Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0433/13
Data do Acordão:06/05/2013
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:NULIDADE
MATÉRIA DE DIREITO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
PODERES DE COGNIÇÃO
Sumário:I - Em matéria de direito, o tribunal não está sujeito à alegação das partes, nem sequer no que respeita à qualificação jurídica dos factos por elas efectuada, e goza de liberdade na indagação, interpretação e aplicação do Direito (art. 664.º do CPC).
II - Sendo certo que o tribunal de recurso, com excepção das questões de conhecimento oficioso, tem a sua actividade balizada pelas conclusões das alegações do recurso (art. 684.º, n.º 3, do CPC), mantém total liberdade no julgamento da matéria de direito, designadamente ao conferir à norma escolhida o sentido e alcance que, de acordo com as regras da hermenêutica jurídica, entende ser o correcto, ainda que divergentes dos conferidos pelas partes (art. 664.º do CPC).
III - O excesso de pronúncia é um vício formal das decisões judiciais resultante do conhecimento pelo tribunal de questão que, não sendo do conhecimento oficioso, não lhe tenha sido colocada pelas partes (cfr. art. 125.º, n.º 1, do CPPT e art. 660.º, n.º 2, do CPC); esse vício não pode resultar do conhecimento de uma questão suscitada pelas partes, ainda que decidida com argumentos diversos dos invocados.
Nº Convencional:JSTA00068293
Nº do Documento:SA2201306050433
Data de Entrada:03/15/2013
Recorrente:A......... E OUTRA
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:ARGUIÇÃO DE NULIDADE
Objecto:AC STA
Decisão:INDEFERIMENTO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - NULIDADE
Legislação Nacional:CPPTRIB99 ART125 N1.
CPC96 ART668 N1 ART660 N2 ART716 ART684 N3 ART684-A ART664.
Referência a Doutrina:JORGE DE SOUSA - CODIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTARIO ANOTADO E COMENTADO 6ED VOLII PAG363-364.
ALBERTO DOS REIS - CODIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO VOLV PAG143.
AMÂNCIO FERREIRA - MANUAL DOS RECURSOS EM PROCESSO CIVIL 9ED PAG57.
LEBRE DE FREITAS E MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO - CODIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO VOLII PAG670.
Aditamento:
Texto Integral: Arguição de nulidade do acórdão proferido no recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de recurso judicial n.º 2348/12.2BEPRT

1. RELATÓRIO
1.1 A Fazenda Pública (a seguir Requerente), invocando o disposto no art. 668.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil (CPC) veio arguir a nulidade do acórdão proferido nestes autos por omissão e por excesso de pronúncia.
Resumiu a sua alegação em conclusões que, pese embora a sua extensão, se nos afigura relevante reproduzir, para que melhor se alcance os fundamentos da pretensão da ora Requerente:
«
A. O tribunal ad quem foi chamado a pronunciar-se exclusivamente sobre a desconformidade d“a presunção a que alude o artigo 89.º-A da LGT” com os aludidos princípios, consagrados na CRP.
B. Os limites aos poderes de cognição do tribunal são definidos na segunda parte do n.º 2 do art. 660.º do CP, de que se infere que o Tribunal só pode conhecer de questões suscitadas pelas partes e questões de conhecimento oficioso.
C. Já o artigo 684.º, n.º 3, do CPC, determina que «nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso», donde se infere que são as conclusões que delimitam o objecto do recurso jurisdicional.
D. No caso concreto dos autos, caso o tribunal assim o entendesse, deveria ter accionado o mecanismos previsto nos números 6 e 7 do artigo 282.º do CPPT, e bem assim do art. 146.º do CPTA, promovendo o seu aperfeiçoamento se o entendesse necessário.
E. Ao não o fazer, o tribunal entendeu que as conclusões que delimitavam os seus poderes de cognição reflectiam os fundamentos descritos nas alegações, e com isso se conformou.
