Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:058/12
Data do Acordão:12/06/2012
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:COSTA REIS
Descritores:MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
LIBERDADE RELIGIOSA
DISPENSA DE SERVIÇO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA00067992
Nº do Documento:SA120121206058
Data de Entrada:01/23/2012
Recorrente:A......
Recorrido 1:CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:ACÇÃO ADM ESPECIAL
Objecto:DEL DO CSMP DE 2011/04/08
Decisão:IMPROCEDENTE
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACÇÃO ADM ESPECIAL
Legislação Nacional:L 16/2001 DE 22/06 ART14 N1 A
EMMP ART108 ART216 ART87
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

A……… propôs contra o CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO (doravante CSMP) a presente acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido cumulada com impugnação de acto administrativo e acção de simples apreciação para o que, em resumo, alegou:
- Exerce funções como Procuradora-Adjunta na comarca da ......... assegurando, em regime de turnos, o serviço urgente nos sábados, nos feriados que recaiam em segunda-feira e no 2.º dia feriado, em caso de feriados consecutivos.
- É membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia, organização religiosa com personalidade jurídica inscrita no registo de pessoas colectivas religiosas e, por essa razão, está obrigada a guardar o Sábado como dia de descanso, adoração e ministério, abstendo-se de todo o trabalho secular.
- Para que essa obrigação religiosa pudesse ser plenamente cumprida a referida Igreja enviou, no ano de 2010, ao Governo português uma lista com indicação dos dias de descanso relativos a 2011 e a Autora dirigiu requerimento ao seu superior hierárquico solicitando a dispensa do seu trabalho nos turnos marcados para os sábados que lhe cabiam fazer nesse ano, bem como autorização para compensar o trabalho nesses dias com outros dias de turno que não coincidissem com o Sábado.
- Pretensão que foi indeferida por duas vezes: a primeira pelo Acórdão CSMP, de 8/04/2011, e a segunda por deliberação do mesmo Conselho, de 11/10/2011, ambas com o fundamento de que a sua pretensão só podia ser deferida se a Requerente estivesse, nos termos do art.º 14.º/1/a) da Lei de Liberdade Religiosa (LLR), aprovada pela Lei n.º 16/2001, de 22/06, sujeita a um horário de trabalho flexível e de as funções por ela exercidas não corresponderem a esse tipo de horário.
- Entendimento que assenta numa interpretação inconstitucional da citada norma já que, estando o direito à liberdade de consciência, de religião e culto e o direito a escolher livremente a profissão consagrados constitucionalmente como direitos fundamentais invioláveis (art.ºs 41.º e 47.º/1 da CRP), não podia a LLR atentar contra os mesmos.
- Ambas as deliberações impugnadas estavam, assim, feridas de nulidade.
Finalizou o seu articulado formulando os seguintes pedidos:
a) Que se recusasse a aplicação do art.º 14.º/1/a) da Lei de Liberdade Religiosa quando interpretada no sentido constante das deliberações do CSMP de 8/04/2011 e 11/10/2011, de que a possibilidade de dispensa de trabalho por motivos religiosos apenas se verifica no tocante aos trabalhadores em regime de horário flexível, por ser materialmente inconstitucional.
b) Que se recusasse a aplicação daquela norma quando interpretada no sentido constante das deliberações do CSMP de 8/04/2011 e 11/10/2011 de que a escolha da profissão exercida pela Autora implicava a aceitação e cumprimento de todos os deveres inerentes a esse ofício, fazendo equivaler ao significado de deveres a impossibilidade de direitos, liberdades e garantias, sem que se verificassem os seus pressupostos de restrição, por ser materialmente inconstitucional por ofensa ao direito à liberdade de escolha da profissão consagrada no art.º 47.º/1 da CRP.
c) Que fosse declarada a nulidade da deliberação do CSMP de 8/04/2011
d) Que o Réu fosse condenado a, relativamente aos turnos já agendados, a dispensar a Autora da realização de turnos que coincidissem com os dias de sábado mediante a compensação de outros dias de turno que não coincidissem ao sábado
e) Que o Réu fosse condenado a, relativamente aos turnos não agendados, abster-se de atribuir à Autora turnos que coincidissem com os dias de sábado no sentido constante das deliberações do CSMP de 8/04/2011 e 11/10/2011
f) Que se reconhecesse à Autora o direito à guarda do dia de sábado, com abstenção de todo o trabalho secular, por ser o dia Santo na Igreja que professava e por tal constituir o núcleo essencial do direito à liberdade de consciência, religião e culto consagrado no art.º 41.º da CRP.

