Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0565/04
Data do Acordão:11/24/2004
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:CÂNDIDO DE PINHO
Descritores:INSTAURAÇÃO DO PROCESSO DISCIPLINAR.
IMPEDIMENTO.
PRINCIPIO DA IMPARCIALIDADE.
COMPETÊNCIA.
Sumário:I - Nos termos do art. 44º, nº1, al. a), do CPA, não se considera impedido o titular de órgão competente para ordenar a instauração de um procedimento disciplinar mesmo que, simultaneamente, reúna a qualidade de ofendido pela actuação do arguido.
II - As competências para as distintas fases de instauração, instrução e decisão do procedimento são exercidas separadamente por diferentes órgãos e o autor do acto que o manda instaurar nenhuma outra intervenção decisiva nele tem.
III - Para a “instauração” do procedimento, nem o art. 39º, do Estatuto Disciplinar (DL nº 24/84, de 16/01), nem qualquer outra disposição legal estabelecem limites a respeito do âmbito pessoal da competência, ao contrário do que sucede com o art. 52º do mesmo E.D. relativamente à pessoa que dirigirá a “instrução”.
IV - O princípio da imparcialidade não é fatalmente omnipresente. Isto é, embora ele atravesse todo o procedimento e não se reserve apenas para a fase da decisão final, a intervenção e o exercício dos poderes funcionais no seu decurso só adquire desvalor antijurídico quando determinem ou influenciem a decisão administrativa num certo sentido.
E tal não acontece com o despacho que se limita à mera abertura do procedimento.
V - Por outro lado, a reunião na mesma pessoa da qualidade de ofendido e de autor do acto que manda instaurar o procedimento disciplinar, por si só, não ofende o conteúdo essencial da posição jurídica do arguido, nem afecta os direitos deste a um procedimento justo, isento e imparcial.
Nº Convencional:JSTA00061189
Nº do Documento:SA1200411240565
Data de Entrada:05/18/2004
Recorrente:SE DA ADMINISTRAÇÃO EDUCATIVA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC TCA.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - FUNÇÃO PUBL DISCIPLINAR.
Legislação Nacional:CCIV66 ART279 B.
LPTA85 ART28 N1 A ART29.
CPA91 ART44 ART133 N1 A.
EDF84 ART39 ART57 ART66.
Referência a Doutrina:ESTEVES DE OLIVEIRA E OUTROS CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 2ED PAG246.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1ª Subsecção da 1ª Secção do STA
I - O Secretário de Estado da Administração Educativa recorre jurisdicionalmente do acórdão do TCA que, no recurso contencioso ali interposto por A..., e em consequência da nulidade da instauração do procedimento disciplinar, declarou oficiosamente a nulidade do despacho sancionatório que a este aplicou a pena de 60 dias de suspensão.
Apresentou alegações, que concluiu do seguinte modo:
« O douto acórdão ora recorrido fez errada interpretação e viola:
a) Os arts. 279°, b) e c) do CC; 28°, 1, a) e 2 da LPTA; 29° da LPTA; e 57°, § 4 do RSTA, ao não ter considerado a extemporaneidade do recurso, pois o recorrente foi notificado em 30.04.2002 e só interpôs o recurso em 1.07.2002;
b) Os arts. 266°, 1 e 2; 269°, 1 da CRP; 44°, 1, a) do CPA; 133°,2, d); 134°, 2 do CPA, ao considerar nulo o despacho de instauração do P.D., por violação do princípio da imparcialidade, «repercutíve1 e invalidante de todos os actos nele praticados, maxime, do despacho final sancionatório ­despacho de 19.12.2001», já que a separação existente no procedimento administrativo entre o poder instrutório e o poder decisório é garantia da imparcialidade da actividade administrativa;
c) Se assim não se entendesse - o que não se concede - sempre o mesmo acórdão violou os arts. 133°, 2-d) e 134°, 2 do CPA, pois o vício de violação do princípio da imparcialidade, não havendo como não houve desvio ou abuso de poder, é cominado com a anulabilidade e não com a nulidade, dependente de arguição pelo recorrente - o que não aconteceu ­e não de conhecimento oficioso pelo tribunal».
*
Alegou, igualmente, o recorrido, apresentando as conclusões seguintes:
«A) A então entidade recorrida, ora recorrente, considera que o douto Acórdão do Tribunal "a quo" fez errada interpretação e viola:
"a) Os arts. 279°, b) e c) do CC; 28°, 1, a) e 2 da LPT A; 29° da LPTA; e 57°, § 4 do RSTA, ao não ter considerado a extemporaneidade do recurso, pois o recorrente foi notificado em 30.04.2002 e só interpôs o recurso em 1.07.2002;
b) Os arts. 266°, 1 e 2; 269°, 1 da CRP; 44°,1, a) do CPA; 133°, 2, d); 134°, 2 do CPA, ao considerar nulo o despacho de instauração do P.D., por violação do princípio da imparcialidade, «repercutível e invalidante de todos os actos nele praticados, maxime, do despacho final sancionatório - despacho de 19.12.2001», já que a separação existente no procedimento administrativo entre o poder instrutório e o poder decisório é garantia da imparcialidade da actividade administrativa;
c) Se assim não se entendesse - o que não se concede - sempre o mesmo acórdão violou os arts. 133°, 2-d) e 134°, 2 do CPA, pois o vício de violação do princípio da imparcialidade, não havendo como não houve desvio ou abuso de poder, é cominado com a anulabilidade e não com a nulidade, dependente de arguição pelo recorrente - o que não aconteceu - e não de conhecimento oficioso pelo tribunal."
B) Ora, salvo o devido respeito, não parece assistir razão à ora entidade recorrente em nenhum dos pontos invocados.
