Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:030/18.6BCLSB
Data do Acordão:04/04/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ANA PAULA PORTELA
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA
TRIBUNAL ARBITRAL
RESPONSABILIDADE DISCIPLINAR
Sumário:I - A prova dos factos conducentes à condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática, bastando que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem, ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência.
II - A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional (LPFP) que tenham sido por eles percepcionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP (RD/LPFP), conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 2.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
Nº Convencional:JSTA000P24411
Nº do Documento:SA120190404030/18
Data de Entrada:02/15/2019
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:FUTEBOL CLUBE DO PORTO-FUTEBOL, SAD
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

RELATÓRIO

1. FUTEBOL CLUBE DO PORTO – FUTEBOL, S.A.D. (FCP-SAD) interpôs recurso junto do TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPORTO (TAD), das deliberações tomadas pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol – Secção Profissional (CDFPF), proferidas, em 28 de março de 2017, nos processos nºs 25-16/17 e 29-16/17, ao abrigo dos art.s 1º, 4º, n.ºs 1 e 3, al. a) da L. 74/2013, de 6/9, na redação da L. nº 33/2014, de 16.6. (Lei do Tribunal Arbitral do Desporto (LTAD]), que correu termos no TAD, Proc. nº 16/2017 e ao qual foi apensado o Proc. nº 18/2017.
Essas 2 deliberações, tiveram por objeto os 2 jogos a contar para a Liga NOS, realizados no Estádio do Dragão, respetivamente, em 15.1.2017, entre as equipas do FCP–SAD e a do MOREIRENSE FUTEBOL CLUBE, FUTEBOL S.A.D. (Proc. nº 25-16/17), e, em 4.2.2017, entre as equipas do FCP–SAD e do SPORTING CLUBE DE PORTUGAL Futebol SAD, (Proc. nº 29-16/17), e deram origem à condenação do FCP-SAD nas seguintes sanções disciplinares proferidas nos respetivos processos sumários:
– “(i) multa de € 1.148,00, por aplicação do artigo 127.°, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da LPFP (RDLPFP), ex vi artigos 6.°, n.º 1, alínea g), 9.°, alínea m), subalínea xi) , do Anexo VI do Regulamento de Competições da LPFP (RCLPFP) e do artigo 56.°, n.° 3, do RDLPFP; e (ii) multa de € 1.760,00, por aplicação dos artigos 187.°, n.° 1, alínea b), e 56.°, n.º 3, do RDLPFP.”
O FCP–SAD interpôs recurso dessas sanções, em 24 de janeiro de 2017, para o Pleno da Secção Profissional do CDFPF (processo n.º 25-16/17), que, por Acórdão de 28.3.2017, negou provimento ao recurso, confirmando as sanções aplicadas.
O FCP-SAD, impugnou esse acórdão do CDFPF, em 7.4.2017, junto do TAD.

– “repreensão, por aplicação do disposto no artigo 120.°, n.º 1, do RDLPFP; multa de € 153,00, por aplicação do disposto no artigo 120.°, n.º 1, do RDLPFP; multa de € 1.148,00, por aplicação do artigo 127.°, n.º 1, do RDLPFP, ex vi artigos 6.°, n.º 1, alínea g), 9.°, alínea m), subalínea xi), do Anexo VI do RCLPFP e do artigo 56.°, n.º 3, do RDLPFP; multa de € 765,00, por aplicação do artigo 187.°, n.º 1, alínea a), do RDLPFP; multa de € 4.055,00, por aplicação dos artigos 187.°, n.º 1, alínea b), e 56,°, n.º 3, do RDLPFP.”
O FCP-SAD interpôs recurso em 15 de fevereiro de 2017 das sanções de multa que lhe foram aplicadas, para o Pleno da Secção Profissional do CDFPF (processo n.º 29-16/17), que, por acórdão de 28 de março de 2017, “concedeu provimento parcial ao recurso, mantendo a decisão de condenação por violação das infrações disciplinares p. e p. nos art.s 127.º, n.º1 e 187.º, nº1, al.s a) e b) do RDCLPFP, proferida na sessão ordinária deste Conselho Disciplinar no dia 7 de fevereiro de 2017.”
Em 7.4.2017, o FCP – SAD impugnou tal decisão junto do TAD.
Em 26.7.2017 foi determinada a apensação aos autos no TAD do Proc. nº 18/2017, nele pendente.

2. O TAD, por acórdão de 31.1.2018, julgou, com um voto de vencido (que entendia deveriam ser mantidas as decisões impugnadas), o seguinte:
“(i) Procedente o pedido de anulação das multas aplicadas nos processos disciplinares que correram termos junto do CDFPF, com os nºs 25-16/17 e 29-16/17, nos exatos termos em que foram requeridos a este Tribunal;
(ii) Improcedente o pedido de reconhecimento de isenção de custas formulado pela Demandada, com fundamento no despacho proferido pelo Senhor Presidente do TAD no âmbito do processo que ali correu termos sob o n.º 2/2015;
(iii) A Demandada é responsável pelas custas do processo.”

3. Inconformada, a FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL (FPF) interpôs recurso jurisdicional para o Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), o qual, por acórdão de 22.11.2018, negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão do TAD, então recorrido.

4. A FPF conclui as suas alegações da seguinte forma:

“1. A Recorrente vem interpor recurso de revista para o STA do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 22 de novembro de 2018, que confirmou o acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto. Esta instância, por seu turno, havia decidido confirmar anular a aplicação ao FCP de multas por comportamento incorreto do público, punidas através do artigo 127.º e 187.º do RD da LPFP;

2. A questão em apreço diz respeito à responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos por ocasião de jogos de futebol, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, os episódios de violência em recintos desportivos têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes dado por decisões como aquela de que agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno;

3. A questão essencial trazida ao crivo deste STA - responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos - revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito;

4. Assume especial relevância social a forma como a comunidade olha para o crescente fenómeno de violência generalizada no futebol – seja a violência física, seja a violência verbal, seja perpetrada por adeptos, seja perpetrada pelos próprios dirigentes dos clubes;

5. Em causa nos presentes autos estão, essencialmente, comportamentos dos adeptos relacionados com o rebentamento de engenhos pirotécnicos e arremesso de objetos por ocasião de jogos de futebol;

6. São deveres dos clubes assegurar que tais objetos não entram nos estádios de futebol e que os seus adeptos não tenham comportamentos incorretos, o que decorre dos regulamentos federativos, é certo, mas também da lei e da Constituição;

7. Admitir, como fez o TCA Sul, que os clubes devem ser desresponsabilizados pelos comportamentos dos seus adeptos - ao arrepio do entendimento de toda a comunidade desportiva e das instâncias internacionais do Futebol, onde esta questão, de tão clara e evidente que é, nem sequer oferece discussão - é fomentar este tipo de comportamentos o que se afigura gravíssimo do ponto de vista da repercussão social que este sentimento de impunidade pode originar;

8. Esta questão tem conhecido posições contraditórias por parte do TAD, sendo que em catorze processos arbitrais a questão foi decidida de forma contrária à que fez o Tribunal a quo, contra apenas três em sentido coincidente;

