Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0361/18.5BEVIS
Data do Acordão:06/22/2022
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:IRS
MAIS VALIAS
VALORES MOBILIÁRIOS
VALOR DE REALIZAÇÃO
CONTRA PRESTAÇÃO
Sumário:I - Na alienação de participações sociais com cláusula de ajustamento do preço, constitui valor de realização para os efeitos do artigo 44.º, n.º 1, alínea f) do CIRS o que resultar do preço definitivo;
II - Se o valor definitivo não for conhecido antes de decorrido o prazo para a entrega da declaração de rendimentos, o valor de realização a declarar é o que estiver então ajustado;
III - Mas se, entretanto, a Administração Tributária apurar, em ação de inspeção externa, que foi acordado o preço definitivo, é esse o valor a considerar na liquidação correspondente.
Nº Convencional:JSTA000P29592
Nº do Documento:SA2202206220361/18
Data de Entrada:11/06/2020
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A....
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. O REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu recorreu da douta sentença daquele Tribunal que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial deduzida por A…., contribuinte fiscal n.º ….., com domicílio indicado na Rua …… n.º …, Repeses, 3500-… Viseu e que teve por objeto o ato de liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) n.º 2018 5000891283, relativa ao ano de 2016, no montante de € 61.942,87.

Com a interposição do recurso apresentou alegações, que rematou com as seguintes conclusões: «(...)

A. Incide o presente recurso sobre a douta sentença que julgou parcialmente procedente a impugnação, cingindo-se o âmbito do presente recurso ao segmento decisório que determinou a anulação - da correção inspetiva - ao valor de realização a considerar para efeitos da mais-valia e, por consequência, ao segmento decisório relativo ao direito aos juros indemnizatórios.

B. Para efeito de anular a correção inspetiva ao valor de realização (pela inspeção tributária foi alterado o valor de realização inicialmente declarado pelo sujeito passivo), o decisor afirmou que “É inquestionável que na data limite de entrega da declaração de rendimentos e à míngua de ser estabelecido valor distinto, impendia sobre o Impugnante o dever de apresentar a declaração Mod. 3 nela constando a totalidade do preço acordado com o comprador”, todavia, “À data da conclusão do relatório final da ação inspetiva é manifesto que o valor “definitivo” do preço se encontrava já fixado, por acordo das partes…”

C. Considerou o Tribunal a quo que, apesar de o impugnante estar onerado com o dever legal de inscrever na declaração de rendimentos relativa ao ano de 2016, a título de valor de realização, a totalidade do preço provisoriamente acordado (obrigação que não cumpriu e que veio a ser corrigida em sede inspetiva), estando o valor de realização definitivo acordado antes de concluída a ação inspetiva (o que concretamente sucedeu em fevereiro de 2018), deveria a AT abster-se de concretizar a aludida correção ao valor de realização, pois que “…conhecendo-se a fixação definitiva do preço antes do término da ação inspetiva, mal andou a IT ao fixar como rendimento um valor que sabia não o constituir porquanto tinha sido já acordada a redução do preço”.

D. Isto porque, no dizer da decisão sob crítica, “A circunstância do n.º 7 do art.º 44.º do CIRS prever a entrega da declaração de substituição em janeiro do ano seguinte não é impeditiva da apresentação da declaração antes daquela data (nenhuma norma impede a prática de um ato, seja processual ou administrativo, antes do prazo para tal se iniciar, o que eventualmente se pode impedir é a prática do ato para além do prazo)”.

E. Ora, é contra esta interpretação, formulada na decisão recorrida, da norma estabelecida no art. 44º n.º 7 do CIRS que a Fazenda Pública se insurge no presente recurso.

F. O julgador considerou que, nos casos em que o valor de realização definitivo (das mais-valias) é conhecido depois de decorrido o prazo normal de entrega da declaração, é admissível a apresentação da declaração de substituição de IRS em qualquer momento anterior a janeiro do ano seguinte ao do conhecimento desse valor definitivo, portanto, fora do prazo taxativamente previsto na norma.

G. Na liquidação impugnada, entendeu a inspeção tributária que, não estando, na data limite de entrega da Modelo 3, definido o valor de realização definitivo, deveria o titular do rendimento ter declarado (no prazo normal, portanto em maio de 2017) como valor de realização o correspondente à contraprestação, o que teria resultado num apuramento de imposto (correspondente à liquidação impugnada) que deveria ter entrado nos cofres, no limite, até 31 de agosto de 2017, o que não aconteceu.

