Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0998/12.6BELRS
Data do Acordão:05/03/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:IRC
DIVIDENDOS
DUPLA TRIBUTAÇÃO
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
DÉFICE INSTRUTÓRIO
Sumário:I - Dividendos constituem os rendimentos provenientes de acções ou outros direitos de participação em lucros, tudo reportado a sociedades de capitais, por contraposição às sociedades de pessoas.
II - O fenómeno da dupla tributação reconduz-se a casos de concurso de normas. Especificamente, a dupla tributação económica surge quando determinado lucro de uma sociedade, que já tinha sido tributado em imposto sobre o rendimento na sua esfera, sofre nova tributação pela distribuição aos sócios e já no âmbito pessoal destes (seja uma empresa ou uma pessoa singular).
III - Para eliminar as situações de dupla tributação económica existem diversos mecanismos, legais ou convencionais, internos ou internacionais, com esse objectivo. Um deles estava consagrado no artº.46, do C.I.R.C. (versão em vigor em 2002), o método da isenção.
IV - Recaindo embora sobre as partes o ónus da prova dos factos constitutivos, modificativos e/ou extintivos de direitos, a actividade instrutória pertinente para apurar a veracidade de tais factos compete também ao Tribunal, o qual, atento o disposto nos artºs.13, do C.P.P.Tributário, e 99, da L.G.Tributária, deve realizar ou ordenar todas as diligências que considerar úteis ao apuramento da verdade, assim se afirmando, sem margem para dúvidas, o princípio da investigação do Tribunal Tributário no domínio do processo judicial tributário.
V - Nos presentes autos, verifica-se uma situação de défice instrutório que demanda o exercício de poderes cassatórios por parte deste Tribunal nos termos dos artºs.682, nº.3, e 683, nº.1, ambos do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6.
(sumário da exclusiva responsabilidade do relator)
Nº Convencional:JSTA000P30939
Nº do Documento:SA2202305030998/12
Data de Entrada:11/30/2022
Recorrente:A... – COMPANHIA DE SEGUROS, SA
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:

ACÓRDÃO
X
RELATÓRIO
X
"A... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.", com os demais sinais dos autos, deduziu recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto sentença proferida pelo Mº. Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa, constante a fls.681 a 692 do processo físico, a qual visava, mediatamente, liquidação adicional de I.R.C. relativa ao ano fiscal de 2002, tendo o seguinte dispositivo:
1-Julgar a inutilidade superveniente da lide na parte respeitante ao pedido de anulação da liquidação resultante de correções levadas a cabo no montante de € 63.615,86, por aceitação pela A.T. dos certificados apresentados pela Impugnante sob os números de documentos ... a ...5, ...7 e ...0, juntos a estes autos, devendo ser reduzida a liquidação no valor correspondente;
2-Improcedente a impugnação no demais.
X
O recorrente termina as alegações do recurso (cfr.fls.694 a 704 do processo físico) formulando as seguintes Conclusões:
A-A Douta Sentença do Tribunal a quo, ora sindicada, padece de erro de julgamento, por erro na aplicação do direito, violando o disposto no n.º 1 e n.º 2 do Artigo 46.º do Código do IRC, por não ter considerado a dedução à matéria coletável relativa à eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos prevista no mencionado Artigo 46.º do CIRC, os lucros distribuídos por entidades cuja sede ou direção efetiva não se encontra em território português, ainda que as mesmas sejam residentes na União Europeia, inicialmente no valor de € 305.452,65, sucessivamente anulado parcialmente conforme documentado nos processo e na factualidade da Sentença sindicada.
B-O disposto no n.º 1 do Artigo 46.º do Código do IRC permite a dedução ao resultado líquido das sociedades com sede ou direção efetiva em território português, dos rendimentos incluídos na base tributável, correspondentes a lucros distribuídos por sociedades participadas, com sede ou direção efetiva no mesmo território, sendo no caso, o n.º 2, do mesmo preceito que é o aplicável aos rendimentos de participações sociais em que tivessem sido aplicadas as reservas técnicas das sociedades de seguros, como é o caso em análise.
C-Ao discriminar o tratamento conferido aos dividendos exclusivamente em função da nacionalidade da Entidade pagadora, há um efetivo obstáculo à liberdade de circulação de capitais, em clara violação do direito comunitário.
