Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0240/10
Data do Acordão:06/02/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANTÓNIO CALHAU
Descritores:IMPOSTO SOBRE O ÁLCOOL
INCIDÊNCIA
Sumário:I – Os impostos especiais de consumo, entre os quais se inclui o imposto sobre o álcool e as bebidas alcoólicas, são impostos indirectos, nascidos de operações internas, encontrando-se o respectivo regime jurídico estabelecido no CIEC, aprovado pelo DL 566/99, de 22 de Dezembro.
II – Embora a cobrança e administração destes impostos seja da competência das alfândegas, e o seu regime deva muito ao direito aduaneiro, os impostos especiais de consumo são impostos de natureza não aduaneira, a que não é, pois, aplicável a legislação aduaneira, designada e concretamente o DL 281/91, de 9/8, que criou o Conselho Técnico Aduaneiro, órgão especializado do contencioso aduaneiro, e regulou o procedimento de contestação técnica junto daquele órgão.
III – Todavia, como expressamente dispõe o n.º 2 do artigo 4.º do CIEC, sempre que seja relevante para a determinação da incidência objectiva dos impostos especiais de consumo (que para o caso do imposto sobre o álcool e as bebidas alcoólicas se mostra regulada no artigo 48.º do CIEC) são de aplicar os critérios estabelecidos para a classificação de mercadorias na Nomenclatura Combinada estabelecida pelo regulamento (CEE) n.º 2658/87, de 23/7/87, e respectivas actualizações e as regras gerais para a interpretação desta nomenclatura, as notas das secções e capítulos da mesma, as notas explicativas do Sistema Harmonizado de Designação e Codificação de Mercadorias do Conselho de Cooperação Aduaneira, os critérios de classificação adoptados pelo dito Conselho e as notas explicativas da Nomenclatura Europeia.
IV – A determinação da natureza ou definição do produto para que se possa aferir se o mesmo está ou não incluído na previsão do artigo 48.º do CIEC não constitui, porém, contestação de carácter técnico relativa a classificação pautal que deva ser decidida pelo CTA, podendo e devendo tal questão ser suscitada na impugnação judicial do acto de liquidação.
Nº Convencional:JSTA000P11891
Nº do Documento:SA2201006020240
Recorrente:A... EM PORTUGAL
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I – A…– Sucursal em Portugal, com os sinais dos autos, não se conformando com a decisão da Mma. Juíza do TAF do Porto que julgou improcedente a impugnação judicial por si deduzida contra o acto de liquidação de imposto sobre o álcool praticado, em 6/2/2004, pelo Director Regional de Contencioso e Controlo Aduaneiro do Porto, dela vem interpor recurso para este Tribunal, formulando as seguintes conclusões:
1) A douta decisão recorrida considerou improcedente a impugnação judicial objecto dos presentes autos, por entender procedente a questão prévia suscitada pela Fazenda Pública da prejudicialidade da contestação junto do Conselho Técnico Aduaneiro (CTA), fundamentando-se na consideração de que “sem a anulação ou revisão do acto de classificação pautal por parte do CTA, não é admissível a anulação da liquidação dos direitos aduaneiros e demais imposições legais com fundamento em ilegalidade daquele já que se trata de acto destacável da liquidação e é autonomamente impugnável”.
2) Não pode, contudo, a ora Recorrente conformar-se com tal decisão, pelos motivos que se passam a expor e salvaguardado o devido respeito pelo entendimento nela vertido.
3) Na realidade, diversamente do feito constar do segmento decisório vindo de transcrever e erroneamente pressuposto na decisão recorrida, a impugnação judicial dos presentes autos não tem por objecto a anulação da liquidação de “direitos aduaneiros”, mas a anulação de um acto de liquidação de um imposto especial de consumo, concretamente imposto sobre o álcool.
4) Os impostos especiais de consumo, entre os quais se inclui o imposto sobre o álcool e as bebidas alcoólicas, são impostos indirectos, nascidos de operações internas, encontrando-se o respectivo regime jurídico estabelecido no Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 566/99, de 22 de Dezembro.