F. Todavia, quer o artigo 282.º do CPPT, quer o número 4 do artigo 146.º do CPTA (à semelhança do artigo 685.º-A do C.P.Civil) determinam expressamente, não só a necessidade de formular conclusões em sede de recurso jurisdicional, mas igualmente o dever do tribunal de convidar a parte a apresentar, completar ou esclarecer as suas conclusões.
G. Exigindo o n.º 5 do mesmo artigo 146.º que seja assegurado em pleno o direito ao contraditório.
H. Nos autos, o tribunal terá feito uma interpretação das normas processuais (nomeadamente os artigos 282.º do CPPT, 3.º e 685.º-A do C.P.Civil, e 146.º do CPTA, aplicáveis ao processo tributário ex vi artigo 2.º do CPPT) em CLARA VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO, DA IGUALDADE DAS PARTES, E BEM ASSIM DA CERTEZA E SEGURANÇA JURÍDICAS QUE ENFORMA O NOSSO ORDENAMENTO JURÍDICO.
I. Tendo assim proferido acórdão ferido de nulidade, quer por PRONÚNCIA INDEVIDA sobre questão que nunca foi levantada nos autos – o pretenso erro de interpretação do artigo 89.º-A da LGT, à luz do artigo 9.º do Código Civil – quer por OMISSÃO DE PRONÚNCIA sobre o único fundamento e razão jurídica invocadas pelos Recorrentes nas suas conclusões – a conformação do artigo 89.º-A da LGT com princípios constantes da Lei Fundamental.
J. Aliás, o acórdão não só omitiu por completo a pronúncia sobre os fundamentos invocados pelos Recorrentes, como se limitou a apreciar o normativo em causa à luz das regras de interpretação de leis, constante do artigo 9.º do Código Civil – questão que não tinha sido chamada ao processo pelos Recorrentes, e sobre a qual o tribunal ad quem não deveria emitir pronúncia, porquanto não era matéria de conhecimento oficioso.
K. Assim, forçoso será concluir pela nulidade do acórdão, nos termos e com os fundamentos constantes da alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, quer por pronúncia indevida sobre matéria não levada à discussão, quer por omissão de pronúncia sobre a matéria submetida à sua apreciação.
L. Em momento algum os Recorrentes vieram por em causa a interpretação do artigo 89.º-A, ou sequer a desconformidade da actuação da AT com o disposto naquele artigo.
M. E, por não ter sido submetida tal questão à apreciação do tribunal superior, não foi a AT chamada a exercer o contraditório sobre tal matéria.
N. A apreciação da constitucionalidade da norma era o desiderato que movia os Recorrentes, sendo o STA uma instância necessária a alcançar tal objectivo.
O. Sendo igualmente do interesse da AT que o STA proferisse decisão que reconhecesse a não desconformidade do artigo 89.º-A da LGT, ou que, em última instância, o Tribunal Constitucional apreciasse e dirimisse a questão da interpretação do normativo face à Lei Fundamental.
P. Ao proferir o acórdão nos termos em que o fez, o STA proferiu uma decisão inteiramente surpresa para o ora Arguente, cuja fundamentação em nada reflecte a fundamentação do recurso jurisdicional, delimitado pelas suas conclusões.
Q. Tivesse o ora Arguente sido chamado a contra-alegar sobre os argumentos em que o STA sustentou a sua decisão, e tê-lo-ia feito, pugnando pela errónea interpretação do artigo 89.º-A que veio a ser propugnada pelo STA, em clara violação, entre outros, dos princípios da certeza e segurança jurídica, ao pretender que o artigo 89.º-A consubstancie não só um alargamento do prazo de caducidade, mas igualmente que determine um contribuinte a suportar dentro do prazo de caducidade o tributo relativo a um facto tributário verificado em data anterior ao cômputo do prazo de caducidade (saliente-se que nunca a AT teve a pretensão de proceder à liquidação nesses termos, pois como sustentado no voto de vencido que acompanhou o acórdão, “a mesma não encontra apoio nem na letra nem na razão de ser do preceito”).
