Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01540/18.0BELSB
Data do Acordão:09/09/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24851
Nº do Documento:SA12019090901540/18
Data de Entrada:07/12/2019
Recorrente:ACSS - ADMINISTRAÇÃO CENTRAL DO SISTEMA DE SAÚDE, I.P.
Recorrido 1:A... E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA FORMAÇÃO PRELIMINAR DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

I. RELATÓRIO

A………… intentou, no TAC de Lisboa, contra a ADMINISTRAÇÃO CENTRAL DO SISTEMA DE SAÚDE, I.P. e a ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DE SAÚDE DO NORTE, I.P., intimação pedindo a condenação das Requeridas a:
1. Reconhecer imediatamente, para todos os efeitos legais, a qualidade da Requerente enquanto médica titular de uma incapacidade que limita significativamente a sua mobilidade;
2. Reconhecer imediatamente, para todos os efeitos legais, o direito da Requerente à escolha prioritária do estabelecimento de colocação no âmbito do procedimento concursal em curso, única forma de assegurar o efectivo direito de acesso à função pública, constitucionalmente protegido no artigo 47.º da CRP;
3. Assegurar, em concreto e por consequência, a possibilidade de escolha de um estabelecimento integrado no Agrupamento de Centros de Saúde Grande Porto VIII – Espinho/Gaia, no Agrupamento de Centros de Saúde Grande Porto VII – Gaia ou no Agrupamento de Centros de Saúde Porto Ocidental.”

O TAC julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto aos pedidos formulados em 1 e 2 e improcedente a intimação quanto ao pedido formulado em 3.

A Requerente apelou para o TCA Sul e este concedeu provimento ao recurso.

É desse Acórdão que a ACSS recorre (artigo 150.º/1 do CPTA).

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO
1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o STA «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. A Requerente, que é médica e portadora de deficiência visual graduada em 85%, concorreu, ao abrigo do DL nº 29/2001, de 3/02, ao «Procedimento concursal conducente ao recrutamento de pessoal médico para a categoria de assistente, da área de Medicina Geral e Familiar», destinado ao preenchimento de 378 postos de trabalho, tendo ficado colocada no ACES Lisboa Central – UCSP …...
Insatisfeita, dirigiu à ARSN e ao Júri do Concurso requerimento a manifestar a aceitação, sob reserva, daquela colocação e apresentou recurso administrativo circunscrito à escolha do Centro de saúde de colocação e ao não reconhecimento da prioridade que tinha nessa escolha, sustentando que tinha direito a ser colocada numa unidade pertencente aos Agrupamentos de Centros de Saúde do Grande Porto.
Não tendo obtido o deferimento da sua pretensão instaurou a presente intimação onde formulou os pedidos acima transcritos.
O TAF julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, no tocante aos pedidos formulados em 1 e 2, e improcedente a intimação quanto ao pedido formulado em 3.
Fê-lo pelas razões que se destacam:
“.....Estabelece o artigo 3º, nº 3, sob a epígrafe “Quota de emprego”, do Decreto-Lei nº 29/2001, de 3/02, que «Nos concursos em que o número de lugares a preencher seja de um ou dois, o candidato com deficiência tem preferência em igualdade de classificação, a qual prevalece sobre qualquer outra preferência legal.» e o seu artigo 8º, sob a epígrafe “Provimento”, que «1 - O provimento faz-se em duas fases, sendo primeiro preenchidos os lugares não reservados, pela ordem da lista de classificação final, seguindo-se-lhe o preenchimento dos lugares reservados, de entre candidatos com deficiência que não tenham obtido provimento na primeira fase, de acordo com a respectiva graduação. 2 - No caso de não haver candidatos com deficiência admitidos ou aprovados em número suficiente, os lugares reservados a que se referem os n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º podem ser preenchidos nos termos da primeira parte do número anterior
O provimento das quotas destinadas a portadores de deficiência é efetuada depois de uma divisão concreta entre quotas reservadas e não reservadas por Agrupamento de Centros de Saúde e respectivas Unidades Funcionais, para que as duas fases estabelecidas no citado artigo 8º se possam concretizar, porém, nos ACES identificados pela Requerente um tem dois lugares e os outros dois um lugar cada um, o que significa que a Requerente, nesses ACES, é positivamente descriminada através da “preferência em igualdade de classificação”, nos termos do citado artigo 3º, nº 3.
Como os candidatos providos nos postos de trabalho dos ACES identificados pela Requerente tinham uma classificação superior à sua, não era possível assegurar-lhe, em concreto, a escolha de um posto de trabalho nesses ACES.
Por todo o exposto, a pretensão da Requerente não pode obter provimento, por não ser possível, à luz do estatuído no Decreto-Lei nº 29/2001, de 3/02, assegurar-lhe, em concreto, a possibilidade de escolha de um estabelecimento integrado no Agrupamento de Centros de Saúde Grande Porto VIII – Espinho/Gaia, no Agrupamento de Centros de Saúde Grande Porto VII – Gaia ou no Agrupamento de Centros de Saúde Porto Ocidental.”

