Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0292/16
Data do Acordão:09/08/2016
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:AQUISIÇÃO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA
FUNÇÕES PÚBLICAS DE CARÁCTER PREDOMINANTEMENTE TÉCNICO
Sumário:I - O exercício de funções de Juiz Desembargador no Estado do Rio de Janeiro da República Federativa do Brasil constitui «exercício de funções públicas sem carácter predominantemente técnico», para efeitos do artigo 9º, alínea c), da Lei nº 37/81, de 03.10;
II - Os pressupostos da aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização e por efeito da vontade são diferentes.
Nº Convencional:JSTA00069814
Nº do Documento:SA1201609080292
Data de Entrada:05/02/2016
Recorrente:A......
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCAS 2015/11/26.
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM GER - NACIONALIDADE.
Legislação Nacional:LEI 37/81 ART3 ART6 ART9.
LEI ORGÂNICA 2/2006.
DL 237-A/2006 ART56.
LEI 2/2008 ART5 ART2.
DL 154/2003 ART16.
LEI 21/85 ART3 ART21.
REG INSPECÇÕES JUDICIAIS ART2.
CRP ART26 ART15.
CCIV/66 ART342 N2 ART10.
Referências Internacionais:CONVENÇÃO HAIA 1930/06/12 ART1 ART2.
Jurisprudência Nacional:AC STA PLENO PROC0201/16 DE 2016/06/16.; AC STA PLENO PROC01264/15 DE 2016/07/07.; AC STA PROC0653/11 DE 2011/11/29.; AC STA PROC0200/14 DE 2014/10/02.; AC STA PROC0463/16 DE 2016/06/07.
Referência a Doutrina:ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS - NACIONALIDADE E EFECTIVIDADE REVISTA AD LUCEM PÁG429-453.
MOURA RAMOS - DO DIREITO PORTUGUÊS DA NACIONALIDADE (1992) PÁG151.
GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA - CONSTITUIÇÃO REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA.
OLIVEIRA ASCENSÃO - O DIREITO INTRODUÇÃO E TEORIA GERAL PÁG413, PÁG345-346.
MENEZES CORDEIRO - PREFÁCIO PENSAMENTO SISTEMÁTICO E CONCEITO SISTEMA NA CIÊNCIA DO DIREITO - CLAUS WILHELM CANARIS PÁGCVI-CVII.
CASTANHEIRA NEVES - ENTRE LEGISLADOR, A SOCIEDADE E O JUIZ... - BFDUC VOLLXXIV PÁG43.
MAZUREK,SAARBRYCKEN - INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DO DIREITO E À TEORIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEAS PÁG378.
ADELA CORTINA - ÉTICA DA DISCUSSÃO E FUNDAMENTAÇÃO ÚLTIMA RAZÃO... PÁG171.
ORLANDO AFONSO - PODER JUDICIAL IN DEPENDÊNCIA PÁG202.

Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório

1. A…………, identificado nos autos, vem interpor recurso de revista do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul [TCAS], de 26.11.2015, que negou provimento ao recurso de apelação que ele interpusera da sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa [TAC/Lisboa], datada de 25.09.2009, que julgou procedente a «oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa» que contra a sua pretensão deduziu o Ministério Público.

Culmina assim as suas alegações:

1- Ao abrigo do disposto na alínea a), do artigo 5º, da Lei nº2/2008, de 14.01, e do artigo 16º, nº 2, do DL nº 154/2003, de 15.07, o Acesso à Magistratura Judicial ou do Ministério Público em Portugal não está reservado em exclusivo aos cidadãos de Nacionalidade Portuguesa;

2- Nos termos do artigo 16º, nº2 do DL nº154/2003, salvo os serviços nas Forças Armadas e na carreira diplomática, os cidadãos brasileiros são admitidos a todas as demais funções públicas do Estado Português, com excepção das de Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro-Ministro e Presidentes dos Tribunais Supremos;

3- Nos termos do disposto no nº2 do artigo 3º da Lei nº21/85, de 30.07, do artigo 2º da Lei nº2/2008, de 14.01, e do artigo 2º, nº1, alínea b), do Regulamento das Inspecções Judiciais, os Magistrados Judiciais Portugueses, membros de órgão de soberania, desempenham funções predominantemente técnicas na carreira profissional à qual acedem por concurso público e nela ascendem por avaliação contínua da sua capacidade técnica, julgando segundo a Constituição e a Lei;