C) No que respeita à extemporaneidade do recurso a mesma não reparou que o facto de a respectiva petição ter dado entrada no dia 1.07.2002 se deve à aplicação da alínea e), e não à aplicação da alínea b), simplesmente porque o dia 30.06.2002 era um DOMINGO.
D) No que respeita aos outros dois pontos, também o que invoca a ora entidade recorrente nada tem a ver com a questão de fundo levantada pelos Meritíssimos Juízes Desembargadores do Tribunal "a quo", ou seja, com o facto de "...a autoridade legalmente impedida para exercer a competência de instaurar procedimento disciplinar, nos termos do art° 440 n° 1 a) CPA, ..." não ter respeitado esse impedimento legal "...sendo certo que a ele estava obrigada por ser titular de interesse pessoal, próprio e directo na decisão disciplinar, fundado na posição jurídica de ofendido em consequência directa do quadro de acção descrita e imputada ao ora recorrente."
E) Tanto mais que termina concluindo que "...o referido Presidente da Comissão Executiva Instaladora..." não incorreu "...em desvio ou abuso de poder, pelo que o acto de instauração do P.D. ao professor A... sempre seria anulável e não nulo, como erradamente considerou o douto acórdão recorrido “, quando os Meritíssimos Juízes Desembargadores do Tribunal “a quo” justificam a nulidade pela alínea d) do art. 133º do CPA, ou seja por considerarem que “…o acto de instauração do P.D. ao professor A...…” ofende o conteúdo essencial de um direito fundamental».
*
Neste Tribunal, o digno Magistrado do MP opinou no sentido da tempestividade da interposição do recurso contencioso e, sobre o mérito do recurso jurisdicional, defendeu o seu provimento.
*
Cumpre decidir.
***
II- Os Factos
O acórdão recorrido deu por assente a seguinte factualidade:
1. Pelo oficio CE-23-2001 de 2001-04-09 o Presidente da Comissão Executiva Instaladora, do Agrupamento de Escolas de Montelongo, Escola EB 2, 3 de Montelongo dirigiu ao Inspector Geral da Educação no Porto, o texto que segue:
(.. )
Assunto: Instauração de processo disciplinar
Eu, ..., professor do quadro de nomeação definitiva do 40 Grupo e presidente da Comissão Executiva Instaladora deste Agrupamento, venho expor a V. Exa. o seguinte:
No dia 28 de Março, pelas 15:00 horas, o professor A..., do Q-N.D. do 11º A desta Escola EB 2,3 de Montelongo, embora a faltar por doença, deslocou-se a este estabelecimento e dirigiu-se à entrada da Biblioteca onde decorria uma acção de formação e, abrindo a porta, chamou por mim. Como não me apercebi da sua presença, a professora ..., vice-presidente da C.E.I., atendeu-o, saindo da sala, para lhe solicitar que aguardasse pelo Presidente. Dali a pouco, saí da Biblioteca e disse:
Ainda bem que aqui está A... Ao fim da tarde irá decorrer o Conselho de Turma Disciplinar do 7º G, do qual faz parte.
Eu não venho. Não estou bem -disse-me ele.
De seguida, o referido professor questionou-me sobre o caso de umas alunas, que há lhe tinham chamado “filho da puta".
E eu respondi:
Está a ser tratado. Já chamei uma das alunas em causa e a mesma declarou não ter sido ela. Falta­-me ouvir a outra, que em breve chamarei, e que é do 8º ano.
E o professor já irritado, afirmou:
Isto não funciona. Para haver um processo é necessário estar vinte dias à espera. A professora ... interveio. Ó A..., tem que perceber que isto leva o seu tempo. Mas ele continuou:
Isto não tem jeito. Onde é que nós estamos? Onde já se viu isto? Chamar "filho da puta" a um professor é a mesma coisa que chamar à escola, como instituição. Não penses assim, disse-lhe eu. De qualquer modo, o assunto não está esquecido. E eu não te admito falta de respeito.
Neste momento, o professor exaltou-se e eu sugeri continuarmos o diálogo no meu gabinete. E descemos. A caminho, cada vez mais agressivo, virou-se para a vice-presidente e disse:
Tu, ..., ficas aqui fora, porque este assunto é apenas entre mim e o ....
E eu respondi:
A ... também entra, porque também pertence ao órgão de gestão.
Então, no meu gabinete, mostrei-lhe o registo onde constavam os nomes das alunas e outros colegas, uma vez que não houve, por parte deste professor, a participação escrita da ocorrência. Além de ser norma desta escola, logo de início lhe havia sugerido que o fizesse. Como reacção, o professor deu-­me um ultimato de 48 horas para tratar do assunto, pois de outra forma iria ver o que me ia acontecer (disse isto, dando um murro na mesa e num tom de voz muito alto).
A partir deste momento insultou-me, dizendo, "és uma merda, é só política, és um bandalho".
Tentou-me agredir ao mesmo tempo que me empurrava para trás conjuntamente com a mesa, com gestos enérgicos muito próximos do meu rosto. A seguir fez-me ameaças do género "Se eu não tivesse um filho para criar isto não ficava assim". Dirigiu-se-me em tons provocatórios, com a voz muito alterada e, não fosse a intervenção oportuna da minha colega que o interpelou tentando acalmá-lo, não sei o que teria acontecido.
Simultaneamente, as pessoas mais próximas foram-se apercebendo do clima anormal que se gerou no gabinete. Por isso, algumas delas entraram de rompante, a vice-presidente ..., o CSAE Sr. ..., o assistente administrativo Sr. ... e a chefe de pessoal D. ....