H. Isto sem prejuízo de ao sujeito passivo ser permitido – em homenagem ao princípio da tributação de acordo com o rendimento real – apresentar uma declaração de substituição (em janeiro de 2019, ano seguinte ao do conhecimento do valor de realização definitivo), corrigindo o valor de realização em face deste se ter tornado definitivo, naturalmente respeitando as disposições legalmente previstas, incluindo em matéria de prazos, para concretizar essa correção fiscal (deste acerto – no caso, favorável ao sujeito passivo - resultaria um possível reembolso, sem que isso implicasse qualquer direito a juros).

I. Consideramos que o erro de julgamento em que incorreu a sentença radica no facto de ter admitido, na sua interpretação do art. 44º n.º 7 do CIRS, que a declaração de rendimentos de substituição, a inscrever o valor definitivo do valor de realização pode ser apresentada sem respeitar o prazo especial que a norma expressamente consagra.

J. Na interpretação que fazemos da norma - art. 44º n.º 7 do CIRS - decorre a consagração de um prazo específico e especial, diverso do prazo geral, em que tal declaração substitutiva, com o preenchimento dos valores definitivos, deve ser entregue pelo sujeito passivo

K. Ao analisar-se o preceito em causa logo se alcança qual o termo inicial do período, a partir do qual a declaração de rendimentos de substituição deve ser apresentada, e bem assim, qual o momento final para o cumprimento dessa obrigação declarativa.

L. É, portanto, nesse intervalo temporal – e não em qualquer outro momento, como defende a sentença em análise – que a declaração de substituição tem de ser entregue.

M. Devendo, ainda, acrescentar-se que, para efeitos do disposto no art. 44º n.º 7 do CIRS, afigura-se-nos ser juridicamente irrelevante a circunstância de estar em curso uma ação inspetiva, de tal ação já ter terminado ou de ainda não ter sequer iniciado, cingindo-se a verificação inspetiva a validar da conformação legal dos elementos declarados (em momento anterior) pelo sujeito passivo do IRS.

N. No art. 44º n.º 7 do CIRS o legislador estabeleceu rigorosamente um período temporal concreto (o que significa que não pode ser antes nem depois…), devendo ainda acrescentar-se que a jurisprudência (Acórdão do STA, Proc. n.º 0203/14 de 26/03/2014) convocada na douta sentença – com a qual concordamos integralmente – se nos afigura inaplicável à situação em presença.

O. Tanto mais que não estamos perante a definição de um prazo que tenha natureza processual, nem tampouco que se encontre inserido num enquadramento procedimental.

P. Diferentemente, trata-se de prazos relativos a obrigações acessórias dos sujeitos passivos (cfr. art. 31º n.º 2 da LGT), cuja definição está sujeita ao princípio da legalidade tributária, conforme o estabelece a alínea c) do n.º 2 do art. 8º da LGT.

Q. Trata-se de um prazo destinado aos sujeitos passivos do imposto, que, por razões de certeza e segurança jurídica, se impõe a definição de um concreto período para cumprimento de uma obrigação tributária, a qual, como sabido é, é suscetível de implicar a alteração da respetiva situação tributária, com a reliquidação de imposto inicialmente apurado (seja em sentido favorável ao contribuinte, seja em benefício do erário público), bem se compreendendo assim que exista um prazo específico para esse efeito.

R. Existem, a bem dizer, relevantes razões de certeza e de segurança jurídica - razões que assistem, em igual medida, a ambos os sujeitos da relação jurídico-tributária (pois que, da reliquidação do IRS decorrente do respeito pelo prazo especial constante na norma em análise, pode até resultar imposto superior ao inicialmente apurado) -, para que o prazo especialmente previsto no art. 44º n.º 7 do CIRS seja temporalmente situado e limitado.

S. Assim, ao admitir que a declaração de rendimentos (de substituição) decorrente de ajustamentos, positivos ou negativos, ao valor definitivo de realização que seja conhecido depois de ultrapassado o prazo (normal) de entrega da declaração de rendimentos, possa ser apresentada em momento anterior a janeiro do ano seguinte ao que esse valor definitivo é conhecido pelo sujeito passivo, o raciocínio decisório procede a uma incorreta interpretação do disposto no art. 44º n.º 7 do CIRS.