4- Reunindo o recorrente todos os pressupostos para que lhe seja atribuída a «Nacionalidade Portuguesa», por naturalização, nos termos do artigo 6º da Lei da Nacionalidade [nº37/81, de 03.10], com as alterações da Lei Orgânica nº2/2006, de 17.04, não se lhe aplica a oposição da alínea c) do artigo 9º dessa lei, pois o mesmo tendo sido Juiz Desembargador e Corregedor de Justiça onde exerceu funções de Magistrado admitido em concurso mediante a sua formação técnica superior em direito para a exclusiva interpretação e aplicação da Constituição e da Lei e, por consequência, em carácter predominantemente técnico;

5- Nestes termos, deve decretar-se que estão reunidos os factos legalmente exigíveis para a atribuição da nacionalidade portuguesa por «naturalização» ao ora recorrente, nos termos dos artigos 3º e 6º da Lei da Nacionalidade, declarando-se «predominantemente técnicas» por exigência da prévia condição de formação técnica superior específica para a admissão à magistratura e subsequente exercício dessas funções públicas em Portugal e igualmente no Brasil, país com o qual Portugal assinou diversos tratados de amizade e cooperação, inclusive no âmbito da Magistratura Judicial, em que nesses dois países os nacionais de um e outro a podem exercer devido ao acordo de amizade que determina a igualdade de tratamento e reciprocidade, excepcionando-se apenas os serviços nas Forças Armadas e corpo diplomático e os titulares dos órgãos de soberania [Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro Ministro e Presidentes dos Tribunais Supremos], que reservaram aos nacionais.

Termina pedindo que se revogue o acórdão recorrido, se julgue improcedente a oposição à aquisição da nacionalidade intentada pelo Ministério Público, e ainda que se ordene à «Conservatória dos Registos Centrais» [CRC] o deferimento do seu requerimento da nacionalidade portuguesa.

2. O recorrido, Ministério Público, contra-alegou, concluindo assim:

a) O presente recurso de revista vem interposto pelo recorrente, do acórdão do TCAS, que, confirmando o mérito da sentença proferida no TAC/Lisboa, que considerara procedente a acção, confirmou tal decisão, dando como verificado o requisito de «oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa», previsto na alínea c), do artigo 9º, da Lei nº37/81, de 03.10;

b) O exercício de funções de Magistrado Judicial - Juiz-Desembargador - na Republica Federativa do Brasil assume, face à Lei da Nacionalidade, carácter notoriamente não técnico, dada a natureza das decisões proferidas por aqueles Magistrados, as quais, de per si, se traduzem na prática de verdadeiros actos de poder, providos de jus imperium;

c) E tal interpretação mostra-se adequada ao «sistema jurídico-constitucional português», sem verificação de qualquer conflito normativo.

Termina pedindo o não provimento do recurso de revista, devendo manter-se o decidido pelas instâncias.

3. O recurso de revista foi admitido por acórdão deste STA [Formação a que alude o nº5 do artigo 150º do CPTA], nos seguintes termos:

[…]

«Embora exista jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo [STA] no sentido da decisão recorrida [acórdãos de 29.11.2011, Processo nº653/11, e de 02.10.2014, Processo nº200/14], a questão da qualificação das funções públicas exercidas como juiz de tribunais de Estado estrangeiro, como tendo ou não carácter predominantemente técnico para efeitos de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, não é pacífica. Com efeito, em qualquer desses acórdãos a decisão foi tomada por maioria, com um voto de vencido em qualquer deles.

Estamos perante uma questão susceptível de repetição nos mesmos termos num número indeterminado de casos e que respeita a um tema juridicamente importante, pelo que se justifica a admissão da revista».

[…]

4. Colhidos que foram os vistos legais, importa apreciar, e decidir, o recurso de revista.

II. De Facto

São estes os factos provados colhidos nas instâncias:

1- O requerido, A…………., é cidadão brasileiro, natural do Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro, República Federativa do Brasil, nascido em 15.04.1944, filho de ………… e de …………., ambos de nacionalidade brasileira [folha 31 dos autos];

2. O requerido reside na Avenida …………, nº…….., …………, Rio de Janeiro, Brasil, tendo também residência em Portugal, na Avenida ………., nº………., ………., Viana do Castelo, e em 10.04.2004 contraiu casamento, em Santa Maria de Portozelo, Viana do Castelo, com a cidadã portuguesa ………….., filha de …………. e de …………….., nascida em 14.07.1950, Valpaços [folhas 18 a 22 e 95 dos autos];