Esta última pediu-lhe calma, ao que, por intervir, foi empurrada contra a parede e sofreu um pequeno traumatismo no polegar direito, tendo sido assistida no hospital. Quando viu estas pessoas, o professor A... ordenou-lhes que saíssem dizendo: "Rua Todos lá fora", mas a professora ... disse-lhes que se mantivessem na nossa presença. Eu, por mim, deixei de falar, desde o momento em que ele me tocou nos ombros e que forçou a deslocação da secretária.
Neste pressuposto, entendo que o teor dos factos aponta para tentativa de agressão premeditada, injuriação e desrespeito grave ao seu superior hierárquico, dado que no plano das instituições e no relacionamento democrático não é esta a forma de se dirigir ao Presidente.
Assim e, na competência que me é atribuída segundo o ponto I do artigo 115.º do Estatuto da Carreira Docente, instauro processo disciplinar ao professor A....
Dada a gravidade dos factos ocorridos, solicito a V. Ex.a a nomeação do instrutor do processo disciplinar em questão, com a maior brevidade possível.
Agradecendo desde já a melhor atenção, subscrevo-me cordialmente,
Com os melhores cumprimentos,
O Presidente da Comissão Executiva Instaladora (...) -(assinatura) (..)" - fls. 3/5 do PA apenso.
2- No processo disciplinar DRN-048/01-DIS o instrutor declarou que "(..) hoje dia 03 de Maio, dei início à instrução do processo disciplinar que foi mandado instaurar por despacho de 2001/04/09 do Exmo Senhor Presidente da Comissão Executiva Instaladora da Escola EB,2,3 de Montelongo-Fafe ao Prof. A... e para o qual fui nomeado instrutor por despacho de 24.04.2001 do Exmo. Senhor Delegado Regional do Norte da Inspecção Geral de Educação. (..)" - fls. 8 do PA apenso.
3- No processo disciplinar DRN-048/01-DIS o instrutor formulou a acusação que se transcreve:
DESPACHO
(NOTA DE CULPA)
Vista e ponderada a prova constante nestes autos, nos termos do n° 2 do art° 570 do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n° 24/84, de 16 de Janeiro, deduzo contra o arguido, A..., Professor do QND do 1 10 Grupo A da Escola EB2,3 de Montelongo -Fafe, o seguinte artigo de acusação:
ARTIGO ÚNICO
No dia 28 de Março de 2001 pelas 14 horas e 45 minutos, na Escola EB2,3 de Montelongo -Fafe, o arguido solicitou ao Presidente da Comissão Instaladora, ..., que se encontrava como assistente numa acção de formação que decorria na biblioteca, para o contactar, ao que o Presidente acedeu. Já fora da biblioteca, o arguido questionou-o para saber em que ponto estava a sua participação relacionada com as alunas que tinham chamado 'filho da puta". Como o Presidente lhe disse que ainda estavam a decorrer as averiguações, que o desgostou pela morosidade, em seu entender, começou a dialogar com o Presidente, em tom que se agudizava, que levou este, a informá-lo para se conter e para se resolver assunto no gabinete da gestão. Aí chegado, o arguido disse à Vice­-Presidente que os acompanhava "Tu não entras", ao que esta não acedeu. Já dentro do gabinete, o arguido falando com o tom de voz alterado e exaltado, dirigindo-se ao Presidente, dando um murro no tampo da secretária e empurrando esta contra o Presidente, disse: "Isto é uma merda. És um bandalho. É só política. Se não tivesse um filho pequeno para criar isto não ficava assim".
Com este procedimento que constitui infracção ao dever de correcção a que se refere a alínea f) do n° 40 do artigo 3º do citado Estatuto Disciplinar, ficou incurso no disposto dos nºs. 1 e alínea a) do n° 2 do artigo 26º do referido Estatuto Disciplinar que nos termos da alínea f) do n° 1 do artigo1 do mesmo Estatuto é punível com a pena de DEMISSÃO
Proceda-se nos termos do artigo 57º do Estatuto Disciplinar, notificando o arguido que lhe concedo de quinze (15) dias úteis a contar da data da notificação, para apresentar querendo, a sua defesa escrita, apresentar rol de testemunhas, juntar documentos e requerer quaisquer diligências que considere úteis para justificar a infracção que lhe é imputada, podendo durante o mesmo período, nas horas normais do expediente, examinar o processo na Escola Secundária de Fafe, onde lhe será facultado pelo Conselho Executivo.
Advirta-se o arguido que a falta de resposta dentro do prazo concedido equivale como efectiva audiência para todos os efeitos legais
Junte-se aos autos um duplicado da cópia entregue ao arguido.
Fafe, 13 de Junho de 2001. O Instrutor (assinatura)(..)" -fls. 30 do PA apenso.
4- No processo disciplinar DRN-048/0l-DIS o instrutor elaborou o relatório final, de que se transcreve a parte que segue:
"(.. )
RELATÓRIO a que se refere o Artigo 650 do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto- Lei Nº. 24/94, de 16 de Janeiro, do processo disciplinar Nº DRN-048/DI-DIS instaurado na Escola Eb,2,3 de Montelongo, Fafe ao Professor do QND, do 11º Grupo A..., relacionado com atitudes de falta de correcção com o Presidente da Comissão Executiva Instaladora,
1 CAPITULO
ANTECEDENTES
1.1. Por despacho de 09/04/01 do Presidente do Comissão Executiva Instaladora da Escola EB 2,3 de Montelongo, Fafe (fl.3) foi determinado que se procedesse à instauração de procedimento disciplinar ao Professor A... do QND do .110 Grupo da Escola EB2,3 de Montelongo, Fafe.
1.2. Fui por despacho do Exmo. Senhor Delegado Regional do Norte, da Inspecção-Geral da Educação de 24/04/01 nomeado instrutor deste processo.