X
Não foram produzidas contra-alegações no âmbito da instância de recurso.
X
O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no qual termina pugnando pelo não provimento do recurso (cfr.fls.711 e 712 do processo físico).
X
Com dispensa de vistos legais (cfr.artº.657, nº.4, do C.P.Civil, "ex vi" do artº.281, do C.P.P.Tributário), vêm os autos à conferência para deliberação.
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FUNDAMENTAÇÃO
X
DE FACTO
X
A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.682 a 687-verso do processo físico):
1-Pela Ordem de Serviço ...32, foi instaurado contra a Impugnante um procedimento administrativo de inspeção tributária atinente à comprovação e verificação da situação tributária da ora Impugnante, de âmbito parcial e interno, visando o exercício de 2002 (cfr. RIT junto aos autos).
2-Concluíram os serviços por uma correção, em sede de IRC, ao ano de 2002, de € 305.452,65, referente à dedução de rendimentos de dividendos distribuídos por entidades residentes noutros Estados membros da União Europeia, sob a égide do artigo 46.º do CIRC (cfr. RIT junto aos autos).
3-Tal correção originou que o prejuízo fiscal declarado de € 11.952,23, fosse alterado para um lucro tributável de € 293.527,42 (cfr. RIT junto aos autos).
4-Das correções levadas a cabo, resultou a liquidação adicional de IRC n.º ...53, de 23 de janeiro de 2006 (cfr. RIT junto aos autos).
5-Em sequência, a ora Impugnante apresentou reclamação graciosa, na qual contestou a correção em que foi efetuado um acréscimo à matéria tributável no montante de € 305.452,65 (cfr. p.a. de reclamação graciosa junto aos autos).
6-Por despacho de 30/12/2010, foi deferida parcialmente a reclamação, tendo sido decidido, no que respeita à dedução de rendimentos de dividendos por entidades residentes noutros Estados membros da União Europeia, aceitar € 152.726,33, correspondente a 50% do valor considerado pela reclamante, € 305.452,65, nos termos do n.º 7 do artigo 46.º do CIRC (cfr. p.a. de reclamação graciosa junto aos autos).
7-Em 02/02/2011, a Impugnante apresentou recurso hierárquico, tendo sido indeferido por despacho de 07/12/2011 (cfr. p.a. de recurso hierárquico junto aos autos).
8-Em 02/04/2012 foi apresentada a petição da presente Impugnação.
9-Em 17/08/2012, os Serviços da AT elaboraram a informação n.º 26-AT1/2012 de 17/08/2012, que mereceu despacho de concordância da Chefe de Divisão, datado de 20/08/2012 e no qual se concluiu, entre o mais, o seguinte:
(…)
Da análise das declarações agora juntas verifica-se … que alguns documentos apresentados não declaram que as entidades em causa contêm todos os requisitos previstos no artigo 2.º da Diretiva n.º 90/435/CEE, de 23 de julho.
(…)
Desta forma, não tendo agora a impugnante indicado os valores dos dividendos que cada uma das entidades em causa lhe distribuiu, como lhe competia (tanto mais que nem sequer apresenta a totalidade dos certificados (…) não forneceu os elementos que permitiriam calcular o valor dos dividendos deduzidos que reúnem os requisitos legais para serem aceites ao abrigo do artigo 46.º do CIRC.
(…)
Nestes termos e de acordo com o acima exposto, apesar de algumas declarações confirmadas e autenticadas pelas autoridades fiscais competentes do Estado membro da União Europeia fazerem prova do cumprimento dos requisitos legais, em virtude de o sujeito passivo não ter fornecido todos os elementos necessários para se proceder ao cálculo da dedução aceite, deve ser mantido o acréscimo à matéria tributável no montante de € 152.726,33 (de acordo com o decidido no procedimento de reclamação graciosa acima identificado), referente à dedução de rendimentos de dividendos distribuídos por entidades residentes noutros Estados membros da União Europeia, artigo 46.º (atual artigo 51.º) do CIRC.