Contestando, o CSMP pôs em causa a idoneidade do meio processual escolhido sustentando que aos pedidos formulados pela Autora correspondiam três distintas formas de processo; aos três primeiros a acção administrativa especial de impugnação de acto administrativo; aos dois seguintes a acção administrativa especial para condenação à prática do acto devido; e, ao último a acção administrativa comum para reconhecimento de direito. E que, sendo assim, e sendo que o deferimento desta última pretensão acautelava todos os interesses por ela defendidos - na medida em que o reconhecimento do pleno exercício do direito à liberdade de culto na formulação que ela lhe dava supõe a ilegalidade das deliberações impugnadas e implicava a prática dos actos por ela reclamados - concluiu que o meio processual próprio era a acção administrativa comum.
De seguida, rejeitou que as deliberações impugnadas pudessem constituir uma restrição inadmissível do exercício do seu direito de culto e se traduzissem na violação do princípio da igualdade visto, por um lado, as mesmas não impedirem a Autora de praticar livremente a sua religião e, por outro lado, o deferimento da sua pretensão é que se traduziria numa inaceitável violação do princípio da igualdade na medida em que lhe conferiria um tratamento diferenciado dos Colegas que professassem religião diferente. Ademais, a proposta de compensar as suas faltas noutros dias de trabalho era inviável, atenta a organização e funcionamento do M.P., e poria em causa os valores superiores que este defende, que se sobrepõem aos direitos individuais da Autora. Acrescia que os actos impugnados não infringiam o princípio da proporcionalidade nem punham em causa o direito à liberdade de escolha da profissão.
Por fim, acrescentou que a decisão a proferir nesta acção poderá ficar prejudicada pelo que se vier a sentenciar no recurso jurisdicional pendente no processo 1078/11 já que se este obtiver provimento e, em consequência, o pedido nele formulado vier a ser julgado procedente esta acção perderá interesse. Requereu, assim, a suspensão da instância até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no identificado recurso.

No despacho saneador resolveram-se as identificadas questões prévias – falta de idoneidade do meio processual utilizado e existência de causa prejudicial – e, não havendo prova a produzir, ordenou-se a notificação das partes para alegações.

A Autora finalizou o seu discurso alegatório da seguinte forma:
1. A alínea a) do n.° 1 do artigo 14.° da LLR quando interpretada no sentido de que a possibilidade de dispensa de trabalho por motivos religiosos apenas se verifica quanto aos trabalhadores em regime de horário flexível padece de inconstitucionalidade material por violar os artigos 41.°, n.° 1, 18.° n.ºs 1, 2 e 3 e 13.°, n.ºs 1 e 2 da CRP, devendo ser recusada a sua aplicação quando interpretada neste sentido. Mais
2. Ao afirmar nas deliberações adoptadas que a escolha da profissão exercida pela Autora implica a aceitação e cumprimento de todos os deveres inerentes a esse oficio, fazendo equivaler ao significado de deveres a impossibilidade de exercício de direitos, liberdades e garantias, sem que se verifiquem os seus pressupostos de restrição, o Réu faz uma interpretação da alínea a) do n.° 1 do artigo 14.° da LLR que igualmente padece de inconstitucionalidade material por ofensa ao direito à liberdade de escolha da profissão, consagrada no n.° 1 do artigo 47.° da CRP, devendo, por esse motivo ser recusada a aplicação da norma da LLR quando interpretada nesse sentido.
3. Inconstitucionalidades essas que aqui expressamente se invocam para todos os efeitos legais, nomeadamente os previstos no artigo 280.° da CRP, devendo ser recusada a aplicação da alínea a) do n.° 1 do artigo 14.° da LLR.
4. Relativamente às concretas deliberações do Réu, de 08.04.2011 e de 11.10.2011, por ofenderem o conteúdo fundamental dos direitos, liberdades e garantias aqui referidos (artigos 41.°, n.° 1 e 47.°, n.° 1 da CRP), deverá ser reconhecida a sua nulidade, nos termos do disposto na alínea d) do artigo 133.° do CPA.
5. Consequentemente, deverá o Réu ser condenado a dispensar a Autora dos turnos marcados para os dias que coincidam com o dia de Sábado, já agendados, que serão integralmente compensados em dias de turno que não coincidam com o dia de Sábado, quer sejam de serviço urgente ou em períodos de férias judiciais que não coincidam com as suas férias pessoais.
6. Cumulativamente, no que se refere aos turnos que ainda não estejam agendados, deverá o Réu ser condenado a abster-se de atribuir à Autora os turnos que coincidam com o dia de Sábado, que serão, por esta, integralmente compensados em dias de turno que não coincidam com o dia de Sábado, quer sejam de serviço urgente ou em períodos de férias judiciais que não coincidam com as suas férias pessoais.
7. Pelos mesmos motivos deverá ainda ser reconhecido à Autora o direito à guarda do dia de Sábado — dia Santo para a Igreja Adventista do Sétimo Dia —, com abstenção de todo o trabalho secular, por constituir o núcleo essencial de um direito, liberdade e garantia de natureza inviolável e insusceptível de suspensão: o direito à liberdade de consciência, religião e culto consagrado no artigo 41.° da CRP.