CAPITULO II
2- A INSTRUÇÃO
2.1. Iniciada a instrução deste processo em 03/05/01, ouviu-se informalmente o Presidente da Comissão Executiva Instaladora, que declarou que a instauração deste processo disciplinar, ocorre na sequência de uma situação em que o arguido, estando de baixa por atestado médico, se deslocou à Escola em 28/03/01 e o abordou, acerca de, como estava a situação de um aluno que lhe tinha chamado “filho da puta" ao que lhe foi respondido que estava a seguir as averiguações. Não gostando do que ouviu, começou a falar exaltadamente sendo convidado a deslocar-se ao gabinete e aí, fez ameaças dando murros na secretária, empurrando-a contra o Presidente, dizendo, "isto é uma merda. És um bandalho. É só política. Se não tivesse um filho pequeno para criar! Isto não ficava assim".
(...)
CAPÍTULO IV
4- CONCLUSÕES
4.1. Terminada a instrução do processo disciprinar conclui-se que estão provados os factos que integram o artigo único de acusação (fl.37) que damos por integralmente reproduzidos. 4.2. Circunstâncias atenuantes:
4.2.1. Atendendo ao facto do arguido ter sido ferido na sua dignidade por um insulto de um aluno que lhe chamou “filho da puta" e a averiguação a cargo do Presidente ter sido morosa, no seu entender, contribuiu com que este adoecesse e por via disso, tivesse um comportamento incorrecto que em situação normal, não teria acontecido. Para além disso, ao longo de mais de 12 anos de docência não teve antecedentes disciplinares, que pressupõe estarem reunidas as condições de beneficiar da atenuação extraordinária a que se refere o Artº 30° do Estatuto Disciplinar.
CAPÍTULO V
5. PROPOSTA
5.1. Tudo visto e ponderado e tendo em atenção o disposto no art° 28° do Estatuto Disciplinar, propõe-se:
5.1.1. Que seja aplicada ao professor do QND do 11° Grupo, A... a pena fixada na alínea c) do n.º I do art° 11 ° do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84 de 16 de Janeiro "SUSPENSÃO" graduada em 121 dias, nos termos da alínea b) do n° 4 do art° 12° observando o n° 3 do art° 24°do aludido Estatuto por violação do dever de correcção prevista na alínea f) do nº 4 e nº 10 do art° 3° do citado Estatuto, com suspensão da pena pelo prazo de um ano, prevista nos nºs 1 e 2 do art° 33º do mesmo Estatuto.
À superior apreciação. Vila Nova de Famalicão, 14 de Setembro de 2001. O instrutor (assinatura) " ­fls.50 a 58 do PA apenso.
5- Por termo de remessa de 14.SET.2001 foram os autos presentes junto do Delegado Regional do Norte da Inspecção-Geral da Educação -fls. 59 do PA apenso.
6- Na DREN, sob a informação n° 424/2001 relativa ao processo n° 01/421/JC/AJ02/DREN, pelo Director Regional de Educação do Norte foi proferido em 19.DEZ.2001 o seguinte despacho: "Concordo. Aplico ao docente A... a pena de suspensão, graduada em 60 (sessenta) dias, com base na fundamentação da presente informação." -fls. 19 a 23 dos autos.
7- Da informação n° 424/2001 relativa ao processo n° 01/421/JC/AJ02/DREN que fundamenta o despacho disciplinar referido supra em 6., transcreve-se o teor que segue:
"(.. )
ASSUNTO: PROCESSO DISCIPLINAR INSTAURADO AO DOCENTE A....
Por despacho de 2001.04.09 do Sr. Presidente da Comissão Executiva Instaladora da Escola EB 2,3 de Montelongo, Fafe, foi instaurado processo disciplinar ao docente A... PQND do 11º grupo do referido estabelecimento.
Por despacho do Exmo. Delegado Regional do Norte da IGE foi nomeado instrutor ao referido processo.
Efectuadas as diligências instrutórias tidas por convenientes, veio este em 2001.06.13, deduzir nota de culpa onde, num único artigo, acusou:
(.. )
Posteriormente, veio o arguido apresentar contestação onde, rejeitando o alegado na nota de culpa, refere que a atitude assumida resultou de um estranhar da inércia do Presidente do estabelecimento, até porque o arguido ao longo dos anos sempre tentou incutir nos alunos um diálogo e um certo culto pela disciplina, pelo que não poderia admitir o comportamento dos alunos insubordinados. Refere o paradoxo que e a celeridade do presente processo face ao andamento da sua participação, relacionada com a referenciada atitude dos alunos
Na contestação veio também requerer a audição de três testemunhas.
Tendo procedido à inquirição das testemunhas arroladas pelo arguido, veio o Sr. Instrutor apresentar relatório onde, após historiar toda a tramitação do processo, e após apreciar a prova produzida, considerou provados todos os factos integrados na acusação
A final, considerando que se verificava a atenuação extraordinária do art° 300 do ED atendendo a que a sua conduta resultou do facto de ter sido ferido na sua dignidade pelo insulto de um aluno, vem propor a aplicação da pena de suspensão, graduada em 120 dias, suspensa por um ano, por violação do dever de correcção.
Cumpre analisar e propor.
Relativamente à nota de culpa, consideramos que para além dos factos de que foi acusado, ficou também provado, pelas várias declarações (vide declarações do Sr. Presidente do órgão, da própria, do CSAE ..., da Vice-presidente ...) que a Chefe de Pessoal foi empurrada pelo arguido quando tentava acalmá-lo, tendo inclusivamente ficado ferida num dedo, o que, aliás, alegadamente, motivou a sua deslocação ao hospital, embora tal não se encontre documentado.