T. Aí reside o erro de julgamento da decisão sob crítica.

U. Erro de julgamento que, por consequência, se projecta e inquina o segmento decisório relativo ao direito aos juros indemnizatórios. Pois que,

V. Tendo por base a motivação que antecede e em face da interpretação do art. 44º n.º 7 do CIRS que neste recurso se defende, considera a Fazenda Pública que, na situação em análise, o direito a juros indemnizatórios deve ter como momento inicial não a data do pagamento da liquidação (30.05.2018, cfr. facto Q do Probatório), mas sim a data em que o sujeito passivo teria direito à reliquidação do imposto (e subsequente restituição do excesso), caso a declaração de substituição tivesse sido apresentada em janeiro de 2019.

W. Neste conspecto, deve entender-se que o eventual excesso resultante da reliquidação do IRS nunca seria concretizado antes de 01.02.2019, data que deve considerar-se como o momento inicial do direito a juros indemnizatórios, os quais, como a decisão recorrida bem refere, estão limitados ao montante que resultar excessivamente pago, em virtude da subsistência de algumas correções inspetivas.

X. O erro de julgamento da decisão sob recurso radica, portanto, numa incorreta interpretação do art. 41º do CIRS e no seu reflexo em sede de direito a juros indemnizatórios.

Y. Erro de julgamento que impõe, nestes segmentos, o desaparecimento da ordem jurídica da sentença recorrida.».

Pediu fosse dado provimento ao presente recurso e fosse a sentença revogada nos segmentos recorridos, com as legais consequências.

O Recorrido apresentou contra-alegações, que condensou nas seguintes conclusões: «(…)

1) O Recorrido acompanha integralmente os muito bem elaborados e rigorosos fundamentos de facto e de Direito, que apontam e sustentam a legal e justa sentença recorrida pelo RFP, para o Supremo Tribunal Administrativo.

2) Contrariamente ao preconizado pelo recorrente nas suas alegações, o tribunal a quo, ao reconhecer o direito a juros indemnizatórios sobre a importância anulada, contados desde a data do pagamento, decidiu corretamente.

3) A Fazenda Pública reclama contra o entendimento do Tribunal a quo de serem devidos juros indemnizatórios desde a data do pagamento da liquidação (30.05.2018), porque entende que deviam ser calculados a partir da data em que o sujeito passivo teria direito à reliquidação do imposto, em sequência da entrega da declaração de substituição, o que nunca seria antes de 01.02.2019.

4) Com fundamento em que o Tribunal não podia ter decidido que da interpretação do artigo 44º nº 7 do CIRS, decorre que a declaração de rendimentos de substituição, decorrente de ajustamentos, positivos ou negativos, ao valor definitivo de realização que seja conhecido depois de ultrapassado o prazo normal de entrega da declaração de rendimentos, possa ser apresentada em momento anterior a janeiro do ano seguinte ao que esse valor definit[iv]o é conhecido pelo sujeito passivo.

5) Porque defende que o art.º 44º nº 7 do CIRS, consagra um termo inicial do período no qual a declaração de rendimentos de substituição deve ser apresentada, e bem assim, o momento final para o cumprimento dessa obrigação declarativa.

6) E assente nesse pressuposto de facto errado, o recorrente defende que é nesse intervalo temporal, e não em qualquer outro momento, que a declaração de substituição tem de ser entregue, e de que é juridicamente irrelevante a circunstância de estar em curso uma ação inspetiva, de tal ação já ter terminado ou de ainda não ter sequer iniciado.

7) E conclui que esse erro de julgamento se projeta na decisão de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, pois entende que os mesmos serão devidos não a partir da data do pagamento do imposto, como se decidiu na sentença recorrida, mas sim da data em que o sujeito passivo teria direito à reliquidação do imposto decorrente da entrega da declaração de substituição (que nunca seria antes de 01.02.2019).

8) A única questão que coloca no presente recurso, diz respeito ao termo inicial de cálculo dos juros indemnizatórios.

9) A douta sentença recorrida, no que respeita à decisão sobre os juros indemnizatórios é do seguinte teor: “No caso em apreço, e de harmonia com a factualidade assente, a liquidação impugnada resultou da iniciativa dos serviços da administração tributária e, como resulta da apreciação antes efetuada, deu origem a pagamento de imposto superior ao devido, quer em resultado da imputação do valor inicial do negócio como valor de realização, quer pela reafectação dos encargos de alienação (como é reconhecido no relatório inspetivo).”

