Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0672/10
Data do Acordão:12/16/2010
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
ASSOCIAÇÃO DOS TÉCNICOS OFICIAIS DE CONTAS
INSCRIÇÃO
CONTRADIÇÃO
Sumário:I – Os recursos para uniformização de jurisprudência pressupõem que os acórdãos em confronto hajam resolvido em sentidos opostos uma mesma «quaestio juris» fundamental.
II – Tal oposição passa pela enunciação, nos acórdãos em paralelo, de proposições que reciprocamente se apresentem como contrárias ou contraditórias.
III – O facto de, perante deliberações que se pretendiam executivas, os dois acórdãos terem divergido quanto à qualificação delas – um qualificou a que se lhe deparava como acto que mantinha, sem fundamento válido, a situação constituída pelo acto anulado, enquanto o outro recusou qualificar assim aquela sobre que se debruçou – não envolve oposição entre os julgados se essa diferença de soluções adveio da diversidade de conteúdos que as deliberações apresentavam.
IV – Com efeito, se as proposições jurídicas fundamentais detectáveis nos arestos em confronto diferirem nos seus termos, sem que estes possam reconduzir-se a um mais genérico que utilmente os abranja, não é possível articulá-las em recíproca oposição.
Nº Convencional:JSTA000P12452
Nº do Documento:SAP201012160672
Recorrente:ORDEM DOS TÉCNICOS OFICIAIS DE CONTAS
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
A Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas veio interpor recurso para uniformização de jurisprudência do acórdão do TCA-Norte, de fls. 312 e ss., dizendo-o em oposição com um aresto do STA, cuja cópia consta de fls. 362 e ss., e com um outro aresto do mesmo TCA, cuja cópia se mostra junta aos autos a fls. 369 e ss..
A recorrente terminou a sua alegação de recurso enunciando as seguintes conclusões:
1. A recorrente entende que o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 25.02.2010, contraria Jurisprudência transitada em julgado do Supremo Tribunal Administrativo e do próprio Tribunal Central Administrativo Norte.
2. No Acórdão recorrido julgou-se que não se mostra violado o caso julgado. Na verdade, ao contrário do referido pela recorrente, a execução do julgado não obrigava que a executada/recorrida admitisse, sem mais, a sua inscrição como TOC. Por outro lado, a decisão anulatória em execução, anulou o acto que não admitiu a inscrição da recorrente como TOC por considerar ilegal o regulamento que restringia os meios de prova dos requisitas legais para a inscrição. E a deliberação aqui em causa pronunciou-se analisando todos os documentos apresentados pela recorrente, mesmo aqueles que no seu entender seriam extemporâneos. Ou seja, a deliberação que dá execução à decisão anulatória, substancialmente, não contém a mesma limitação aos meios de prova dos requisitos legais exigidos no artº 1° da Lei n°27/98.
3. No entanto, acaba por ficar acordado que pelo facto de se terem levantado dúvidas sobre a veracidade das declarações juntas pela ora recorrida, e a mesmas não se terem dissipado com recurso a testemunhas, se verificava uma conduta restritiva e ilegal da Administração no que respeita à eficácia probatória dos meios de prova, quando foi esse o motivo da anulação obtida nos autos principais, pelo que a deliberação de 19.01.2009, que indefere a inscrição da recorrente como Técnica Oficial de contas, mantém sem fundamento válido a decisão anulada pelo acórdão exequendo e, por isso, tem de ser anulada.
4. Ora, tal entendimento, para além de contraditório em si mesmo, colide com o acórdão exequendo e, como aqui se defende, com Jurisprudência transitada em julgado.
5. De facto, o julgamento da ponderação e análise da prova que foi feito no presente processo de execução, ultrapassa o âmbito do processo executivo, nomeadamente o desenhado no n.º 1, do artº 167.° do CPTA.
6. Assim também o entendeu o Supremo Tribunal Administrativo, através do Acórdão de 10 de Setembro de 2009, dado no processo 164/04-B (1ª Secção – 1ª Subsecção), e o Tribunal Central Administrativo Norte, por Acórdão de 21 de Maio de 2009, dado no recurso jurisdicional nº 595/98-A Coimbra, ambos já transitados em julgado, em dois casos em tudo idênticos ao presente.