Ora, o Sr. Instrutor não considerou tal factualidade na nota de culpa.
Assim, sendo certo que esta conduta é violadora do dever de correcção, não poderá, todavia, ser considerada para efeitos de aplicação de sanção.
No tocante à prova produzida, e pese embora a falta de acusação da matéria factual atrás referenciada, consideramos como provado os factos de que o arguido é acusado, por referência à prova testemunhal referida pelo Sr. Instrutor (de fls. 51 a 55 do processo).
Relativamente às testemunhas indicadas pelo arguido, importa referir que as mesmas não tinham qualquer conhecimento dos factos, opinando somente sobre as qualidades/perfil do arguido.
No que concerne às circunstancias atenuantes invocadas pelo Sr. Instrutor, afigura-se-nos não ser de atender ao facto do docente se ter exaltado por considerar que a averiguação levada a cabo estava a ser morosa.
Com efeito, não é de aceitar que um professor, vinculado aos deveres gerais e especiais inerentes ao seu estatuto profissional, ultrapassando os limites da correcção, pretenda impor o seu próprio ritmo a um processo em curso, o qual, como se sabe, está dependente de várias contingências como a audição das várias testemunhas bem como à própria disponibilidade do averiguante, que até poderá ser limitada, por razões que lhe não poderão ser imputadas.
Portanto, consideramos não ser de atenuar a culpa do arguido com base neste facto.
Relativamente ao facto do arguido deter um registo disciplinar limpo, nunca lhe tendo sido aplicada qualquer sanção disciplinar, consideramos que tal facto poderá ser considerado, no âmbito discricionário da Administração, como atenuante.
Assim, consideramos que, com a conduta adoptada, o arguido violou gravemente o dever geral de correcção, previsto na al. 1) do nº 4 e 10 do art° 3° do Estatuto Disciplinar.
Como bem enquadrou o Sr. Instrutor na nota de culpa, o comportamento seguido, dada a sua gravidade por injuriar e desrespeitar o seu superior hierárquico, é aplicável abstractamente a pena de demissão (designadamente ao abrigo da al. a) do nº 2 do artigo 26º do ED).
Todavia, considerando o seu cadastro disciplinar, consideramos que poderá ser aplicada pena de escalão inferior.
Face ao exposto, dada a gravidade da conduta infractora adoptada pelo arguido, devidamente comprovada no processo em apreço, e considerando que foi violado o dever de correcção propomos que seja aplicada ao arguido a pena de suspensão por 60 dias, ao abrigo do art° 24º, designadamente o seu nº 2 do Estatuto Disciplinar, com os efeitos previstos nos nºs 2 e 3 do art° 13º do mesmo Estatuto.
A competência para aplicação da pena de suspensão está acometida [sic] ao Director Regional de Educação do Norte, ao abrigo do n.º 2 do art° 116° do Estatuto da Carreira Docente.
Porto, 2001-12-12 (..)" -fls. 19/23 dos autos.
8- Notificado do despacho disciplinar em 14.01.02, em 20.01.02 interpôs recurso hierárquico, objecto de despacho de 2.04.02 de Sua Exa. o Secretário de Estado da Administração Educativa, do teor que segue: "Concordo. Indefiro o recurso nos termos e com a fundamentação propostos." -fls. 7/8, 9/12 e 13/18, dos autos.
9- Da Informação 55/IGE/2002 que fundamenta o despacho de indeferimento do recurso hierárquico, referido supra em 8, consta o teor que segue:
"(.. )
INFORMAÇÃO 55/ ICE/ 2002
Parecer n° l30/GAJ/2002
Proc. n° 10.07/120.2001
Assunto: RECURSO HIERÁRQUICO INTERPOSTO PELO PROFESSOR A..., DA EB 2,3 DE MONTELONGO (FAFE)
I-RELATÓRIO
1. O professor A..., inconformado com a pena de suspensão por 60 dias que lhe foi aplicada pelo Sr. Director Regional de Educação do Norte, pelo seu despacho de 19.12.2001, exarado na Informação nº 424/200l, da DREN, vem dele recorrer para S. E. o Secretário de Estado da Administração Educativa, no qual aduz, por súmula, não ter praticado a inti-acção acusada e pretender uma reapreciação do seu recurso por uma entidade imparcial e, para tal, que a entidade para onde recorre não faça baixar o processo ao mesmo jurista da DREN, que emitira o parecer constante da supra citada Informação.
2. O presente recurso está em tempo, não existem quaisquer vícios ou invalidades que obstem ao seu conhecimento, pelo que deverá ser o mesmo recebido e conhecido.
II-FUNDAMENTAÇÃO
3. O ora recorrente vem «alertar» a entidade para onde recorre, i.e. S.E. o Secretário de Estado da Administração Educativa, «para a injustiça de que o ora recorrente está a ser alvo e solicitar uma reapreciação do mesmo por uma suprema e imparcial vista (cfr.. art° 17° da petição de recurso), o que configura um recurso de mérito, que por ter a natureza de reexame (cfr. art° 75°,6 do Estatuto Disciplinar), implica que dele conheçamos nesta conformidade.
Assim, verifica-se que sobre o mesmo acto ora recorrido, já se pronunciou o Sr. Director Regional da Educação do Norte, na já referida Informação nº 424/2001, sobre a qual recaiu o acto recorrido e também a Informação nº 40/2002, pelo seu despacho de 21.02.2002, que apreciou o presente recurso, com os fundamentos com os quais não vemos matéria para discordar.