10) A liquidação impugnada decorre de um procedimento inspetivo e das correções que dele resultaram e da consequente liquidação adicional, e não da entrega de uma declaração de substituição, ou da mera possibilidade dessa entrega como conjetura o recorrente.

11) A liquidação contestada foi anulada, por erro imputável aos serviços da Administração Fiscal, como resulta de forma clara e objetiva na sentença recorrida, na parte em que decidiu o direito a juros indemnizatórios, como aqui se realça “a liquidação impugnada resultou da iniciativa dos serviços da administração tributária” e “deu origem a pagamento de imposto superior ao devido”

12) Segundo se interpreta a posição do Representante da Fazenda Pública, este defende que a causa de anulação do ato tributário, seria a reliquidação do imposto caso a declaração de substituição tivesse sido apresentada em janeiro de 2019.

13) O que acarretaria que o pagamento do imposto, a restituição do eventual excesso e o direito a juros indemnizatórios nunca seria concretizado antes de 01.02.2019.

14) A posição defendida pelo recorrente está errada, pois a causa da anulação do ato tributário, é o ato ilegal praticado pela Administração Tributária em sequência das correções efetuadas pela inspeção, e não a possível entrega de uma declaração de substituição.

15) A liquidação impugnada é um ato da autoria da Administração Tributária, no qual esta toma uma posição acerca da situação tributária do contribuinte, pelo que o recorrente não pode dizer que é irrelevante a circunstância de estar em curso uma ação inspetiva, de tal ação já ter terminado ou ainda não ter sequer iniciado, quando a liquidação decorre precisamente dessa inspeção tributária.

16) Estando assim excluída a pretensa entrega de uma declaração de substituição como causa da anulação do presente ato tributário, também está excluída a responsabilidade de indemnização por pagamento de imposto indevido a partir da reliquidação dessa declaração.

17) E sempre se diga, que a questão que é levantada pelo recorrente, tem uma resposta clara e evidente na lei.

18) Quanto ao período de contagem de juros, dispõe o art.º 61º nº 5 do CPPT que os juros indemnizatórios são contados desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da nota de crédito.

19) Verificando-se os pressupostos para o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, impõe-se o seu pagamento, devendo os mesmos serem liquidados no período que decorre da lei.

20) Se a lei fixa um prazo para a liquidação e pagamento de juros indemnizatórios, não se compreende a tese do recorrente, em que

21) defende como termo inicial de contagem um prazo que é contrário à lei, em flagrante violação do princípio da legalidade.

22) Pelo que não resulta seguramente da lei a interpretação defendida pelo recorrente.

23) Quanto à razão de ser do artigo 44º nº 7 do CIRS, o mesmo estatui um procedimento que foi criado pelo legislador para se apurar o valor das mais-valias sujeito a tributação.

24) Trata-se, pois, de um procedimento que tem em vista comunicar à AT um facto para o cálculo do imposto.

25) Neste caso a inspeção procedeu ao cálculo do imposto, e teve conhecimento do valor definito do contrato antes do ter concluído a inspeção tributária.

26) Pelo que o Tribunal a quo decidiu corretamente ao considerar que o facto de o prazo de entrega da declaração de substituição a que alude o artigo 44º nº 7 do CIRS ainda não ter decorrido não era impeditivo para a Administração Tributária efetuar o cálculo das mais-valias, considerando como valor de realização o valor definito do contrato.

27) A interpretação do Meritíssimo Juiz está de acordo com a razão de ser da lei.

28) Face ao exposto, a sentença recorrida não incorreu em erro de julgamento de direito, por erro na interpretação do art.º 44º nº 7 do CIRS, pelo que improcede, destarte, a pretensão do Recorrente.

O recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito devolutivo.

Remetidos os autos a este tribunal, foi aberta vista ao Ministério Público.

O Ex.mo Sr. Procurador-Geral Adjunto lavrou douto parecer, que a seguir se transcreve parcialmente: «(…)

Constituem mais – valias os ganhos resultantes da alienação onerosa de partes sociais (cfr artigo 10º, nº1, alínea b) do CIRS),

Ou seja, a diferença entre o valor de aquisição (o custo documentalmente provado – cf artigo 48º alínea b) do CIRS) e o valor da realização (artigo 44º do CIRS).