- cfr. doc. de fls. 95 a 104 dos p.a., cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
10-Por requerimento de 06/10/2015, a Impugnante procedeu à junção aos autos de documentos em substituição de anteriores que havia juntado e ainda de novos documentos, nos seguintes termos:

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11-No requerimento a que se refere o n.º anterior, pediu: “vem respeitosamente requerer ao douto Tribunal os digne aceitar … pelo que a presente correção que presentemente se firma em € 152.726,33, deverá ser anulada na parte correspetiva aos lucros distribuídos pelas Entidades identificadas nos quadros 1 e 2 supra, no valor global de € 63.373,22, com base nos elementos documentais oferecidos …” Cfr. doc. de fls. 254 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
12-Pediu, ainda, relativamente às Entidades Banco 1... B..., C..., D... SA, a consideração da suficiência dos documentos já juntos, porquanto as Autoridades Tributárias congéneres informaram não emitir quaisquer outros. - Cfr. doc. de fls. 254 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
13-Por requerimento de 22/01/2016, foi junto pela AT aos presentes autos, a Informação n.º ...16 da UGC, da DSRI, emitindo pronúncia sobre “o mérito dos documentos fornecidos pela Impugnante” no qual se diz, entre o mais, o seguinte:
(…) Na medida em que essa prova, outrora insuficiente ou ausente, foi agora feita, deve ser reformada, nos termos do art. 79.º da Lei Geral Tributária, a correção técnica então promovida pelos Serviços de Inspeção Tributária e corrigida parcialmente, a posteriori (…) Em virtude do que foi descrito, somos então de atender ao pedido agora formulado pela Impugnante e, em consequência, aceitar a dedução nos termos do n.º 7 do artigo 46.º do CIRC, na redação vigente à data, do valor correspondente a 50% de rendimentos de dividendos distribuídos por entidade residentes noutros Estados membros da União Europeia na quantia de € 63.615,86, correspondentes a 50% de 126.746,44 e de € 485,28).
- Cfr. doc. de fls. 629 e ss dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
14-Nos termos da informação que antecede, a AT aceitou os certificados, considerando-os válidos, das seguintes entidades:

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15-Relativamente aos certificados emitidos relativos às entidades Banco 1... D..., S.A., B... e C..., a AT considerou válidos os dois primeiros, referindo que os dois últimos (B... e C...), apenas certificam a residência, nos seguintes termos:

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16-Por despacho de concordância de 05/01/2016, aposto na informação n.º ...16 da UGC, da DSRI, aceitou-se a dedução nos termos do n.º 7 do artigo 46.º do CIRC, na redação vigente à data, do valor correspondente a 50% de rendimentos de dividendos distribuídos por entidade residentes noutros Estados membros da União Europeia na quantia de € 63.615,86, correspondentes a 50% de 126.746,44 e de € 485,28.
17-Em 26/08/2016, a Impugnante dirigiu requerimento a estes autos informando: (…) nada ter a opor ao deferimento parcial do pedido, conforme contido nos termos da Informação n.º ...16 da Unidade dos Grandes Contribuintes.
18-Por requerimento de 26/05/2017, foi junto pela AT aos presentes autos, a Informação n.º 844, de 19/05/2017, da DSRI, solicitada pela AT a título de esclarecimentos quanto aos documentos juntos aos autos, no qual se diz, entre o mais, o seguinte:
(…)

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19-Do certificado relativo à sociedade B... afirma-se que a mesma tem residência fiscal na República Federal da Alemanha, sendo aplicável a convenção para evitar a dupla tributação celebrada entre a Alemanha e Portugal. – cfr. doc. ...8 junto à p.i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
20-Do certificado relativo à sociedade C... afirma-se que a mesma tem residência fiscal na República Federal da Alemanha, sendo aplicável a convenção para evitar a dupla tributação celebrada entre a Alemanha e Portugal. – cfr. doc. ...8 junto à p.i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
X
A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte: "…Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa…".
X
Por sua vez, a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: "…A decisão da matéria de facto efetuou-se com base no exame das informações e dos documentos, não impugnados, que dos autos e do processo administrativo constam, tudo conforme referido a propósito de cada um dos pontos do probatório…".