R. As considerações tecidas pelo STA no acórdão, relativas à interpretação a conferir ao artigo 89.º-A, não abalam a convicção da AT de que a sua interpretação é a mais consentânea, não só com a letra da lei, mas também com o pensamento legislativo, atenta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, sem descurar que o legislador terá consagrado as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
S. Em face do que fica referido, forçoso é concluir pela nulidade do acórdão proferido, o que se requer seja reconhecido.
Termos em que deverá ser considerado nulo o aresto proferido em 17 de Abril de 2013, por violação do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, e substituído por outro que claramente conheça da conformidade ou desconformidade do artigo 89.º-A da LGT com os princípios constitucionais expressamente invocados nas conclusões do recurso jurisdicional, e que delimitaram o seu objecto» (Aqui, e nas transcrições que se seguirão, as partes que no original estavam em itálico surgem em tipo normal, a fim de se respeitar o destaque que lhes foi concedido pelo autor.).
1.2 Notificados da arguição da nulidade do acórdão, os Requeridos responderam, sustentando que a mesma se não verifica e pugnando pela manutenção do acórdão.
Isto, em síntese, porque consideram, por um lado, que quem não contra alegou o recurso fica inibido de arguir a nulidade da decisão; por outro lado, que a Requerente confunde questões com fundamentos, argumentos ou razões, que sempre haveria o Tribunal de conhecer da interpretação do art. 89.º-A da LGT, pois se trata de questão que lhe foi colocada, e que o Tribunal não está sujeito à alegação das partes no que se refere à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
1.3 Cumpre apreciar e decidir, sendo que se dispensaram os vistos dos Conselheiros adjuntos, uma vez que se trata de processo urgente.
* * *
2. FUNDAMENTOS
2.1.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR
O Director de Finanças do Porto, perante a aquisição por A………… e B………… de um imóvel, no ano de 2007 e pelo preço de € 260.700,00, e em face da desproporção superior a 50%, para menos, entre o rendimento declarado pelos Contribuintes para efeitos de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) desse ano (€ 7.677,11) e o rendimento padrão revelado por aquela aquisição em face da tabela do n.º 4 do art. 89.º-A da Lei Geral Tributária (LGT) – 20% da manifestação de fortuna, ou seja, € 52.140,00 –, considerando que os mesmos não tinham conseguido fazer a prova a que alude o n.º 3 do mesmo artigo, procedeu à fixação da matéria tributável em € 52.140,00, a enquadrar na categoria G do IRS, tudo nos termos do n.º 4 do citado art. 89.º-A e do art. 9.º, n.º 1, alínea d), do Código do IRS (CIRS).
Os Contribuintes recorreram judicialmente dessa decisão, nos termos do disposto no art. 146.º-B do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável ex vi dos n.ºs 7 e 8 do art. 89.º-A, mas sem êxito, uma vez que por acórdão de 18 de Novembro de 2010 da Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte foi julgado integralmente improcedente o recurso judicial.
Com fundamento no trânsito em julgado dessa decisão e no facto de o rendimento declarado pelos Contribuintes para efeitos de IRS e para cada um dos anos de 2008, 2009 e 2010 ser inferior em mais de 50% relativamente àquele que considerou ser o rendimento padrão para cada um desses anos (20% do preço da referida aquisição, ou seja, € 52.140,00), o Director de Finanças do Porto, mediante a invocação do disposto nos arts. 87.º, alínea d), e 89.º-A, n.º 4, da LGT, fixou-lhes o rendimento tributável para cada um daqueles anos de 2008 a 2010 em € 52.1400,00.
Os Contribuintes discordaram dessa fixação e recorreram judicialmente do acto do Director de Finanças do Porto que a determinou, pedindo ao Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto a anulação do mesmo.
