência e patrocínio por advogado (artigo 20º), o acesso ao processo (artigo 268º nºs 1 e 2), o direito de não declarar contra si próprio (…), o direito de oferecer e/ou requerer meios de prova pertinentes».

E a distinção sempre foi efetuada pelo Tribunal Constitucional (cfr. Acórdão nº 594/2008):
«O que vem de dizer-se não impede que, em certos casos, se reconheça ao direito de participação, sob a forma de direito de audição, uma natureza especial tal que demande que a sua violação seja sancionada com o estigma da nulidade própria da afetação do núcleo essencial dos direitos fundamentais (cf. art.º 133.º, n.º 2, alínea d), do CPA).
Será o caso do direito de audiência e de defesa, nos procedimentos contraordenacionais e quaisquer processos sancionatórios (art.º 32.º, n.º 10, da CRP) e nos processos disciplinares (art.º 269.º, n.º 3, da CRP).
Mas, aqui, a configuração como verdadeiro direito subjetivo fundamental não se funda, diretamente, no referido art.º 267.º, n.º 5, da Constituição, mas em outros preceitos constitucionais, prendendo-se, diretamente, não com o interesse da comparticipação dos interessados na formação das decisões ou deliberações administrativas, no processamento da atividade administrativa, compaginante da melhor realização do interesse público e dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, mas com a fixação das condições, necessárias e indispensáveis, à garantia ou à realização “dos direitos fundamentais”, impondo-se, então, como um postulado da dignidade da pessoa humana ou por um direito fundamental material em que ela se concretize (…)».

E, nos termos do seu Acórdão nº 594/2020, proc. 49/20, de 10/11/2020, julgou o Tribunal Constitucional, no âmbito de processo disciplinar sumário regulado no RD-LPF:

«(…) 4. O processo sumário regulado no RD-LPF é um processo disciplinar. Visa punir o ilícito disciplinar com uma sanção disciplinar, tendo, portanto, natureza sancionatória. Nessa medida, encontra-se abrangido pelo âmbito de aplicação do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição. Sendo assim, inequívoco se afigura que a norma do referido Regulamento, que suprime o direito de audiência no âmbito do processo disciplinar sumário, contraria flagrantemente o disposto no artigo 32.º, n.º 10 da Constituição.
Em face do exposto, conclui-se pela inconstitucionalidade material da norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar no âmbito do processo sumário sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do RD-LPF, por violação do direito de audiência e defesa plasmado no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa».
No mesmo sentido, os posteriores Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 742/2020, 177/2021 e 302/2021.

Por isso, também distinguindo, dos procedimentos administrativos em geral, os procedimentos disciplinares e sancionatórios, já Mário Esteves de Oliveira e outros, in “CPA Comentado”, Almedina, 2ª edição, 1997, anotavam, face ao art. 103º do CPA (redação anterior a 2015), artigo com a epígrafe “Inexistência e dispensa de audiência dos interessados” (correspondente ao atual art. 124º), que:
«(…) há procedimentos (os sancionatórios, por exemplo) em que não pode passar-se sem audiência. Aliás, nenhum dos pressupostos referidos nesta disposição permite que se passe, nesses procedimentos, sem audiência (…)» (pág. 463).

Assim, nem a urgência, nem a circunstância de os interessados já se terem pronunciado anteriormente, nem outra circunstância, pode autorizar, em processos disciplinares ou sancionatórios, a dispensa de audiência do arguido sobre a “acusação” que lhe é movida.

Ora, no presente caso, ao arguido não foi concedida uma fase de “defesa”, na sequência de notificação da acusação (ou de projeto de decisão sancionatória), para eventual contestação desta e para eventual requerimento de diligências instrutórias.

Só por isto, é de concluir pelo acerto das decisões das instâncias quanto à verificação do “fumus boni iuris” em decorrência da violação do direito de audiência e defesa do Requerente/Recorrido.

Mas não se deixará de notar que, ainda que se seguisse o entendimento (errado) da Requerida/Recorrente quanto à suficiência, também nestes casos de uma pronúncia anterior – em suposta aplicabilidade, no caso, da dispensa de audiência prévia de “interessado” prevista na alínea e) do nº 1 do art. 124º do CPA -, nem assim, face às circunstâncias do presente caso, a exposição remetida pelo Requerente, aludida na alínea e) dos factos tido por provados, bastaria para justificar essa dispensa.

É que também se deu, aqui, como provado que «sobre esse requerimento não recaiu qualquer despacho, designadamente que se dignasse indeferir ou pronunciar sobre as diligências requeridas, não tendo o requerente qualquer evidência ou razão para crer que o mesmo tenha sido apreciado ou considerado previamente à prolação da decisão em processo sumário». E, nesse requerimento, para além do mais, o Requerente incluía solicitação de diligências instrutórias, que não foi objeto de fundamentada decisão.