3. O requerido declarou pretender adquirir a nacionalidade portuguesa com base no casamento [artigo 3º da Lei nº37/81, de 03.10], mediante o preenchimento de um impresso-tipo da Conservatória dos Registos Centrais [CRC], onde foi recebido em 18.07.2007 [folhas 10 a 15 dos autos];

4. Com base em tal declaração, foi instaurado na CRC o processo nº38221/2007-NACA, onde se declarou a existência de factos impeditivos da pretendida aquisição de nacionalidade, razão pela qual o registo não chegou a ser lavrado [folhas 121 a 123 dos autos];

5. Para os fins do disposto no artigo 9º da Lei nº37/81, mediante preenchimento do impresso-tipo, o requerido declarou que: - «Tem ligação efectiva à comunidade portuguesa»; - «Não foi condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa»; - «Não exerceu funções públicas sem carácter predominantemente técnico a Estado estrangeiro»; - «Não prestou serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro» [folhas 10 a 15 dos autos];

6. O requerido foi nomeado no cargo de Juiz de Direito do Estado do Rio de Janeiro da República Federativa do Brasil em 28.06.1972, tendo sido promovido e tomado posse do cargo de Desembargador do mesmo Estado em 27.05.1996, cargo que ainda exerce actualmente, tendo sido eleito Corregedor Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro em 16.12.2008 [folhas 96 e 168 dos autos].

E é tudo quanto a factos.

III. De Direito

1. O aqui recorrido, A………….., requereu junto da CRC, em 18.07.2007, a aquisição da nacionalidade portuguesa ao abrigo do artigo 3º da chamada «Lei da Nacionalidade» [Lei nº37/81, de 03.10, alterada pela 4ª vez, e republicada, pela Lei Orgânica nº2/2006, de 17.04], declarando ser casado com uma cidadã portuguesa há mais de três anos, e que, na constância deste casamento, declara, para os devidos efeitos, a sua «vontade» de ser cidadão português.

Alertado pela CRC, o Ministério Público veio intentar a presente acção, especial, opondo-se à aquisição da nacionalidade portuguesa por parte do aí requerente com base no disposto no artigo 9º, alínea c), dessa «Lei da Nacionalidade», isto é, pelo facto de o requerente, enquanto Desembargador do Estado do Rio de Janeiro, República Federativa do Brasil, exercer «funções públicas sem carácter predominantemente técnico».

O tribunal de 1ª instância, TAC/Lisboa, julgou procedente a oposição deduzida pelo Ministério Público, devendo ser arquivado, consequentemente, o «processo de registo» de cidadão português pendente na CRC.

Conhecendo da apelação interposta por A……………, a 2ª instância, TCAS, negou provimento ao recurso e manteve a sentença recorrida, isto é, manteve o julgamento de procedência da «oposição à aquisição da nacionalidade».

Vingou a tese, nas duas instâncias, segundo a qual o fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, que foi invocado pelo MP, constitui um verdadeiro impedimento, porque o exercício de funções de magistrado judicial na República Federativa do Brasil, por parte do cidadão brasileiro ali requerente integra a hipótese prevista na alínea c) do artigo 9º da «Lei da Nacionalidade», ou seja, traduz-se no exercício de funções públicas sem carácter predominantemente técnico.

É deste entendimento que o ora recorrente, de novo A……………, discorda, qualificando de errado o julgamento de direito do acórdão recorrido, e pedindo, em consequência, a sua revogação, e o julgamento de improcedência da acção especial de oposição deduzida pelo Ministério Público.

Alega que ao abrigo do disposto nos artigos 5º, alínea a), da Lei nº2/2008, de 14.01, e 16º, nº2, do DL nº154/2003, de 15.07, o acesso às magistraturas em Portugal não está reservado em exclusivo aos cidadãos nacionais; que decorre do disposto nos artigos 3º, nº2, da Lei nº21/85, de 30.07, 2º, da Lei nº2/2008, de 14.01, e 2º, nº1 alínea b), do Regulamento das Inspecções Judiciais, que os magistrados portugueses exercem funções predominantemente técnicas. Alega, por fim, que reúne todos os pressupostos para lhe ser atribuída a nacionalidade portuguesa por naturalização nos termos do artigo 6º da Lei da Nacionalidade.