Como fundamentos desse pedido invocaram, na parte que nos interessou considerar (Os Contribuintes invocaram também outros fundamentos, que a sentença desatendeu, mas reagiram contra esta apenas quanto ao julgamento efectuado relativamente à possibilidade de a manifestação de fortuna em causa – aquisição de um prédio por preço superior a € 250.00 – servir de base à tributação por avaliação indirecta, cumulativamente, no ano em que ocorre e nos três anos seguintes.), que, com base na mesma aquisição de um bem, não é possível a fixação do rendimento tributável ao abrigo do art. 89.º-A da LGT relativamente a mais do que um ano. Ou seja, tendo a AT procedido à fixação do rendimento tributável por avaliação indirecta nos termos daquele preceito legal relativamente ao ano de 2007 com base na manifestação de fortuna evidenciada com a referida aquisição de um imóvel, já não podia utilizar o mesmo facto como suporte para a fixação do rendimento tributável pelo mesmo método relativamente a outros anos.
Os Contribuintes alegaram também que a AT violou os princípio do inquisitório e da verdade material ao não efectuar as diligências por eles solicitadas em ordem a demonstrar os valores reais do negócio.
Com a petição inicial apresentaram documentos e arrolaram testemunhas.
A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto indeferiu a requerida produção da prova testemunhal e, do mesmo passo, (ou seja, proferindo sentença no mesmo momento), julgou o recurso improcedente. Sustentou na sentença, em resumo, que o n.º 4 do art. 89.º-A da LGT permite que se considere «rendimento tributável em sede de IRS, no próprio ano e nos três seguintes, o rendimento padrão apurado nos termos da tabela». Sustentou ainda que o contribuinte, relativamente a estes três anos seguintes, nem sequer pode fazer a prova a que alude o n.º 3 daquele art. 89.º-A, uma vez que tal prova só pode ser efectuada no processo referente ao ano em que se verificou a manifestação de fortuna, sendo que os actos de fixação do rendimento tributável nos três anos seguintes não são mais do actos consequentes do acto de fixação relativamente àquele ano (Note-se que na tese da AT não há sequer que possibilitar ao sujeito passivo, relativamente a cada um desses três anos seguintes e nos termos do n.º 3 do art. 89.º-A, a demonstração de rendimentos de outras origens, ou seja, não se lhe permite demonstrar que, nesses períodos, teve outros rendimentos não sujeitos a declaração e que permitiriam a manifestação de fortuna em causa.).
Os Contribuintes recorreram dessa sentença para este Supremo Tribunal Administrativo. Insistiram na tese de que, com base numa única aquisição que seja considerada relevante enquanto manifestação de fortuna, o art. 89.º-A da LGT apenas permite a fixação do rendimento tributável por avaliação indirecta num único ano.
Sustentaram também que a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto incorreu em erro de julgamento ao indeferir a produção de prova testemunhal requerida pelos Contribuintes.
O recurso foi decidido pelo acórdão proferido nestes autos, onde se enunciaram as questões a dirimir nos seguintes termos:
«
· se este Supremo Tribunal Administrativo é competente em razão da hierarquia para conhecer do presente recurso jurisdicional, o que, como veremos adiante, passa por indagar se no recurso foi suscitada questão de facto; na afirmativa,
· se a sentença recorrida fez correcta aplicação do direito quando considerou que a verificação de uma única manifestação de fortuna pode determinar a fixação da matéria tributável por métodos indirectos em quatro anos seguidos, quais sejam o ano em que se verificou a aquisição do bem que constitui essa manifestação e os três anos seguintes (cf. conclusão 3); na afirmativa,
· se a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto incorreu em erro de julgamento ao dispensar a prova testemunhal (cf. conclusões 1 e 2)».
Após considerar que o Supremo Tribunal Administrativo era o tribunal competente em razão da hierarquia para conhecer do recurso, o aresto deu resposta negativa à segunda questão. Isto, em síntese, porque considerou que «a determinação do rendimento com base numa aquisição concreta de um bem previsto na tabela do n.º 4 do art. 89.º-A da LGT só pode ser feita uma vez, relativamente ao ano em que se verificou ou em qualquer um dos três anos seguintes em que, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, falte a declaração de rendimentos ou se verifique a desproporção aí prevista, e não em todos esses anos».