9. A questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto desde o início de 2017 até à presente data deram entrada no Tribunal Arbitral do Desporto mais de 50 processos relativos a sanções aplicadas ao FCP por comportamento incorreto dos seus adeptos;

10. Tais números não só demonstram de forma incontestável que o FCP nada tem feito ao nível da intervenção junto dos seus adeptos para que não tenham comportamentos incorretos nos estádios, como demonstram que o FCP tem traçado um "plano de ataque" que não verá um fim num futuro próximo;

11. O FCP não colocou em momento algum em causa que estes factos aconteceram, colocou em causa, sim, que tenham sido adeptos do FCP os responsáveis pelos mesmos e que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas;

12. Tal como consta dos Relatórios de Jogo cujo teor se encontra a fls… do processo arbitral, os Delegados da Liga são absolutamente claros ao afirmar que tais condutas foram perpetradas pelos adeptos do Futebol Clube do Porto, sem deixar qualquer margem para dúvidas;

13. Com base nesta factualidade, o Conselho de Disciplina instaurou os competentes processos sumários ao FCP. Nos termos do artigo 258.º, n.º 1 do RD da LPFP, o processo sumário é instaurado tendo por base o relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais ou dos delegados da Liga, ou ainda com base em auto por infração verificada em flagrante delito;

14. Este é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 259.º do RD da LPFP) somente por análise do relatório de jogo (e, possivelmente, outros elementos aí referidos) que, como se sabe, tem presunção de veracidade do seu conteúdo (cfr. Artigo 13.º, aI. f) do RD da LPFP);

15. Os Delegados da LPFP são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube;

16. Assim, quando os Delegados da LPFP colocam no seu relatório que foram adeptos de determinada equipa que levaram a cabo determinados comportamentos, tal afirmação é necessariamente feita com base em factos reais, diretamente visionados pelos delegados no local. Até porque, caso os Delegados coloquem os seus relatórios factos que não correspondam à verdade, podem ser alvo de processo disciplinar;

17. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD's que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas o FCP;

18. Entende o TCA que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta do Relatório de Jogo) que o FCP violou deveres de formação e vigilância, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como sabemos, não é possível;

19. Assim, o Relatório de Jogo, atento o seu conteúdo, é perfeitamente suficiente e adequado para sustentar a punição da Recorrente no caso concreto. Ademais, há que ter em conta que no caso concreto existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento;

20. Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;

21. Por seu turno, o TCA Sul nada analisa nem nada fundamenta;

22. Também o FCP nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede;
23. No que diz respeito ao cumprimento ou incumprimento dos seus deveres, o FCP nada refere;

24. Do conteúdo do Relatório de Jogo elaborado pelos Delegados da Liga, é possível extrair diretamente duas conclusões: (i) que o Futebol Clube do Porto incumpriu com os seus deveres, senão não tinham os seus adeptos perpetrado condutas ilícitas (violação do dever de formação); (ii) que os adeptos que levaram a cabo tais comportamentos eram apoiantes do Futebol Clube do Porto, o que se depreendeu por manifestações externas dos mesmos;

25. Isto significa que para concluir que quem teve um comportamento incorreto foram adeptos do FCP e não adeptos do clube adversário (e muito menos de um clube alheio a estes dois, o que seria altamente inverosímil), o Conselho de Disciplina tem de fazer fé no relatório dos delegados, o qual tem presunção de veracidade. Posteriormente, o FCP pode fazer prova que contrarie estas evidências, porém, no caso concreto, tal não aconteceu;

26. O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 730/95, diz claramente que "o processo disciplinar que se manda instaurar (...) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube) ";

27. Neste sentido, veja-se o Acórdão deste STA proferido no âmbito do recurso n.º 297/18, interposto da decisão do TCA Sul tirada no processo n.º 144/17.0BCLSB que dando provimento ao recurso de revista diz que é lícito o uso das presunções judiciais e que cabe ao clube apresentar prova que contrarie a presunção de veracidade dos relatórios, o que no caso, não sucedeu;

28. Ainda que se entenda - o que não se concede - que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir o FCP, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido - a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos do FCP e a violação dos respetivos deveres - foi retirado de outros factos conhecidos;

29. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere o FCP e do que parece entender o TCA Sul;

30. A tese sufragada pelo TCA é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em que pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés, mais preocupante, afastando dos eventos desportivos, quem não o pretende fazer, em virtude do receio da ocorrência de episódios de violência;

31. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13.º, al. f), 127.º, 172.º, 187.º, n.º 1, al. a) e b) e 258.º do Regulamento Disciplinar da LPFP.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deverá o presente recurso de revista ser admitido, sendo determinando procedente o recurso apresentado, e, consequentemente, revogado o acórdão proferido pelo TCA Sul, com as necessárias consequências, ASSIM SE FAZENDO O QUE É DE LEI E DE JUSTIÇA.”

5. A FCP-SAD por sua vez conclui as contra-alegações da seguinte forma:

“i. Ainda que a Recorrente não a evidencie com clareza e objetividade, a questão normativa que entende mal apreciada e decidida pelo Tribunal a quo parece ser a relativa ao critério de apreciação da prova em processo disciplinar.

ii. Tendo por referência o disposto no art. 150.°-2 e -4 do CPTA, a questão de direito que releva será o critério pelo qual haverão o Conselho de Disciplina, o Tribunal Arbitral do Desporto, os Tribunais Administrativos, bem como as demais entidades com poderes sancionatórios e decisórios, de seguir aquando da apreciação da prova respeitante aos comportamentos incorretos da autoria de espectadores no decorrer de um evento desportivo como o jogo de futebol de onze, concretamente no âmbito de aplicação do RDLPFP.

iii. Parte da alegação do presente recurso exprime a discordância da Recorrente sobre os termos em que a instância inferior (TCAS) procedeu à apreciação da matéria em discussão e à valoração dos meios de prova constantes dos autos; alegação essa que, como se referiu já, é insuscetível de ser conhecida e apreciada pelo STA em sede de recurso de revista (art. 150.°, n.° 2 e 4, do CPTA), pelo que nessa parte, em tudo o que no recurso consista na “interpelação” para que a matéria de facto seja alterada com base numa reapreciação das provas carreadas para os autos, deverá o recurso ser não conhecido, por inadmissibilidade legal do juízo requerido pela recorrente.

iv. Sobrará, assim, a parte da alegação em que a Recorrente “chama a terreiro” o problema normativo da valoração da prova, designadamente, o critério legal da apreciação da prova em processo disciplinar desportivo, matéria esta suscetível de ser conhecida em sede de revista.

v. Revista que, todavia, deverá improceder, porque fundada numa total desconsideração dos princípios estruturantes do processo disciplinar, que não poderão deixar de abranger o exercício do poder sancionatório previsto no RDLPFP, alguns deles inclusive portadores de estatuto constitucional.

vi. O arguido em processo disciplinar, tal como ocorre em processo penal, não tem de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada, até porque, aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da ação disciplinar (cf. jurisprudência uniforme e pacífica, e reiteradamente afirmada nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 19/01/95, rec. n.° 031486, de 14/03/96, rec. n.° 028264, de 16/10/97, rec. n.° 031496 e de 27/11/97, rec. n.° 039040), vigora ainda o princípio da presunção de inocência.

