Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0408/02
Data do Acordão:02/05/2003
Tribunal:3 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:ABEL ATANÁSIO
Descritores:AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA.
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO.
Sumário:I - A prova de identidade e nacionalidade de cidadão de estado-membro da CE, para efeitos de atribuição de cartão de residência, compete, em primeira linha, ao próprio interessado.
II - Todavia, estando este impossibilitado de apresentar os respectivos documentos comprovativos, deve a Administração, oficiosamente, promover as diligências necessárias à determinação da situação do requerente, por força do princípio do inquisitório (artº 87° e 91 do CPA e 24°, n° 2 do Dec. Lei n° 60/93, de 3/3).
III - Tendo a Administração recusado a emissão do referido Cartão de Residência com fundamento na não apresentação do Bilhete de Identidade ou Passaporte válido, omitindo tais diligências, na situação referida, padece tal acto de vício procedimental decorrente de violação das citadas normas.
Nº Convencional:JSTA00058769
Nº do Documento:SA1200302050408
Data de Entrada:03/13/2002
Recorrente:A...
Recorrido 1:SEA DO MINAI
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC CONT.
Objecto:DESP SEA DO MINAI DE 2001/12/13.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - ASILO / AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA.
Legislação Nacional:DL 60/93 DE 1993/03/03 ART3 B ART15 A ART16 C ART24 N2.
CPA91 ART56 ART87 ART88 ART91.
Referência a Doutrina:ESTEVES DE OLIVEIRA E OUTROS CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 2ED PAG418.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
I - RELATÓRIO
A..., divorciado, empresário, residente na Rua ..., n° ..., ..., ... - ..., Sintra, recorre do despacho de 13 de Dezembro de 2001, do SECRETÁRIO DE ESTADO ADJUNTO DO MINISTRO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA, proferido no uso da delegação de competência conferida pelo Despacho n° 52/2001, de 18 de Dezembro de 2000, do Ministro da Administração Interna publicado no DR II Série n° 2, de 3 de Janeiro de 2001, que lhe indeferiu o recurso hierárquico que interpusera do acto da Directora Regional de Lisboa e Vale do Tejo e Alentejo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que lhe negou a emissão de cartão de residência de nacional de um Estado Membro das Comunidades Europeias.
O Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, notificado para o efeito, respondeu oferecendo o merecimento dos autos.
O Recorrente alegou formulando as seguintes conclusões:
1.- O despacho recorrido concorda com os fundamentos aduzidos nas pronúncias de fls. 284, 225 e 226 do processo administrativo.
2.- Foi determinante para a decisão recorrida a circunstância de o ora Recorrente não ter feito prova da sua nacionalidade.
3 - O Recorrente entende que são públicas e notórias as suas identidade e nacionalidade, que, ademais, sempre foram reconhecidas por todas as autoridades administrativas e judiciais intervenientes, pelo que a evidência não carece de prova.
4.- Contudo, se assim por mera hipótese não se entendesse, sempre a Administração deveria então, em obediência ao princípio do inquisitório, praticar a diligência instrutória complementar que averigue do reconhecimento pelas competentes autoridades do Estado Espanhol da invocada nacionalidade do Recorrente.
5.- O despacho recorrido, ao indeferir a emissão do requerido Cartas de Residência de Estado membro da Comunidade Europeia, violou, assim, o disposto na alínea b) do artº 3°, na alínea a) do n° 1 do artº 15° e na alínea c) do artº 16°, todos do DL 60/93 de 3 de Março, bem como o disposto nos n° 1 e 2 do artº 87°, conjugados com o n° 1 do artº 88° e n° 2 do artº 91°, todos do Código de Procedimento Administrativo
6.- O despacho recorrido violou, assim, os princípios da igualdade, proporcionalidade, justiça e imparcialidade consagrados nos artºs. 5° e 6° do CPA e artºs. 13° e 266° da Constituição da República Portuguesa.
A Autoridade Recorrida notificada para alegar , reiterando a posição manifestada na resposta, ofereceu o merecimento dos autos.
O Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu Parecer no sentido de ser julgado procedente o presente recurso contencioso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II - MATÉRIA DE FACTO
Com interesse para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos.
a) Em 19 de Março de 1999 , o ora Recorrente requereu, ao abrigo e nos termos do disposto na alínea b), do artº 3°, alínea c) do artº 16° e n° 1 do artº 24° do DL 60/93, de 3 de Março, a emissão do Cartão de Residência de Nacional de um Estado Membro da Comunidade Europeia, título de residência previsto na alínea a) do n° 1 do artº 15° daquele diploma.
b) Sobre este requerimento foi exarado pela Senhora Directora Regional de Lisboa, Vale do Tejo e Alentejo, do Serviço de Estrangeiros e Fronteira, o despacho de indeferimento, datado de 3 de Abril de 2001, com fundamento de que o requerente não fizera prova da sua nacionalidade, através da apresentação de bilhete de identidade ou passaporte válido.
c) Deste despacho, o Recorrente interpôs, em 22 de Maio de 2001, recurso hierárquico para o Senhor Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna.
d) Sobre este recurso foi proferida a informação de fls. 225-226 do P.I., que aqui se dá por reproduzida, a qual reitera o teor do despacho referido em b).
e) Com a data de 13 de Dezembro de 2001, o Senhor Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, indeferiu aquele recurso nos seguintes termos:
"Concordo com a proposta, de acordo com os fundamentos aduzidos na presente pronúncia e na pronúncia junta a fls. 225 e 226.
Remeta-se ao SEF para os efeitos devidos".
e) Por oficio com a data aposta de 3 de Janeiro de 2002, recepcionado a 7 de Janeiro, foi este despacho notificado ao Recorrente.
f) Em 8 de Março de 2002, o Recorrente interpôs o presente recurso contencioso daquele despacho de indeferimento.
g) O recorrente não possui bilhete de identidade nem passaporte válidos, não tendo conseguido obtê-los junto das autoridades espanholas.
III - O DIREITO
O presente recurso contencioso vem interposto do despacho do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, que indeferiu o recurso hierárquico que o Recorrente interpusera do acto da Directora Regional de Lisboa e Vale do Tejo e Alentejo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que lhe havia indeferido a emissão de cartão de residência de nacional de um Estado membro da Comunidade Europeia ao abrigo das normas constantes dos artigos 3°, al. b), 15°, al. a) e 16° al. c), todos do DL 60/93 de 3 de Março.
O Despacho recorrido apropriou-se da fundamentação constante do parecer junto pelos Serviços, que, basicamente, assenta no argumento de que, nos termos da legislação citada, a emissão de um título de residência é condicionada pela possibilidade que é conferida ao Estado de formular várias exigências , sendo uma delas a apresentação de um bilhete de identidade ou passaporte válidos. Ainda na senda deste "entendimento", defende-se naquele parecer que a dispensa desta exigência formal relativamente ao Recorrente, A..., configuraria uma violação dos princípios da igualdade, justiça e imparcialidade, pelo que o indeferimento da solicitada emissão do cartão sempre seria de manter.
Vejamos.
O DL n° 60/93, de 3/3, como resulta expresso do respectivo preâmbulo transpôs para a ordem jurídica interna várias directivas comunitárias relativas ao direito de residência e à liberdade de estabelecimento de nacionais de estados membros.
Relativamente à autorização de residência, resultam das directivas transpostas os seguintes princípios:
1) Os Estados-membros admitem no seu território os nacionais de um estado-membro mediante simples apresentação do bilhete de identidade ou passaporte válidos;
2) O direito de residência é comprovado pela emissão de um documento denominado "Cartão de Residência de Nacional de um Estado-membro das Comunidades Europeias";
3) A apresentação de documento ao abrigo do qual entrou no território;
4) Os Estados membros só podem derrogar tal directiva por razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública - cfr. Directivas n° 64/221/CEE, de 25.02.64, n° 68/360/CEE, de 15.10.68, n° 73/148/CEE, de 21.05.73, e n° 90/364/CEE, de 28.06.90.
O Recorrente, nas conclusões das suas alegações, aduz que são pública e notória a sua identidade e nacionalidade, e que sempre foram reconhecidas por todas as autoridades administrativas e judiciais intervenientes, pelo que, sendo evidentes, não carecem de prova.
Mais refere que, ainda que assim se não entendesse, sempre estaria a Administração obrigada a praticar as diligências instrutórias pertinentes à determinação rigorosa da situação do requerente, atento o princípio do inquisitório.
Ora o n° 2 do artigo 24°, do DL 60/93, faz impender sobre a Administração o dever de promover as diligências necessárias à rigorosa determinação da efectiva situação do requerente, o que, de resto, não lhe seria difícil, atento o historial processualmente documentado que, por certo, consta dos serviços do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
De resto, este princípio do inquisitório, consagrado em termos genéricos no artigo 56° do Código do Procedimento Administrativo, e aflorado ainda nos artigos 87°, 88° e 91°, todos daquele Código, consiste num dever de (conhecimento e) averiguação oficiosa e obrigatória dos factos relevantes para a rigorosa determinação da situação do requerente.