Vem agora a Recorrida arguir a nulidade do acórdão por excesso e por omissão de pronúncia.
Se bem interpretamos o requerimento, a nulidade invocada reconduz-se, afinal, na imputação de um só vício formal ao aresto: segundo a Fazenda Pública, neste não se terá conhecido a questão suscitada pelos Recorrentes, mas uma outra. Concretizando, considera a Requerente que a questão suscitada pelos Recorrentes, de acordo com as conclusões das respectivas alegações, foi exclusivamente a da desconformidade do art. 89.º-A da LGT com os princípios constitucionais, questão que o Supremo Tribunal Administrativo não conheceu e, ao invés, conheceu da questão da interpretação daquele preceito legal, que os Recorrentes não tinham suscitado e que não é do conhecimento oficioso, motivo por que não podia ser apreciada e, por isso, ela, Recorrida, não respondeu em sede de contra alegações.
Cumpre, pois, apreciar a arguida nulidade do acórdão.
*
2.2.2 DA NULIDADE POR OMISSÃO E POR EXCESSO DE PRONÚNCIA
2.2.2.1 Nos termos da parte final do n.º 1 do art. 125.º do CPPT, preceito legal que prevê as nulidades da sentença, integra tal vício «a falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar ou a pronúncia sobre questões que não deva conhecer».
O preceito está em consonância com o art. 668.º, n.º 1, do CPC, cuja alínea d) prevê como uma das nulidades da sentença que «[o] juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento». Trata-se de uma norma correlacionada com o n.º 2 do art. 660.º do mesmo código, que dispõe: «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras». Note-se que, na falta de norma do CPPT sobre os deveres de cognição do tribunal, há que recorrer àquele art. 660.º, n.º 2, do CPC, ex vi do disposto no art. 2.º, alínea e), do CPPT.
Note-se também que, embora estas normas se refiram apenas à sentença, entende-se que são aplicáveis a todas as decisões judiciais, aí se incluindo os acórdãos de recurso, como resulta do disposto no art. 716.º do CPC.
Assim, o tribunal de recurso tem o dever de se pronunciar sobre todas as questões que as partes submetam à sua apreciação, ainda que seja para dizer por que delas não conhece (sob pena de omissão de pronúncia) e, com excepção das questões de conhecimento oficioso, não pode conhecer senão dessas questões (sob pena de excesso de pronúncia na parte em que ocorrer esse excesso).
Relativamente ao que deve entender-se por questão para este efeito, JORGE LOPES DE SOUSA esclarece:
«O conceito de «questões» abrange tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem.
[…]
Para se estar perante uma questão é necessário que haja a formulação do pedido de decisão relativo a matéria de facto ou de direito sobre uma concreta situação de facto ou jurídica sobre que existem divergências, formulado com base em alegadas razões de facto ou de direito» (Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume II, anotação 10 b) ao art. 125.º, págs. 363/364, com indicação de jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo nesse sentido.).
FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA adverte para uma confusão muito frequente e que dá origem a que a omissão de pronúncia seja frequente e indevidamente invocada nos tribunais nos seguintes termos:
«Trata-se da nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda» e «não enferma de nulidade de omissão de pronúncia o acórdão que não se ocupou de todas as considerações feitas pelas partes, por as reputar desnecessárias para a resolução do litígio» (Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 9.ª edição, pág. 57.).
Como ensina ALBERTO DOS REIS:
«São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão» (Código de Processo Civil Anotado, V volume, reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 143.).
Também JORGE LOPES DE SOUSA alerta para a necessidade de ter presente essa distinção:
«O conhecimento de todas as questões não significa que o tribunal tenha de conhecer de todos os argumentos ou razões invocadas pelas partes e só a falta de conhecimento de questões constitui nulidade por omissão de pronúncia, como resulta do texto do art. 125.º do CPPT e da alínea d) do n.º 1 do art. 668.º do CPC» (Ob. e loc. cit..).
