Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0508/04
Data do Acordão:06/14/2005
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:ALBERTO AUGUSTO OLIVEIRA
Descritores:ESTABELECIMENTO DE RESTAURAÇÃO E BEBIDAS.
ALVARÁ SANITÁRIO.
CADUCIDADE.
APREENSÃO.
AUDIÊNCIA PRÉVIA.
FUNDAMENTAÇÃO.
Sumário:I - É constitutiva a declaração de caducidade ao abrigo do artigo 19.º, n.º 1, alínea d), do DL n.º 168/97, de 4 de Julho, pelo que deve ser precedida de uma valoração pela Administração das causas de incumprimento e da sua repercussão quanto à manutenção da relação jurídica em causa, impondo-se a audiência prévia dos interessados;
II - Não se pode considerar suficientemente fundamentado um acto face ao qual, e perante os dados objectivos do procedimento, não se reconhece, inequivocamente, que concreto quadro jurídico tomou em consideração.
Nº Convencional:JSTA0005573
Nº do Documento:SA1200506140508
Data de Entrada:05/04/2004
Recorrente:A...
Recorrido 1:VEREADORA DO PELOURO DA REABILITAÇÃO URBANA DA CM DE LISBOA
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em subsecção, na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo
1.
1.1. A... Lda., com sede na rua da Atalaia n°177, em Lisboa, intentou, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa RECURSO CONTENCIOSO DE ANULAÇÃO do despacho proferido pela Senhora Vereadora da Reabilitação Urbana da Câmara Municipal de Lisboa, datado de 21.1.2002, que determinou a apreensão do Alvará Sanitário referente ao estabelecimento “...”, sito na rua ..., por efeito da respectiva caducidade.
Alegou vícios de incompetência relativa, de falta de audiência do interessado e de falta de fundamentação.
1.2. Por sentença de fls. 95-101, foi negado provimento ao recurso.
1.3. Inconformada, a recorrente vem impugnar a sentença, concluindo nas respectivas alegações:
1 – A d. sentença recorrida fez incorrecto julgamento do vício de incompetência relativa.
2 – Ao contrário do decidido, a autoridade recorrida não estava habilitada a praticar o acto recorrido porquanto não dispunha de qualquer norma que, para tal, lhe atribuísse competência, sendo que tal competência se encontra atribuída à Câmara Municipal de Lisboa.
3 - De igual modo, o despacho (de delegação de poderes) nº 141/P/2002, do Senhor Presidente da Câmara, praticado e publicado em 7-02-2002 em Suplemento ao Boletim Municipal nº 416, não atribuiu à autoridade recorrida poderes para a declaração de caducidade e apreensão de alvarás sanitários de estabelecimentos de restauração e bebidas.
4 – Os únicos poderes de cassação e apreensão de alvarás compreendidos no âmbito daquela delegação referem-se, exclusivamente, aos alvarás previstos no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.
5 – A douta sentença recorrida apreciou incorrectamente o despacho de delegação de poderes em causa e, como tal, fez erróneo julgamento do vício de incompetência relativa e, consequentemente, violou o disposto na alínea a) do nº 1 do art. 35º do Decreto-Lei nº 168/97, de 4 de Julho, com a redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº 139/99, de 24 de Abril, e nos arts. 29º, 35º e nº 1 do art. 37º todos do C.P.A..
6 – Foi feito erróneo julgamento do vício de forma por preterição de formalidade essencial que a recorrente assacara ao acto recorrido.
7 – No procedimento administrativo que culminou com a prática do acto recorrido não foi realizada a audiência prévia da recorrente.
8 – Não se verificava in casu qualquer razão que justificasse a não realização ou a dispensa daquela fase procedimental.
9 – Ao contrário do decidido pela d. sentença recorrida, a audiência prévia da recorrente afigurava-se essencial para que àquela fosse permitido demonstrar que o acto em projectado se afiguraria contrário aos mais elementares princípios da actividade administrativa, designadamente, o da proporcionalidade e o da justiça.