X
ENQUADRAMENTO JURÍDICO
X
Em sede de aplicação do direito, a sentença recorrida conclui com o seguinte dispositivo:
1-Julgar a inutilidade superveniente da lide na parte respeitante ao pedido de anulação da liquidação resultante de correções levadas a cabo no montante de € 63.615,86, por aceitação pela A.T. dos certificados apresentados pela Impugnante sob os números de documentos ... a ...5, ...7 e ...0, juntos a estes autos, devendo ser reduzida a liquidação no valor correspondente;
2-Improcedente a impugnação no demais.
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Relembre-se que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal "ad quem", ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr.artº.639, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6, "ex vi" do artº.281, do C.P.P.Tributário).
O recorrente dissente do julgado alegando, em síntese, que a sentença do Tribunal "a quo" padece de erro na aplicação do direito, por violação do disposto no artº.46, nºs.1 e 2, do C.I.R.C., por não ter considerado a dedução à matéria colectável relativa à eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos por entidades cuja sede ou direcção efectiva não se encontra em território português, embora sejam residentes na União Europeia, tendo por base rendimentos de participações sociais em que tivessem sido aplicadas as reservas técnicas das sociedades de seguros. Que ao discriminar o tratamento conferido aos dividendos, exclusivamente em função da nacionalidade da entidade pagadora, se verifica um efectivo obstáculo à liberdade de circulação de capitais, em clara violação do direito comunitário (cfr. conclusões A) a C) do recurso). Com base em tal alegação pretendendo concretizar erros de julgamento de direito da decisão recorrida.
Examinemos se a decisão objecto do presente recurso comporta tal vício.
Em primeiro lugar deve este Tribunal relevar o trânsito em julgado da sentença recorrida no segmento em que julgou extinta a instância, devido a inutilidade superveniente da lide e em virtude da revogação parcial do acto tributário (cfr.nºs.16 a 18 do probatório supra; artº.112, do C.P.P.T.; artº.277, al.e), do C.P.Civil), tudo levando em consideração a delimitação objectiva do recurso constante das respectivas conclusões (cfr.artº.635, nº.5, do C.P.Civil).
Avancemos.
A correcção da matéria tributável de I.R.C. objecto do processo encerra uma situação em que foram distribuídos lucros (dividendos importados) à sociedade impugnante /recorrente por suas participadas residentes em outros Estados Membros (EM) da União Europeia (UE), tendo a mesma deduzido a totalidade dos dividendos em sede de I.R.C., situação que foi objecto de correção pela A. Fiscal, com base no facto de não estarem reunidos os requisitos previstos no artº.46, do C.I.R.C. (redacção vigente em 2002) e artº.2, da Directiva 90/435/CEE, de 23/07/1990, sendo as sociedades emitentes dos dividendos em causa residentes em outros EM da UE, mais especificamente e no que diz respeito ao objecto da apelação, as empresas B... e C... (cfr.nºs.2 a 4, 15 e 18 a 20 do probatório supra).
Recorde-se, antes de mais, que o direito comunitário, originário ou derivado, vigora directamente na ordem jurídica interna portuguesa e a aplicação do mesmo está balizada pelos princípios do primado, da aplicabilidade directa e do efeito directo (cfr.artº.8, nº.4, da C.R.Portuguesa; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 3/06/2020, rec.688/11.7BECBR; João Mota de Campos e João Luiz Mota de Campos, Manual de Direito Comunitário, 5ª. Edição, Coimbra Editora, 2007, pág.405 e seg.; Ana Maria Guerra Martins, Manual de Direito da União Europeia, 2ª. Edição, Almedina, 2018, pág.540 e seg.; J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4ª. Edição, 1º. Volume, Coimbra Editora, 2007, pág.264 e seg.).
Identicamente se deve ter em consideração o conceito de dividendos como os rendimentos provenientes de acções ou outros direitos de participação em lucros, tudo reportado a sociedades de capitais, por contraposição às sociedades de pessoas (cfr.Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional, 2ª. Edição actualizada, Almedina, Março de 2007, pág.646 e seg.).