5) Embora, conforme doutamente vertido no Acórdão de 10/02/2010 desse Venerando Tribunal, “a cobrança e administração destes impostos seja da competência das alfândegas”, nos termos previstos no artigo 2.º, n.º 1, e n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 82/2007, de 29 de Março, e no artigo 18.º, alínea a), alínea iii), da Portaria n.º 349/2007, de 30 de Março, “e o seu regime deva muito ao direito aduaneiro”, os impostos especiais de consumo são “impostos de natureza não aduaneira”, a que, pois, não é aplicável a legislação aduaneira, designada e concretamente o Decreto-Lei n.º 281/91, de 9 de Agosto, que criou o Conselho Técnico Aduaneiro, órgão especializado do contencioso aduaneiro, e regulou o procedimento de contestação técnica junto daquele órgão.
6) A confusão de procedimentos/tributos em que patentemente radicou a decisão recorrida terá presumivelmente resultado do facto de no Código dos Impostos Especiais de Consumo, designadamente em matéria de incidência objectiva e isenções, serem usados códigos da Nomenclatura Combinada, estabelecendo expressamente o n.º 2 do artigo 4.º do Código em referência que “sempre que seja relevante para a determinação da incidência objectiva dos impostos especiais de consumo são de aplicar os critérios estabelecidos para a classificação de mercadorias na Nomenclatura Combinada estabelecida pelo Regulamento (CEE) n.º 2658/87, de 23 de Julho de 1987”.
7) O referido uso dos códigos da Nomenclatura Combinada, mormente para determinação da incidência objectiva do imposto sobre o álcool, em causa nos presentes autos, não se reconduz à prática de qualquer acto de classificação pautal – acto/decisão tipicamente previsto na legislação aduaneira, preparatório e prévio à liquidação de direitos aduaneiros, ou seja, à constituição de uma dívida aduaneira.
8) Na situação sub judice, e conforme expressamente feito constar do Relatório Final do procedimento de inspecção (alínea c) da factualidade provada), “para efeitos de determinação da incidência objectiva de Imposto sobre o Álcool (ISA) do produto designado como “Álcool Sanitário 96 Gr. …”, nos termos do n.º 2 do artigo 4.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), aprovado pelo DL n.º 566/99, de 22 de Dezembro, recorreu-se aos critérios estabelecidos na Nomenclatura Combinada (NC) estabelecida pelo Regulamento (CEE) n.º 2658/87, de 23 de Julho de 1987” – isto e apenas isto.
9) Ou seja, no procedimento que culminou com a prática do acto de liquidação de imposto sobre o álcool objecto dos presentes autos não existiu, nem podia legalmente ter existido, qualquer acto de classificação pautal.
10) O acto de liquidação de imposto sobre o álcool impugnado foi produzido na sequência de um procedimento de inspecção tributária, ao longo do qual e no termo do qual foram praticados diversos actos, lógica e cronologicamente sequentes e interligados, dirigidos ao acto final de liquidação, mas todos eles meramente preparatórios ou acessórios deste.
11) Conforme expressamente previsto no artigo 11.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, o procedimento de inspecção tributária tem um carácter meramente preparatório ou acessório dos actos tributários ou em matéria tributária, decorrendo, por seu turno, do artigo 54.º do Código do Procedimento e Processo Tributário que as ilegalidades praticadas durante o procedimento que culmina com a liquidação são atacáveis apenas na impugnação que se fizer da decisão final – princípio da impugnação unitária.
12) Nos termos do disposto no artigo 99.º do CPPT, constitui fundamento da impugnação judicial qualquer ilegalidade do acto tributário – concretização da garantia constitucional de acesso à justiça tributária para a tutela plena, efectiva e em tempo útil de todos os direitos ou interesses legalmente protegidos (artigo 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa).
13) A ora recorrente podia, pois, suscitar na impugnação judicial quaisquer ilegalidades praticadas durante o procedimento que culminou com a liquidação aqui em causa, designada e concreta a específica ilegalidade que imputou ao acto impugnado.
14) A sentença ora posta em crise, ao decidir como decidiu, incorreu em violação do disposto nos artigos 4.º e 48.º e seguintes do Código dos Impostos Especiais de Consumo, nos artigos 9.º e 95.º da Lei Geral Tributária, nos artigos 97.º e 99.º do Código do Procedimento e Processo Tributário e no artigo 11.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária.
SEM PRESCINDIR,
15) A determinação da natureza da mercadoria em causa nos presentes autos não constitui contestação de carácter técnico relativa a classificação pautal que deva ser decidida pelo Conselho Técnico Aduaneiro – conforme expressamente afirmado na decisão recorrida, “o que está em causa é a determinação ou definição do produto (…), sendo que só após tal definição é possível aferir se o produto está ou não incluído na previsão do art.º 48.º, n.º 1, do CIEC”.