vii. O princípio da presunção de inocência do arguido, também presente no âmbito do processo disciplinar, tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido - in casu - a Recorrida o ónus de reunir as provas da sua inocência (neste sentido, a título de exemplo, veja-se o acórdão do TCA Norte de 02.10.2010, processo n.° 01551/05.8BEPRT, e ainda o acórdão do TCA Norte de 05.10.2012, processo n.° 01958/08.7BEPRT, disponíveis em www.dgsi.pt.

viii. Donde, toda a prova suscetível de conduzir à responsabilidade jurídico-penal do arguido deve ser carreada para os autos pelo titular da ação disciplinar, não sendo, por isso, admissível qualquer inversão do ónus da prova em sede disciplinar (cf. Acórdão do STA de 17.02.2008, processo n.° 0327/08, acórdão do STA de 28.04.2005, processo n.° 333/05, bem como o acórdão do STA de 12.01.1998, processo n.° 023940, disponíveis em www.dgsi.pt).

ix. Revela-se, aliás, unânime que o arguido em processo disciplinar tem direito a um “processo justo”, o que passa, designadamente, pela aplicação de algumas das regras e princípios de defesa constitucionalmente estabelecidos para o processo penal, como é o caso do citado princípio da presunção da inocência, acolhido no art. 32.°-2 da CRP (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 27/11/97, in Rec, n.° 039040; 16.OUT.97, in Rec. n° 031496, de 14/03/96, in Rec. n.° 028264; de 19.JAN.95, in Rec. n.° 031486; de 10.DEZ.98 in Rec. n.° 037808; de 01.MAR.07, in Rec. n.° 01199/06; de 28.ABR.05, in Rec. n.° 333/05; de 17.MAI.01, in Rec. n.° 40528, disponíveis em www.dgsi.pt. )

x. É precisamente o princípio de inocência que exige ao Tribunal formular um juízo de certeza sobre o cometimento das infrações para condenar a Recorrente, não se bastando com meras ilações, ou uma simples referência geográfica, como, porém, aconteceu.

xi. Portanto, sem que esteja demonstrada e devidamente comprovada, através de robustas provas, a materialidade e autoria da infração disciplinar fica comprometida qualquer condenação do arguido/recorrida, que deve ter a seu favor a presunção de inocência (cf. Ac. TCAS de 02-06-2010, Proc. 5260/01).

xii. Ainda que os documentos gozem de uma presunção de veracidade e sejam elaborados pelos Delegados presentes ao jogo, não se podem aqui diminuir as exigências de prova e de sua apreciação, bastando-se com simples afirmações vertidas em relatórios.

xiii. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.°, f), do RD, pode contrariar o quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador.

xiv. Para efeitos disciplinares, como in casu, é relevante afirmar que a prova dos factos integradores da infração é determinada face aos elementos existentes no processo e pela convicção do julgador, estando sujeita ao princípio da livre apreciação da prova (cf. art. 127.° do CPP e art. 94.°- 4 do CPTA).
xv. Uma vez que o RDLPFP nada dispõe em contrário, competirá ao julgador na fixação dos factos e pressupostos da aplicação da pena disciplinar - formular o seu juízo sobre a realidade e sentido dos factos através da apreciação do material probatório, segundo aquela que é a sua livre convicção.

xvi. Ainda que as provas coligidas possam, em teoria, ser aptas a determinar a instauração do procedimento disciplinar contra o arguido, por se revelarem suficientes, na ótica da acusação, para o considerar suspeito dos factos em causa, para punir disciplinarmente algum agente sempre será preciso ir mais além, recolhendo e produzindo provas concretas que permitam criar a convicção no julgador de que se mostram preenchidos todos os pressupostos exigidos pelo tipo legal.

xvii. A imputação de todos e cada um dos elementos do tipo “incriminador” deve estribar-se em meios de prova que os sustentem, com a natureza de prova direta ou, pelo menos, de prova indireta.

xviii. Considerando os pressupostos legais exigidos para a imputação e condenação pela prática das infrações p. e p. pelos arts. 127.° e 187.°-1, a) e b) do RDLPFP, era necessário que o Conselho de Disciplina da FPF tivesse carreado aos autos prova suficiente de que i) os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da Futebol Clube do Porto — Futebol SAD, como ainda que ii) tais condutas resultaram de um comportamento culposo da Futebol Clube do Porto — Futebol SAD.

xix. Tal produção de prova jamais podia competir ou ser exigido à arguida, não se podendo neste âmbito admitir — como pretende a Recorrente — uma inversão do ónus da prova.

xx. Face às normas e princípios que conformam o processo sancionatório, admitir a tese da Recorrida equivaleria a uma violação das regras do ónus probatório e do princípio da presunção de inocência o que deverá inevitavelmente conduzir ao repúdio de tal tese.

xxi. Além do mais, não se pode aqui abrir a porta, a uma “prova por presunção” sobre a autoria dos factos e sobre a violação de deveres constitutiva da ilicitude típica.
xxii. A prova em sede disciplinar, designadamente aquela assente em presunções judiciais, tem de ter robustez suficiente, tem de ir para além do início da prova, para permitir, com um grau sustentado de probabilidade, imputar ao agente a prática de determinada conduta, tendo sempre presente um dos princípios estruturantes do processo sancionatório que é o da presunção da inocência, designadamente: “todo o acusado tenha o direito de exigir prova da sua culpabilidade no seu caso particular” (GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, I, Verbo, 2008, p. 82).

xxiii. Também não se pode aqui admitir a aplicação de acordo com o qual: à recorrente, titular do poder punitivo disciplinar, caberia fazer a prova da primeira aparência da verificação do facto; e à recorrida, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação.

xxiv. Tal critério consubstancia uma clamorosa violação ao princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a recorrida é titular.

xxv. E do mesmo passo implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objetiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.

xxvi. Note-se que, tal posição não tem qualquer base legal ou regulamentar: nesta matéria, os regulamentos aplicáveis não estabelecem qualquer presunção da verificação de um elemento constitutivo de uma infração disciplinar, nem se atribuiu ao arguido qualquer ónus de infirmação do que quer que seja.

xxvii. Trata-se, aliás, de critério decisório incompatível com o princípio da presunção de inocência, por duas ordens de razões: por implicar a imposição de um ónus de prova ao arguido; e por baixar o grau de convicção da verificação do facto para um nível insuportável: não a certeza correspondente à convicção para além de toda a dúvida razoável, mas a suspeita baseada somente na primeira aparência.

xxviii. O critério decisório pelo qual pugna a Recorrente — o da prova da primeira aparência, com imposição de ónus da prova ao arguido — contraria jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, a qual representa uma expressão consolidada do cânone da dogmática do princípio da presunção de inocência, constante de todos os tratados e comentários de processo penal e afirmado vezes sem conta pelos nossos tribunais superiores (TC, STJ, Relações e TCA’s) veja-se, a título de exemplo, Ac. do Pleno da Secção do CA do STA de 18-04-2002, Proc. 033881; Ac. do STA de 20-10-2015, Proc. 01546/14, Ac. do STA de 18-02-1997, Proc. 033791, Ac. do STA de 28-06-2011, Proc. 0900/10, Ac. do STA de 18-04-2002, Proc. 033881, tirado em Pleno, disponíveis em www.dgsi.pt.