O Conselho Superior do Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
a) As funções de um Magistrado do Ministério Público em Tribunais de ia instância são, pelas razões invocadas nas deliberações do CSMP que aqui se renovam e dão como reproduzidas e nos termos das normas aí invocadas, prestadas em regime de horário fixo;
b) A LLR, no seu artigo 14°, no 1, alínea a) só permite o exercício da liberdade de culto aos trabalhadores que, além de reunirem os demais requisitos, estejam sujeitos ao regime de horário flexível;
c) Esta exclusão dos demais trabalhadores que não beneficiem de horário flexível, não viola as normas dos artigos 41°, nº1, 18°, n.°s 1, 2 e 3, 13°, n.ºs 1 e 2, e 47.°, n.º 1, todos da CRP;
d) Ainda que assim não fosse, não tinha o CSMP a obrigação de não aplicar, à situação em presença a norma do artigo 14°, nº1, alínea a), da LLR, que apenas vincula os Tribunais, nos termos do artigo 204° da CRP.


FUNDAMENTAÇÃO


I. MATÉRIA DE FACTO
1. Tendo-se em conta os documentos juntos e posições assumidas pelas partes julgam-se provados os seguintes factos:
a) A Autora é Magistrada do Ministério Público exercendo, actualmente, funções como Procuradora-Adjunta na Comarca da ........., de acordo com a Deliberação do Conselho Superior do Ministério Público n.º 1058/2011, de 08 de Abril, publicada no Diário da República, 2.ª Série, n.º 80, de 26 de Abril de 2011 – Documento de fls. 66 a 74 junto ao processo 1078/11, que se dá por integralmente reproduzido.
b) Anteriormente, exercia funções no Tribunal Judicial da Comarca de ........., de acordo com a Deliberação do Conselho Superior do Ministério Público n.º 1545/2010, de 30 de Julho de 2010, publicada no Diário da República, 2.ª Série, n º 170 de 01 de Setembro de 2010 e assegurava ainda, em acumulação de funções, por força do Ofício 881/10 da Procuradoria-Geral Distrital de ........., a comarca de ......... – Documentos de fls. 75 a 89 junto ao processo 1078/11, que se dão por integralmente reproduzidos.
c) Para além do exercício das funções como Procuradora-Adjunta na comarca da ......... durante os dias úteis, a Autora encontra-se vinculada ao exercício de funções em regime de turnos para assegurar o serviço urgente previsto no Código de Processo Penal, na Lei de Saúde Mental e na Lei Tutelar Educativa que deve ser executado aos sábados, nos feriados que recaiam em segunda-feira e no 2.º dia feriado, em caso de feriados consecutivos.
d) O regime de organização de turnos para assegurar o serviço urgente para o ano de 2011 consta do Aviso n.º 615/2011, de 07 de Janeiro, publicado na 2.ª Série do Diário da República, n.º 5. - Documento de fls. 89 a 105 junto ao processo 1078/11, que se dá por integralmente reproduzido.
e) À data da publicação do referido Aviso, a Autora encontrava-se ainda a exercer funções nas comarcas de ......... e ..........
f) As referidas comarcas encontram-se de turno nos dias 29 de Janeiro, 12 e 19 de Março, 04 e 11 de Junho, 23 de Julho, 27 de Agosto, 03 de Setembro, 15 de Outubro, 26 de Novembro e 03 de Dezembro.
g) Na comarca da ........., para onde entretanto a Autora foi transferida, são as seguintes as datas acima indicadas coincidentes com o dia de Sábado, para o ano de 2011: 15, 22 e 29 de Janeiro, 05 de Fevereiro, 05, 12, 19 e 26 de Março, 23 e 30 de Abril, 07 de Maio, 04, 11, 18 e 25 de Junho, 23 e 30 de Julho, 06 e 13 de Agosto, 03, 10, 17 e 24 de Setembro, 22 e 29 de Outubro, 05 e 12 de Novembro e 10, 17, 24 e 31 de Dezembro.
h) A Autora é membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia, organização religiosa com personalidade jurídica e inscrita no registo de pessoas colectivas religiosas sob o n.º 592 001 350 – Documento de fls. 105 a 107 junto ao processo 1078/11, que se dá por integralmente reproduzido.
i) O termo sétimo dia é uma referência à crença no sétimo dia de semana (ou seja, o Sábado) como sendo o dia da semana que Deus estabeleceu para descanso físico e espiritual do homem.
j) Os adventistas do sétimo dia aceitam a Bíblia como sua única regra de fé e mantêm 28 (vinte e oito) Crenças Fundamentais como sendo o ensino das Escrituras Sagradas.
k) A aceitação dessas 28 (vinte e oito) crenças constitui um pré-requisito para adesão à Igreja.
l) A observância do Sábado (crença 20) como dia de descanso, adoração (o culto principal ocorre ao Sábado) e ministério, deve começar a partir do pôr-do-sol de Sexta-Feira até ao pôr-do-sol de Sábado.
m) Para manter o Sábado como dia Sagrado, os adventistas devem abster-se de todo o trabalho secular. – Documento de fls. 108 a 115 junto ao processo 1078/11, que dá por integralmente reproduzido.
n) A Igreja, de que faz parte a Autora, enviou, no ano de 2010, ao membro competente do Governo português a lista com indicação dos períodos horários dos dias de descanso relativos ao ano de 2011 – Documento de fls. 115 a 120 junto ao processo 1078/11, que se dá por integralmente reproduzido.
o) A relevância do dia de Sábado no âmbito da Igreja Adventista do 7º Dia é amplamente tratada em texto publicado pela Igreja Adventista do Sétimo Dia, intitulado “A Experiência do dia de Sábado num Adventista do 7.º Dia” - Documento de fls. 121 a 125 junto ao processo 1078/11, que se dá por integralmente reproduzido.
p) Nos termos desse texto “o período de 24 horas do Sábado (que segundo a Bíblia se estende desde o pôr-do-sol de Sexta-feira, até ao pôr-do-sol de Sábado - Levítico 23:32; S. Marcos 1:32) é mais do que descansar de um trabalho, implica a restauração completa, a renovação de energias, a recriação total do ser humano em todos os seus aspectos, inclusive o aspecto espiritual”, pelo que “Um dos objectivos do Sábado como dia de descanso é orientar o ser humano para Deus, através de um período de tempo específico onde o Homem possa, longe dos constrangimentos dos horários de trabalho e da corrida do dia-a-dia estar disponível para meditar, reflectir, louvar e reconhecer a importância da presença de Deus na sua vida.”
q) Em 14.01.2011, a Autora elaborou e enviou requerimento dirigido ao Exmo. Senhor Procurador-Geral Distrital de ......... solicitando a suspensão do seu trabalho nos turnos marcados para os dias 29 de Janeiro, 12 e 19 de Março, 04 e 11 de Junho, 23 de Julho, 27 de Agosto, 03 de Setembro, 15 de Outubro, 26 de Novembro e 03 de Dezembro todos do ano de 2011 no Círculo Judicial de ........., bem como autorização para compensar integralmente tais períodos laborais em dias de turno que não coincidam com o dia de Sábado, quer sejam de serviço urgente ou em períodos de férias judiciais que não coincidam com as suas férias pessoais – Documento de fls. 126 a 128 junto ao processo 1078/11, que se dá por integralmente reproduzido.
r) No dia 15.04.2011, já após ter sido transferida para a comarca da ........., a Autora recepcionou acórdão proferido pelo Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), em 08.04.2011, indeferindo o requerimento por si apresentado - Documento de fls. 132 a 139 junto ao processo 1078/11, que se dá por integralmente reproduzido.
s) Além da fundamentação autonomamente apresentada no acórdão, o CSMP remeteu ainda, com vista à justificação da sua posição, para o Parecer emitido pela Procuradoria-Geral Distrital de ........., conforme documento de fls. 140 a 144, junto ao processo 1078/11, que se dá por integralmente reproduzido.
t) Uma vez que, conforme supra referido, a Autora se encontra a exercer funções no Tribunal Judicial da ........., no dia 20.06.2011, enviou novo requerimento ao Conselho Superior do Ministério Público, solicitando a dispensa da realização dos turnos de Sábado já agendados para o ano de 2011 relativamente ao Procurador-Adjunto que veio substituir na comarca da ........., e a abster-se da posterior designação da requerente para realização de futuros turnos que coincidam com o dia de Sábado, mediante a compensação integral de tais períodos laborais em dias de turno que não coincidam com o dia de Sábado, quer sejam de serviço urgente ou em períodos de férias judiciais que não coincidam com as suas férias pessoais.
u) Por Deliberação do CSMP de 11.10.2011, foi acordado indeferir o pedido formulado pela Autora – Documento de fls. 155 a 159 junto ao processo 1078/11, que se dá por integralmente reproduzido.