É, pois, inquestionável que só a omissão do conhecimento de uma questão, que não o de argumentos, razões ou fundamentos, constitui a nulidade por omissão de pronúncia (Neste sentido, também LEBRE DE FREITAS, MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, Coimbra Editora, 2001, pág. 670.).
Correspectivamente, também o excesso de pronúncia só se verifica quando o tribunal conhecer de questão que, não sendo do conhecimento oficioso, não lhe tenha sido colocada pelas partes e já não quando o tribunal, na apreciação das questões suscitadas pelas partes, tenha utilizado argumentos, razões ou fundamentos diversos dos invocados pelas partes.
A esse propósito, diz JORGE LOPES DE SOUSA:
«O que se proíbe naquele art. 660.º, n.º 2, do CPC, é que se conheça de «questões» não suscitadas. Não se deve confundir «questões» com «argumentos». Quanto a argumentos o tribunal não está limitado pelos invocados pelas partes, podendo utilizar os que entender, para apreciar as questões que lhe tenham sido suscitadas» (Ob. e vol. cit., anotação 12 ao art. 125.º, pág. 366, com indicação de jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo nesse sentido.).
Ou seja, na sua função jurisdicional, ao tribunal compete determinar qual a norma ou normas jurídicas aplicáveis e interpretá-las e aplicá-las, sendo livre nessa tarefa, em conformidade com o disposto no art. 664.º do CPC, que dispõe: «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 264.º» (Trata-se de um princípio expresso nas velhas máximas dos romanistas: iura novit curia e da mihi factum dabo tibi ius.).
Ou seja, contrariamente ao que sucede relativamente à matéria de facto, em que os poderes do tribunal se encontram, em regra (Com excepção dos factos respeitantes a questões de conhecimento oficioso, nos termos do CPC, aplicável ex vi do art. 2.º, alínea e), do CPPT, o tribunal só poderá de factos não alegados pelas partes quando estes sejam factos notórios (art. 514.º, n.º 1), ou do seu conhecimento oficial (arts. 514.º, n.º 2), ou revelem uso reprovável do processo (665.º). Permite-se ainda o conhecimento dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa (art. 264.º, n.º 2, 2.ª parte) e dos factos essenciais complementares ou concretizadores de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório (art. 264.º, n.º 3).), limitados pela factualidade essencial alegada pelas partes, em sede da matéria de direito o tribunal não está sujeito à alegação das partes, nem sequer no que respeita à qualificação jurídica dos factos por elas efectuada, e goza da mais ampla liberdade na aplicação do Direito.
Como diz FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA:
«Em três momentos se desenvolve a actividade do juiz no âmbito jurídico, segundo a enunciação do n.º 1 do art. 664.º, a saber: indagação, interpretação e aplicação.
Pela indagação, o juiz elege a norma jurídica que julgue ajustada à regulação da situação fáctica dos autos, afastando a indicada pelas partes, se entender que ela não se adapta ao caso em litígio.
Pela interpretação, o juiz atribui à norma eleita a significação e o alcance que considera certo, de acordo com as regras da hermenêutica jurídica, mesmo que divergentes dos conferidos pelas partes.
Pela aplicação, o juiz declara os efeitos que resultam para a situação ajuizada da norma escolhida, independentemente dos reclamados pelas partes» (Ob. cit., pág. 42.).
Também JORGE LOPES DE SOUSA salienta:
«A limitação dos poderes de cognição em matéria de recursos restringe-se às questões colocadas pelas partes nas conclusões das alegações (684.º, n.º 3, do CPC). Mas, quanto às questões que forem colocadas, o tribunal de recurso pode conhecer de tudo que para elas releve, não estando limitado pelo afirmado pelas partes nas alegações de recurso, tanto em matéria de direito (art. 664.º do CPC), como em relação à matéria de facto que pode ser alterada oficiosamente» (Ob. cit., volume I, anotação 7 c) ao art. 13.º, pág. 180. Note-se que a referência à alteração da matéria de facto não colhe no caso de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, atento o disposto nos arts. 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, e no art. 280.º, n.º 1, do CPPT.).