10 – Ademais, a audiência dever-se-ia realizar sempre, pois o procedimento em causa tinha natureza sancionatória e, como tal a sua realização decorria do direito fundamental de defesa – nº 10 do art. 32º da CRP.
11 - Significa, pois, que a douta sentença recorrida ao julgar improcedente o vício de preterição de formalidade essencial fez errónea interpretação e aplicação dos arts. 100º e seguintes do C.P.A. e do disposto no nº 10 do art. 32º da CRP, razão pela qual deve ser revogada.
12 – A douta sentença recorrida fez também errado julgamento do vício de forma por falta de fundamentação.
13 – Ao contrário do decidido na douta sentença recorrida, a recorrente (ou qualquer outros destinatário normal) não tem possibilidade de saber quais as razões de iure e de factum em que o acto recorrido se alicerça.
14 - A recorrente não tem possibilidade de saber quais são OS REQUISITOS MÍNIMOS necessários ao funcionamento do seu estabelecimento e isto por que em lado algum a autoridade recorrida alude ao regulamento previsto na alínea d) do nº 1 do art. 19º do Decreto-Lei nº 168/97, de 4 de Julho, na redacção do Decreto-Lei 139/99, de 24 de Abril.
15 - Também não tem possibilidade de saber se as “deficiências” apontadas na vistoria que fundamenta o acto recorrido se referem a requisitos que o tal “fantasmagórico” regulamento tenha consagrado pois, como se escreveu, em lado algum se diz que aquele regulamento existe.
16 - Assim, ao entender que o acto recorrido estava devidamente fundamentado, a douta sentença recorrida fez errónea interpretação da matéria factual e incorrecta aplicação do nº 1 do art. 125º do C.P.A. e da alínea d) do nº 1 do art. 19º do Decreto-Lei nº 168/97, de 4 de Julho, na redacção do Decreto-Lei 139/99, de 24 de Abril”.
1.4. A autoridade recorrida alegou defendendo a manutenção da sentença.
1.5. O EMMP emitiu parecer, igualmente no sentido da improcedência do recurso jurisdicional.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
2.
2.1. A sentença apurou a seguinte factualidade, no que não vem controvertida:
Com relevância para a decisão da questão, há que considerar assentes os seguintes factos com relevo:
1. A Recorrente tem por objecto social o comércio de adelo, vinhos e petiscos, o qual exerce no estabelecimento denominado “...’, sito na rua....
2. O alvará do estabelecimento data de 18.3.1958.
3. Por despacho do Sr Vereador, datado de 16.11.2001, foi determinada a realização de vistoria ao referido estabelecimento.
4. Efectuada a vistoria no dia 20.12.2001, a Comissão concluiu não se encontrarem cumpridos os requisitos regulamentares, pelos fundamentos discriminados no auto de ‘Vistoria, aqui dado por reproduzido na íntegra, e o alvará sanitário se encontrar caducado.
5. A sócia gerente, ..., esteve presente na vistoria e assinou o respectivo auto lavrado.
6. Na sequência de vistoria efectuada ao local, foi determinado por despacho do Sr. Vereador da Reabilitação Urbana, datado de 21.1.2002, proceder à apreensão do Alvará Sanitário referente ao estabelecimento “...” sito na rua ..., lavrado no auto de vistoria, nos termos constantes no processo instrutor aqui dados por reproduzidos na integra”.
2.2. O acto contenciosamente impugnado determinou a apreensão do alvará sanitário do estabelecimento da recorrente, por efeito da sua caducidade. Invocou o disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 19º do Decreto-Lei nº 168/97, de 4 de Julho, na redacção do Decreto-Lei 139/99, de 24 de Abril.
Pois que interessa à discussão, recorda-se o texto daquele artigo 19.º e, ainda, do artigo 1.º e do n.º 1 do artigo 35.º do mesmo diploma legal.
Artigo 1.º
Estabelecimentos de restauração e de bebidas
1 — São estabelecimentos de restauração, qualquer que seja a sua denominação, os estabelecimentos destinados a proporcionar, mediante remuneração, refeições e bebidas para serem consumidas no próprio estabelecimento ou fora dele.