2. A nacionalidade é um vínculo jurídico-político que liga o indivíduo ao Estado, de modo que aquele passa a fazer parte do povo deste, povo que, juntamente com o território e o poder político, constitui elemento estruturante do «conceito de Estado» [ver, a respeito, António Marques dos Santos, «Nacionalidade e Efectividade», in revista AD LUCEM, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, páginas 429 a 453].

Assim, tal vínculo é de magna importância, pois delimita o círculo dos cidadãos, daqueles que podem contribuir constitutivamente para a «formação da vontade política da comunidade», no caso, da comunidade portuguesa.

Compreende-se, pois, que para além de reconhecer a cidadania como elemento do estado das pessoas, isto é, como um status, incluído no elenco dos «outros direitos, liberdades e garantias pessoais» [artigo 26º, nº1, da CRP], o Estado não deva alhear-se da sua constituição, deixando-a, sem mais, à «livre determinação dos interessados».

Daí que o legislador português, a quem compete determinar as regras relativas à fixação dos seus nacionais [ver artigos 1º, e 2º, da Convenção de Haia de 12.04.1930], deva fixá-las «garantindo o factor da inclusão que a nacionalidade deve hoje representar em Portugal», mas sem comprometer «o rigor e a coerência do sistema, bem como os objectivos gerais de política nacional de imigração, devidamente articulada com os nossos compromissos internacionais e europeus, designadamente os que resultam da Convenção Europeia sobre Nacionalidade que Portugal ratificou em 2000» [ver Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº32/X].

É nesta perspectiva jurídico-política que deve ser encarada, no âmbito do nosso sistema jurídico, a acção de «oposição» do Estado, através do MP, à aquisição da nacionalidade portuguesa por estrangeiros.

Assim, o «estar casado há mais de três anos com nacional português» constitui «pressuposto de facto» necessário à potencialidade constitutiva da «declaração de aquisição da nacionalidade portuguesa» pelo estrangeiro interessado, sendo esta última «elemento determinante» da aquisição [artigo 3º, nº1, da «Lei da Nacionalidade»; ver, a este respeito, Moura Ramos, «Do Direito Português da Nacionalidade», 1992, página151].

Por sua vez, a «oposição» deduzida pelo MP com base na «exercício de funções públicas sem carácter predominantemente técnico […] a Estado estrangeiro» funciona como mecanismo legal de salvaguarda, permitindo ao Estado Português afastar do universo dos seus cidadãos aqueles que exercem funções de autoridade para Estado estrangeiro, e que, desse modo, estão axiologicamente ligados à definição da respectiva ordem jurídico-social, e surge como um «impedimento» ao efeito constitutivo da «declaração» feita na constância do matrimónio por estrangeiro «casado há mais de 3 anos com nacional português» [ver artigos 9º, alínea c), da «Lei da Nacionalidade», e 56º, nº 2, alínea c), do «Regulamento da Nacionalidade Portuguesa», aprovado pelo DL 237-A/2006, de 14.12].

E desta forma, note-se, a acção em causa se distancia do universo das «acções de simples apreciação negativa», e se concilia com a regra do «ónus da prova» previsto no artigo 342º, nº2, do CC [ver, sobre o ónus da prova, AC STA/Pleno de 16.06.2016, Rº201/16, e, repetindo este, AC STA/Pleno de 07.07.2016, Rº1264/15].

3. Relativamente à questão nuclear, que motivou e justificou a admissão deste recurso de revista, que é a de saber se as «funções públicas» exercidas como juiz de tribunais de Estado estrangeiro têm ou não carácter predominantemente técnico para efeitos de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, pelo respectivo declarante, já este Supremo Tribunal se pronunciou, por maioria, ao menos em três acórdãos [AC STA de 29.11.2011, Rº0653/11; AC STA de 02.10.2014, Rº200/14]; e AC STA de 07.06.2016, Rº0463/16].

Neste último aresto, o tribunal desenvolveu um entendimento assaz pertinente, sobre a referida questão, que passamos a citar e a adoptar como argumentação válida para o desfecho do presente litígio.