As mais-valias são, assim, tributadas em sede de IRS, categoria G (Incrementos patrimoniais), pela diferença entre o valor de aquisição das participações sociais e o da sua realização, à data desta, com os abatimentos devidos.

Ora, in casu, o valor de realização da alienação das participações sociais foi precariamente fixado, estabelecendo-se provisoriamente um valor e prevendo-se prazo e termos para a sua revisão.

A fixação do valor “definitivo” ocorreu depois do prazo de entrega normal da declaração de rendimentos do ano de 2016, mas antes da data de conclusão do relatório final da acção inspectiva.

Nesta conformidade, concordamos com a douta sentença recorrida ao decidir que a Administração Tributária não devia ter fixado como valor da venda o inicialmente fixado, mas sim o valor definito,

Não procedendo a pretensão da AT de tributar o Impugnante, ora Recorrido por uma mais-valia que não obteve, baseada apenas na justificação de que o prazo de entrega da declaração de substituição ainda não decorreu.

Na verdade, conhecendo a AT a fixação definitiva do preço antes do términus da acção inspectiva, não podia ter fixado um valor que sabia não ser real, porque tinha sido acordado a redução do preço,

Uma vez que, salvo o devido respeito por melhor opinião, não é pelo prazo de entrega da declaração de substituição ainda não ter decorrido, que impede a AT de fixar o valor definitivo do contrato.

A circunstância do artigo 47º nº 4 do CIRS prever a entrega da declaração de substituição em Janeiro do ano seguinte não é impeditiva da apresentação da declaração antes daquela data,

Pois nenhuma norma impede a prática de um acto, seja processual ou administrativo, antes do prazo para tal se iniciar.

O que eventualmente se pode impedir é a prática do acto para além do prazo.

Nesta conformidade e como refere a douta sentença recorrida, “a IT dever-se-ia de abster de fixar como valor de venda o inicialmente fixado e corrigir a declaração apresentada pelo contribuinte a seu favor, pelo valor definitivo, na medida em que o princípio da legalidade lhe impõe que pratique os atos devidos mesmo que sejam desfavoráveis ao erário público”.

E no que concerne ao pagamento dos juros indemnizatórios, salvo o devido respeito por melhor opinião, os mesmos são devidos a partir do pagamento indevido da dívida tributária, nos termos do n.º 1 do art. 43.º da LGT,

Uma vez que neste preceito legal se exige, como condição para que sejam atribuídos juros indemnizatórios, que “se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços…”.

E como salientam DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, “O erro imputável aos serviços que operaram a liquidação fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou a impugnação dessa mesma liquidação e o erro não for imputável ao contribuinte” (Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª edição, 2012, anotação 2 ao art. 43.º, pág. 342.).

Por outro lado, facto de esse erro ter ocorrido, não no acto de liquidação em sentido estrito, mas em fase anterior do procedimento de liquidação, não deixa de relevar, desde que tal erro se repercuta no acto final (Nesse sentido, JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário, Áreas Editora, 2011, 6.ª edição, volume I, nota 5 b) ao art. 61.º, pág. 530, que diz:

“Embora não se refira expressamente, no n.º 1 deste art. 43.º, que o acto viciado por erro deve ser um acto de liquidação, são os actos deste tipo os que provocam directamente o pagamento de uma dívida tributária e, por isso, terá de ser a actos daquele tipo que se reporta esta disposição.

No entanto, para afectar o acto de liquidação, o erro pode ocorrer em qualquer acto anterior, inserido no processo global de liquidação, desde que o acto final venha a nele assentar.

Será o caso de erro no acto de fixação da matéria colectável que é a base do acto de liquidação”.

O que, in casu, sucedeu.

Assim, e na ausência de norma especial que fixe outro dies a quo para a contagem dos juros indemnizatórios (cf. as alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, deve ter-se como aplicável o n.º 5 do artigo 61.º do CPPT.

O que significa que os juros indemnizatórios são devidos desde a data do pagamento indevido do IRS, ou seja, desde 30 de Maio de 2018 (cf. alínea Q) do probatório)

O recurso não merece, pois, provimento.».

Foram dispensados os vistos legais, pelo que cumpre decidir em conferência.


◇◇◇

2. Ao abrigo do disposto no artigo 663.º, n.º 6 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 679.º do mesmo Código, dão-se aqui por reproduzidos os factos dados como provados em primeira instância.

