Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0613/02
Data do Acordão:02/11/2003
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:ROSENDO JOSÉ
Descritores:AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA.
CONCEITO VAGO OU INDETERMINADO.
PRINCÍPIO DA IGUALDADE.
INTERESSE PÚBLICO.
PONDERAÇÃO.
Sumário:I - A decisão de conceder autorização excepcional de residência nos termos do artigo 88.º do DL 244/98, de 8/8, está dependente de «reconhecido interesse nacional» ou "razões humanitárias" expressões com acentuado grau de indeterminação que à Administração cumpre preencher em cada caso.
II - Quando o requerente daquela autorização excepcional invoca casos que identifica, decididos favoravelmente pelo mesmo órgão, os quais considera iguais ao seu, a Administração, para indeferir, está vinculada a apresentar os elementos de facto dos respectivos procedimentos e ponderar se aqueles casos tinham efectivamente as mesmas características e a fazê-lo de forma que tenha o mínimo de demonstração objectiva no procedimento e, não o fazendo, desrespeita a vinculação que consiste na exigência de ponderação, imposta pelos artigos 266.º n.º 1 da Const. e 4.º do CPA, e a decisão está inquinada de violação de lei.
Nº Convencional:JSTA00058875
Nº do Documento:SA1200302110613
Data de Entrada:09/04/2002
Recorrente:A...
Recorrido 1:SEA DO MINAI
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC.
Meio Processual:REC CONT.
Objecto:DESP SEA DO MINAI DE 2002/03/12.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA.
Legislação Nacional:CPA91 ART4.
DL 244/88 DE 1988/08/08 ART88.
CONST97 ART266 N1.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção do Contencioso Administrativo do STA:
I - Relatório.
A ...
Interpôs o presente recurso contencioso de anulação do despacho de 12 de Março de 2002 do Senhor SECRETÁRIO DE ESTADO ADJUNTO DO MINISTRO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Que indeferiu o pedido de concessão de autorização de residência formulado ao abrigo do actual artigo 88.º do DL 244/98, de 8 de Agosto, com as alterações do DL 4/2001, de 10 de Janeiro.
Em resumo fundamenta assim o recurso:
- Entrou em Portugal em 8 de Maio de 1999 e reside desde então ininterruptamente em Portugal.
- A permanência em Portugal não contraria de modo algum o interesse nacional a medida em que possui condições de habitabilidade e razoável estabilidade económica,
- O Artigo 88.º do DL 244/98 deve ser interpretado extensivamente de acordo com o artigo 13.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, onde se consagra a liberdade de circulação, nomeadamente de emigrar, o que implica que os estados mais desenvolvidos não efectuem uma interpretação restritiva das leis de imigração.
- Não deve pois recusar-se autorização de residência por razões humanitárias a quem vem de um país que não tem condições para assegurar ao requerente um mínimo de condições de vida.
- Não pode o pedido ser indeferido a quem trabalha em Portugal desde 8 de Maio de 1999, quando tem concedido esse direito, em situações semelhantes a outros cidadãos estrangeiros, pelo que o acto enferma de violação do artigo 4º. do CPA.
- Do acto não se retira quais os elementos probatórios e qual o raciocínio lógico que o motivaram, violando o artigo 125.º n.º 1 do CPA.
A entidade recorrida respondeu em resumo:
- As razões do pedido do recorrente têm carácter individual e não há interesse nacional para autorizar a residência.
- Não há violação dos artigos 4.º e 5.º do CPA, nem falta de fundamentação, sendo a situação analisada em pormenor no relatório do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
Em alegação final o recorrente reafirma a posição da petição de recurso e a entidade recorrida manteve e resumiu os mesmos argumentos da resposta.
O EMMP emitiu douto parecer em que opina pela improcedência do recurso por considerar que não se descortina o reconhecido interesse nacional para a concessão da autorização, antes se revela uma situação fungível e indiferenciada e, por outro lado considera o acto fundado em motivação explícita e suficiente.
Colhidos os vistos legais vêm os autos à conferência.
II – A Matéria de Facto Provada.