III-CONCLUSÃO/ PROPOSTA
4. Tudo visto e aduzido, proponho a adesão às Informações nºs. 424/2001 e 40/2002, ambas dimanadas da DREN e, com o seu fundamento, negar provimento ao presente recurso por totalmente improvado, mantendo o acto recorrido do Sr. Director Regional de Educação do Norte, de 19.12.2001, que aplicou ao professor A... a pena de suspensão graduada em 60 dias.
5. É competente para a decisão final, nos termos do artº 75°, 3 e 6 do Estatuto Disciplinar, S. E. o Secretário de Estado da Administração Educativa, no uso de delegação de poderes que lhe confere a lei, para onde o presente procedimento deve ser enviado. À consideração superior. Lisboa, 21.03.2002 (..)" -fls. 7/8 dos autos.
10. O ora Recorrente foi notificado do despacho de indeferimento do recurso hierárquico interposto por certidão do seguinte teor:
"(.. )
CERTIDÃO DE NOTIFICAÇÃO
- Aos trinta dias do mês de Abril de dois mil e dois, na Escola EB 2,3 de Montelongo -Fafe, o Chefe de Serviços de Administração Escolar, ..., notifica o professor A..., de que no processo n° 10.07/120.2001, em que foi arguido lhe foi aplicada a pena de suspensão graduada em 60 dias, prevista na alínea c) do n°. 1 do artigo 11° do Estatuto Disciplinar, por despacho de 02 de Abril corrente, do Senhor Secretário de Estado da Administração Educativa, no uso da competência que lhe é atribuída pela alínea c) do n° 1.1 do Despacho n° 16805/2001 (II Série), de 13.07.2001, de Sua Excelência o Ministro da Educação, publicado no Diário da República n° 185, li Série, de 10.08.2001, foi negado provimento ao recurso hierárquico, do despacho de 19.12.2001, do Director Regional de Educação do Norte, com os fundamentos constantes das Informações nos IGE-55/2002 e 40/2002, fazendo-se de seguida a entrega das fotocópias destes documentos ao notificado. O Notificado (assinatura) O Notificante (assinatura) "- fls. 24 dos autos.
11. A petição de recurso remetida ao Tribunal Central Administrativo por telecópia, mostra consignada no topo esquerdo do documento a data de 01/07/02 15:25, e o carimbo aposto pelos serviços de secretaria do Tribunal apresenta a data de 1.JUL.2002, sob o registo n° 9387. -fls. 2 dos autos.
12. À data do respectivo depoimento, 22.05.01, a testemunha ..., 43 anos, tinha a categoria de Encarregada do Pessoal Auxiliar de Acção Educativa, da Escola EB2,3 de Montelongo, donde se transcreve o que segue:
"(..) no dia vinte e oito de Março de dois mil e um, pelas quinze horas aproximadamente, estando eu a varrer as escadas que dão acesso ao piso superior, o Professor A... aproximou-se de mim e perguntou pelo Professor ... e respondi-lhe que se encontrava na biblioteca numa acção de formação. Eu disse-lhe que não era aconselhável interrompê-lo.
(.. )
Entretanto ouvi um estrondo que lhe parecia o arrastamento da secretária e instantaneamente entrei a correr no gabinete da Comissão Executiva e vi a secretária fora do sítio contra o Professor ... e com a Professora ..., com os braços abertos, a barrar a passagem do Professor A... que estava no lado oposto da secretária. (..) Lá dentro do gabinete também estavam o Sr. ... e o ... (.. )
Entretanto eu dirigi-me ao Professor A... e disse: Tenha calma, está a pôr a escola em alvoroço.(..) O Professor A... empurrou-me e eu fui contra a parede e para proteger a cabeça da parede feri-me no dedo polegar da mão direita (..), e como começou a inchar e sentia bastantes dores resolvi ir ao Hospital de Fafe que lhe radiografaram o dedo (..) apenas acusando o dedo pisado. Perante este diagnóstico receitou-lhe um analgésico e um anti-inflamatório (..)" ­fls. 20/21 e 51/52 do PA apenso.
13. A' data do respectivo depoimento, 22.05.01, a testemunha ..., 61 anos, tinha a categoria de Chefe de Serviços de Administração Escolar, da Escola EB2,3 de Montelongo, donde se transcreve o que segue:
"(..) no dia 28 de Março de 2001, por volta das quinze horas, encontrando-se no seu gabinete, ouviu alguém em voz alta discutir no Gabinete da Comissão Executiva Instaladora e ao mesmo tempo um arrastar de móveis.
Acto contínuo apareceu a Educadora de Infância (..) a solicitar que fosse lá dentro ao Gabinete da Comissão Executiva Instaladora, o que fiz de imediato. Quando entrei deparei com o Professor A..., que em altos berros se dirigia ao Presidente, dizendo "Sois uns incompetentes".
(.. )
Depois entrou o Assistente Administrativo ..., que também apelou à calma do Professor A...,
(.. )
De seguida entrou, em termos pouco adequados, a Encarregada de Pessoal Auxiliar que tentou trazê-lo para fora do gabinete, tendo levado um pequeno encosto do ombro do Professor que a desiquilibrou, embatendo contra o móvel ou parede.
(.. )
Toda esta situação se passou tão rápida que me deixou perplexo, não se lembrando de outras coisas que foram ditas. No entanto, já na parte final e quando nos preparávamos para sair o Professor A... disse: "Já agora ficam a saber que tudo isto foi motivado pelos alunos me terem chamado filho-da-puta e a Comissão Executiva não ter feito nada."
(.. )
passados alguns momentos a funcionária ... queixou-se que lhe doía um dedo da mão, ao que eu lhe aconselhei para ir ao Hospital. A partir daí nada mais me foi comunicado. (..)" -fls. 22 do PA apenso.
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III- O Direito
Da tempestividade do recurso contencioso
O ora recorrente havia excepcionado, na sua peça de resposta, a extemporaneidade da interposição do recurso contencioso.