E, ainda assim, sempre faltaria a expressa fundamentação das razões da dispensa, no caso, da audiência do “interessado”, como imporia o nº 2 do aludido art. 124º do CPA.

Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso de revista, também nesta parte.

13. Quanto ao alegado erro de julgamento por não admissão do suposto “excesso de pronúncia” da decisão do Presidente do TCAS

Alega, por fim, a Requerida/Recorrente que o Presidente do TCAS excedeu, na sua pronúncia de deferimento da providência, a sua competência legal para decretar, apenas, as medidas cautelares urgentíssimas que, no caso fossem, absolutamente necessárias até ser temporalmente possível a formação do colégio arbitral no “TAD”, o qual passaria a ter a competência definitiva para apreciar e decidir a providência cautelar, revendo, obrigatoriamente, a decisão provisória tomada pelo Presidente do TCAS. E o Ac.TCAS recorrido teria errado ao não ter reconhecido este “excesso de pronúncia” por parte da decisão do Presidente do TCAS.

Alega, efetivamente, a este propósito a Requerida/Recorrente (conclusões 22ª a 27ª):

«Cabe apenas ao Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul decretar as medidas cautelares urgentíssimas absolutamente necessárias para assegurar, em tempo útil, o direito alegadamente ameaçado.
Caso seja decretada a medida cautelar requerida ao Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul, depois, o Colégio Arbitral constituído junto do TAD tem de decidir sobre a manutenção, alteração ou revogação da medida cautelar decretada, decidindo o procedimento cautelar.
Nos presentes autos, efetivamente, houve remessa do processo, por despacho do Presidente do Tribunal Arbitral do Desporto, para o Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul para efeitos de exercício da competência prevista no n.º 7 do citado artigo 41.º da Lei do TAD, e posterior decisão, a ora recorrida. Tal decisão foi proferida sem que a FPF tenha sido previamente ouvida.
Ora, como vimos, o Presidente do TCA Sul decide declarar procedente a presente providência cautelar.
Ao decretar uma providência cautelar que não lhe foi requerida, o Presidente do TCA Sul, na decisão recorrida, excedeu claramente os seus poderes de pronúncia no caso concreto.
Assim, o Acórdão do TCA Sul, ao manter a decisão proferida, andou mal pelo que se impõe, também por esta via, a sua revogação».

Mas, também aqui, não tem razão a Requerida/Recorrente uma vez que a sua tese – de competência provisória do Presidente do TCAS, sujeita a confirmação ou alteração por parte do colégio arbitral do TAD, não tem correspondência na previsão legal, pois como o Ac.TCAS bem julgou, o nº 7 do art. 41º da Lei do “TAD” confere ao Presidente do TCAS a competência para, em 1ª instância, decidir «sobre o pedido de aplicação de medidas provisórias e cautelares», desde que verificados os pressupostos para tanto (isto é, «se o processo não tiver ainda sido distribuído [no “TAD”] ou se o colégio arbitral ainda não estiver constituído»).

Assim sendo, é de confirmar o Ac.TCAS recorrido quando bem julgou tratar-se aqui «de uma competência excepcional substitutiva por parte do Presidente do TCAS, por referência ao decretamento de providências cautelares e sem qualquer menção a uma suposta provisoriedade até nova decisão confirmativa pelo TAD (…). Aliás, o entendimento avançado pela RECORRENTE não tem, salvo o devido respeito, o mínimo de acolhimento na letra da lei».

Nestes termos, nega-se provimento ao recurso da Requerida/Recorrente também nesta parte.


*


IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202º da Constituição da República Portuguesa, em:

Negar provimento ao presente recurso jurisdicional de revista deduzido pela Requerida/Recorrente “Federação Portuguesa de Futebol (FPF)”, confirmando o Acórdão do TCAS recorrido.

Custas a cargo da Requerida/Recorrente “FPF”.

D.N.

Lisboa, 27 de janeiro de 2022 – Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha (relator) – José Augusto Araújo Veloso – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (vencida nos termos do voto que segue).

Voto vencida por entender que a montante da alegada preterição da audiência prévia, se encontra uma situação de facto que se enquadra em matéria estritamente desportiva (aplicação de um cartão amarelo a um jogador por parte do árbitro) que determina a incompetência em razão da matéria da jurisdição administrativa e, portanto deste STA, por se tratar da matéria respeitante à própria competição desportiva, como aliás é defendido pela requerida/recorrente.

Maria do Céu Neves