2.2.2.2 Face a estes princípios, e regressando ao caso sub judice, afigura-se-nos que não pode proceder a pretensão da Fazenda Pública.
É certo que o tribunal ad quem tem a sua actividade jurisdicional balizada pelas questões suscitadas pelo recorrente e, eventualmente, pelo recorrido, nos casos em que este tenha lançado mão da faculdade que lhe concede o art. 684.º-A do CPC.
O que, desde logo, nos leva à questão de saber se o recorrido que não tenha usado da faculdade de recorrer nem de ampliar o objecto do recurso (cfr. art. 684.º-A do CPC), pode suscitar a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.
Na verdade, se o recorrido não suscitou questão alguma em sede de recurso, encaramos com muita reserva a sua legitimidade para arguir a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.
No entanto, no caso sub judice a questão não releva, pois, como dissemos já, a Fazenda Pública invocou a omissão de pronúncia e, do mesmo passo e com o recorte inverso, o excesso de pronúncia. Ora, relativamente a esta última nulidade, é inquestionável a legitimidade da Requerente. Avancemos, pois.
Sustenta a Requerente que este Supremo Tribunal Administrativo não conheceu a questão que lhe foi posta pelos Recorrentes, mas uma outra, que não foi suscitada.
Mas, salvo o devido respeito, e como bem salientaram os Recorrentes, ora Requeridos, a Requerente confunde questões com argumentos. Para além disso, a nosso ver, nem sequer faz correcta interpretação das conclusões das alegações de recurso.
Na verdade, no que ora nos interessa, a questão suscitada pelos Recorrentes foi, como se deixou dito no acórdão e mediante expressa referência à conclusão do recurso em que a mesma foi suscitada, a de saber «se a sentença recorrida fez correcta aplicação do direito quando considerou que a verificação de uma única manifestação de fortuna pode determinar a fixação da matéria tributável por métodos indirectos em quatro anos seguidos, quais sejam o ano em que se verificou a aquisição do bem que constitui essa manifestação e os três anos seguintes (cf. conclusão 3)».
Recordemos aqui o teor dessa conclusão, de modo a dissipar qualquer dúvida quanto à correcta identificação da questão suscitada pelos Recorrentes: «A presunção a que alude o artigo 89.º-A da LGT só pode operar para o ano a que o facto aquisitivo diz respeito e não para quatro anos, sob pena de violação da não confiscatoriedade, uma violação do princípio da boa fé e uma violação do princípio da proporcionalidade».
Sustenta a Requerente que, em face do teor desta conclusão, não podia o Supremo Tribunal Administrativo (que não convidou os Recorrentes a completar ou esclarecer as conclusões, como lho permitia o n.º 6 do art. 282.º do CPPT («Se as conclusões apresentadas pelo recorrente não reflectirem os fundamentos descritos nas alegações, deverá o recorrente ser convidado para apresentar novas conclusões».) conhecer senão da «conformação do art. 89.º-A com princípios constantes da Lei Fundamental» e já não do «pretenso erro de interpretação do artigo 89.º-A da LGT, à luz do artigo 9.º do Código Civil», pois «[e]m momento algum os Recorrentes vieram por em causa a interpretação do artigo 89.º-A, ou sequer a desconformidade da actuação da AT com o disposto naquele artigo». Mais sustenta que o Supremo Tribunal Administrativo, ao conhecer da interpretação do art. 89.º-A da LGT, cerceou à ora Requerente o direito de contraditório sobre essa matéria e «proferiu uma decisão inteiramente surpresa».
A nosso ver, é inquestionável que os Recorrentes, nas conclusões das alegações do recurso jurisdicional, tal como haviam feito na petição do recurso judicial, se insurgiram contra a aplicação efectuada pela AT do art. 89.º-A da LGT aos anos de 2008, 2009 e 2010, sustentando que, com base na mesma aquisição de um bem, não é possível a fixação do rendimento tributável ao abrigo do art. 89.º-A da LGT relativamente a mais do que um ano. O que significa, sem qualquer dúvida, que discordam da interpretação que foi efectuada pela AT daquela norma legal.
