Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01657/20.1BELSB
Data do Acordão:05/25/2023
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
CONTRATAÇÃO PÚBLICA
EXCLUSÃO DE PROPOSTAS
CONDENAÇÃO
ADJUDICAÇÃO
Sumário:É de admitir a revista em que a «questão» principal contende com a exclusão de uma proposta e a condenação a adjudicar a uma outra, se surgem sérias dúvidas sobre a correcta aplicação de princípios estruturantes da contratação pública.
Nº Convencional:JSTA000P31051
Nº do Documento:SA12023052501657/20
Data de Entrada:05/09/2023
Recorrente:SANTA CASA DA MISERICÓRDIA ... E OUTROS
Recorrido 1:A..., S.A. E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em «apreciação preliminar», na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A Santa Casa da Misericórdia ... [SCM...] e a B... S.A. [B...] - entidade demanda e contra-interessada, respectivamente, no âmbito desta «acção do contencioso pré-contratual» - vêm, invocando o artigo 150º do CPTA, interpor recursos de revista, independentes, do acórdão do TCAS - de 09.03.2023 - que negou provimento à apelação por elas proposta, e concedeu parcial provimento à apelação subordinada proposta pela C... S.A. [C...] - autora da acção -, assim revogando a sentença do TAC de Lisboa - de 18.04.2022 - apenas na parte em que julgou improcedente o pedido de condenação da entidade demandada [SCM...] a adjudicar o contrato objecto do concurso - relativo ao Lote ... - à autora C..., com a consequente condenação da mesma [SCM...] a adjudicar-lhe o «Lote ...».

Alegam, cada uma na respectiva revista, que o recurso deverá ser admitido em nome da «necessidade de uma melhor aplicação do direito» e em nome da «relevância social e jurídica da questão».

A autora da acção - C... - contra-alegou defendendo - além do mais - a não admissão das revistas por falta de verificação dos pressupostos legais - artigo 150º, nº1, do CPTA.

2. Dispõe o nº1, do artigo 150º, do CPTA, que «[d]as decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

Deste preceito extrai-se, assim, que as decisões proferidas pelos TCA’s, no uso dos poderes conferidos pelo artigo 149º do CPTA - conhecendo em segundo grau de jurisdição - não são, em regra, susceptíveis de recurso ordinário, dado a sua admissibilidade apenas poder ter lugar: i) Quando esteja em causa apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental; ou, ii) Quando o recurso revelar ser claramente necessário para uma melhor aplicação do direito.

3. Está em causa um concurso público internacional para prestação de serviços de rede de dados distribuída e centros de dados secundário para a SCM.... Foram apresentadas, e admitidas, três propostas: B..., C..., e A....

Com a presente acção a C... visava a «anulação» da deliberação de 03.09.2020 - deliberação nº...20 tomada em sessão ordinária da Mesa da SCM... - que adjudicou à proposta da B... o objecto do concurso - uma vez que alega que as propostas da B... e da A... devem ser excluídas - e a «condenação» da SCM... a adjudicar o mesmo, em ambos os lotes, à sua proposta.

O tribunal de 1ª instância - TAC de Lisboa - julgou a acção parcialmente procedente, e, em conformidade, anulou a deliberação impugnada «na parte em que autorizou a adjudicação do Lote ...» do procedimento à B..., e absolveu a SCM... do demais peticionado, isto é, não a condenou a proceder à adjudicação à proposta da C..., porque entendeu não estarem reunidas as condições necessárias para tal, devolvendo essa decisão à SCM....

O tribunal de 2ª instância - TCAS - negou provimento à apelação da SCM... e da B..., mas concedeu parcial provimento à apelação subordinada da C..., assim revogando a sentença recorrida na parte em que absolveu a entidade demandada - SCM... - do pedido de condenação, e, por sua vez, condenou-a a adjudicar o objecto do concurso, relativo ao Lote ..., à proposta da autora C..., graduada em 2º lugar.

Isto significa, na economia dos autos, que o tribunal de apelação «manteve a anulação da adjudicação» feita à proposta da B... porque a mesma deveria ter sido excluída ao abrigo do disposto no artigo 70º nº2 alínea b) do CCP - por incumprimento do determinado no artigo 7.2.4.7, alínea d), do Programa do Concurso, e o exigido pela Cláusula 34.3, REQ-B4, alínea d), do Caderno de Encargos, que impunham que o edifício proposto para a instalação do Lote ... [Centro de Dados Secundário] deveria apresentar «controlos antiterrorismo, nomeadamente barreiras de protecção no acesso ao edifício que resistam à tentativa de entrada forçada de um veículo pesado» - e, porque assim, decidiu «condenar a entidade demandada [SCM...] a adjudicar» o objecto do concurso à proposta da autora C....