2 — São estabelecimentos de bebidas, qualquer que seja a sua denominação, os estabelecimentos destinados a proporcionar, mediante remuneração, bebidas e serviço de cafetaria para consumo no próprio estabelecimento ou fora dele.
3 — Os estabelecimentos referidos nos números anteriores podem dispor de salas ou espaços destinados a dança.
4 — Os estabelecimentos referidos nos n.ºs 1 e 2 podem dispor de instalações destinadas ao fabrico próprio de pastelaria, panificação e gelados, enquadrados na classe D do Decreto Regulamentar n.º 25/93, de 17 de Agosto, ficando assim sujeitos, não ao regime do licenciamento do exercício da actividade industrial previsto naquele diploma, mas ao regime da instalação previsto no presente diploma.
5 — Os requisitos das instalações, classificação e funcionamento de cada um dos tipos de estabelecimentos referidos nos números anteriores são definidos em regulamento próprio.
6 — Para efeitos do disposto no presente diploma, não se consideram estabelecimentos de restauração e de bebidas as cantinas, os refeitórios e os bares de entidades públicas, de empresas e de estabelecimentos de ensino, destinados a fornecer refeições ou bebidas exclusivamente ao respectivo pessoal e alunos, devendo este condicionamento ser devidamente publicitado.”
“Artigo 19.º
Caducidade da licença de utilização para serviços de restauração ou de bebidas
1 — A licença de utilização para serviços de restauração ou de bebidas caduca nos seguintes casos:
a) Se o estabelecimento não iniciar o seu funcionamento no prazo de um ano a contar da data da emissão do alvará da licença de utilização ou do termo do prazo para a sua emissão;
b) Se o estabelecimento se mantiver encerrado por período superior a um ano, salvo por motivo de obras;
c) Quando seja dada ao estabelecimento uma utilização diferente da prevista no respectivo alvará;
d) Quando, por qualquer motivo, o estabelecimento não preencher os requisitos mínimos exigidos para qualquer dos tipos previstos no regulamento a que se refere o n.º 5 do artigo 1.º
2 — Caducada a licença de utilização, o alvará é apreendido pela câmara municipal, na sequência de notificação ao respectivo titular, devendo ser encerrado o estabelecimento”.
Artigo 35.º
Competência de fiscalização
1 — Compete às câmaras municipais:
a) Fiscalizar o cumprimento do disposto no presente diploma e seus regulamentos, relativamente aos estabelecimentos de restauração e de bebidas, com excepção dos estabelecimentos de restauração e de bebidas previstos no n.º 2, sem prejuízo das competências em matéria de fiscalização atribuídas às autoridades de saúde pelo Decreto-Lei n.º 336/93, de 29 de Setembro, e às autoridades competentes em matéria de fiscalização e controlo da qualidade alimentar, nos termos previstos no Decreto-Lei n.º 67/98, de 18 de Março;
b) Fiscalizar o bom estado das construções e as condições de segurança de todos os edifícios em que estejam instalados estabelecimentos de restauração e de bebidas;
c) Conhecer das reclamações apresentadas sobre o funcionamento e o serviço dos estabelecimentos de restauração e de bebidas, oficiosamente ou a pedido dos órgãos regionais ou locais de turismo, da FERECA — Federação da Restauração, Cafés, Pastelarias e Similares de Portugal ou das associações patronais do sector, bem como ordenar as providências necessárias para corrigir as deficiências neles verificadas, sem prejuízo do disposto no n.º 2;
d) (. . .)”.
A sentença impugnada julgou não se verificar nenhum dos vícios que haviam sido assacados ao acto.
No presente recurso, a recorrente ataca a sentença em toda a sua dimensão.
Apreciar-se-á seguindo a ordem das alegações.