7. Julgou o Supremo Tribunal Administrativo que a Requerida com a sua deliberação, de 2-3-09, deu execução ao julgado anulatório, ao não voltar a recusar a inscrição dos Requerentes com base em restrições probatórias tidas por ilegais no julgado anulatório, sendo que, por outro lado, da factualidade apurada não se pode inferir que a dita deliberação tenha sido praticada com o objectivo de obstar ilegitimamente à concretização do resultado visado no processo de execução, com o que, a hipotética ilegalidade de tal acto, a existir, não se consubstancia em questão que se possa reconduzir ainda à figura de inexecução do julgado anulatório, antes se apresentando como matéria a dirimir em processo autónomo de impugnação. (...) É, assim, de concluir que o julgado anulatório se mostra executado,
8. O Tribunal Central Administrativo Norte acordou que o acto administrativo agora posto em crise, apesar de o recorrente alegar que se destina a não dar, ilegitimamente, cumprimento à decisão do STA, cuja execução aqui é pedida, na verdade deu cumprimento a tal decisão já que se fundou num meio de prova que até então não era admitido. E também não se pode afirmar que tenha dado execução à dita decisão de forma deficiente ou incorrecta, já que tal decisão apenas exigia à administração que aceitasse meios de prova diferentes daqueles previstos no já referido Regulamento.
9. Acresce que, e aqui radica a contrariedade de jurisprudência, ficou também decidido que a ponderação destes novos meios de prova trata-se, assim, de questão completamente nova que nenhuma relação tem com o então decidido pelo STA). (...) Daqui resulta, assim, que a presente situação concreta não se enquadra nem no conceito de acto administrativo desconforme com a decisão exequenda, nem no conceito de acto administrativo que mantenha, sem fundamento válido, a situação ilegal, cfr. entre outros o art. 167º, n.° 1 do CPTA, uma vez que se entende que a decisão do STA foi correctamente cumprida, isto é, executada, ainda que mediante um acto administrativo (ilegal) que no entanto não ofende o âmbito do caso julgado (quer por referência à decisão, quer por referência aos respectivos fundamentos); ver sobre esta questão os Acs. do STA de 15/10/2008, proc. n° 028055 e de 2/07/2008, proc. n° 01328/03 em www.dgsi.pt.
10. Note-se, aliás, que o Tribunal Central Administrativo Norte chega a avançar que o próprio acto seria ou poderia ser ilegal, mas ainda assim não se sentiu legitimado para julgar da sua validade, no âmbito de um processo de execução, se essa não contendesse com o julgado exequendo.
11. Donde se conclui, e requer seja também concluído pelo Supremo tribunal Administrativo, que o Tribunal a quo extravasou o âmbito das suas competências ao pronunciar-se sobre a ponderação e análise feita pela ora recorrente sobre os novos meios de prova apreciados, não o podendo fazer no âmbito de um processo de execução, quando tal não foi, nem poderia ter sido, julgado no Acórdão exequendo.
12. Pelo que deverá o Acórdão recorrido ser revogado, mantendo-se a decisão ora anulada, por cumprir e respeitar o caso julgado.
A recorrida A…, identificada nos autos, contra-alegou, pugnando pela rejeição do recurso, «por falta dos pressupostos legais necessários à sua admissão».
Já neste Pleno, o relator notificou a recorrente para escolher, de entre os dois arestos que indicara, apenas um deles como acórdão fundamento.
E ela veio dizer que escolhia o acórdão do TCA-Sul – que foi proferido em 21/5/2009, no recurso n.º 595/98.
Cumpre decidir.
Mediante o presente recurso para uniformização de jurisprudência, tipificado no art. 152º do CPTA, a ora recorrente busca a anulação do acórdão recorrido a fim de que subsista a sentença do TAF do Porto, por ele revogada, que julgara improcedente o pedido de execução de um julgado anulatório, da iniciativa da aqui recorrida. E, para o efeito, assinala que, entre esse aresto e o acórdão fundamento que elegeu, existe «contradição» quanto ao modo como em ambos se resolveu «a mesma questão fundamental de direito».
«Ante omnia», temos de ver se efectivamente ocorre a indicada «contradição», já que a sua existência é um antecedente necessário da possibilidade deste Pleno julgar da bondade do acórdão recorrido. Mas o desempenho da tarefa reclama que atentemos nalgumas das notas constituintes dos conceitos de «contradição» e de «questão fundamental de direito».
Diz-nos a semântica que só pode ser havida como «fundamental» a «questão» («de direito», até porque este Pleno não julga matéria de facto) cuja resolução tenha fundado ou fundamentado o sentido decisório dos dois arestos em confronto. Ela diz-se «fundamental» quando, pela sua essencialidade ou necessidade, se repercutiu em termos decisivos na solução do processo, por o desfecho da «questão» ter provocado, arrastado ou causado a pronúncia derradeira. Assim, essa «quaestio juris» não tem de ser a última que os acórdãos devessem resolver antes de emitirem a sua decisão final, nada impedindo que ela se localize num ponto mais recuado do «iter» discursivo; mas a «questão» só será «fundamental» se possuir aquela causalidade, ou seja, se a pronúncia culminante de cada aresto depender do modo como, atrás, a «questão» fora resolvida.