II. O DIREITO.

Resulta do antecedente relato que, no essencial, a Autora visa obter duas pronúncias: por um lado, a declaração de nulidade da deliberação do CSMP, de 8/04/2011, que indeferiu o requerimento onde solicitava a dispensa da realização dos turnos, agendados e a agendar, para os dias de sábados e, por outro, a condenação daquele Conselho a reconhecer-lhe o direito a guardar esses dias para o cumprimento dos seus deveres religiosos, dispensando-a de neles trabalhar. Indeferimento que se fundamentou no entendimento de que as funções dos Magistrados do M.P junto dos Tribunais de 1.ª instância não são exercidas em regime de trabalho flexível e, por isso, não beneficiarem do disposto do art.º 14.º/1/a) da Lei n.º 16/2001, de 22/06 (Lei da Liberdade Religiosa, LLR).
Ora, a Autora considera que o M.P. é uma magistratura regida por um Estatuto próprio e que este não sujeita o exercício de funções dos seus agentes a um horário rígido de trabalho – como acontece com a Administração Pública – pelo que, desempenhando a sua actividade num regime de horário de trabalho flexível, ainda que sujeita ao dever geral de assiduidade, o indeferimento da sua pretensão com o fundamento de que estava sujeita a um horário rígido de trabalho e que, por isso, a sua situação não era integrável no disposto no art.º 14.º/1/a) da LLR, tinha sido ilegal. A não se entender assim – isto é, a considerar-se que aquela norma não contempla os trabalhadores que exercem a sua actividade em horário rígido de trabalho - haveria que recusar a sua aplicação por ela ser materialmente inconstitucional, dado atentar contra os direitos de liberdade de consciência, religião e culto e de escolha da profissão constitucionalmente consagrados.