Descontentes com o decidido pelo tribunal de apelação, tanto a SCM... como a B... dele pedem revista, a primeira, imputando-lhe «erro de julgamento de direito» na parte em que concede provimento parcial à apelação subordinada da C... - em resultado da anulação da adjudicação do Lote ... à proposta da B... -, e a segunda apontando-lhe «erro de julgamento de direito» relativamente a tudo, ou seja, ao decidido sobre os pedidos de anulação e de condenação.

Das «conclusões» das suas actuais alegações ressuma, essencialmente, que o acórdão recorrido faz uma aplicação do direito que «desrespeita» os princípios da separação de poderes, da igualdade de tratamento, da comparabilidade das propostas, concorrência e tutela jurisdicional efectiva - ver artigos 1º-A, nº1, do CCP, 201º, nº2, do CPA, 20º, nº1, da CRP. A seu ver, o poder judicial excedeu-se ao imiscuir-se no âmbito da discricionariedade técnica da administração, porque os juízos - anulatório e condenatório - configuram uma ingerência e uma inaceitável restrição dos requisitos técnicos REQ-B4 - para cuja apreciação o tribunal não está habilitado - que, aliás, não tem correspondência nas peças do procedimento, e, ainda, desconsidera os elementos recolhidos pelo júri no contexto da «visita ao local», a que procedeu. Aduzem que nenhuma proposta logrou demonstrar «documentalmente» o cumprimento de tais requisitos técnicos exigidos pelas peças do procedimento - controlos antiterrorismo, nomeadamente barreiras de protecção no acesso ao edifício que resistam à tentativa de entrada forçada de um veículo pesado -, o que levou o júri, de forma completamente excepcional, a deslocar-se aos locais - para melhor aquilatar do seu cumprimento - e que o tribunal não levou isto em consideração. Alegam que a proposta da C... padece dos «mesmos problemas» que levaram à exclusão da proposta da B..., que importará dar à SCM... a oportunidade de reanalisar as propostas apresentadas - reflectindo nessa análise o erro que ocorreu na proposta da B... -, e que, sem esta devolução, os demais concorrentes ficarão sem possibilidade de se pronunciarem sobre o novo projecto adjudicatório e perdem o direito a uma tutela jurisdicional efectiva.

Compulsados os autos, importa apreciar «preliminar e sumariamente», como compete a esta Formação, se estão verificados os «pressupostos» de admissibilidade do recurso de revista - referidos no citado artigo 150º do CPTA - ou seja, se está em causa uma questão que «pela sua relevância jurídica ou social» assume «importância fundamental», ou se a sua apreciação por este Supremo Tribunal é «claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

Feita tal apreciação, facilmente se constata que neste caso estão em causa «questões» que contendem com a aplicação prática de princípios estruturantes do regime jurídico da contratação pública - separação de poderes, igualdade de tratamento, comparabilidade das propostas, concorrência e tutela jurisdicional efectiva - e que as ora recorrentes insistem, de forma bastante persistente e verosímil, que saem desrespeitados no acórdão recorrido. As respectivas alegações são, efectivamente, de molde a abalar o mérito, pelo menos parcial, do que foi decidido pelo tribunal de apelação. E perante uma matéria de facto complexa, com aspectos técnicos incontornáveis, é de toda a conveniência que a aplicação do direito seja revista por este Supremo Tribunal quer em prol da sua aplicação mais segura quer da relevância jurídica e social que a «questão» apresenta. E isto não obstante decisões afins que por ele já foram proferidas, pois este caso, pelos seus particulares contornos, justifica uma nova abordagem.

Assim, e sem mais delongas, quer em nome da necessidade de esclarecer, e solidificar, a decisão jurídica da referida questão, quer em nome da importância fundamental que lhe assiste, é de admitir a presente revista.

Nestes termos, e de harmonia com o disposto no artigo 150º do CPTA, acordam os juízes desta formação em admitir a revista.

Sem custas.

Lisboa, 25 de Maio de 2023. – José Veloso (relator) – Teresa de Sousa – Fonseca da Paz.