Por outro lado, a circunstância de o art. 152º do CPTA utilizar o termo «contradição», em vez de «oposição», não significa uma escolha fundada no diferente significado técnico que a lógica formal atribui a esses dois termos. Com efeito, seria absurdo crer e pretender que o legislador restringira os recursos «para uniformização de jurisprudência» às hipóteses de contradição entre proposições jurídicas fundamentais, excluindo desses mecanismos os casos – aliás, muito mais vulgares – de contrariedade entre tais proposições. Sendo assim, o nome «contradição» continua a designar o género lógico «oposição», o qual, no plano judicativo do discurso, se divide em duas únicas espécies – em que as proposições são, ou reciprocamente contrárias, ou contraditórias.
Do exposto decorre que, para se aferir se dois arestos estão em «contradição» quanto à maneira de resolver «a mesma questão fundamental de direito», é inevitável observar-se o seguinte percurso lógico: «primo», determinar qual é a (mesma) «questão» (fundamental) – o que constitui em regra uma tarefa simples, por ao recorrente incumbir indicá-la; «secundo», ver se ela (a questão) é mesmo «fundamental» – o que implica averiguar se o desfecho da «quaestio juris» foi realmente determinante para a emissão das pronúncias finais de ambos os processos; «tertio», extrair dos dois arestos as proposições jurídicas neles emitidas acerca da apontada questão e cotejá-las – devendo concluir-se pela existência de oposição de julgados se tais proposições, assentando em situações de facto idênticas no plano da sua significação jurídica, se mostrarem mutuamente contrárias ou contraditórias. Ao que acrescem requisitos de menor relevo, como sejam a anterioridade e o trânsito do acórdão fundamento e o facto de o acórdão recorrido não se filiar em jurisprudência consolidada no STA.
«In casu», o acórdão recorrido entendeu que uma certa deliberação, espontaneamente proferida em execução de um julgado anulatório, devia ser anulada – no processo executivo entretanto iniciado e aí em apreço – por manter, «sem fundamento válido», a situação ilegal. E é neste preciso ponto que a recorrente localiza a «quaestio juris» alegadamente resolvida em sentidos opostos; pois o acórdão fundamento, num processo que a recorrente considera «em tudo idêntico ao presente» («vide» fls. 386), afirmou que uma deliberação tida por semelhante não se reconduzia ao «conceito de acto administrativo que mantenha, sem fundamento válido, a situação ilegal» – motivo por que o aresto concluiu que não se podia conhecer da ilegalidade da deliberação na acção executiva.
Portanto, a «quaestio juris» respeita apenas à qualificação das deliberações do género da anulada pelo acórdão recorrido como integráveis na noção, prevista nos arts. 176º, n.º 5, e 179º, n.º 2, do CPTA, de acto que mantenha, sem fundamento válido, a situação ilegal (isto é, a situação constituída pelo acto anulado). Note-se que, na economia do acórdão recorrido, tal «quaestio juris» se apresenta indubitavelmente como «fundamental», já que nela se filiou a pronúncia derradeira do aresto – em que se revogou a sentença do tribunal «a quo», se anulou a deliberação e se impôs à aqui recorrente o regresso do procedimento à sua fase instrutória. E é ainda de referir que não existe, no STA, uma jurisprudência consolidada a propósito dessa questão.
Posto isto, e para decidirmos se os acórdãos reciprocamente se opõem na resolução da identificada «quaestio juris», comecemos por assinalar os pontos em que eles se identificam e que são os seguintes: em ambos os casos, actos que indeferiram pedidos de inscrição na então ATOC foram anulados por restringirem ilegalmente os meios de prova mobilizáveis; ao que se seguiu, também nos dois casos, a emissão de novos actos de indeferimento, fundados na insuficiência probatória dos documentos que os candidatos ofereceram para comprovar que preenchiam os requisitos da inscrição; então, os interessados vieram requerer a execução dos julgados anulatórios, pugnando nesses processos executivos pela ilegalidade de tais actos; e, em ambos os casos, a 1.ª instância julgou improcedentes as acções executivas, o que levou os dois interessados a interporem recursos dessas sentenças para o TCA-Norte. Ora, finda aqui a similitude entre as situações, já que esses recursos foram decididos de maneira diferente pelos arestos em confronto – conforme «supra» já dissemos.