xxix. Atendendo aos pressupostos exigidos pelos tipos legais previstos nos arts. 127.°-1 e 187.°-1, a) e b) do RD sempre se exigirá para a condenação do clube, in casu a Recorrida, que se mostrassem suficientemente provados — através da produção de prova que incumbe ao titular do processo disciplinar e a qual será sujeita a uma livre apreciação - os factos consubstanciadores da prática das infrações disciplinares; não se tendo verificado tal prova nos autos, e considerando o quadro normativo aplicável ao caso, fica necessariamente prejudicada a alegação da Recorrente.

xxx. A pretensão da Recorrente está claramente condenada ao fracasso, pois que, mesmo atentando ao descrito nos relatórios de jogo percebe-se que nenhum facto neles é sequer descrito em favor do preenchimento de pressuposto essencial dos tipos legais: uma atuação culposa da Recorrida.

xxxi. Porquanto se mostram por preencher todos os elementos das infrações e não tendo o titular da ação disciplinar carreado aos autos algum elemento de prova que depusesse em favor do preenchimento de pressuposto essencial exigido pelos tipos legais — uma atuação culposa por parte do clube — sempre se impunha resolver “em favor do arguido por efeito da aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do “in dubio pro reo “.

xxxii. Face ao exposto, não padece o acórdão recorrido de qualquer erro de julgamento, tendo subsumido corretamente os factos alegados ao direito aplicável.
xxxiii. Se, por mera hipótese de raciocínio, proceder a tese da Recorrente, reputa-se como inconstitucional — por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente no seu direito de defesa (art. 32º, nºs 2 e 10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.°-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.º da CRP) — a interpretação dos artigos 222.°-2 e 250.°-1 do RDLPFP de 2016 segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infração disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se, resultando simplesmente indiciado através de uma prova de primeira aparência, o arguido não demonstrar a sua não verificação.

xxxiv. O douto acórdão do Tribunal a quo não merece qualquer reparo ou censura, devendo manter-se “in totum “.
Termos em que se requer a V. Exas. se dignem julgar improcedente o recurso de revista, confirmando-se integralmente o douto acórdão recorrido.”
6. O acórdão da formação de apreciação preliminar deste Supremo Tribunal, prevista no n.º 5 do art. 150.º do CPTA, proferido em 25.1.2019, admitiu o recurso, extraindo-se do mesmo o seguinte:
“ (...) O que evidencia que a questão que aqui se coloca tem relevante importância jurídica uma vez que é decisivo saber, se nas circunstâncias dos autos, recai sobre a acusação o ónus de provar o que o Acórdão recorrido considerou indispensável sob pena de absolvição do Clube acusado. Se assim for, isto é, se for fundamental fazer a prova exigida por aquele Aresto a conclusão que se retira é que os normativos alegadamente violados terão uma diminuta aplicação visto ser muito difícil fazer essa prova. O que vale por dizer que a aplicação do disposto nos art.º 127.º e 187.º do RD da FPF, que a Recorrente considera importante para assegurar a ordem nos desafios de futebol, será residual.”

7. Notificada nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 146.º, n.º 1, e 147.º, n.º 2, do CPTA, o EMMP junto deste Supremo Tribunal não emitiu parecer.
8. Sem vistos, atento o disposto nos arts. 36.º, n.ºs 1 e 2, 147.º do CPTA e 08.º, n.º 2, da Lei do TAD [LTAD] [aprovada e publicada em anexo à referida Lei n.º 74/2013 na redação supra referida], o processo foi submetido à Conferência, cumprindo apreciar e decidir.
*
FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO
O Acórdão recorrido, ao abrigo do artigo 663º, nº 6, do NCPC, deu por reproduzida a matéria de facto constante da sentença recorrida nos seguintes termos:

“Nos presentes autos está em causa a disputa de 2 jogos a contar para a Liga NOS, cuja descrição relativamente aos factos ocorridos até à interposição da(s) ação(ões) arbitral(ais) junto deste Tribunal, por facilidade de exposição, adiante se enunciarão de forma autonomizada e por referência a cada um dos Acórdãos do CDFPF agora em crise:

(i) ACÓRDÃO DO CDFPF DE 28 DE MARÇO DE 2017 - PROCESSO N.º 25-16/17
1. No dia 15 de janeiro de 2017 realizou-se, no Estádio do Dragão, o jogo a contar para a 17.ª jornada da Liga NOS entre as equipas de futebol da Demandante e da Moreirense Futebol Clube, Futebol S.A.D.

2. De acordo com o relatório do jogo, verificou-se, para o que releva nos presentes autos, a seguinte ocorrência reportada pelos delegados da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP): «Ao minuto 67 a claque do F.C. Porto, denominada ''Super Dragões", situados no topo sul fizeram rebentar um (1) petardo».

3.Tal ocorrência levou à aplicação à Demandante, na sequência de processo sumário, das seguintes sanções disciplinares: (i) multa de € 1.148,00, por aplicação do artigo 127.°, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da LPFP (RDLPFP), ex vi dos artigos 6.°, n.º 1, alínea g), 9.°, alínea m), subalínea xi), do Anexo VI do Regulamento de Competições da LPFP (RCLPFP) e do artigo 56.°, n.° 3, do RDLPFP; e (ii) multa de € 1.760,00, por aplicação dos artigos 187.°, n.° 1, alínea b), e 56.°, n.º3, do RDLPFP.

4. Em 24 de janeiro de 2017, a Demandante interpôs recurso das sanções gue lhe foram aplicadas para o Pleno da Secção Profissional do CDFPF (processo n.º 25-16/17)

5. Em 28 de março de 2017, o CDFPF negou provimento ao recurso, confirmando as sanções aplicadas, com base, para o que ora releva, nos seguintes argumentos:
- Considerou provadas as circunstâncias acima enunciadas com base no "Relatório de Jogo", nomeadamente na parte do Relatório dos delegados da LPFP, convocando para o efeito o disposto no artigo 13.°, alínea f), do RDLPFP, que estabelece como princípio fundamental a «presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa»;
- Considerou provado que o "Relatório de Jogo" foi subscrito por dois delegados, fundamentando tal conclusão no exposto nos Ofícios n.ºs 889, 976 e 991/JUR/16-17 da LPFP, constantes de fls. 60 a 62 e 82 e 89 do processo disciplinar;
- Julgou improcedente o invocado vício de falta de fundamentação da decisão proferida em sede de processo sumário;
- Julgou preenchidos os elementos objetivo e subjetivo de cada uma das infrações em causa - artigos 127.º, n.º 1, e 187.°, n.º 1, alínea b), do RDLPFP – na medida em que: « 18. Estes diversos factos geram autonomamente diversas infrações disciplinares, às quais correspondem as respetivas sanções, igualmente previstas (...). 19. Para concluir, fazendo improceder totalmente a alegação da Recorrente, que os factos descritos não geram diferentes infrações, basta - mais uma vez - subsumir a factualidade relatada às hipóteses normativas aplicáveis. 20. Efetivamente, como resulta da factualidade descrita, verificou-se a ocorrência de factos tipificados com infrações disciplinares, e, como tais, subsumíveis e sancionados pelo artigo 187.º, n.º 1, alínea b), do RDLPFP2016. 21. Factos esses que efetivamente ocorreram, sendo manifesta a sua subsunção aos tipos legais que os qualificam como infrações disciplinares, pelo que, em consequência, apenas restaria a este Conselho, por dever oficioso do cumprimento da legalidade, fazer-lhe corresponder as respetivas consequências jurídicas, sendo que, inclusivamente, o n.º 1 e a alínea b) do mesmo n.º do artigo 187.º do RDLPFP até são meramente exemplificativos, como expressamente o evidencia o advérbio ''designadamente''. 22. Mas da factualidade provada resulta ainda que acederam ao recinto desportivo e nele permaneceram adeptos com objetos proibidos. 23. Ora, por força do já citado artigo 127.º, resulta que: "1. Em todos os outros casos não expressamente previstos em que os clubes deixem de cumprir os deveres que lhes são impostos pelos regulamentos e demais legislação aplicável são punidos com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 10 UC e o máximo de 50 UC”. (...) 25. Por conseguinte, a consequência jurídica dos factos provados – acederam e permaneceram no recinto desportivo espectadores com objeto proibido - só pode ser – por assim resultar expressamente das normas disciplinares, o cometimento de infração disciplinar, por, precisamente, não ter sido vedado o acesso e permitir-se a permanência, no recinto desportivo, de espectadores com tal objeto proibido. 26. Factos que ocorreram e que as normas regulamentares relevam autonomamente como infrações disciplinares, fazendo-lhe também corresponder sanções diferenciadas» (páginas 40 e 41).
- Finalmente, rejeitou a invocada violação da proibição da dupla penalização, utilizando, para tal, a argumentação supra referida.