16) Conforme doutamente decidido no Acórdão desse Venerando Tribunal de 23/02/2000, “tal questão pode e deve ser suscitada na impugnação judicial do acto de liquidação”.
17) Ao assim não decidir, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 4.º e 48.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, nos artigos 9.º e 95.º da Lei Geral Tributária e nos artigos 97.º e 99.º do Código do Procedimento e Processo Tributário.
SEMPRE SEM PRESCINDIR,
18) Ainda que se considerasse que no procedimento que conduziu à produção do acto tributário impugnado foi produzido um acto de classificação pautal, sempre se teria de concluir pela não obrigatoriedade do recurso ao procedimento técnico de contestação previsto no Decreto-Lei n.º 281/91, de 9 de Agosto.
19) O recurso ao referido procedimento técnico de contestação tem, pois, natureza facultativa, podendo ser imediatamente intentada impugnação judicial contra o acto de liquidação, na qual poderá ser apreciada a questão da classificação pautal, enquanto matéria atinente à legalidade da liquidação.
20) Assim não tendo decidido, a sentença aqui questionada violou o disposto no Decreto-Lei n.º 281/91, de 9 de Agosto, nos artigos 9.º e 95.º da lei Geral Tributária e nos artigos 97.º e 99.º do Código do Procedimento e Processo Tributário.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Exmo. Magistrado do MP junto deste Tribunal emite parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, devendo ser confirmada a decisão recorrida, porquanto apenas vem impugnada questão emergente da classificação pautal e não qualquer vício inerente à liquidação.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Na decisão recorrida, mostra-se assente a seguinte factualidade:
a) No decurso de uma acção fiscalizadora levada a efeito pelos serviços da Alfândega do Freixieiro, a impugnante foi notificada para efeitos de audição prévia do projecto de conclusões, no qual era proposta a liquidação de imposto sobre o álcool (cfr. doc. de fls. 20 a 25 do processo administrativo apenso).
b) A impugnante nada aduziu naquela sede.
c) Posteriormente a impugnante foi notificada do Relatório Final (cfr. doc. de fls. 6 a 19 dos autos).
d) A presente impugnação foi intentada em 02/05/2004 (cfr. doc. de fls. 3 dos autos).
III – Vem o presente recurso interposto da decisão da Mma. Juíza do TAF do Porto que, julgando procedente a questão prévia suscitada pelo representante da FP da prejudicialidade da contestação junto do Conselho Técnico Aduaneiro, considerou, desde logo, votada ao insucesso a presente impugnação judicial.
Funda-se a Mma. Juíza “a quo” na consideração de que sem a anulação ou revisão do acto de classificação pautal por parte do CTA não é admissível a anulação dos direitos aduaneiros e demais imposições legais com fundamento em ilegalidade daquele já que se trata de acto destacável da liquidação e é autonomamente impugnável.
Vejamos. Ao contrário do que pressupõe a decisão recorrida, a presente impugnação judicial não tem por objecto a anulação da liquidação de direitos aduaneiros mas a anulação de um acto de liquidação de um imposto especial de consumo, concretamente imposto sobre álcool.
Os impostos especiais de consumo, entre os quais se inclui o imposto sobre o álcool e as bebidas alcoólicas, são impostos indirectos, nascidos de operações internas, encontrando-se o respectivo regime jurídico estabelecido no CIEC, aprovado pelo DL 566/99, de 22 de Dezembro.
Como se disse no acórdão deste Tribunal de 10/2/2010, proferido no recurso 1086/09, embora a cobrança e administração destes impostos seja da competência das alfândegas, nos termos previstos no artigo 2.º, n.ºs 1) e 2, alínea a) do DL 82/2007, de 29/3, e no artigo 18.º, alínea a), alínea iii), da Portaria 349/2007, de 30/3, e o seu regime deva muito ao direito aduaneiro (o próprio preâmbulo do DL 566/99 frisa que os impostos especiais de consumo são figuras tributárias com uma técnica e terminologia muito particulares largamente inspiradas na tradição aduaneira), os impostos especiais de consumo são impostos de natureza não aduaneira, a que não é, pois, aplicável a legislação aduaneira, designada e concretamente o DL 281/91, de 9/8, que criou o Conselho Técnico Aduaneiro, órgão especializado do contencioso aduaneiro, e regulou o procedimento de contestação técnica junto daquele órgão – procedimento aduaneiro susceptível de ser utilizado em caso de liquidações de direitos aduaneiros relativamente às quais surjam divergências entre o importador e as autoridades aduaneiras no que respeita à classificação pautal, origem das mercadorias ou valor aduaneiro.