A) Em 27 de Janeiro de 2000 A ...., natural de Luanda, residente na ...., Amadora, requereu autorização de residência em Portugal , ao abrigo do artigo 88.º do DL 244/98, de 8 de Maio de 1999.
B) Em 18.10.2001 insistiu pela apreciação do pedido indicando sete casos anteriores em que teria sido concedida a pretensão e que considerava situações idênticas à sua.
C) O SEF analisou o pedido nos termos da informação de 26.11.2001, de fls. 43-47 do instrutor apenso, cujos termos se dão por reproduzidos, em que considera como determinante para a proposta de indeferimento:
A aplicação do regime requerido dependia da verificação de situação excepcional de reconhecido interesse nacional e a situação que refere no pedido – trabalho que lhe faculta meios de subsistência e falta de antecedentes criminais – é situação de normalidade e não de excepcionalidade.
Não é de considerar que a procura de melhoria das condições de vida se reconduza a situação humanitária para os efeitos do art.º 88, o que esvaziaria de sentido e conteúdo o regime legal de entrada e permanência de estrangeiros no país.
D) O recorrente foi ouvido sobre a proposta de decisão contida na referida informação, sem que se tenha pronunciado.
E) Em relatório de 26 de Fevereiro de 2002 o SEF retoma os argumentos da anterior informação e propõe o indeferimento do pedido nos termos de fls. 54-57 do apenso, remetendo para as razões da informação.
F) A entidade recorrida com data de 02.03.12 emitiu o seguinte despacho:
"Concordo com os fundamentos e razões aduzidas na informação, a qual considero parte integrante deste despacho, pelo que, e no uso da competência que me foi delegada pelo Despacho n.º 52/01, publicado no DR, II Série, n.º 2, de 3.01.01, indefiro o pedido."
III – Apreciação. O Direito.
1. Impõe-se iniciar o conhecimento do recurso pela conclusão do recorrente que refere que o pedido não podia ser indeferido a quem trabalha em Portugal desde 8 de Maio de 1999, quando tem sido concedido esse direito, em situações semelhantes a outros cidadãos estrangeiros, pelo que o acto enfermaria de violação do artigo 4º. do CPA.
Efectivamente, a prioridade a conceder ao conhecimento deste vício resulta de a sua procedência determinar a renovação do acto com elementos novos a recolher pela Administração.
2. Vejamos pois se ocorre este vício.
O artigo 4.º do CPA dispõe:
“Compete aos órgãos administrativos prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.”
Preceito que aliás decorre directamente do artigo 266.º n.º 1 da Constituição ao dispôr:
“A Administração Pública visa a prossecução do interesse público no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.”
Pretendem estas normas garantir a ponderação comparativa de interesses pela Administração, fazendo sobre ela impender o dever de se munir de todas as informações de facto e de direito relevantes para o caso concreto, e de as pesar comparativamente, com vista a uma adequada definição jurídica das posições em presença. Daí que a intervenção do recorrente ao indicar no requerimento de 4.10.2001, a identidade dos requerentes e os processos apreciados no mesmo departamento, que versando situações iguais à sua teriam obtido deferimento, ao contrário do tratamento que obteve, determine a vinculação da Administração a apresentar os dados de facto relativos a essas situações, analisá-las e, caso sejam idênticas, explicitar a diferente valoração que delas efectuar, pois de outro modo não estará a respeitar a exigência de ponderação dos interesses que o interessado pediu no exercício de uma vertente do direito de participação no procedimento que lhe assiste.
Como refere a doutrina “ ... a obrigação de ponderação de todos de todos os interesses em concreto relevantes, constitui para além de um inegável reforço quantitativo dos vínculos jurídicos da Administração Pública, um verdadeiro reforço qualitativo da vinculação jurídica da actividade administrativa, seja qual for a sua natureza” – Vd. Maria Teresa de Melo Ribeiro, O Princípio da Imparcialidade da Administração Pública, Coimbra 1996, p. 160.