«Prima facie», aqueles pontos de identidade sugerem que os acórdãos se articulam em mútua oposição. Mas veremos de seguida que essa aparência deve ceder perante uma análise mais funda – centrada nas diferenças entre as deliberações sobre que os arestos incidiram.
Com efeito, o acórdão recorrido lobrigou na deliberação que se pretendia executiva o vício decorrente de ela ter sido emitida sem a prévia consideração de todos os meios de prova que a interessada invocara – razão por que disse que a ora recorrente «não se pronunciou nem analisou toda a prova apresentada» pela aqui recorrida. Na óptica do aresto, isso traduzira «uma conduta restritiva e ilegal da Administração», claramente reportada à desconsideração dos meios de prova oferecidos e admissíveis – embora o acórdão, incorrendo num manifesto lapso qualificativo, aliás destituído de consequências face à única interpretação que o seu texto permite, tivesse ligado a «conduta restritiva e ilegal» à «eficácia probatória dos meios de prova». E, precisamente porque já fora «esse o motivo da anulação obtida nos autos principais» (isto é, a restrição ilegal dos meios de prova), o acórdão recorrido veio a concluir que a dita deliberação mantivera, «sem fundamento válido, a decisão anulada pelo acórdão exequendo e, por isso», tinha «de ser anulada».
Portanto, detecta-se no acórdão recorrido uma proposição jurídica, incidente sobre a «quaestio juris» acima definida, que podemos enunciar nos seguintes termos: todo o acto de indeferimento que, em execução de julgado, desconsiderar elementos de prova mantém, sem fundamento válido, a situação constituída pelo acto de indeferimento que a decisão judicial exequenda anulara por incorporar uma restrição ilegal dos meios de prova.
Sendo assim, o acórdão fundamento só se oporia ao acórdão recorrido se contivesse o equivalente a uma das duas proposições seguintes:
- Ou uma proposição contrária: nenhum acto de indeferimento que, em execução de julgado, desconsiderar elementos de prova mantém, sem fundamento válido, a situação constituída pelo acto de indeferimento que a decisão judicial exequenda anulara por incorporar uma restrição ilegal dos meios de prova.
- Ou uma proposição contraditória: algum acto de indeferimento que, em execução de julgado, desconsiderar elementos de prova não mantém, sem fundamento válido, a situação constituída pelo acto de indeferimento que a decisão judicial exequenda anulara por incorporar uma restrição ilegal dos meios de prova.
Todavia, é flagrante que tudo aquilo que o acórdão fundamento disse não se aproxima, sequer, dessas duas proposições. É que ele debruçou-se sobre uma deliberação a que fora imputado o vício de ponderar mal os meios de prova oferecidos – o que é assaz diferente de se desatenderem, pura e simplesmente, tais meios. Portanto, a proposição jurídica fundamental que podemos extrair do acórdão fundamento é a de que nenhum acto de indeferimento que, em execução de julgado, pondere erradamente os meios de prova mantém, sem fundamento válido, a situação constituída pelo acto de indeferimento que a decisão judicial exequenda anulara por incorporar uma restrição ilegal dos meios de prova.
Ora, comparando aquelas proposições fundamentais detectáveis nos dois arestos, que tentámos aproximar ao máximo, logo se vê que elas diferem nos seus termos, razão por que não podem opor-se logicamente. E também não é possível recolocar a oposição num plano superior, já que os termos diferentes (os maiores nos respectivos silogismos judiciários) não são reconduzíveis a um outro, mais genérico, que os abrangesse. Com efeito, nada permite dizer que os autores do acórdão recorrido, confrontados com um mero erro na apreciação das provas, decidissem como decidiram; e, igualmente, é especulativo pensar-se que os autores do acórdão fundamento manteriam a sua decisão se o problema que se lhes colocasse fosse de desconsideração de meios de prova.
Está agora evidenciada a falta de oposição entre os dois acórdãos em confronto, cujas diferenças de decisão se explicam pela diversidade das deliberações sobre que se debruçaram. E, não havendo a oposição, não pode este Pleno tomar conhecimento do recurso «sub specie», avaliando do mérito do aresto recorrido.
Nestes termos, acordam em não tomar conhecimento deste recurso para uniformização de jurisprudência.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 16 de Dezembro de 2010. – Jorge Artur Madeira dos Santos (relator) - José Manuel da Silva Santos Botelho – Américo Joaquim Pires Esteves – Alberto Acácio de Sá da Costa Reis – Adérito da Conceição Salvador dos Santos – Rui Manuel Pires Ferreira Botelho – António Bernardino Peixoto Madureira – Alberto Augusto Andrade de Oliveira – António Bento São Pedro – Fernanda Martins Xavier e Nunes – Jorge Manuel Lopes de Sousa.