2.2.1. Quanto ao não acolhimento do vício de incompetência relativa (conclusões 1 a 5).
A sentença considerou que o acto foi praticado pela Vereadora da Reabilitação Urbana da Câmara Municipal de Lisboa ao abrigo de competência subdelegadas pelo presidente da Câmara.
A recorrente entende que o despacho de delegação que foi invocado, Despacho n.º 141/P/2002, não conferia poderes para a prática do acto em questão.
Não está em discussão a delegação dos poderes da Câmara no respectivo presidente, apenas os deste naquela vereadora.
Alega a recorrente, face ao dito despacho, que os “únicos poderes de cassação e apreensão de alvarás compreendidos no âmbito daquela delegação referem-se, exclusivamente, aos alvarás previstos no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação” (conclusão 4).
A sua tese baseia-se na redacção da alínea j) do n.º 4 do dito despacho, no segmento respeitante à vereadora autora do acto, ... (cfr. fls. 128, 129).
Observa-se que a sentença, tendo considerado o dito Despacho 141/P/2002 não especificou em que concreto ponto se procedia nele à delegação ou subdelegação em debate.
Afigura-se que a recorrente tem razão quando entende que na alínea j) do n.º 4 do Despacho apenas está conferida competência para a cassação e apreensão de alvarás no domínio do RJUE.
Todavia, não é correcto afirmar-se que é nesse número e alínea que se funda a subdelegação de competência em crise.
Diga-se que, nas alegações da fase contenciosa, a autoridade recorrida não se reportou a tal ponto. Disse:
De facto, o acto recorrido foi praticado pela Senhora (...), ao abrigo da subdelegação de competências consubstanciada no ponto n.º 8 do citado despacho.
Com efeito foi subdelegada na entidade recorrida a competência prevista na alínea b), do ponto G, do Capítulo I, da Deliberação n.º 3/CM/2002, de 10 de Janeiro, publicada no Suplemento ao Boletim Municipal n.º 413, de 2002/01/17.
Decorre dessa alínea que as competências da Câmara relativas aos Estabelecimentos de Restauração e Bebidas, designadamente, as previstas nos artigos 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, n.º 2 do artigo 7.º, artigo 32.º, n.º 1 do artigo 35.º, n.º 1 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 168/97 de 4 de Julho (...) foram delegadas no Presidente da Câmara Municipal de Lisboa” (fls. 76-77)”
Ora, efectivamente no ponto 8 do Despacho 141/P/2002, no segmento respeitante à vereadora autora do acto, vem-lhe conferido o exercício das “competências previstas nas alíneas a), b) (…) do ponto G, do Capítulo I, da Deliberação n.º 3/CM/2002, de 10 de Janeiro, publicada no Suplemento ao Boletim Municipal n.º 413, de 2002/01/17.
Por sua vez, aquela deliberação camarária confere ao presidente da câmara as competências “Quanto aos Estabelecimentos de Restauração e Bebidas, previstas nos artigos 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, n.º 2 do artigo 7.º, artigo 32.º, n.º 1 do artigo 35.º, n.º 1 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 168/97 de 4 de Julho”.
Deste modo, a autora do acto encontrava-se suportada, quanto à competência, no citado ponto 8 do Despacho 141/P/2002.
Não se verificam, assim, os erros apontados à sentença, que deve ser lida como tendo tido em conta o ponto do despacho que conferia a competência à autora do acto.
2.2.2. Quanto ao não acolhimento do vício de falta de audiência prévia (conclusões 6 a 11).
A sentença considerou que “(...) o acto recorrido foi praticado no uso de poderes vinculados, em que, face a determinado circunstancialismo, a lei dita a caducidade do alvará.
Ora, sendo possível formular in casu um juízo de prognose póstuma, no qual, o Tribunal conclua que a decisão tomada era a única concretamente possível nos termos da lei vigente, nenhum efeito útil se retiraria da audiência prévia do Administrado, pelo que a sua preterição apresenta-se irrelevante. Em ordem ao princípio do aproveitamento do acto administrativo, impõe-se ao Tribunal negar a relevância invalidante à falta de audiência prévia da Recorrida”.