No caso concreto, o artigo 88.º do DL 244/98, de 8/8, estabelece dois critérios para a selecção dos casos excepcionais de concessão da autorização de residência que prevê, que são o reconhecido interesse nacional e as razões humanitárias.
Estes critérios, porém, são ainda muito fluidos, deixam uma larga margem de liberdade no preenchimento do conceito e, quando assim sucede, o modo como a Administração preenche o critério em casos concretos está limitado pela observância do princípio geral de ponderação e respeito dos interesses protegidos, a concretizar aqui como o direito de ver o seu caso apreciado em condições de igualdade com os que pretendem obter autorização de residência e se encontram em situações de facto idênticas.
O recorrente que tinha indicado expressamente e identificado procedimentos concluídos perante o mesmo órgão, nos quais teria havido deferimento e que seriam situações iguais à sua, tinha direito a que, no acto a praticar em que o seu interesse podia ser, e foi, desatendido, a Administração fornecesse os elementos de facto desses casos, e que os analisasse para demonstrar se eram ou não semelhantes e se fossem semelhantes, as razões do diferente tratamento, em suma à ponderação comparativa com o tratamento e decisão que mereceram aqueles outros procedimentos.
Esta exigência específica assume especial relevância em casos como aquele que aqui se aprecia, em que existe um espaço de liberdade da Administração no preenchimento de conceitos genéricos ou indeterminados.
Este espaço de liberdade abre campo de aplicação e torna mais instante o ónus de densificar a ponderação de forma patente por meio da indicação dos factos pertinentes e da valoração que deles efectuou a Administração.
Ou seja, precisamente a circunstância de se tratar de emitir acto em que a decisão pressupõe o preenchimento de conceitos indeterminados dá lugar a que tenha plena aplicação o princípio geral da prossecução do interesse público no respeito pelos interesses protegidos dos cidadãos que passa a funcionar como instrumento de controle directo da legalidade do acto administrativo.
Ao lado do referido princípio e em conjunto com ele a igualdade de tratamento assume nestas circunstâncias o papel de vincular a Administração a ponderar os elementos que vai escolher para integrar os conceitos abertos em harmonia com aqueles que antes tenha considerado para os casos apontados como iguais, e o desrespeito desta regra pode constituir violação de lei. Pode, assim falar-se a este propósito de reforço ou aprofundamento da vinculação da actividade administrativa, por forma que a Administração fica obrigada a considerar critérios, parâmetros e conjuntos de elementos factuais para a resolução de casos também idênticos e viola os princípios gerais de direito administrativo, consagrados constitucionalmente, da igualdade de tratamento e da ponderação dos interesses dos particulares na obtenção desse tratamento igual se decidir sem efectuar essa ponderação de modo objectivo, o que exige alguma expressão desse esforço, no procedimento.
Na prolação do acto em que existe uma margem de liberdade no preenchimento de conceitos como “interesse nacional” e “razões humanitárias” a Administração instada a confrontar-se com decisões favoráveis anteriores não pode, sem incorrer no vício de falta de ponderação dos interesses protegidos dos particulares, indeferir a pretensão sem analisar o que se passou naqueles procedimentos concretamente identificados e caso tenha alterado os sinais e factos usados para preencher aquele critério, justificar a alteração do seu juízo.
No caso, o procedimento mostra que nenhuma apreciação ou ponderação foi efectuada quer na informação, quer no relatório de apreciação quer no acto final, sobre a existência e conteúdo daqueles casos alegadamente iguais, pelo que se mostra violada a vinculação que impendia sobre o órgão decisor.
O acto recorrido viola, portanto o disposto nos art.ºs 266.º n.º 1 da Const. e 4.º do CPA pelo que está afectado de violação de lei.
IV – Decisão.
Em conformidade com o exposto acordam em conceder provimento ao recurso anulando o acto recorrido por vício de violação de lei.
Sem custas.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2003
Rosendo José – Relator – Políbio Henriques – João Belchior (vencido, essencialmente, porque considero que a questão traduzida a final em vício de procedimento, e tal como é analisada no acórdão, não foi suscitada pelo recorrente).