A Autora recorreu para o TCA e este revogou aquela decisão pelas razões que se transcrevem:
“…
Ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, não há aqui que subsumir a situação em apreço ao disposto no artigo 3.°, n.° 3 do Decreto - Lei n.°29/2001, de 3/02, por não nos encontrarmos já na fase de admissão a concurso e funcionamento imediato da quota de emprego.
.....
Verdadeiramente, a norma constante do n.º 3 do artigo 3.° do Decreto Lei n.º 29/2001, de 3/02, estabelece tão somente um critério de desempate, uma ordem de preferência, numa situação específica: em caso de igualdade de classificação quando o concurso tenha um ou dois lugares a preencher, será admitida a candidatura da pessoa com deficiência. Inexiste, pois, uma quota de emprego já que a pessoa com deficiência não seria sequer considerada se não estivesse em igualdade de classificação.
Em jeito de conclusão, afigura-se-nos que a aplicação da solução constante do n.º 3 do citado artigo 3.° a pessoa com deficiência levaria à inviabilização do direito de exercer a actividade profissional no contexto da função pública, para a qual foi admitida no concurso, de acordo com a lista final de candidatos admitidos, por não ocorrer uma situação de igualdade de classificação.
...... É que, sendo o concurso a que se submeteu a Recorrente um concurso a nível nacional, impunha-se que tivesse sido efectuada a indicação concreta das vagas destinadas a opositores com deficiência e que a respectiva distribuição dessas vagas fosse efectuada proporcionalmente por todo o país ou por agrupamentos, muito embora com respeito pelo número global que integrava a quota relativamente às vagas enunciadas.
Doutro modo será muito difícil que as normas do Decreto - Lei n.º 29/2001, de 3/02, sejam inteiramente respeitadas e muito dificilmente os candidatos com deficiência lograrão obter colocação em lugares onde não existem vagas que lhes sejam destinadas.
Assim, em concursos com muitas vagas, onde apenas abstractamente é fixada uma quota para deficientes, não deve existir localmente um critério de desempate tendo em consideração a respectiva classificação.”

3. Como resulta do relato que antecede não se questiona, aqui, a admissão da candidatura da Recorrida ao concurso a que os autos se reportam nem a classificação que ela aí obteve já que a contradição de julgamentos ocorrida nas instâncias resulta unicamente dos termos em que se procedeu à sua colocação na unidade de saúde e à forma como nessa escolha interferiu o disposto no art.º 3.°/3 do DL n.º 29/2001.
Com efeito, lê-se nesse normativo que «Nos concursos em que o número de lugares a preencher seja de um ou dois, o candidato com deficiência tem preferência em igualdade de classificação, a qual prevalece sobre qualquer outra preferência legal.», o que levou o TAF a entender que discriminação positiva do deficiente nos casos como o dos autos faz-se através da “preferência em igualdade de classificação”, entendimento que o TCA contrariou de forma algo confusa mas donde concluiu que aquela interpretação “levaria à inviabilização do direito de exercer a actividade profissional no contexto da função pública, para a qual foi admitida no concurso, de acordo com a lista final de candidatos admitidos, por não ocorrer uma situação de igualdade de classificação.”
Nesta conformidade, e tendo em conta a contradição de julgamentos, que o Acórdão recorrido foi tirado com um voto de vencido, a importância jurídica e social da questão e a necessidade da intervenção deste Tribunal para o seu esclarecimento justifica-se a admissão do recurso.

DECISÃO
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Sem custas.
Porto, 9 de Setembro de 2019. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.