6. Em 7 de abril de 2017, a Demandante impugnou o Acórdão do CDFPF junto deste TAD, dando, assim, origem aos presentes autos, contestando, em suma, a aplicação das sanções disciplinares com fundamento nos artigos 187°, n.º 1, alínea b), e 127.°, n.º 1, do RDLPFP.

(ii) ACÓRDÃO DO CDFPF DE 28 DE MARÇO DE 2017 - PROCESSO N.º 29-16/17

1. No dia 4 de fevereiro de 2017 realizou-se, no Estádio do Dragão, o jogo a contar para a 20ª jornada da Liga NOS entre as equipas de futebol da Demandante e da Sporting Clube de Portugal, Futebol S.A.D.

2. De acordo com o "Relatório do Jogo", verificaram-se, para o que releva nos presentes autos, as seguintes ocorrências reportadas pelos delegados LPFP;
- «Os apanha bolas alteraram o seu comportamento na segunda parte, demorando na reposição da bola em jogo, nomeadamente atrás do Árbitro Assistente número 2 e da baliza norte».
- «Os adeptos do FCP instalados na bancada Sul e na bancada norte não respeitaram o minuto de silêncio, antes do início do jogo, assobiando e batendo num tambor».
- «Os adeptos do Porto instalados na bancada Norte rebentaram um petardo 15 minutos antes do início do jogo».
- «Os adeptos do Porto instalados na bancada Sul rebentaram 1 petardo no início do jogo, rebentaram 4 petardos aos 6 minutos, 3 petardos aos 39 minutos e 2 petardos no final do Jogo».
- «Os adeptos do Porto instalados na bancada Sul deflagraram fumos aos minutos 1, 6 e 39».
- «Os adeptos do Porto instalados na bancada Sul acenderam Flash lights aos minutos 42 e 50.
- «Os adeptos do Porto instalados na bancada Sul gritaram "Filho da Puta" dirigido ao guarda-redes do Sporting aos 25 e 70 minutos».
- «No início do jogo os adeptos do Porto instalados na bancada Sul exibiram a seguinte tarja "Podem até sonhar. Impossível copiar”».

3. Tais ocorrências levaram à aplicação à Demandante, na sequência de processo sumário, das seguintes sanções disciplinares:
- repreensão, por aplicação do disposto no artigo 120.°, n.º 1, do RDLPFP;
- multa de € 153,00, por aplicação do disposto no artigo 120.°, n.º 1, do RDLPFP;
- multa de € 1.148,00, por aplicação do artigo 127,°, n.º 1, do RDLPFP, ex vi artigos 6.°, n.º 1, alínea g), 9.°, alínea m), subalínea xi), do Anexo VI do RCLPFP e do artigo 56.°, n.º 3, do RDLPFP;
- multa de € 765,00, por aplicação do artigo 187,°, n.º 1, alínea a), do RDLPFP;
- multa de € 4.055,00, por aplicação dos artigos 187.°, n.º 1, alínea b), e 56,°, n.º 3, do RDLPFP.

4. A Demandante interpôs recurso (com carimbo de entrada a 15 de fevereiro de 2017) das sanções de multa que lhe foram aplicadas para o Pleno da Secção Profissional do CDFPF (processo n.º 29-16/17).

5. Em 28 de março de 2017, o CDFPF concedeu provimento parcial ao recurso da Demandante, absolvendo-a da «infração p. e p. no artigo 120.º nº1 do RDLFPFP2016» e mantendo a «decisão de condenação por violação das infrações disciplinares p. e p. nos artigos 127.º n.º 1 e 187.º nº 1 alíneas a) e b) do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, proferida na sessão ordinária deste Conselho de Disciplinar no dia 7 de fevereiro de 2017».

6. No que respeita à manutenção da decisão de condenação, a mesma, para o que ora releva, foi sustentada nos seguintes argumentos:
- Considerou provadas as circunstâncias acima enunciadas com base no "Relatório de Jogo", nomeadamente na parte do Relatório dos delegados da LPFP, convocando para o efeito, o disposto no artigo 13.°, alínea j), do RDLPFP, que estabelece como princípio fundamental a «presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa»;
- Julgou preenchidos os elementos objetivo e subjetivo de cada uma das infrações em causa - artigos 127.°, n.º 1, e 187.°, n.º 1, alíneas a) e b), do RDLPFP - na medida em que: «Estes diversos factos geram autonomamente diversas infrações disciplinares, sancionadas pelo RDLPFP e pelo RCLPFP e às quais correspondem as respetivas sanções. Efetivamente, como resulta da factualidade descrita verificou-se a ocorrência de factos subsumíveis e sancionados pelo artigo 187.º, nº 1, alínea a), do RDLPFP, ocorreram os factos subsumíveis e sancionados pelo artigo 187.º, n.º 1, alínea b), do RDLPFP, ocorreram os factos subsumíveis e sancionados pelo artigo 127.º nº 1, do RDL, como veremos adiante (...). Factos que efetivamente ocorreram, sendo manifesta a sua subsunção aos tipos legais que os qualificam como infrações disciplinares, pelo que, em consequência, apenas restaria a este Conselho de Disciplina fazer-lhe corresponder as respetivas consequências jurídicas, o que fez. Para além disso, da factualidade provada resulta ainda que acederam ao recinto desportivo e nele permaneceram adeptos com objetos proibidos. (...) Por conseguinte, a consequência jurídica dos factos provados – acederam e permaneceram no recinto desportivo espectadores com objetos proibidos só pode ser por assim resultar explicitamente das normas disciplinares, o cometimento de infração disciplinar, por, justamente, não ter sido vedado o acesso e permitir-se a permanência, no recinto desportivo, de espectadores com tais objetos. Factos que ocorreram e que as normas regulamentares relevam autonomamente como infrações disciplinares, fazendo-lhe também corresponder sanções distintas» (página 21).
- Finalmente, rejeitou o CDFPF as invocadas violações do princípio da culpa, alegando que «a Recorrente não demonstrou que tudo fez para que a infração não fosse cometida», e da proibição da dupla penalização, utilizando, neste caso, a argumentação supra referida.