É certo que, como expressamente dispõe o n.º 2 do artigo 4.º do CIEC, sempre que seja relevante para a determinação da incidência objectiva dos impostos especiais de consumo (que para o caso do imposto sobre o álcool e as bebidas alcoólicas se mostra regulada no artigo 48.º do CIEC) são de aplicar os critérios estabelecidos para a classificação de mercadorias na Nomenclatura Combinada estabelecida pelo regulamento (CEE) n.º 2658/87, de 23/7/87, e respectivas actualizações e as regras gerais para a interpretação desta nomenclatura, as notas das secções e capítulos da mesma, as notas explicativas do Sistema Harmonizado de Designação e Codificação de Mercadorias do Conselho de Cooperação Aduaneira, os critérios de classificação adoptados pelo dito Conselho e as notas explicativas da Nomenclatura Europeia.
Só que a aplicação desses critérios não se reconduz à prática de qualquer acto de classificação pautal.
O que sucedeu, no caso em apreço, foi apenas que, efectuada acção de natureza fiscalizadora à ora recorrente, se apurou ter esta recepcionado 7 192,5 litros de “Álcool sanitário 96 GR …”, proveniente de Espanha, tendo-se concluído tratar-se de um “destilado etílico”, face aos resultados da análise laboratorial efectuada ao produto e aplicação dos critérios de classificação de mercadorias referenciados no n.º 2 do artigo 4.º do CIEC, e, por isso, o mesmo sujeito a imposto especial sobre o consumo, por força do disposto na alínea i) do n.º 2 do artigo 48.º do mesmo CIEC.
Daí que a divergência manifestada pela ora recorrente quanto à determinação da natureza da mercadoria em causa nos presentes autos não constitua contestação de carácter técnico relativa a classificação pautal que deva ser decidida pelo CTA, pois o que está apenas em causa é a determinação ou definição do produto para que se possa aferir se o mesmo está ou não incluído na previsão do artigo 48.º do CIEC.
Em suma, o que a recorrente veio impugnar foi a liquidação de imposto especial sobre o consumo (imposto sobre o álcool), efectuada com base na alínea i) do n.º 2 do artigo 48.º do CIEC, com fundamento na sua ilegalidade, porquanto o produto em causa, em seu entender, se não poder classificar como um “destilado etílico”, uma vez que de acordo com o estabelecido no n.º 3, alínea a) das Regras Gerais para Interpretação da Nomenclatura Combinada estabelecida pelo regulamento (CEE) n.º 2658/87, de 23/7/87, aqui aplicável “ex vi” do n.º 2 do artigo 4.º do CIEC, se trata não de produto enquadrável no capítulo respeitante a “bebida, líquido alcoólico e vinagre” mas antes de um “produto diverso da indústria química”, e enquadrável, por isso, em diferente capítulo da Nomenclatura Combinada, razão por que não está, por isso, sujeito a imposto sobre o álcool.
Sendo que a classificação do referido produto se apurará face aos resultados da análise laboratorial efectuada ao mesmo e à aplicação dos critérios de classificação de mercadorias referenciados no citado n.º 2 do artigo 4.º do CIEC e dessa classificação há-de resultar, então, estar tal produto sujeito ou não a imposto especial sobre o álcool, nos termos dos n.ºs 1 e 2, do artigo 48.º do CIEC.
Ora, tal questão pode e deve ser suscitada na impugnação judicial do acto de liquidação (v., neste sentido, o acórdão STA de 23/2/2000, no recurso n.º 24229).
Não podendo este Tribunal dela, porém, tomar, por ora, conhecimento por não se mostrarem reunidos no processo todos os elementos de prova indispensáveis, designadamente os sugeridos pela impugnante na sua petição inicial.
IV – Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do STA em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, e ordenar a baixa dos autos ao tribunal recorrido para que, após reunião dos elementos probatórios necessários, conheça do mérito da impugnação, se, a tal, nada mais obstar.
Sem custas.
Lisboa, 2 de Junho de 2010. – António Calhau (relator) – Miranda de Pacheco – Pimenta do Vale.