Não vem questionado que não houve cumprimento do dever de audiência, e que não se verificava qualquer situação de inexistência ou dispensa desse dever.
A sentença concluiu, porém, pela inevitabilidade da decisão tomada pela Administração, e fez aplicação do princípio do aproveitamento acto.
Vejamos.
Ponderou-se no acórdão de 22.6.2004, recurso n.º 1577/03, a propósito da aplicação do princípio do aproveitamento do acto:
Não bastará, no entanto, como a jurisprudência vem afirmando, que se esteja em sede de vinculação legal, pode haver elementos que contrariem o aproveitamento. Haverá casos em que, ainda que se possa afirmar, em juízo de prognose, que o novo acto será, necessariamente, no mesmo sentido, ainda assim não se deverá fazer, pelo menos automaticamente, apelo a este princípio. Serão, em geral, as situações de acto "ablativo, impositivo de encargos ou sancionatório" (cfr. MARGARIDA CORTÊS, Cadernos de Justiça Administrativa, 37, pág. 38).”
Em princípio, pois, é essencial, para o aproveitamento a inteira segurança quanto à identidade de conteúdo decisório do que seria o acto de execução.
Ora, em geral, deve admitir-se que a audiência do interessado, permitindo que este se pronuncie, pode determinar uma modulação na configuração que dos factos é realizada pela Administração. Tomar posição antecipada seria julgar, também por antecipação, que a audiência, nos casos considerados pela Administração como de exercício de poderes estritamente vinculados podia ser dispensada ou que a ela não havia lugar. Mas essas situações não se encaixam em nenhuma das previsões do artigo 103.º do CPA”.
O caso dos autos, mesmo que não se aceite a tese da recorrente, de integração na previsão constitucional do artigo 32.º, n.º 10, reporta-se, indiscutivelmente, a medida ablativa, o que, por si, impõe todas as cautelas na aplicação do princípio do aproveitamento do acto.
O acto objecto do recurso contencioso configura uma declaração de caducidade e o seu efeito, que é a apreensão de alvará.
O problema da caducidade em sede do direito administrativo foi explanado no Parecer da PGR n.º 40/94-complementar (DR II Série de 14 de Janeiro de 2003).
Acompanham-se as seguintes considerações (cita-se sem as notas de rodapé constantes do texto):
Sobretudo quando a caducidade assume a natureza de uma verdadeira sanção por incumprimento, os autores são unânimes no sentido de que o efeito extintivo depende de uma declaração administrativa no âmbito de um procedimento prévio.
O procedimento é o instrumento privilegiado, que permitirá à Administração verificar e apreciar as causas de caducidade, examinar a conduta do particular para averiguar em que medida o incumprimento é imputável ao titular do direito, se existem ou não causas de força maior ou circunstâncias alheias à vontade do particular, avaliar se deve haver ou não lugar à reabilitação do direito em causa por razões de interesse público, etc.
Por sua vez, o particular terá oportunidade, em sede de audiência prévia, de invocar argumentos tendentes a demonstrar a não procedência das causas de caducidade, de requerer a eventual prorrogação do prazo, se for caso disso, ou a reabilitação do direito, etc.
Podemos dizer que o carácter não automático que a caducidade assume em geral no direito administrativo advém, como já se referiu, da presença da Administração e da sua vinculação à prossecução do interesse público, de modo a evitar o sacrifício de interesses, bem como soluções injustas e absurdas”.
Afinal, é nesta linha que a recorrente sustenta que “a audiência prévia da recorrente afigurava-se essencial para que àquela fosse permitido demonstrar que o acto em projectado se afiguraria contrário aos mais elementares princípios da actividade administrativa, designadamente, o da proporcionalidade e o da justiça (conclusão 9).
Tem toda a razão, portanto.
O problema não está na vinculação da Administração a apreender o alvará, na sequência da caducidade; o problema está na declaração de caducidade.