Aí se disse, além do mais, assim:

[…]

«Com efeito, depois do artigo 9º, alínea c) da Lei nº37/81, de 03.10 [Lei da Nacionalidade] ter sido modificado pela Lei Orgânica nº2/2006, de 17.04, e dele ter passado a constar o exercício de funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico, o entendimento deste STA foi o de que essa expressão deveria ter o sentido que fora dado a idêntica expressão, usada no artigo 15º, nº2, da CRP […]

Ora, relativamente à interpretação de tal conceito - ainda que a propósito do artigo 15º, nº2, da CRP - nos sucessivos pareceres da PGR citados e historiados no seu Parecer de 29.05.91, P000221990 - detecta-se uma evolução, conexionando o sentido da expressão predominantemente técnicas com o conteúdo das funções exercidas, com especial relevo para o exercício da autoridade pública, consolidando-se o entendimento de que não são funções predominantemente técnicas, aquelas em que predomina o exercício da autoridade pública.

VITAL MOREIRA e GOMES CANOTILHO, em anotação ao artigo 15º nº2 da CRP, perante expressão idêntica consideram […] que “… a ideia constitucional deve […] pretender excluir o exercício por estrangeiros de funções públicas que incluem o exercício de poderes públicos, quer no âmbito interno da administração [funções de direcção e chefia], quer no respeitante a terceiros [actos de autoridade].

Este Supremo Tribunal, no acórdão de 29.11.2011 […] também entendeu que deve acolher-se o entendimento, segundo o qual haverá que apurar, nos casos em que o interessado tenha exercido funções públicas, qual o aspecto que sobrelevou nessas funções: se foi o aspecto técnico; ou se foi o aspecto da autoridade.

Julgamos ser este o entendimento que mais se adequa ao elemento sistemático, acolhendo o sentido que a doutrina e jurisprudência têm dado a conceito idêntico [artigo 15º, nº2, da CRP]. Este entendimento cabe na letra da lei, pois esta ao referir-se a funções predominantemente técnicas, pode ter como termo de comparação as funções públicas típicas, isto é aquelas, através das quais se exerce o poder de autoridade [poderes públicos]. Adequa-se ainda à finalidade da norma interpretada no sentido de afastar do direito a aquisição da nacionalidade aqueles que exercem predominantemente poderes de autoridade [poderes públicos] em país estrangeiro por estarem, desse modo, ligados e axiologicamente co-interessados na definição da respectiva ordem jurídico-social.

[…]

Este entendimento resulta, a nosso ver sem motivo para dúvidas sérias, do papel que hoje é reconhecido ao juiz na definição do direito.

Com efeito, a ideia do juiz como mero intérprete - uma espécie de “correia de transmissão do legislador” - e, portanto, sem um poder criativo da própria ordem jurídica não corresponde à realidade.

O juiz também cria Direito, designadamente, nos termos do artigo 10º, nº3, do CC, devendo nesse caso criar uma norma “dentro do espírito do sistema”. Espírito do sistema acolhe a ideia que corresponde aos “juízos de valor legais a que se referia ao artigo 110º do Estatuto Judiciário, mas aperfeiçoada. Nomeadamente, já se não limita aos juízos de valor legais, antes busca os que são próprios de todo o sistema jurídico” - OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, página 413.

É consensual, por outro lado, que o “julgador apreende certos elementos e decide, criativamente, em termos finais. Por certo que o quantum da criatividade não é uniforme: atingindo um máximo quando da aplicação de conceitos vazios ou da integração de lacunas rebeldes à analogia e extra-sistemáticas, ele surge reduzido perante normas rígidas ou mesmo típicas. Mas existe sempre, desde a apreensão dos factos à localização das fontes.” - MENEZES CORDEIRO, prefácio ao Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, Claus - Wilhelm Canaris, por si traduzido, páginas CVI/CVII.

Em termos mais expressivos CASTANHEIRA NEVES, ressalta o papel do juiz, numa visão que recusa ao Direito a natureza de […] um simples meio técnico de quaisquer estratégias, mas validade em que a axiologia e a responsabilidade do homem se manifestem. Para se assumir e realizar esse direito, vimos como é indispensável o juiz. Por isso mesmo é eminente a sua tarefa e nobre o papel que dele se espera. […] Negar-se-á esse seu sentido se for mero funcionário, funcionalmente enquadrado e nisso comprazido, servidor passivo de qualquer legislador, simples burocrata legitimante da coacção” - Entre o Legislador, a Sociedade e o Juiz, ou entre Sistema, Função e Problema - Os modelos alternativos da realização jurisdicional do Direito, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, volume LXXIV, página 43.