◇◇◇

3. Vem o presente recurso interposto da parte da douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu que anulou «a liquidação impugnada na parte em que reflete a correção ao valor de realização» considerado na determinação dos ganhos obtidos com a alienação de participações sociais [alínea “i.” da decisão].

Com o assim decidido não se conforma a Recorrente Fazenda Pública, por entender que foi incorretamente interpretado o artigo 44.º, n.º 7, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares [doravante “CIRS”].

No entendimento da Recorrente, este dispositivo legal deve ser interpretado no sentido de que os ajustamentos ao valor de realização não podem ser considerados antes de poder ser submetida a declaração de substituição.

E como a declaração de substituição só pode ser submetida durante o mês de janeiro do ano seguinte àquele em que é conhecido o valor de realização definitivo, os ajustamentos correspondentes não poderiam, no caso, ser considerados antes de 2019.

O correto enquadramento do litígio não dispensa algumas considerações preliminares.

Conforme referido no relatório de inspeção tributária e na alínea “E” dos factos dados como provados da sentença recorrida, o ora Recorrido vendeu, em 2016, a totalidade do capital social de duas sociedades pelo preço global de € 3.374.997,00.

Todavia, o ponto 4.4 do contrato de venda de ações respetivo previa um ajuste ao preço de venda, baseado nos desvios que viessem, entretanto, a ser apurados em relação a valores estimados de «liquidez geral» dessas sociedades e do «capital de giro».

E o ponto 4.5 do mesmo contrato previa um calendário para o ajustamento do preço.

Assim, à data em que foi apresentada a primeira declaração de rendimentos relativa ao ano de 2016 (declaração 2720-2016-J0699-33, de 12 de julho de 2017) ainda decorria o prazo contratual para o ajustamento do preço de venda.

Nessa data, porém, as negociações já se encontrariam adiantadas, porque o Recorrido já tinha apresentado uma «proposta de ajustamento» de € 174.197,00 face ao valor inicial e a favor do comprador, tendo este apresentado uma «contraproposta de ajustamento» a seu favor de € 509.939,00 (ver a pág. 8, nota 6, do relatório a que alude alínea “N” dos factos provados).

Pelo que aquela declaração de rendimentos já refletia o valor mínimo dos ajustamentos que, naquela data, já resultava do processo negocial.

No entanto, a fiscalização tributária não aceitou o valor do ajustamento considerado nessa declaração. Por não corresponder ao valor da contraprestação previsto no artigo 44.º, n.º 1, alínea f), do CIRS, mas a um ajustamento desse valor ainda em negociação.

Razão porque, a final, foi proposta a correção ao valor de realização indicado naquela declaração (cfr. ponto IX.5 do relatório de fiscalização, primeiro parágrafo).

Entretanto, na fase de audição prévia do procedimento de inspeção, o Recorrido já tinha chegado a acordo quanto ao valor final do ajustamento do preço de venda, pelo que apresentou uma declaração de substituição que contemplava esse valor (declaração 2720-2016-J0715-50, de 22 de fevereiro de 2018).

No entanto, a fiscalização tributária não aceitou a declaração do ajustamento final ao valor da realização, por entender que ela só poderia ser apresentada em janeiro do ano seguinte, face ao disposto no artigo 44.º, n.º 7, do CIRS.

Razão porque, a final, foi proposta a desconsideração dos valores inseridos nessa declaração, «por extemporaneidade» (cfr. ponto IX.5 do relatório de fiscalização, segundo parágrafo).

Na sentença recorrida foi entendido, por um lado, que a Administração se deveria ter abstido de fixar como valor de venda o «inicialmente fixado». E o que daí decorre é que foi entendido, além do mais, que não deveria ter sido corrigido, no sentido em que o foi, o valor inscrito na primeira declaração de rendimentos como valor de realização.

Mas também foi entendido, por outro lado, que o princípio da legalidade impõe à Administração «que pratique os atos devidos mesmo que sejam desfavoráveis ao erário público». E o que daí decorre é que foi entendido, também, que a Administração deveria ter aproveitado a atividade inspetiva para corrigir o valor inscrito como valor de realização, considerando já o valor de realização definitivo.

Ora, o que aqui temos são duas questões, embora relacionadas entre si: a questão de saber qual o valor que deveria ter sido inscrito na declaração inicial; e a questão de saber se a Administração deveria ter considerado o valor definitivo, independentemente dele ter sido declarado pelo contribuinte, ou de o ter sido no momento próprio.