A declaração de caducidade tem efeitos constitutivos, sendo que a “Administração é chamada a valorar as causa do incumprimento, com vista a formular um juízo prévio quanto à sua repercussão na manutenção da relação jurídica em causa” (Maria Fernanda Maçãs, “A caducidade por incumprimento e a natureza dos prazos na atribuição da utilidade turística”, Cadernos de Justiça Administrativa, 48, pág. 13.
Ora, na valoração a fazer, é imprescindível a participação dos interessados em sede de audiência prévia, nunca se podendo, sem essa participação, afirmar a inevitabilidade da decisão tomada.
Errou, pois, a sentença.
2.2.3. Quanto ao não acolhimento do vício de falta de fundamentação (conclusões 12 a 16).
O acto sustenta-se num auto de vistoria em que foi descrito tudo o que foram consideradas deficiências do estabelecimento.
Os elementos de facto são, pois, aqueles que no auto ficaram exarados.
O problema reside na ligação desses elementos de facto a regras jurídicas.
Ora, a terminar o auto de vistoria, exarou-se: “Em face do exposto a Comissão concluiu que atendendo a não se encontrarem cumpridos os requisitos regulamentares, o Alvará sanitário existente se encontra caducado, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 19.º do DL 168/97 de 4/7, com a redacção do DL 139/99 de 24/4”.
Aquela referência jurídica do auto de vistoria é o único suporte jurídico para que remete o acto impugnado.
Verifica-se, imediatamente, que não há qualquer indicação de quais os requisitos regulamentares em incumprimento.
O decisivo, no caso, não é o artigo 19, n.º 1, alínea d), do DL 168/97.
É que o acto não se funda em incumprimento daquele preceito. Aquele preceito limita-se a abrigar uma determinada conduta da Administração. Esta, por seu lado, sustenta-se no incumprimento por parte do administrado de determinados requisitos regulamentares.
Porém, o acto é omisso quer na identificação concreta dos requisitos regulamentares, quer na própria identificação do regulamento que os enunciam.
Ora, aquela identificação é que era a decisiva para a compreensão por parte do administrado das razões jurídicas do acto.
Observe-se que tem sido entendimento deste Tribunal que “na fundamentação de direito dos actos administrativos não se exige a referência expressa aos preceitos legais, bastando a referência aos princípios jurídicos pertinentes, ao regime legal aplicável ou a um quadro normativo determinado - cfr., p. ex., os acs. de 28.02.02, rec. 48071, de 28.10.99, rec. 44051 (respectivo Apêndice ao Diário da República, pág. 6103), de 8.6.98, rec. 42212 (Apêndice, pág. 4263) de 7.5.98, rec. 32694 (Apêndice, pág. 3223) e do pleno de 27.11.96, rec. 30218 (Apêndice, pág. 828).
Mais do que isto, tem sido dito que em sede de fundamentação de direito, dada a funcionalidade do instituto da fundamentação dos actos administrativos, ou seja, o fim meramente instrumental que o mesmo prossegue, se aceita um conteúdo mínimo traduzido na adução de fundamentos que, mau grado a inexistência de referência expressa a qualquer preceito legal ou princípio jurídico, possibilitem a referência da decisão a um quadro legal perfeitamente determinado (cfr. Ac. Pleno de 25.5.93, rec. 27387, e acs. em subsecção, de 7.2.97, rec. 36197, e citados acs. de 7.5.98, rec. 32694 e de 28.10.99, rec. 44051) Esta jurisprudência, criticada (cfr. Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves, J. Pacheco de Amorim, “Código do Procedimento Administrativo, comentado”, 2.ª edição, anotação III do artigo 125.º: “Por nós não enveredaríamos por aí: é pôr nos domínios do arbítrio ou do subjectivismo do julgador um juízo, uma exigência que a lei definiu vinculada e objectivamente, de uma maneira clara: a fundamentação contém os «fundamentos de facto e de direito»), mas também aplaudida (cfr. Diogo Freitas do Amaral, “Curso de Direito Administrativo, com a colaboração de Lino Torgal”, Vol. II, pág. 353), passa, assim, da suficiência de uma referência aos princípios jurídicos pertinentes, ao regime legal aplicável ou a um quadro normativo determinado, para a suficiência de uma completa ausência explícita de referência normativa, se se puder concluir que o destinatário do acto pôde ou pode perceber o concreto regime legal tido em conta”.