“Hart acentua repetidamente a função do direito como meio de controlo social que só pode ser defendido se entrarem também no direito – ao interpretar regras jurídicas carecidas de interpretação nas suas zonas obscuras ou ao adaptá-las a relações sociais novas – ideais sociais, ou ideais éticos, que vinculem a argumentação e a decisão” - Teoria Analítica do Direito por MAZUREK, SAARBRYCKEN, Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas, páginba 378.

É de resto uma evidência, que a grande maioria das regras jurídicas carece de interpretação. Como sublinha OLIVEIRA ASCENSÃO a posição enunciada no brocardo “in claris non fit interpretatio… é contraditória nos seus próprios termos, pois mesmo para concluir que uma deposição legal é evidente foi necessário um trabalho de interpretação, embora quase instantâneo, e é com base nele que se afirma que o texto não suscita problemas particulares”. Por isso, considera o mesmo autor “são absurdas certas posições hermenêuticas que se repetem, do imperador Justiniano a autocratas modernos, e pelas quais se proíbe a interpretação da lei. Efectivamente, conclui o autor, “a interpretação jurídica não se destina a uma recognição de um qualquer conteúdo já pensado, mas destina-se a formular princípios para a acção, regras.” - O Direito, Introdução e Teoria Geral, páginas 345/346.

Note-se, a propósito, que “a letra da lei e o que ela exige num caso concreto podem ser perfeitamente claros; contudo, pode haver dúvidas sobre se o legislador tem o poder para legislar desse modo” - HART, o Conceito de Direito, página 161. Nestas condições o julgador, nos casos que lhe são colocados, averigua a validade constitucional da lei, de acordo com os parâmetros que racionalmente vinculam o próprio legislador, existindo, como refere o mesmo autor, “…vários tipos de raciocínio que os tribunais usam caracteristicamente, ao exercer a função criadora que lhes é deixada pela textura aberta do direito contido na lei ou no precedente” [obra citada, página 161].

Vários tipos de raciocínio e de argumentação que não se reconduzem necessariamente a uma busca de critérios objectivos da decisão, mas apelam a um paradigma justificativo que “não pretende de forma alguma encontrar princípios evidentes, mas sim descobrir, através de um trabalho de auto-reflexão, as pressuposições que são indiscutíveis se desejarmos formular argumentos intersubjectivamete válidos”ver, neste sentido, ADELA CORTINA, Ética da Discussão e Fundamentação Última da Razão, As Filosofias Políticas Contemporâneas [após 1945], página 171. A racionalidade da decisão há-de decorrer, nesta concepção, do desenvolvimento de uma argumentação séria, a qual depende de várias regras ou condições - ética da discussão: “1- Todo o sujeito capaz de falar e de agir deve poder tomar parte em discussões; 2.1. Cada um deve poder problematizar toda a afirmação, qualquer que ela seja; 2.2. Cada um deve poder fazer com que seja admitida na discussão toda a afirmação, qualquer que ela seja; 2.3. Cada um deve poder exprimir os seus pontos de vista, os seus desejos e as suas necessidades; 3. Nenhum locutor deve ser impedido por uma pressão autoritária, quer ela se exerça no interior quer no exterior da discussão de aproveitar dos seus direitos, tal como eles estão estabelecidos em 1 e 2”.

Não é, assim, possível reconduzir a função do juiz, essencialmente concretizadora e criadora da Ordem Jurídica [em maior ou menor grau] a uma função predominantemente técnica [axiologicamente neutra] face a uma necessária e sempre presente relação de compromisso ético do juiz com o Direito que interpreta, aplica em concreto, faz cumprir e, desse modo, também vai construindo. Outro entendimento contribuiria para a “deslegitimação do poder judicial”, enquanto “poder soberano” como nota ORLANDO AFONSO - Poder Judicial In Dependência, página 202. “Deslegitima-se” - diz o autor, entre outras maneiras“quando a pretexto de apregoadas desburocratizações ou de modernizações tecnológicas se reconduz o papel do Juiz ao de um mero operador judiciário, adulterando-se-lhe a função”. Por isso o autor [nota 271] entende como deslegitimadora a tentativa de “…reduzir o Poder Judicial a uma função burocrática sem qualquer outra dimensão que não seja a da prestação de um mero serviço administrativo”.