O artigo 87° do Código do Procedimento Administrativo dispõe:
"1- O órgão competente deve procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento, podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitida em direito.
2- Não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, bem como os factos de que órgão competente tenha conhecimento em virtude do exercício das suas funções."
Em comentário a este artigo 87° do CPA, dizem MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA; PEDRO COSTA GONÇALVES E J. PACHECO DE AMORIM in "CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO" COMENTADO, 2ª Edição, Reimpressão, Almedina, página 418 e seguintes:
"Este dever de (conhecimento e ) averiguação oficiosa e obrigatória dos factos e interesses relevantes no procedimento constitui a vertente material ou "de conhecimento" do princípio do inquisitório, com que já deparámos em anotação ao artigo 56°.
A intensidade desse dever revela-se bem no facto de ele não ficar prejudicado nem relativamente aos factos que o interessado não tenha alegado para sustentação da sua posição procedimental (ver artº 88°, n° 1) nem, mesmo, perante a sua eventual falta de colaboração na respectiva prova (artº 91°, n°
De resto, é o próprio artº 87° que estabelece que o órgão competente deve (tem de) procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a decisão do procedimento...
...na verdade, por este preceito, os órgãos administrativos não estão nunca dispensados de desenvolver a actividade instrutória adequada à verificação dos pressupostos legais em cada situação concreta com que se deparem."
E mais adiante:
"Assim, em sede de instrução, a actividade do órgão competente será também vinculada quanto à procura e ao conhecimento dos pressupostos legais da decisão do procedimento...
...Neste sentido, escreveu-se no acórdão do STA de 18.II.1988 (in AD nº 323, pág. 1362) que "a falta de diligências reputadas necessárias para a constituição da base fáctica da decisão afectará esta não só se (tais diligências) forem obrigatórias (violação do princípio da legalidade), mas também se a materialidade dos factos não estiver comprovada, ou faltarem, nessa base, factos relevantes, alegados pelo interessado, por insuficiência de prova que a Administração poderia e deveria ter colhido (erro nos pressupostos de facto)".
Ou seja, as omissões, inexactidões, insuficiências e os excessos na instrução estão na origem do que se pode designar como um déficit de instrução, que redunda em erro invalidante da decisão...”
Os n° 2 e 3 do artigo 91° do CPA dispõem ainda que:
"2- A falta de cumprimento da notificação é livremente apreciada para efeitos de prova, consoante as circunstâncias do caso, não dispensando o órgão administrativo de procurar averiguar os factos, nem de proferir a decisão.
3- Quando as informações, documentos ou actos solicitados ao interessado sejam necessários à apreciação do pedido por ele formulado, não será dado seguimento ao procedimento, disso se notificando o particular."
Ora, relativamente à identidade e nacionalidade do Recorrente, que não podem considerar-se factos notórios, se é certo que a sua prova cabe, em primeira linha, ao próprio interessado, essa prova pode ser realizada por recurso a outros procedimentos, registos administrativos, ou que constem dos arquivos, quer com recurso a diligências instrutórias junto das instâncias competentes, designadamente quando, como é o caso, se mostra inviável ao requerente fazê-la. Por outro lado, a nacionalidade do requerente está reconhecida em diversos outros processos, tanto administrativos, como judiciais, que a Administração não pode razoavelmente ignorar.
Assim, a existir um eventual incumprimento da determinação do instrutor do procedimento relativamente à prova da identidade e nacionalidade do requerente, tal não dispensa aquela de procurar averiguar os factos, tanto mais que no presente caso é manifesta a impossibilidade do recorrente conseguir obter tais elementos face ao seu relacionamento com as autoridades espanholas que, como é do domínio público, têm envidado esforços para conseguir extraditá-lo para Espanha. E, dada essa específica situação do recorrente não se vislumbra que a iniciativa da Administração pudesse violar os princípios da igualdade, da justiça e da imparcialidade, tal como esta alega.
Assim, a Administração, por força dos apontados normativos, e atentas as circunstâncias do caso, estava obrigada a realizar as diligências necessárias para suprir os documentos em falta.
Não o tendo feito, violou as apontadas normas procedimentais, o que gera a anulabilidade do acto recorrido.
IV - DECISÃO
Nesta conformidade, com prejuízo das restantes questões suscitadas, acordam em conceder provimento ao recurso, anulando o acto impugnado.
Sem custas, por delas estar isenta a Entidade Recorrida.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 2003
Abel Atanásio – Relator – Angelina Domingues – Madeira dos Santos