São, assim, duas as questões que temos de resolver:
- a primeira, a de saber se os Magistrados do M.P. exercem as suas funções em regime de horário flexível de trabalho e se, por essa razão, podem beneficiar do legislado na citada norma da LLR;
- a segunda, no caso de se responder negativamente a esta interrogação, a de saber se aquela disposição será materialmente inconstitucional por se traduzir na violação dos invocados direitos com assento na CRP.
Vejamos, pois.

1. O M.P. é o órgão encarregado de representar do Estado, exercer a acção penal e defender a legalidade democrática e os interesses postos por lei a seu cargo (art.ºs 219.º/1 da CRP, 1.º do Estatuto do M.P. e 1.º da Lei Orgânica do MP) e, por essa razão, isto é, por as suas funções mais relevantes não serem de natureza meramente administrativa, o mesmo é regido por um Estatuto próprio e não pelas normas gerais que disciplinam a organização e funcionamento da Administração.
Todavia, essa circunstância não desobriga os seus membros de cumprir algumas das normas disciplinadoras do funcionamento da Administração Pública, já que o simples facto de pertencer a uma Magistratura com um Estatuto próprio e de lhe caber representar o Estado e defender os interesses postos por lei a seu cargo não a coloca, nesta matéria, numa situação de excepção em relação a todos os outros servidores públicos. E isto porque uma coisa são as funções que legislador (constitucional ou ordinário) pôs a cargo do M.P. como órgão do Estado e outra, bem diferente, é o tempo e a forma como elas são exercidas, não sendo a circunstância do M.P ser a magistratura encarregada de representar o Estado e de ter a seu cargo a defesa de valores constitucionalmente muito relevantes que dá aos seus Magistrados, ipso facto, o direito de exercerem as suas funções num regime de horário de trabalho flexível e de, por isso, poderem gerir em plena liberdade os momentos em que se encontram nos seus postos de trabalho (Nos termos do citado DL 259/98 horários rígidos sãoaqueles que, exigindo o cumprimento da duração semanal do trabalho, se repartem por dois períodos diários, com horas de entrada e de saída fixas idênticas, separados por um intervalo de descanso” aos quais se contrapõem os horários flexíveisque permitem aos funcionários e agentes de um serviço gerir os seus tempos de trabalho, escolhendo as horas de entrada e de saída” - (vd. seus art.ºs 15.º e 16.º).). Por ser assim é que, em várias e significativas matérias, subsidiariamente, o exercício das suas funções também está sujeito ao cumprimento de muitos dos deveres que obrigam todos os servidores públicos e sujeitos à observância da mesma legislação – vd., por ex., a relativa a matéria disciplinar e a incompatibilidades, deveres e direitos (art.º 216.º e 108.º do EMMP) -. Nesta conformidade, é improcedente a tese de que o facto das suas funções estarem regulamentadas em Estatuto próprio a exime da sujeição à totalidade da legislação que disciplina a Administração Pública ou os serviços que funcionam junto dos Tribunais.

Por outro lado, os Magistrados do M.P. exercem a sua actividade nos Tribunais ou em serviços administrativos próprios (art.º 215.º do EMMP) os quais funcionam nos horários estabelecidos na Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13/01.) que, nos dias úteis, decorrem das 9 às 12,30H e das 13,30 às 17H (art.º 122.º). E, porque assim é, quer enquanto dirigentes dos seus próprios serviços quer enquanto defensores nos Tribunais dos interesses postos a seu cargo pelo Estado, os Magistrados do M.P. têm de estar presentes durante os seus períodos de funcionamento, isto é, nos horários que a lei estabeleceu para esse efeito. A não ser assim a defesa desses interesses ou o regular funcionamento dos seus serviços não seria assegurada.
Só assim não seria se aquele Estatuto - diploma que em primeira linha rege o exercício das suas funções e estabelece os seus direitos e deveres - contivesse norma que, dispondo de modo diferente, os libertasse da obrigação de cumprir os referidos horários e lhes permitisse escolher as horas de entrada e saída. Só desse modo teria sentido sustentar que o regime do seu horário de trabalho era flexível e que, por isso, beneficiava do disposto na citada norma da LLR.
Ora, essa disposição não existe.

Com efeito, o capítulo II daquele Estatuto, sob a epígrafe “Incompatibilidades, deveres e direitos dos Magistrados”, é omisso em matéria de horários de trabalho pelo que não é nessa sede que se pode encontrar resposta para a questão que ora nos ocupa.
Todavia, não se pode deixar de atribuir significado a essa omissão a qual, a nosso ver, só pode significar que o legislador quis que aqueles Magistrados estivessem sujeitos ao horário dos serviços administrativos que dirigem ou das secretarias dos Tribunais onde exercem funções e não, como a Autora sustenta, isentos de horário de trabalho e de, assim, poderem desempenhar as suas funções nos tempos que melhor servissem as suas conveniências. Conclusão recolhe apoio no que se estatui nos art.ºs 85.º, 86.º, 87.º e 88.º do EMMP, pese embora nenhuma destas disposições se referir directamente a horários de trabalho.