Podemos concluir, portanto, que no pensamento jurídico actual, não é acolhido o entendimento que vê o Juiz como um mero operador judiciário, um mero prestador de serviço administrativo ou, nas palavras de Castanheira Neves, um mero instrumento técnico de legitimação da coacção. Podemos afirmar com toda a segurança que as funções exercidas pelo Juiz são funções públicas, mas não são predominantemente técnicas, porque predominantemente exercem um poder público, sendo o exercício desse poder o núcleo essencial do conteúdo das respectivas funções».

[…]

Ora, esta conclusão pode e deve aplicar-se ao caso do recorrente, uma vez que o autor desta acção articulou, de forma pacífica, porque incontestada pelo réu, que nenhuma diferença substancial existe, neste âmbito, entre a visão do juiz na ordem jurídica portuguesa e na ordem jurídica brasileira. Aliás, o réu sempre se pronuncia, embora discordando do Ministério Público, com base nessa visão da magistratura judicial que inquestionavelmente aceita.

E a correcção deste entendimento é comprovada pela consulta da «Constituição da República Federativa do Brasil», cujo artigo 2º consagra o poder judiciário, a par dos demais poderes soberanos do Estado, como um «poder independente», e cujo artigo 95º elenca, entre as garantias dos juízes, a da «inamovibilidade» e a da «vitaliciedade».

Não foi invocada, nem existe, assim, qualquer razão jurídica que nos obrigue a concluir em sentido diverso daquele que pacificamente reside nos autos, e que vai no sentido de não haver qualquer diferença substancial entre o exercício da judicatura em Portugal e no Brasil.

Resulta bastante claro, pois, que as funções exercidas pelo recorrente A………….. - como Desembargador do Estado do Rio de Janeiro da República Federativa do Brasil - não são funções públicas com carácter predominantemente técnico, devendo antes considerar-se - no seu núcleo essencial - como funções mediante as quais se exerce o poder judicial, que é um dos poderes soberanos do Estado estrangeiro aqui em causa.

4. Contra isto nada decorre das normas legais «invocados pelo recorrente» nas conclusões das suas alegações de revista: artigos 5º alínea a), da Lei nº2/2008, de 14.01; 16º nº2, do DL nº154/2003, de 15.07; 3º nº2, da Lei nº21/85, de 30.07; 2º, da Lei nº2/2008, de 14.01; e 2º, nº1 alínea b), do Regulamento das Inspecções Judiciais.

A Lei nº21/85, de 30.07 - que aprova o Estatuto dos Magistrados Judiciais - estipula no seu artigo 3º nº2, sobre a «função da magistratura judicial», que «Os magistrados judiciais não podem abster-se de julgar com fundamento na falta, obscuridade ou ambiguidade da lei, ou em dúvida insanável sobre o caso em litígio, desde que este deva ser juridicamente regulado».

O Regulamento das Inspecções Judiciais [RIJ], prescreve no seu artigo 2º, nº1, que há duas espécies de inspecções, «a) Aos tribunais; b) Ao serviço dos juízes, com vista à avaliação do respectivo mérito» - o texto é idêntico, tanto no RIJ aprovado pela Deliberação 55/2003, do Conselho Superior da Magistratura, publicado no DR, 2ª série, nº12, de 15.01.2003, como no RIJ actual, aprovado pela Deliberação nº1868/2012, do mesmo CSM, publicada no DR, 2ª série, nº235, de 05.12.2012].

O DL nº154/2003, de 15.07 - que procede à regulamentação da aplicação do «Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta» entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, assinado em Porto Seguro, em 22.04.2000, no que respeita ao regime processual de atribuição e registo do estatuto de igualdade aos cidadãos brasileiros residentes em Portugal e aos cidadãos portugueses residentes no Brasil – estipula no seu artigo 16º, nº2, sobre «direitos não abrangidos» pelo estatuto de igualdade, que «Ao cidadão brasileiro investido no estatuto de igualdade é reconhecido, nos termos da lei e em condições de reciprocidade, direitos não conferidos a estrangeiros, salvo o acesso aos cargos de Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro-Ministro, presidentes dos tribunais supremos e o serviço nas Forças Armadas e na carreira diplomática».

A Lei nº2/2008, de 14.01 - que procede à regulamentação do ingresso nas magistraturas, a formação de magistrados, e a natureza, estrutura e funcionamento do CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS – diz no seu artigo 2º, sob a epígrafe «Formação profissional dos magistrados» que «A formação profissional dos magistrados para os tribunais judiciais e para tribunais administrativos e fiscais abrange as actividades de formação inicial e de formação contínua, nos termos regulados nos capítulos seguintes», e diz, no seu artigo 5º, além do mais, o seguinte: «São requisitos gerais de ingresso na formação inicial de magistrados e de admissão ao concurso: a) Ser cidadão português ou cidadão dos Estados de língua portuguesa com residência permanente em Portugal a quem seja reconhecido, nos termos da lei e em condições de reciprocidade, o direito ao exercício das funções de magistrado».