7. Em 7 de abril de 2017, a Demandante impugnou o Acórdão do CDFPF junto deste TAD, dando, assim, origem aos presentes autos, contestando, em suma, a aplicação das sanções disciplinares com fundamento nos artigos 187°, n.º 1, alíneas a) e b), e 127.º, n.º 1, do RDLPFP.”
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DE DIREITO

Invoca a recorrente erro de julgamento da decisão recorrida por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13.º, al. f), 127.º, 172.º, 186.º, n.º1, 187.º, n.º1, al. a) e b) e 258.º do Regulamento Disciplinar da LPFP.

A violação destes preceitos tem a ver com o funcionamento das regras do ónus da prova quanto à atribuição da prática de certos comportamentos a adeptos de um clube desportivo.
O TAD concedeu provimento ao recurso interposto pela FCP – Futebol, SAD do acórdão proferido pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que a sancionou pela prática das infrações que lhe vinham assacadas, anulando esse acórdão.

E fê-lo por entender que a punição dos clubes por comportamentos dos seus adeptos tem de assentar em factos que permitam um juízo de certeza sobre a prática da infração pelo arguido, sendo que um non liquet em matéria probatória se resolve a favor do arguido.

O TCAS confirmou esta decisão com a seguinte fundamentação:

«... a mera circunstância de a bancada na qual teve origem a deflagração do petardo estar afeta a adeptos do clube, sem sequer fazer menção à exclusividade dessa afetação, não permite concluir que o autor do lançamento tenha efetivamente sido um sócio ou simpatizante do mesmo. Tratam-se de dois factos autónomos, em que, de forma alguma, o segundo é uma consequência direta do primeiro e único facto conhecido e provado...».

A «acusação terá que descrever, em primeiro lugar, o que fez, ou deixou de fazer, o clube, por referência a concretos deveres (legais ou regulamentares) que identifica, e, em segundo, por que forma essa atuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado dos sócios ou simpatizantes. E serão esses os factos que o Conselho de Disciplina terá que dar como provados, ou não. Sendo certo que caberá à entidade promotora do procedimento disciplinar a prova de todos os elementos típicos (objetivo e subjetivo) do tipo de infração, ou seja, de que o clube infringiu, com culpa, os deveres legais ou regulamentares, a que estava adstrito, que esse comportamento permitiu ou facilitou determinada conduta proibida, que esta ocorreu, e que a mesma foi realizada por sócios ou simpatizantes seus.»

«Sucede que, como bem se demonstra na decisão recorrida e nos termos já expostos, os indícios recolhidos no processo disciplinar não são suficientes para formar uma convicção segura da materialidade dos factos, por a punição ter que assentar em factos que permitam um juízo de certeza sobre a prática da infração pelo arguido, a este não pode ser imputada a conduta disciplinarmente reprovada, afirmando-se, bem impressivamente, que um non liquet em matéria probatória se resolve a favor do arguido por aplicação do citado princípio.»

Pretende a FPF que consta dos Relatórios de Jogo que as condutas aqui em causa foram perpetradas por adeptos do Futebol Clube do Porto sendo que de qualquer forma e que o seu valor é legítimo não contendendo com o princípio da presunção de inocência que o Conselho de Disciplina ainda que não soubesse os concretos intervenientes pudesse deduzir a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos do FCP e a violação dos respetivos deveres de outros factos conhecidos com base naquele mesmo relatório.

E que o entendimento das instâncias em contraposição com o entendimento do Conselho de Disciplina, não está correto por o mesmo fomentar um juízo de impunidade estando em desacordo com o que se passa em toda a comunidade desportiva e nas instâncias internacionais do Futebol violando os referidos preceitos legais.

Como se diz na decisão do acórdão que recebeu a revista:

“ (...) Como se viu não vem posta em causa a existência dos factos que originaram a instauração do processo disciplinar e a consequente condenação do Recorrido, isto é, que no referido jogo, nas bancadas reservadas aos membros dos grupos organizados de adeptos do FCP, houve o rebentamento de um petardo.

E, se assim é, o que está em causa é, apenas e tão só, a questão de saber se a ocorrência de tal facto é, por si só, independentemente do que se vier a provar em sede de culpa, suficiente para sancionar o FCP pela prática das identificadas infrações. Ou seja, e dito de forma diferente, importa saber se o TCA ajuizou corretamente quando afirmou que, não sendo objetiva a responsabilidade pela prática de tais infrações, será indispensável que a FPF prove que o FCP, no citado jogo, não vigiou convenientemente a entrada no estádio dos seus adeptos e que os autores dos factos puníveis tinham sido, de facto, seus adeptos.”

Então vejamos.

A FCP não colocou em momento algum que os factos que lhe são imputados aconteceram, mas apenas que tenham sido os seus adeptos os responsáveis pelos mesmos e que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas.

Contudo, consta claramente dos Relatórios de Jogo que os Delegados da Liga que tais condutas foram perpetradas pelos adeptos da Futebol Clube do Porto, SAD.

E é precisamente o valor desses relatórios que cumpre aqui aferir.

A este propósito extrai-se do acórdão de 18.10.2018 no P. n.º 0144/17.0BCLSB: “Quanto à questão de fundo, importa começar por referir que, no recurso de revista, este Supremo só conhece de direito (cf. art.º 12.º, n.º 4, do ETAF), pelo que o juízo formulado pelo TCA quanto à matéria de facto apenas pode ser censurado na medida em que se traduza numa questão de direito.

As presunções judiciais, como ilações que o julgador tira de um facto conhecido para, através de um raciocínio lógico-dedutivo, afirmar um facto desconhecido (cf. art.º 349.º, do C. Civil), fundam-se nas regras da vida e da experiência comum, implicando essencialmente um juízo de facto, pelo que o Supremo só pode sindicar o seu não uso ou o juízo presuntivo efetuado pelas instâncias se esta atividade se traduzir num erro de direito, por ofensa de uma qualquer norma legal ou se padecer de ilogicidade (cf. Ac. do STJ de 25/11/2014 – Proc. n.º 6629/04.0TBBRG.G1.S1).

No domínio do direito disciplinar, a que se aplicam subsidiariamente os princípios do direito penal, é lícito o uso das presunções judiciais que, no entanto, como juízo de facto, só pode ser censurado por este Tribunal nos estritos limites que ficaram referidos.

No caso em apreço, para anular as sanções que haviam sido aplicadas pelo CD, o TAD, com a concordância do TCA-Sul, entendeu que a circunstância de os comportamentos incorrectos terem ocorrido em bancadas ocupadas por adeptos do A……….., não permitia considerar provado, por presunção judicial, que os seus autores eram sócios ou simpatizantes deste clube, atento à necessidade de emissão de um juízo de certeza nesta área do direito e ao facto de dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP não se poder inferir um início de prova ou a inversão do ónus da prova que impendia sobre o acusador. Dado o princípio da presunção de inocência do arguido, era ao titular da ação disciplinar que cabia sempre o ónus de provar os factos constitutivos do ilícito disciplinar, não podendo haver lugar a um esforço probatório aliviado por via de recurso a presunções.