A elas nos dedicaremos nos pontos seguintes.

4. Como se sabe, na alienação onerosa de partes sociais, considera-se valor de realização o da respetiva contraprestação – artigo 44.º, n.º 1, alínea f), do CIRS.

O termo «contraprestação» deve ser interpretado com o sentido que é utilizado no direito civil, como deriva do artigo 11.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária.

O legislador remete-nos, assim, para o conceito de preço contratual. Isto é, para o valor acordado no contrato de compra e venda das participações sociais.

Sucede que, no contrato de compra e venda de participações sociais, é muitas vezes acordado que o preço é ajustável em função das contas do fecho. Isto sucede porque entre a data da celebração do contrato e a data da sua execução podem ocorrer vicissitudes que interferem com o valor das participações e da empresa.

Nestes casos, o valor da contraprestação a considerar é o valor definitivo, isto é, o valor que resultar dos ajustamentos ao valor de realização.

Por um lado, porque é o «verdadeiro» ou «efetivo» valor da contraprestação. Por outro lado, porque é este o valor que permite aceder ao valor do ganho efetivamente obtido.

Em suma, entende-se por valor de realização, na alienação de participações sociais com cláusula de ajustamento do preço, o valor correspondente ao preço que resultar dos ajustamentos acordados.

Mas aqui surge outro problema: os ajustamentos podem ser realizados depois do período de tributação e até depois da data em que a realização do negócio deva ser declarada.

Foi a esse problema que, no fundo, o legislador pretendeu resolver com o n.º 7 do artigo 44.º do CIRS, que foi introduzido pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro.

Se na data em que deve ser apresentada a declaração de rendimentos já for conhecido o valor definitivo, é este que deve ser declarado.

Caso contrário, o valor definitivo deve ser declarado durante o mês de janeiro do ano seguinte em que for efetuado o ajustamento.

O legislador não especificou ali qual o valor que deve ser indicado na primeira declaração. Mas resulta do sobredito que é o valor que já tiver sido ajustado. Não por dever ser considerado o valor da contraprestação, mas por ser o que se lhe aproxima. E que, por isso, deve ser considerado enquanto o valor da contraprestação não estiver (definitivamente) determinado.

O valor que já tiver sido ajustado será o valor inicialmente acordado (por vezes também designado de preço de referência), se não tiver sido feito nenhum outro ajustamento. Valerá como primeiro ajustamento do preço.

Será o do último ajustamento já realizado, se tiver havido, entretanto, algum outro acordo firmado a coberto da cláusula do ajustamento do preço.

Resulta do sobredito que o n.º 7 do artigo 44.º do CIRS não serve para definir o valor da contraprestação quando existe cláusula do ajustamento do preço, mas apenas para regular o cumprimento das obrigações declarativas.

Pelo que não estamos perante uma norma que que concorra para a identificação dos elementos quantitativos de incidência, mas perante uma regra para o procedimento de determinação do rendimento coletável. E que, em rigor, deveria ter sido enquadrada na secção X do Código.

Resulta também do sobredito que o que se pretendeu foi que o sujeito passivo, no cumprimento das suas obrigações declarativas, indicasse os ajustamentos ao valor já realizados. Declarasse o estado em que se encontrava a execução do contrato, quanto à cláusula do ajustamento do preço.

Assim sendo, o que se declara perante a Administração Tributária é, precisamente, o estado em que se encontra a execução o contrato. E é o que nela se pode presumir como verdadeiro, não obstando a correções ao valor de contraprestação fundadas em factos posteriores que relevem para a sua determinação e, por conseguinte, para o conhecimento da matéria tributável real.

Pelo que também não estamos perante uma norma que deva ser oposta aos poderes de averiguação e de correção dos órgãos inspetivos. O valor da contraprestação pode ser corrigido mesmo que não tenha havido erro ou omissão na sua indicação pelo sujeito passivo e desde que existam factos posteriores a relevar para a sua determinação.

Dos elementos dos autos resulta que o contrato de alienação de participações sociais em causa continha uma cláusula de ajustamento do preço, a executar em prazo que ultrapassou o da apresentação da primeira declaração de rendimentos do período em causa.

Isto significa que o valor de realização nela indicado não correspondia nem podia corresponder ao valor de contraprestação. Porque a cláusula de ajustamento do preço ainda não tinha sido executada.