O recorrente, esforçando-se por esgrimir «razões» em prol da sua discordância com a decisão que fez vencimento no acórdão recorrido, alega que dos artigos 5º, alínea a), da Lei nº2/2008, e 16º, nº2, do DL nº154/2003, resulta que o acesso às magistraturas, no nosso país, não está reservado em exclusivo aos cidadãos nacionais. E que dos artigos 3º, nº2, do EMJ, 2º da Lei nº2/2008, e 2º, nº1 alínea b), do RIJ, resulta que os magistrados judiciais exercem funções predominantemente técnicas.

Obviamente que da «interpretação», singular ou conjugada, destas três últimas normas não resulta a conclusão ora pretendida pelo recorrente. Pelo contrário, o texto das mesmas vai antes no sentido de legitimar o entendimento exposto no anterior ponto 3 deste acórdão, em que não se nega a «componente técnica do exercício das funções públicas de magistrado judicial» mas se salienta que não o são no seu «núcleo essencial».

Efectivamente, aquela norma do EMJ, sobre a função da magistratura judicial, não deixa de apelar, embora de forma indirecta, a um sentido criativo, e «não meramente técnico», do exercício da judicatura. E nem as normas do RIJ e do diploma sobre a formação dos magistrados, invocadas, legitimam a restrição da avaliação do mérito dos juízes e da sua formação profissional a aspectos apenas técnicos.

Por seu lado, nada tem a ver com a questão da aquisição da nacionalidade por efeito da vontade o cotejo dos pressupostos legais de admissão na magistratura judicial em Portugal. Parece que, no entender do recorrente, baila um sofisma segundo o qual se ele pode ser brasileiro e juiz em Portugal, porque não há-de poder ser português e juiz no Brasil!

Porém, independentemente do desacerto da premissa inicial do sofisma - note-se que o artigo 16º nº2 do DL 154/2003, que particulariza, relativamente aos cidadãos brasileiros, o que é dito no artigo 15º, nº3, da CRP, relativamente a cidadãos de Estados de língua oficial portuguesa com residência permanente neste país, faz depender a sua aplicação da investidura no estatuto de igualdade, na existência de lei, e na ocorrência de reciprocidade - certo é que o recorrente intenta ser «cidadão português» e não juiz em Portugal. Não pode, sem mais, colher fruto conclusivo esse argumento enganoso, porque carente de razões e teleologia semelhantes.

5. Por fim, resulta do provado que o recorrente pediu a nacionalidade portuguesa com base no casamento, isto é, ao abrigo do artigo 3º da Lei da Nacionalidade, e desta forma foi tratada, sempre, a sua pretensão pelas instâncias.

Estranhamos, assim, que venha agora, em sede de revista, alegar também que reúne todos os pressupostos para que lhe possa ser atribuída a «nacionalidade portuguesa» por naturalização nos termos do artigo 6º da Lei da Nacionalidade.

Como é sabido, nos termos desta lei a aquisição da nacionalidade portuguesa pode resultar da declaração de vontade [artigos 2º a 4º], da adopção plena [artigo 5º], e da naturalização [artigos 6º e 7º].

Ora, e como facilmente se colhe da lei, os pressupostos das duas primeiras e da terceira «formas» de aquisição da nacionalidade são diferentes. Nas primeiras, verificados os requisitos, a CRC limita-se a registar o interessado como cidadão português, podendo haver, como dissemos, oposição, fundamentada, por parte do Ministério Público. Na última, a nacionalidade portuguesa é requerida e pode ou não ser concedida pelo Governo, mais propriamente por decisão do Ministro da Justiça.

Não pode o ora recorrente, pois, ultrapassar os trâmites legais indispensáveis à aquisição da nacionalidade por «naturalização», se esse for o seu desejo.

IV. Decisão

Nestes termos, decidimos negar provimento ao recurso de revista intentado por A………….

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 8 de Setembro de 2016. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – Alberto Acácio de Sá Costa Reis (vencido pelas razões já expostas no meu voto no Ac. de 7.06.2016 (rec. 463/16)).