A esta apreciação probatória, a recorrente aponta um erro de direito, resultante de não se ter tomado em consideração a presunção de veracidade legalmente estabelecida para os mencionados relatórios.
E, com efeito, enquanto as decisões do CD se fundaram na referida presunção, tanto o TAD como o acórdão recorrido desconsideraram-na.

Porém, é indubitável que, no domínio do direito disciplinar desportivo, vigora o princípio geral da “presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Liga, e por eles percecionado no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa” [art.º 13.º, al. f), do RD].

Esta presunção de veracidade, que se inscreve nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere, assim, um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado...”

A este propósito também se decidiu no Acórdão de 21.02.2019, Proc. n.º 33/18.0BCLSB, que:

“No processo disciplinar, à semelhança do que sucede no processo penal, o ónus da prova dos factos constitutivos da infração cabe ao titular do poder disciplinar”; “Note-se, todavia, que a condenação do arguido em processo disciplinar não exige que a certeza tenha de ser «absoluta, férrea ou apodítica da sua responsabilidade» […], dado o preenchimento do grau de certeza exigido se bastar com existência de elementos probatórios coligidos no processo e que o «demonstrem segundo as normais circunstâncias práticas da vida e para além de uma dúvida razoável»”; “É que «nos juízos de facto a emitir num processo disciplinar, é lícito à Administração, e até obrigatório, usar das presunções naturais que se mostrem adequadas», porquanto «é legítimo, e obrigatório, usar de presunções naturais na realização dos julgamentos de facto. Esse é, aliás, um exercício quotidiano nos tribunais, permitido pelo art. 351º do Código Civil; e de igual metodologia se serve a Administração nos juízos que emita sobre a prova produzida» […]”; “O juízo na mesma firmado nessa sede louvou-se ou socorreu-se não apenas do princípio da presunção de veracidade dos factos nos termos que se mostram previstos na al. f) do art. 13.º do RD/LPFP-2017, mas, também, de presunções naturais radicadas em circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência [cfr. art. 349.º do CC] que enuncia, nomeadamente, sob o ponto «iii) “Do alegado erro na apreciação da prova”», tal como o havia feito, aliás, a decisão disciplinar punitiva impugnada”; “Esta não viu radicar, pois, o seu juízo punitivo numa qualquer presunção de culpa da «FCP, SAD», antes se mostrando o mesmo juízo alicerçado, ao invés, naquilo que foi a prova lograda coligir e produzir no processo disciplinar e o uso de presunções, considerando e fazendo apelo, inclusive, daquilo que são decorrências do cumprimento das obrigações que impendem sobre os clubes no decurso e participação nas competições em que estão envolvidos [cfr., nomeadamente, os arts. 34.º a 36.º do RC/LPFP-2017, e arts. 06.º, 07.º 08.º, 09.º, 10.º e 11.º do RPV/RC/LPFP-2017] e em que a designada «bancada topo Sul» do Estádio do Dragão, indicada expressis verbis no relatório como local onde os ilícitos ocorreram, é consabidamente um local ocupado por adeptos, sócios, apoiantes ou simpatizantes afetos ao clube «FCP»/«FCP, SAD», revelada, nomeadamente, «através da ostentação de camisolas, bandeiras, cachecóis ou da entoação de determinados cânticos»”; “O considerar-se que a aqui recorrida não conseguiu destruir os factos que lhe foram imputados mediante a alegação de factos e a apresentação de provas apenas significa que a prova coligida durante a instrução do processo não foi infirmada na subsequente fase de defesa de que a mesma dispôs, não sendo possível inferir de uma tal afirmação a conclusão de que era àquela que, enquanto arguida, competia fazer a prova a inexistência dos factos e da sua não culpa, não ocorrendo, por conseguinte, uma qualquer infração ao princípio de presunção de inocência do arguido […], nem sequer a situação, no contexto apurado de efetiva existência de culpa da arguida, permite o operar do princípio do in dubio por reo”; “De referir ainda que do facto de nem as autoridades policiais, nem os delegados da «LPFP», ou o árbitro, terem identificado pessoalmente quem, em concreto, fez uso dos engenhos pirotécnicos ou proferiu as expressões/cânticos reportados, tal não invalida ou impossibilita a fixação da factualidade nos termos que se mostram realizados”; “É que para o que constitui o objeto de incriminação e tendo em conta as circunstâncias em que os factos ocorreram [no decurso de um jogo de futebol e em que os adeptos e simpatizantes estavam numa bancada afeta a adeptos do «FCP», mostrando-se portadores de sinais inequívocos da sua ligação ao respetivo clube, nomeadamente, as referidas bandeiras, cachecóis e camisolas] a circunstância de, no meio daquela imensa mole humana, não ter sido efetuada a identificação pessoal dum concreto sujeito ou dos concretos sujeitos, tem-se como de todo em todo desnecessária, já que a imputação não é feita aos concretos adeptos, mas ao clube de que os mesmos são apoiantes ou simpatizantes, adeptos esses que, refira-se, não estão sequer sujeitos ou abrangidos pelo âmbito do «RD/LPFP» [cfr., nomeadamente, seus arts. 03.º, 04.º, n.º 1, al. b), e 187.º]”; “A decisão disciplinar punitiva não radicou, pois, numa qualquer presunção de culpa da «FCP, SAD», decorrente duma inversão do ónus probatório [cfr. art. 344.º do CC] estribado no art. 13.º, al. f) do RD/LPFP-2017, antes se mostrando alicerçada naquilo que, levando a consideração em matéria desportiva os princípios enformadores do processo disciplinar, foi a prova coligida no mesmo processo e o uso lícito e legítimo das aludidas presunções [cfr. art. 349.º do CC], tudo em observância e sem entorses aos princípios e comandos normativos [constitucionais e legais] convocados [cfr. arts. 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP, 13.º al. f), 127.º, 187.º e 258.º do RD/LPFP-2017]”.

E ainda neste mesmo sentido se decidiu nos Acórdãos 75/16 de 21/3/2019 e de 08/18.0BCLSB de 20-12-2018.
Perfilhámos o entendimento de que efetivamente apesar de, no domínio do direito disciplinar, se aplicarem subsidiariamente os princípios do direito penal, é lícito o uso das presunções judiciais e da presunção de veracidade dos factos que resulta da al. f) do art. 13.º do RD/LPFP-2017.

Na verdade, o Conselho de Disciplina instaura os competentes processos sumários, nos termos do artigo 258.º, n.º 1 do RD da LPFP, tendo por base os relatórios da equipa de arbitragem, das forças policiais ou dos delegados da Liga, ou ainda com base em auto por infração verificada em flagrante delito.

E, os Delegados da LPFP são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube, tendo o relatório de jogo presunção de veracidade do seu conteúdo nos termos do artigo 13.º, aI. f) do RD da LPFP.

Este princípio geral, que vigora no domínio do direito disciplinar desportivo, da “presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Liga, e por eles percecionado no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa” [art. 13.º, al. f), do RD]», confere um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado.