Decretada, porém, a improcedência da excepção, de novo o recorrente a traz à liça para imputar ao acórdão em crise a violação dos arts. 279º, als. b) e c) do C.C., 28º, nº1, al.a) e nº2 e 29º, ambos da LPTA e 57º, § 4, do RSTA.
Sem razão, porém.
A notificação ocorreu, com efeito, em 30/04/2002 (ponto 1º da matéria de facto).
Ora, se o prazo de dois meses para o recurso, como o consigna o art. 28º, nºs 1, al. a) e 2, da LPTA, se conta nos termos do art. 279º, do C.C., isso significa que o dia da verificação do evento (notificação) não entra na contagem (art. 279º, al. b)). O que quer dizer que o prazo, iniciado no dia 1 de Maio, terminaria às 24 horas do dia 1 de Julho de 2002, precisamente aquele em que, por telecópia e ao abrigo do art. 150º do CPC, a petição inicial deu entrada no TCA (cfr. fls. 2 dos autos)
Improcede, deste jeito, a conclusão a) das alegações.
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Do mérito do recurso
O acórdão impugnado, sem conhecer os fundamentos do recurso contencioso, declarou oficiosamente a nulidade do despacho punitivo, sob influência, por seu turno, da nulidade que entreviu na instauração ao recorrente do procedimento disciplinar.
O apoio para a conclusão alcançada foi o de que, tendo o Presidente da Comissão Executiva Instaladora da Escola E B 2,3 de Montelongo, em Fafe, sido o titular ofendido pela actuação do agente ofensor, não podia ser ele mesmo a determinar a instauração do procedimento disciplinar.
Em seu entender, a incompatibilidade da coexistência do interesse pessoal do Presidente, na qualidade de vítima, e o interesse público da acção disciplinar, gerou um verdadeiro impedimento, corolário dos princípios da justiça e da imparcialidade.
Parafraseando-o, não poderia ter instaurado o procedimento disciplinar por nele ter um «interesse pessoal, próprio e directo», face ao exarado no art. 44º, al. a), do CPA, com o que teria violado «…o conteúdo essencial da posição jurídica do arguido, por omissão de respeito dos princípios da justiça e imparcialidade no exercício da acção e competência do direito sancionatório, isto é,(…) o núcleo duro dos direitos de defesa do arguido em sede disciplinar», o que inquinaria de nulidade o respectivo despacho, nos termos do art. 133º, nº 1, al. a), do CPA.
A temática assim exposta remete-nos para a questão seguinte: o sujeito ofendido pode, simultaneamente, exercer a competência para a instauração da acção disciplinar?
Concordamos que o pendor garantístico dos direitos e liberdades individuais no domínio sancionatório desaconselha que o ofendido possa ser o instrutor e o julgador da ofensa (sem embargo, não se pode deixar de referir que este princípio sofre uma ou outra derrogação, como é o caso, por exemplo, do julgamento em processo sumário pelo juiz ofendido em plena audiência: cfr. arts. 39º e 381º e sgs. do CPP).
No que ao caso concerne, a competência para a instauração disciplinar é uma; para a aplicação da pena, é outra. A primeira encontra a sua base legal geral no art. 39º do Estatuto Disciplinar (vulgo, E.D.: DL nº 24/84, de 16/01) e específica no art. 115º do Estatuto da Carreira Docente (vulgo, E.C.D. :DL nº 139-A/90, de 28/04, com alterações posteriores); a segunda, nos arts. 66º do E.D. e 116º do E.C.D. De permeio, ainda, a competência para a instrução (arts. 55º e sgs. do E.D.). Ora, se os parâmetros de competência nas fases citadas estão bem delimitados, o que é preciso ver é se haverá, em cada caso, colisão no exercício dos respectivos poderes funcionais. E isso é bem diferente da causa intrínseca por que o procedimento é mandado instaurar e do jogo de interesses particulares em presença, dos quais, aliás, se deve arredar o desempenho dos poderes disciplinares. Ou seja, não deve o exercício do poder disciplinar, que serve um interesse público, estar influenciado pela presença próxima ou imediata de interesses privados, sob pena de se perverter o espírito de qualquer ordenamento sancionatório.
É por tal motivo que o art. 44º, nº1, al. a), do CPA determina que nenhum titular de órgão ou agente «…pode intervir em procedimento administrativo ou em acto ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública quando nele tenha interesse, por si, como representante ou como gestor de negócios de outra pessoa».
E é naquele normativo, se bem pensamos, especialmente no segmento destacado a negro, que reside a solução do problema.
O que se discute, basicamente, é se será apenas na “fase decisória” do procedimento que se trava a batalha pela proibição de intervenção, ou se essa proibição se estenderá à anterior “fase de instrução”. Nesta polémica, autorizada doutrina inclina-se para a extensão, com o forte argumento de que a instrução, pela recolha de dados essenciais para a decisão de que se reveste, exige «…uma ponderação objectiva, isenta e imparcial dos factos e interesses envolvidos» (M. Esteves de Oliveira, Pedro C. Gonçalves e J. Pacheco Amorim, in Código de Procedimento Administrativo, 2ª ed., pag. 246).
Mas, a abertura do procedimento, essa, não se inclui no padrão proibitivo, na medida em que a ela se não segue, necessariamente, uma instrução subjectiva e parcial, nem uma decisão final sancionatória. A iniciativa da instauração do procedimento não prossegue a sanção, mas, sim, o apuramento do comportamento ou do evento (i)lícito e das circunstâncias em que terá ocorrido. A sanção representa o termo do procedimento, somente, quando os elementos de facto apurados o justificarem (art. 66º do E.D.), uma vez que o procedimento também pode findar por amnistia, prescrição ou, para o que aqui interesse relevar, por arquivamento por falta de provas (art. 57º do E.D.).