Só que, no caso, o ora Recorrido também não inseriu nessa declaração de rendimentos e no espaço reservado ao valor de realização nenhum valor que tivesse sido acordado ou ajustado.

Designadamente, não foi inserido como valor de realização o ali denominado valor global de venda.

O que o ora Recorrido ali inseriu foi o valor que resultava da sua própria proposta de ajustamento e que ele considerava constituir o pior cenário (“the worst case”) do ponto de vista do imposto a pagar.

E esse valor nunca constituiu nenhum preço que tivesse sido acordado. Pelo que também não podia constituir nenhum valor que pudesse valer como contraprestação para este efeito.

E, assim sendo, a sua pretensão a que esse valor fosse considerado como o valor de realização não teria cabimento legal.

Sucede, porém, que na data das conclusões do relatório de inspeção tributária (e, por isso, ainda antes da liquidação impugnada) já era conhecido o valor definitivo. Valor esse que representava um ajustamento a favor do vendedor ainda superior ao que o ora Recorrido tinha indicado na sua declaração de rendimentos.

Ora, decorre dos artigos 55.º da Lei Geral Tributária e 5.º e 7.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária que a Inspeção Tributária deve exercer as suas atribuições de forma proporcionada aos objetivos prosseguidos pelas ações inspetivas.

A nosso ver, a aplicação deste princípio obriga a Administração Tributária a abster-se de fazer correções às declarações apresentadas que contenham incorreções se for evidente que essas correções não aderem e nem sequer aproximam à verdadeira situação tributária do contribuinte. Porque a finalidade primeira da inspeção é precisamente a observação das realidades tributárias.

Por outro lado, decorre também dos artigos 58.º da Lei Geral Tributária e 6.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária que a Inspeção Tributária deve adotar oficiosamente as iniciativas adequadas à descoberta da verdade material.

A nosso ver, a aplicação deste princípio obriga a Administração Tributária a levar em conta nas conclusões do relatório a realidade oficiosamente apurada mesmo que não tenha sido declarada e mesmo que seja contrária aos interesses financeiros do Estado.

Assim sendo, a Administração Tributária, não só se deveria ter abstido de efetuar a correção no sentido em que o fez, como também deveria ter, por sua iniciativa, ter corrigido o valor de realização indicado, levando em conta já o valor definitivo, por corresponder ao verdadeiro valor da contraprestação.

A Recorrente Fazenda Pública contrapõe, a este propósito, que a definição de um concreto período para o cumprimento daquela obrigação tributária é imposta por razões de certeza e segurança jurídica.

E tem razão, até certo ponto. Porque este regime legal clarifica as obrigações declarativas numa fase em que o valor da contraprestação é relativamente indeterminado. E favorece a sua concentração, ao mesmo tempo que previne a sobreposição de sucessivas declarações de substituição. O que, por sua vez, promove a certeza e a segurança nas relações tributárias.

Mas são razões que, como devido respeito, não vêm ao caso. Porque a primeira declaração de rendimentos foi apresentada já na fase do início da ação de inspeção e a convite dos inspetores. E o preço definitivo foi apurado antes desta se ter concluído. O que significa que já era conhecido, porque já tinha sido acertado e de forma segura, o verdadeiro valor da contraprestação, antes de ter sido processada própria liquidação impugnada.

Pelo que a sua pretensão não pode ser acolhida. Nem na parte relativa ao valor de realização a considerar para efeitos de mais-valia nem na parte relativa à decisão quanto ao direito aos juros indemnizatórios correspondentes (já que esta parte do recurso depende integralmente da decisão dada à outra).

E, assim sendo, o recurso não merece provimento.


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5. Conclusões

5.1. Na alienação de participações sociais com cláusula de ajustamento do preço, constitui valor de realização para os efeitos do artigo 44.º, n.º 1, alínea f) do CIRS o que resultar do preço definitivo;


5.2. Se o valor definitivo não for conhecido antes de decorrido o prazo para a entrega da declaração de rendimentos, o valor de realização a declarar é o que estiver então ajustado;


5.3. Mas se, entretanto, a Administração Tributária apurar, em ação de inspeção externa, que foi acordado o preço definitivo, é esse o valor a considerar na liquidação correspondente.


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6. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Tribunal em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 22 de junho de 2022. - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro – Isabel Cristina Mota Marques da Silva.