Mas, ponderou-se no Acórdão de 27.5.2003, recurso 1835-02, que se tem vindo a citar:
Ainda que se considere ajustada esta linha jurisprudencial, a aceitação em cada caso de um acto como fundamentado de direito, apesar de nenhuma referência legal directa, supõe, em regra, o preenchimento de duas condições:
- A primeira é a de que se possa afirmar, inequivocamente, perante os dados objectivos do procedimento, qual foi o quadro jurídico tido em conta pelo acto;
- A segunda é a de que se possa concluir que esse quadro jurídico era perfeitamente conhecido ou cognoscível pelo destinatário, hipotizando-se que o seria por um destinatário normal na posição em concreto em que aquele se encontra.
A segunda condição não funciona sem a primeira. Se não se sabe qual o quadro jurídico efectivamente tido em conta pelo acto é irrelevante que o destinatário possa saber, e até saiba, qual o quadro jurídico que deveria ter sido considerado. O destinatário não se pode substituir nem ao acto nem ao autor do acto. A fundamentação é requisito do acto. E o destinatário tem o direito de saber qual o quadro jurídico que foi levado em consideração, ao abrigo de que regime legal entendeu o autor do acto praticá-lo”.
No caso presente, impõe-se observar estes dois segmentos: o do quadro jurídico tido em conta pelo acto e o do destinatário.
Quanto ao primeiro, se bem que os autos não forneçam qualquer elemento expresso, é de admitir que o acto tenha tido em vista o regulamento a que se reporta o preceito legal; todavia, não é possível saber a que requisitos concretos impostos pelo regulamento se reporta cada uma das indicações de facto que se fez constar do auto.
Na verdade, ao abrigo do n.º 5 do artigo 1.º do DL n.º 168/97, foi publicado o Decreto Regulamentar n.º 38/97, de 25 de Setembro, depois alterado pelo Decreto Regulamentar n.º 4/99, de 1 de Abril.
Dele constam diversas tabelas anexas indicando “os requisitos mínimos que os diversos tipos de estabelecimentos devem preencher”.
Numa acção como a que se discute, estando em equação muitos e diversos requisitos, impõe-se que, em ordem à percepção pelo destinatário daquilo que lhe é apontado como irregular, se proceda a uma indicação, primeiro, de qual a tabela que foi tomada em consideração, depois, do que é que em relação a cada requisito nela previsto se entende estar em falha.
Ora, fazendo-se constar do auto uma descrição do que foi visto, sem o enunciado concreto do que está em incumprimento, fica-se sem saber se o auto teve em atenção a específica tabela aplicável, e, mais que isso, fica-se sem saber quais os concretos requisitos que a Administração entendeu não estarem preenchidos
Deste modo, não se pode dar por demonstrado, no caso, qual o efectivo quadro jurídico tido em conta.
Concluído assim, também se tem de concluir que a destinatária ficou sem poder tomar uma atitude consciente de aceitação ou de crítica do acto, ela não pôde perceber o efectivo e concreto quadro jurídico considerado pelo acto.
Nestas condições, entende-se que é insuficiente a fundamentação de direito constante do acto, o que equivale à falta de fundamentação (artigo 125.º, n.º 2, do CPA).
Errou, pois, a sentença quando julgou de modo diverso.
3. Pelo exposto concede-se provimento ao recurso jurisdicional, revogando-se a sentença e anulando-se o acto contenciosamente impugnado por violação do dever de audiência, exigido pelo artigo 100.º do CPA, e por falta de fundamentação de direito.
Sem custas, por delas estar isenta a autoridade recorrida.
Lisboa, 14 de Junho de 2005. – Alberto Augusto Oliveira (relator) – Rosendo José – Políbio Henriques.