Com efeito, tendo os Magistrados um domicílio necessário e só podendo ausentar-se dele em duas circunstâncias; por um lado, no período de férias e, por outro, fora desse período, quando tiverem sido dispensados (vd. art.ºs 85.º e 86.º) isso só pode querer dizer que aqueles Magistrados estão sujeitos a uma rígida vinculação no exercício das suas funções e que estas decorrem nos períodos de trabalho dos Tribunais ou dos serviços onde trabalham. Se essa vinculação não existisse e se aqueles Magistrados tivessem um horário de trabalho flexível não faria sentido legislar de forma a impedir que eles se pudessem ausentar da comarca sempre que o desejassem. De resto, pode acrescentar-se que, por vezes, essa vinculação toma formas discutíveis, como é o caso dos Magistrados durante o período de férias poderem, em certas circunstâncias, ser obrigados a regressar ao trabalho (art.º 105.º/5).
De igual modo, o art.º 87.º disciplina a ausência dos Magistrados do seu domicílio profissional estatuindo o seu n.º 2 que “não são contadas como faltas as ausências em dias úteis, fora das horas de funcionamento normal da secretaria, quando não impliquem falta a qualquer acto de serviço ou perturbação deste (Sublinhado nosso.) e o art.º 88.º estatui que o CSMP ou o Procurador-Geral Distrital podem conceder dispensa de serviço aos Magistrados do M.P para eles participarem em congressos, cursos, seminários, reuniões, etc., o que também só pode querer significar que os mesmos estão sujeitos a horário rígido de trabalho pois de contrário não necessitariam de tais autorizações.

Importa, assim, concluir que aqueles Magistrados estão sujeitos aos horários das secretarias judiciais ou dos serviços onde exerçam funções e, por isso, obrigados a cumprir o horário de trabalho que para eles está estabelecido na Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.

Por essa razão, tal como lhe foi dito no acto de indeferimento que aqui impugna, a Autora não pode beneficiar do disposto no art.º 14.º/1/a) da LLR já que este só se aplica a quem exerce as suas funções em regime de flexibilidade de horário.

Improcede, assim, a primeira das teses sustentadas pela Autora.

Resta analisar se tem razão quando argumenta que essa norma da LLR é materialmente inconstitucional.

2. A Autora sustenta que o art.º 14.º/1/a) da LLR (O qual tem a seguinte redacção:
Artigo 14.º
Dispensa do trabalho, de aulas e de provas por motivo religioso
1 - Os funcionários e agentes do Estado e demais entidades públicas, bem como os trabalhadores em regime de contrato de trabalho, têm o direito de, a seu pedido, suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam, nas seguintes condições:
a) Trabalharem em regime de flexibilidade de horário;
b) Serem membros de igreja ou comunidade religiosa inscrita que enviou no ano anterior ao membro do Governo competente em razão da matéria a indicação dos referidos dias e períodos horários no ano em curso;
c) Haver compensação integral do respectivo período de trabalho.
2 - Nas condições previstas na alínea b) do número anterior, são dispensados da frequência das aulas nos dias de semana consagrados ao repouso e culto pelas respectivas confissões religiosas os alunos do ensino público ou privado que as professam, ressalvadas as condições de normal aproveitamento escolar.
3 - Se a data de prestação de provas de avaliação dos alunos coincidir com o dia dedicado ao repouso ou ao culto pelas respectivas confissões religiosas, poderão essas provas ser prestadas em segunda chamada, ou em nova chamada, em dia em que se não levante a mesma objecção.”) quando interpretado no sentido de que a dispensa de trabalho por motivos religiosos podia beneficiar apenas os trabalhadores em regime de horário flexível e no sentido de que a escolha da profissão implicava a aceitação e cumprimento de todos os deveres inerentes a esse ofício, fazendo equivaler ao significado de deveres a impossibilidade de exercício de direitos, liberdades e garantias, sem que se verifiquem os seus pressupostos de restrição, era materialmente inconstitucional por violar os artigos 41.°/1, 47.º/1 18.°/1, 2 e 3 e 13.°/1 e 2 da CRP.
E porque foi essa a interpretação adoptada pelo acto impugnado haveria que concluir pela ilegalidades deste.
Vejamos se litiga com razão.

Nos termos do art.º 41.º da CRP “A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável” (n.º1) e “ninguém pode ser perseguido, privado ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosas.” (n.º 2).

“A liberdade de consciência consiste essencialmente na liberdade de opção, de convicções e de valores ou seja, a faculdade de escolher os próprios padrões de valoração ética ou moral da conduta própria e alheia. A liberdade de religião é a liberdade de adoptar ou não uma religião, de escolher uma determinada religião, de fazer proselitismo num sentido ou noutro, de não ser prejudicado por qualquer posição ou atitude religiosa ou anti-religiosa. A liberdade de culto é somente uma dimensão da liberdade religiosa dos crentes, compreendendo o direito individual ou colectivo de praticar os actos externos de veneração próprios de uma determinada religião. As duas primeiras liberdades (a liberdade de consciência e a liberdade de religião) integram a esfera nuclear dos direitos pessoais, não podendo ser sacrificadas nem sequer em caso de estado de sítio (cfr. art. 19°/6).” – G. Canotilho e V. Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., pg. 609.