Na situação dos autos, a punição da ora recorrida decorreu dos factos relatados nos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP, que beneficiam da referida presunção de veracidade, para além da presunção que decorrem da experiência comum e que não foi contrariada pela recorrida.

Pelo que, os referidos factos foram fixados pela Liga através de presunções naturais que eram adequadas à situação e radicam nas circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência que resulta do art. 349.º do CC assim como no princípio da presunção de veracidade dos factos que resulta da al. f) do art. 13.º do RD/LPFP-2017.

Pretende a FCP-SAD que a decisão do CD põe em causa o direito a um “processo justo” através da violação do princípio constitucional estabelecido para o processo penal, como é o caso do princípio da presunção da inocência, acolhido no art. 32.°-2 da CRP (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 27/11/97, in Rec, n.° 039040; 16.OUT.97, in Rec. n° 031496, de 14/03/96, in Rec. n.° 028264; de 19.JAN.95, in Rec. n.° 031486; de 10.DEZ.98 in Rec. n.° 037808; de 01.MAR.07, in Rec. n.° 01199/06; de 28.ABR.05, in Rec. n.° 333/05; de 17.MAI.01, in Rec. n.° 40528, disponíveis em www.dgsi.pt.)

E que este princípio de inocência exige ao Tribunal formular um juízo de certeza sobre o cometimento das infrações para condenar a aqui recorrida, não se podendo bastar com meras ilações e nomeadamente a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.°, f), do RD, pode contrariar o quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador.

A propósito da constitucionalidade diz-se no supra referido acórdão de 18/10/2018 que se acompanha:

E não se vê que o estabelecimento desta presunção seja inconstitucional, quando o Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 391/2015, de 12/8 (publicado no DR, II Série, de 16/11/2015), considerou que, mesmo em matéria penal, são admissíveis presunções legais, desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustente e desde que para tal baste a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário.

Aliás, tal como o Tribunal Constitucional entendeu para a situação idêntica da fé em juízo dos autos de notícia (cf., entre muitos, o Ac. de 6/5/87 in BMJ 367.º-224; o Ac. de 9/3/88 in DR, II Série, de 16/8/88; o Ac. de 30/11/88 in DR, II Série, de 23/2/89; o Ac. de 25/1/89 in DR, II Série, de 6/5/89; o Ac. de 9/2/89 in DR, II Série, de 16/5/89; e o Ac. de 23/2/89 in DR, II Série, de 8/6/89), cremos que a presunção de veracidade em causa – que incide sobre um puro facto e que pode ser ilidida mediante a criação, pelo arguido, de uma mera situação de incerteza – não acarreta qualquer presunção de culpabilidade suscetível de violar o princípio da presunção de inocência ou de colidir com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente protegidas (art.º 32.º, nºs. 2 e 10, da CRP). Com efeito, o valor probatório dos relatórios dos jogos, além de só respeitarem, como vimos, aos factos que nele são descritos como percecionados pelos delegados e não aos demais elementos da infração, não prejudicando a valoração jurídico-disciplinar desses factos, não é definitiva mas só “prima facie” ou de “ínterim”, podendo ser questionado pelo arguido e se, em face dessa contestação, houver uma “incerteza razoável” quanto à verdade dos factos deles constantes, impõe-se, para salvaguarda do princípio “in dubio pro reo”, a sua absolvição.(...)”

Por outro lado a alegação de que a prova dos factos integradores da infração é determinada face aos elementos existentes no processo e pela convicção do julgador, estando sujeita ao princípio da livre apreciação da prova (cf. art. 127.° do CPP e art. 94.°-4 do CPTA) não está aqui posta em causa já que não resulta a alegação de quaisquer factos que contradigam as presunções que resultam dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga que não a possibilidade de recurso às mesmas.

A posição foi sempre de que não estão provados os factos integradores do ilícito face à insuficiência para tal que resulta dos referidos relatórios.

Daí que a questão seja precisamente a do valor desses relatórios.

A questão que se coloca de seguida é a das consequências deste entendimento no caso concreto.

No caso sub judice, o recurso para o TAD (no que aqui esta em causa) teve por base que não se pode afirmar com certeza que a conduta infratora foi perpetrada por sócio ou simpatizante da FCP-SAD.

O TAD entendeu que era necessária a prova dos responsáveis pela prática das infrações assim como que a FCP-SAD violou os seus deveres de vigilância.

E conclui que a decisão do CD ao basear-se num relatório da LPF sem a identificação do autor e sem a prova da violação dos deveres de vigilância implica que não estão preenchidos os pressupostos do art. 187º do RDLPFP.
Interposto recurso para o TCAS com o fundamento de que se pode extrair do Relatório do Jogo que a FCP-SAD incumpriu os seus deveres e que os adeptos que levaram a cabo tais comportamentos eram apoiantes do FCP foi negado provimento ao mesmo com o fundamento de “ as constatações de que o instrutor partiu não autorizam as ilações a que ele chegou em face da prova realizada, operando com presunções infundadas.” e “ daí , pois, que as provas produzidas não eram suficientes para determinar a instauração do procedimento disciplinar” concluindo que ” A essa luz e como bem explicado no Acórdão recorrido, podemos dizer que o ato enferma de erro de facto sobre os pressupostos (violação de lei) porque o órgão deu como verificados factos que realmente não ocorreram, mas, também, erro de direito sobre os pressupostos visto que o órgão, estando vinculado a certas regras e princípios jurídicos, as alterou ou, pelo menos, desvirtuou, dando como subsumível no conceito escolhido factos que não são qualificáveis como tal sendo que, numa situação como na outra, o momento da constatação dos factos é sempre vinculado, independentemente de o pressuposto ser o indicado pela lei ou o escolhido discricionariamente pelo órgão.”

Ora, o que estava em causa no recurso para o TAD, e como já vimos, era tão só que não se pode afirmar com certeza que a conduta foi praticada por adeptos/simpatizantes da FCP-SAD.
Sendo assim o que está em causa é apenas se a decisão do CD podia basear-se nos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga como base factual para a punição que formulou.

E, tendo nós entendido que a decisão do CD podia usar as presunções de veracidade e judiciais que resultam daqueles relatórios, inexistem outras se coloquem atentos as motivações nos sucessivos recursos.

Com a decisão aqui em causa podemos concluir que nada havia a censurar à decisão do CDFPF de aplicação das multas nos processos disciplinares que correram com os nºs 25-16/17 e 29-16/17 por tal não preterir os preceitos alegadamente violados pela FCP-SAD.

É, pois, de conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e do TAD e manter os acórdãos do Conselho de Disciplina da FPF.
*

Em face de todo o exposto acordam os juízes deste STA em:
a) Conceder provimento ao recurso;
b) Revogar a decisão recorrida;
c) Negar provimento aos recursos formulados pela FCP-SAD junto do TAD nos quais peticionou a anulação das multas aplicadas pelo CDFPF nos processos disciplinares 25-16/17 e 29-16/17.

Custas pela recorrida neste Supremo e nas instâncias.

Lisboa, 4 de Abril de 2019. – Ana Paula Soares Leite Martins Portela (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos – Carlos Luís Medeiros de Carvalho.