Chama-se à colação a Directiva 90/435/CEE, de 23/07/1990, transposta para a ordem jurídica interna portuguesa pelo dec.lei 123/92, de 2/7 (cfr.artº.46, do C.I.R.C., na redacção em vigor em 2002), a qual veio instituir regras comuns em relação aos pagamentos de dividendos e outras distribuições de lucros, que se pretendem neutros do ponto de vista da concorrência, de modo a contribuir para a criação do mercado único europeu, tendo como finalidade eliminar a dupla tributação económica dos dividendos distribuídos entre "sociedades-mãe" e "sociedades-afiliadas" residentes em dois Estados-Membros da União Europeia distintos (cfr.Alberto Xavier, ob.cit., pág.497 e seg.; João Sérgio Ribeiro, Direito Fiscal da União Europeia, Tributação Direta, Almedina, 2018, pág.145 e seg.).
"In casu", cumpre examinar o artº.46, do C.I.R.C., na redacção em vigor em 2002 (actual artº.51 e seg.), nos segmentos que interessam ao presente processo:
Artigo 46º
(Eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos)

1-Para efeitos de determinação do lucro tributável das sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, cooperativas e empresas públicas, com sede ou direcção efectiva em território português, são deduzidos os rendimentos, incluídos na base tributável, correspondentes a lucros distribuídos por entidades com sede ou direcção efectiva no mesmo território, sujeitas e não isentas de IRC ou sujeitas ao imposto referido no artigo 7.º, nas quais o sujeito passivo detenha directamente uma participação no capital não inferior a 10% e desde que esta participação tenha permanecido na sua titularidade, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da colocação à disposição dos lucros ou, se detida há menos tempo, desde que a participação seja mantida durante o tempo necessário para completar aquele período.
2-O disposto no número anterior é aplicável, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade, aos rendimentos de participações sociais em que tenham sido aplicadas as reservas técnicas das sociedades de seguros e das mútuas de seguros e, bem assim, aos rendimentos das seguintes sociedades:
a) Sociedades de capital de risco;
b) Sociedades de desenvolvimento regional;
c) Sociedades de fomento empresarial;
d) Sociedades de investimento;
e) Sociedades financeiras de corretagem;
(...)
5-O disposto no nº1 é também aplicável quando uma entidade residente em território português detenha uma participação, nos termos e condições aí referidos, em entidade residente noutro Estado membro das Comunidades Europeias, desde que ambas essas entidades preencham os requisitos estabelecidos no artigo 2º da Directiva nº 90/435/CEE, de 23 de Julho;
(...)
7-No caso de entidades com sede ou direcção efectiva em território português que não preencham os requisitos do n.º 1 e, bem assim, nos rendimentos que o associado aufira da associação à quota, a dedução é apenas de 50% dos rendimentos incluídos na base tributável correspondentes a lucros sempre que distribuídos por entidade com sede ou direcção efectiva no mesmo território, sujeita e não isenta de IRC.
8-Se a detenção da participação mínima referida no n.º 1 deixar de se verificar antes de completado o período de um ano aí mencionado, deve corrigir-se a dedução em conformidade com o disposto no número anterior, ou anular-se a mesma, sem prejuízo da consideração do crédito imposto por dupla tributação internacional a que houver lugar, de acordo com o disposto no artigo 85º, respectivamente.

É hoje pacífico que as leis fiscais se interpretam como quaisquer outras, havendo que determinar o seu verdadeiro sentido de acordo com as técnicas e elementos interpretativos geralmente aceites pela doutrina (cfr.artº.11, da L.G.Tributária; artº.9, do C.Civil).
O fenómeno da dupla tributação reconduz-se a casos de concurso de normas. Especificamente, a dupla tributação económica surge quando determinado lucro de uma sociedade, que já tinha sido tributado em imposto sobre o rendimento na sua esfera, sofre nova tributação pela distribuição aos sócios e já no âmbito pessoal destes (seja uma empresa ou uma pessoa singular).
Para eliminar as situações de dupla tributação económica existem diversos mecanismos, legais ou convencionais, internos ou internacionais, com esse objectivo. Um deles estava consagrado no exposto artº.46, do C.I.R.C., o método da isenção (cfr.J. L. Saldanha Sanches e João Taborda da Gama, Provisões no âmbito de seguros unit-linked e dupla tributação económica, Revista Fiscalidade, nº.33, Janeiro/Março 2008, pág.53 e seg.; Gustavo Lopes Courinha, Manual do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, Almedina, 2019, pág.119 e seg.).