Não tendo a Autora alegado que o indeferimento da sua pretensão era ilegal por ter decorrido do entendimento de que o art.º 14.º/1/a) da LLR lhe negava o direito de escolher a sua religião ou de livremente a professar, o que ora está em causa é saber se aquele normativo, na interpretação que dele fez o acto impugnado, veda à Autora o direito de praticar os actos externos de veneração próprios da sua religião, isto é, se a priva - ou limita irrazoavelmente - o seu direito de culto, pois foi aí que ela entreviu a inconstitucionalidade da referida norma e a consequente ilegalidade daquele indeferimento.
A primeira constatação a fazer nesta matéria é a de que se é verdade que dita norma não admite que alguém possa ser prejudicado no exercício dos seus direitos por motivos religiosos também o é que a mesma não consente que alguém possa ser isento do cumprimento dos seus deveres jurídicos ou dos seus deveres cívicos pelos mesmos motivos. - Vd. citada Obra, pg. 612.
E é tendo em conta essa premissa que se deve concluir que a resposta a dar à interrogação acima formulada só pode ser negativa.

Com efeito, e desde logo, o acto impugnado não impede a Autora de cumprir os seus deveres religiosos nos dias de turno a realizar aos sábados visto o trabalho exigido nesses dias preencher menos de um terço das suas 24 horas, o que quer dizer que ela poderá praticar as suas obrigações religiosas durante uma significativa parte desses dias. É certo que a realização do turno poderá condicionar o momento em que essa prática religiosa tem lugar mas essa limitação (a existir) não permite que se conclua que a mesma impossibilita o cumprimento dos seus deveres religiosos ou o restrinja de modo intolerável. Daí que, se não houvesse outra, esta razão bastava para se poder concluir que o indeferimento impugnado não violava o direito de culto da Autora e que, por ser assim, improcedia a alegação da sua ilegalidade com fundamento numa interpretação inconstitucional do que se dispõe no art.º 14.º/1/a) da LLR.
Acresce que, como decorre do que foi dito, o direito de culto só pode ser motivo de incumprimento dos deveres jurídicos ou dos deveres cívicos a que cada um está obrigado quando seja de todo impossível harmonizar o exercício desse direito com o cumprimento daqueles deveres e, consequentemente, quando seja absolutamente necessário sacrificar esse cumprimento com vista ao exercício do direito constitucionalmente prevalente. Ora, in casu, está por demonstrar que a conjugação desses direitos e deveres não possa ser feita sem violação de nenhum deles e isto porque não vem alegado que a Autora tenha de reservar todas as horas dos dias de sábado ao cumprimento dos seus deveres religiosos.
Ademais as extensas considerações que a Autora faz a propósito do direito à liberdade religiosa, na sua vertente de direito ao culto são, apesar de doutas, demasiado genéricas e imprecisas para que delas se possa extrair a conclusão que ela gostaria. Com efeito, tais considerações só poderiam ser atendidas se delas resultasse demonstrada uma evidente e insuperável impossibilidade de conjugação entre o exercício do direito de culto e a obrigação da Autora assegurar os turnos que lhe foram designados, o que a obrigava a indicar com rigor de que modo era, efectivamente, afectada pela realização desses turnos indicando, designadamente, quais os serviços religiosos que não cumpria em razão do turno, qual gravidade dessas faltas e se o cumprimento desses serviços não poderia ser substituído por outros serviços a praticar em diferentes dias. E sem essa indicação não se pode concluir que o direito de culto da Autora ficasse seriamente limitado
Ora, a verdade é que a Autora se limitou a fazer considerações sobre o direito de culto e a vagas e indemonstradas afirmações que o mesmo tinha sido violado.

De resto, importa não olvidar que as sociedades modernas são complexas e que muitos e relevantes são os direitos que elas garantem e que estes, por vezes, conflituam entre si pelo que, quando tal acontece, importa harmonizá-los da melhor forma de modo a que o exercício de cada um deles não prejudique o exercício dos outros procurando-se que, nessa conjugação, o sacrifício de cada um seja o menor possível. Sendo certo que quando haja necessidade de comprimir algum deles para salvaguarda dos restantes isso não significa que tenha havido uma restrição inconstitucional e a consequente violação do art.º 18.º da CRP. Veja-se o caso dos autos em que, em tese, poderiam estar em causa o direito à prática religiosa da Autora - que como se viu não está – e determinados direitos (por ex., o direito à segurança, à liberdade, etc.) cujo exercício muito depende da acção do M.P. Nesta conformidade, não se pode isolar o exercício do direito de culto do exercício dos restantes direitos nem sobrepô-lo, sem qualquer critério, sobre o cumprimento dos deveres cívicos e jurídicos que cada tem de observar e decretar que aquele, por estar constitucionalmente garantido, deve prevalecer sobre qualquer outro.