Seja como for, certo é que os Recorrentes suscitaram a questão do âmbito temporal da presunção prevista no art. 89.º-A da LGT. Ou seja, estabelecida que ficou judicialmente a legalidade da actuação da AT ao proceder à fixação do rendimento tributável do ano de 2007 por avaliação indirecta nos termos daquela norma legal, a questão colocada no recurso era a de saber se a sentença recorrida tinha feito correcto julgamento, o que passava por aferir da legitimidade da actuação da AT, de, com base nessa mesma manifestação de fortuna e ao abrigo daquela norma legal, proceder à fixação do rendimento tributável dos anos de 2008, 2009 e 2010, sendo que também em relação a cada um destes anos os rendimentos declarados pelos Contribuintes revelam uma desproporção superior a 50%, para menos, relativamente ao rendimento padrão resultante da tabela prevista no n.º 4 daquele artigo 89.º-A.
Sempre salvo o devido respeito, não vislumbramos como poderia Supremo Tribunal Administrativo conhecer da questão sem proceder à interpretação daquela norma legal e, no âmbito dessa tarefa hermenêutica, que pudesse usar outros critérios que não os indicados no art. 9.º do Código Civil.
A tese da ora Requerente, sempre salvo o devido respeito, assenta num entendimento do âmbito dos poderes de cognição do tribunal ad quem em matéria de direito que não encontra apoio na lei. Sendo certo que o tribunal de recurso, com excepção das questões de conhecimento oficioso, tem a sua actividade balizada pelas conclusões das alegações do recurso (art. 684.º, n.º 3, do CPC), mantém total liberdade no julgamento da matéria de direito, designadamente ao conferir à norma escolhida o sentido e alcance que, de acordo com as regras da hermenêutica jurídica, entende ser o correcto, ainda que divergentes dos conferidos pelas partes (art. 664.º do CPC).
Finalmente, a Requerente não pode afirmar-se surpreendida pela solução jurídica acolhida no acórdão e, consequentemente, esgrimir com uma eventual violação do princípio do contraditório. Na verdade, desde a petição inicial que os ora Requeridos vêm sustentando que, com base na mesma aquisição de um bem, não é possível a fixação do rendimento tributável ao abrigo do art. 89.º-A da LGT relativamente a mais do que um ano.
O não ter usado o seu direito de contra alegar o recurso é uma opção que só a ela cabe.
Por tudo o que ficou dito, não se verificam as invocadas nulidades por omissão e por excesso de pronúncia.
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2.2.3 CONCLUSÕES
Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - Em matéria de direito, o tribunal não está sujeito à alegação das partes, nem sequer no que respeita à qualificação jurídica dos factos por elas efectuada, e goza de liberdade na indagação, interpretação e aplicação do Direito (art. 664.º do CPC).
II - Sendo certo que o tribunal de recurso, com excepção das questões de conhecimento oficioso, tem a sua actividade balizada pelas conclusões das alegações do recurso (art. 684.º, n.º 3, do CPC), mantém total liberdade no julgamento da matéria de direito, designadamente ao conferir à norma escolhida o sentido e alcance que, de acordo com as regras da hermenêutica jurídica, entende ser o correcto, ainda que divergentes dos conferidos pelas partes (art. 664.º do CPC).
III - O excesso de pronúncia é um vício formal das decisões judiciais resultante do conhecimento pelo tribunal de questão que, não sendo do conhecimento oficioso, não lhe tenha sido colocada pelas partes (cfr. art. 125.º, n.º 1, do CPPT e art. 660.º, n.º 2, do CPC); esse vício não pode resultar do conhecimento de uma questão suscitada pelas partes, ainda que decidida com argumentos diversos dos invocados.
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3. DECISÃO
Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, desatender a arguida nulidade do acórdão.
Custas pela Requerente.
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Lisboa, 5 de Junho de 2013. - Francisco Rothes (relator) - Fernanda Maçãs - Casimiro Gonçalves.