Concretamente, o artº.46, nº.2, do C.I.R.C., determina que o disposto no nº.1, do mesmo preceito, independentemente da percentagem de participação e do prazo da detenção da participação, se aplica sempre aos rendimentos de participações sociais em que tenham sido aplicadas as reservas técnicas das sociedades de seguros e das mútuas de seguros, assim com aos rendimentos das sociedades tipificadas nas alíneas a) a e), da mesma norma.
"In casu", apesar da sociedade recorrente, nas conclusões da apelação, fazer menção ao citado artº.46, nº.2, do C.I.R.C., na redacção em vigor em 2002, normativo que, supostamente, foi aplicado ao caso dos autos, visando os rendimentos de participações sociais em que tivessem sido aplicadas as reservas técnicas das sociedades de seguros, do probatório supra, estruturado pelo Tribunal "a quo", nada se retira nesse sentido, tal como, no que diz respeito à identificação da sociedade impugnante, e ora recorrente, e do seu objecto social.
Do que se deixou exposto impõe-se ampliar a matéria de facto em ordem a dar solução à questão colocada à apreciação do Tribunal.
Releve-se que a falta de apuramento de tais factos resulta da omissão de diligências que se impunha realizar por parte do Tribunal "a quo", pelo que a sentença sindicada padece de défice instrutório, sendo que o S.T.A. é um Tribunal de revista (cfr.artº.12, nº.5, do E.T.A.F.), com exclusiva competência em matéria de direito, em regra (cfr.artº.26, al.b), do E.T.A.F.).
Ainda, mencione-se que, recaindo embora sobre as partes o ónus da prova dos factos constitutivos, modificativos e/ou extintivos de direitos, a actividade instrutória pertinente para apurar a veracidade de tais factos compete também ao Tribunal, o qual, atento o disposto nos artºs.13, do C.P.P.Tributário, e 99, da L.G.Tributária, deve realizar ou ordenar todas as diligências que considerar úteis ao apuramento da verdade, assim se afirmando, sem margem para dúvidas, o princípio da investigação do Tribunal Tributário no domínio do processo judicial tributário (cfr.ac.S.T.A-2ª.Secção, 4/12/2019, rec. 1555/08.5BEBRG; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 20/04/2020, rec.2145/12.5BEPRT; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 10/03/2021, rec.570/15.9BEMDL; Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária anotada e comentada, 4ª. Edição, Editora Encontro da Escrita, 2012, pág.859; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, I volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.173 e seg.).
Arrematando, verifica-se uma situação de défice instrutório que demanda o exercício de poderes cassatórios por parte deste Tribunal nos termos dos artºs.682, nº.3, e 683, nº.1, ambos do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6, "ex vi" do artº.281, do C.P.P.Tributário (cfr.ac.S.T.A-2ª.Secção, 21/11/2019, rec.670/15.5BEAVR; ac.S.T.A-2ª.Secção, 6/05/2020, rec.7/18.1BEPDL; António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Novo Regime, 4ª. Edição, 2017, Almedina, pág.430 e seg.), devendo ordenar-se a baixa dos autos, com vista a que seja produzida a ampliação da matéria de facto pelo Tribunal de 1ª. Instância de acordo com os trâmites identificados supra, ao que se procederá na parte dispositiva deste acórdão.
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DISPOSITIVO
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Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO EM CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO, ANULAR A SENTENÇA RECORRIDA, NA PARCELA OBJECTO DA PRESENTE APELAÇÃO, e ordenar que os autos regressem à 1.ª Instância (Tribunal Tributário de Lisboa), a fim de aí, após fixação da pertinente matéria de facto, se proferir nova sentença que leve em consideração a factualidade entretanto apurada.
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Condena-se a entidade recorrida em custas, mais se dispensando do pagamento da taxa de justiça, nesta instância de recurso, dado não ter produzido contra-alegações.
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Registe.
Notifique.
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Lisboa, 3 de Maio de 2023. - Joaquim Manuel Charneca Condesso (relator) - Gustavo André Simões Lopes Courinha - Anabela Ferreira Alves e Russo.