Ora, não está demonstrado que, ao indeferir a pretensão da Autora, o CSMP o tenha feito de forma a exceder o que era razoável exigir, nem a obrigou a sacrifícios desnecessários já que as obrigações ora postas em causa estão dentro do que era estritamente necessário fazer para assegurar a realização do interesse público. Podendo-se até acrescentar que para a realização deste interesse foi escolhida a medida que melhor o servia e que melhor conjugava o interesse público com o interesse dos Magistrados obrigados à realização de turnos nos dias de sábado. Ou seja, a limitação dos momentos em que é possível a prática religiosa nos dias de turno não só não é incompatível como o exercício do direito de culto como também não se traduz numa restrição intolerável, ou para além do razoável, daquela prática.
Não houve, pois, violação do princípio da proporcionalidade na forma como o acto impugnado interpretou o art.º 14.º/1/a) da LLR.

Finalmente, importa, ainda, referir que o cumprimento das complexas e importantes funções postas por lei a cargo do M.P e a forma de organização que tal supõe não é compatível com o modo como a Autora interpreta o art.º 41.º da CRP sendo certo, por outro lado, que o deferimento da pretensão da Autora colocá-la-ia numa situação de desigualdade e de privilégio em relação aos seus colegas que professassem outra religião já que lhe garantia o exercício de um direito que aos outros não era reconhecido. Aí sim é que é possível equacionar a violação do princípio da igualdade a qual, seguramente, não ocorre na formulação avançada pela Autora.

Improcede, assim, a conclusão de que a al.ª a) do n.° 1 do artigo 14.° da LLR quando interpretada no sentido de que a possibilidade de dispensa de trabalho por motivos religiosos apenas se verifica quanto aos trabalhadores em regime de horário flexível padece de inconstitucionalidade material ou a pretensão de que o acto impugnado seja ilegal por violação dos princípios da igualdade ou da proporcionalidade.

3. A Autora sustenta, ainda, que o Réu faz uma interpretação da alínea a) do n.° 1 do artigo 14.° da LLR que, igualmente, determina a sua inconstitucionalidade material por ofensa ao direito à liberdade de escolha da profissão, consagrada no art.º 47.°/1 da CRP, já que dela resulta que escolha da profissão implica a aceitação e cumprimento de todos os deveres inerentes a esse ofício, fazendo equivaler ao significado de deveres a impossibilidade de exercício de direitos, liberdades e garantias, sem que se verifiquem os seus pressupostos de restrição.

É pacífico que o direito ao exercício livre da profissão consagrado no art.º 47.º/1 da CRP (Cujo teor é o seguinte: “Todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse colectivo inerentes à sua própria capacidade.”)tem uma dupla vertente; por um lado, a de não ser forçado a escolher (e a exercer) uma determinada profissão e, por outro, a de não ser impedido de escolher (e exercer) qualquer profissão para a qual se tenham os necessários requisitos. E também não se questiona que decorre daquela norma a obrigatoriedade de assegurar que, escolhida a profissão, se garantam as condições indispensáveis ao seu exercício pois que, se assim não for, aquele direito acaba por não ter conteúdo ou ter um conteúdo insuficiente, visto não poder ser exercido com a amplitude que, constitucionalmente, está garantida (– Vd. G. Canotilho e V. Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., pg. 653 3 seg.s).
E é aqui que a Autora vê a alegada inconstitucionalidade do art.º 14.º/1/a) da LLR já que alega que a interpretação que dele fez o CSMP conduz, na prática, à impossibilidade do exercício livre da sua profissão como Magistrada do M.P.
Mas não tem razão.

Com efeito, e desde logo, ninguém impediu a Autora de ser Magistrada do M.P. nem o acto impugnado limitou o seu exercício, pelo que só por absurdo se pode sustentar que este interpretou o citado artigo da LLR de forma inconstitucional.
Depois, a liberdade de escolha de profissão tem como contrapartida a obrigação do sujeito se adaptar às condicionantes por ela impostas, quaisquer que elas sejam, desde que legais, sobretudo quando elas, como é o caso, são antecipadamente conhecidas. Se assim é, e se quando a Autora requereu a sua admissão na Magistratura do M.P. sabia que tinha de realizar turnos e que estes podiam ser aos sábados, dia de cumprimento dos seus deveres religiosos, não pode agora alegar que o cumprimento dos deveres que lhe são inerentes se traduz na impossibilidade de exercício de direitos, liberdades e garantias, sem que se verifiquem os seus pressupostos de restrição. Sabendo de antemão as condicionantes ou limitações que o exercício da Magistratura do M.P. implicava a Autora, se delas discordasse ou se visse que as mesmas poriam em causa a forma como entende praticar a sua religião, deveria ter escolhido outra profissão. O que não pode é querer ser Magistrada do M.P. e, depois, recusar cumprir as obrigações que daí advêm.

Deste modo, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, atenta a clareza da situação, conclui-se que também neste ponto a alegação da Autora improcede.

Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam julgar improcedente esta acção e, em consequência, absolver o Réu do pedido.
Custas pela Autora.

Lisboa, 6 de Dezembro de 2012. – Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) - José Manuel da Silva Santos Botelho – Adérito da Conceição Salvador dos Santos.