Já por isso se concede se diga que «a competência para aplicar sanções ou penas aos infractores é mais importante que a competência para instaurar procedimento disciplinar» e que a competência punitiva «é mais restrita que a da instauração» (Manuel Leal Henriques, in Procedimento Disciplinar, 3ª ed., pag. 123).
Por isso, o acto que determina a instauração do procedimento não cabe no âmbito do citado art. 44º, nº1, al. a), do CPA.
O próprio art. 39º do E.D. não estabelece qualquer constrangimento no âmbito pessoal da competência para a instauração do procedimento e nenhuma outra disposição legal se vislumbra que crie um tal tipo de impedimento como aquele com que o acórdão recorrido se julgou deparar.
Se na competência dos superiores se inclui a de contra os inferiores hierárquicos mandar instaurar procedimentos disciplinares (art. 39º), isso será sinónimo de uma dimensão pessoal ilimitada e que, portanto, se não compadece com uma restrição em função da qualidade de ofendido.
Convém, aliás, atentar que não existe para a iniciativa oficiosa da instauração do procedimento disciplinar disposição idêntica à que rege a disciplina da direcção da instrução. Na verdade, ao contrário do que para o 1º caso sucede, se o instrutor foi «directa ou indirectamente atingido pela infracção» isso será motivo para suspeição, nos termos do art. 52º do E.D., a deduzir pelo arguido ou pelo participante. Cremos que a diferença assinalada entre as duas situações é notoriamente reveladora da consciência e do espírito de imparcialidade que se quis depositar no diploma, que o legislador garantiu num caso e que noutro não viu necessidade alguma de estabelecer.
Essa é a prova de que a imparcialidade não é fatalmente omnipresente. Dito de outra forma, embora a imparcialidade seja garantia que atravesse todo o procedimento, e não se reserve apenas para a fase da decisão (neste sentido, v.g., Pedro Duarte, in Procedimentalização, participação e fundamentação: para uma concretização do princípio da imparcialidade administrativa como parâmetro decisório, pag.303), a intervenção e o exercício dos poderes funcionais ao longo dele só adquire esse desvalor antijurídico quando determinem e influenciem a decisão administrativa num certo sentido. Isto é, a imparcialidade só releva na invalidade do acto quando é activa, quando se demonstre, sine qua non, que uma certa actuação teve influência decisiva no acto final. Por isso mesmo, nalguns ordenamentos, como sucede no direito espanhol, a mera suspeita de parcialidade não gera automaticamente a invalidade do acto (sobre o assunto, com interesse, Garcia de Enterria/Tomaz- Ramon Fernadez, in Curso de Derecho Administrativo, II, pag. 449; Ramon Parada, in Derecho Administrativo, I, pags. 601/602).
Ora, na situação em apreço, a abertura do procedimento decorreu de um imperativo de interesse público na avaliação do comportamento do arguido, independentemente do interesse particular que o titular do órgão que o mandou instaurar nele tivesse. Sendo essa a fase da iniciativa e, portanto, simplesmente inaugural, não se colocam aí problemas de ponderação de interesses como os que se apresentam na fase terminal e decisória. Aberto o procedimento por quem detinha competência para o fazer, ele avançou no seu curso normal por entre circunstâncias de que o recorrido se alheou e às quais passou a ser completamente estranho. A sua influência, a partir desse momento, foi nula, quer na captação dos elementos instrutórios, quer no conteúdo da decisão.
Em boa verdade, tendo as competências separadas, em razão das três fases distintas atrás aludidas, sido exercidas com total independência por diferentes órgãos - sem que, no caso em apreço, o presidente da comissão instaladora (ofendido) tivesse tido qualquer outra intervenção decisiva para além da da iniciativa oficiosa - não se vê de que modo se possa asseverar que o princípio da imparcialidade tenha ficado postergado (cfr. art. 6º do CPA).
E se assim concluímos, da mesma maneira achamos que a reunião na mesma pessoa da qualidade de ofendido e de autor do acto que manda instaurar o procedimento disciplinar em nada ofende o conteúdo essencial da posição jurídica do arguido, nem, por si só, afecta minimamente os direitos deste. Atentado a esses direitos pode acontecer, por exemplo, por mau uso dos poderes instrutórios, por violação de regras fundamentais na condução do procedimento, por ofensa grave e dramática a princípios constitucionais, como o da igualdade, etc. Mas essa é uma contingência geral e própria de toda a conduta humana, que sempre se almeja evitar, mas que não se agudiza apenas pelo facto de o ofendido ser, por acaso fortuito, ofendido directo da conduta do arguido.
Na verdade, em momento nenhum dos autos e do processo instrutor é visível algum tipo de cerceio ao uso pleno dos direitos fundamentais do arguido, tão pouco à utilização do direito de audiência e à realização de diligências essenciais à descoberta da verdade (cuja violação determinaria nulidade insuprível: art. 42º do E.D. e 269º, nº3, da CRP), muito menos ao direito a um procedimento justo, isento e imparcial.
Em suma, não pode vingar a tese exarada na decisão recorrida. Por isso, deverão, pois, os autos voltar à instância anterior para conhecimento dos vícios imputados ao acto.
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IV- Decisão
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido e, em consequência, ordenar a remessa dos autos ao TCA para os sobreditos efeitos.
Custas pelo recorrido.
Taxa de justiça: € 200.
Procuradoria: € 100.
Lisboa, 24 de Novembro de 2004. – Cândido de Pinho (relator) – Azevedo Moreira – Pais Borges.