Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01467/23.4BELSB-A
Data do Acordão:04/04/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:CONTRATAÇÃO PÚBLICA
IMPEDIMENTO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA00071832
Nº do Documento:SA12024040401467/23
Recorrente:A..., S.A.
Recorrido 1:INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO DE REVISTA
Objecto:ACÓRDÃO DO TCA SUL
Decisão:NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO
Área Temática 1:CONTRATAÇÃO PÚBLICA
Área Temática 2:IMPEDIMENTO
Legislação Nacional:ARTIGOS 55.º, N.º 1, AL. L); 55.º-A; 57.º, N.º 1, AL. A); 464.º, N.º 1, AL. B) DO CCP
Legislação Comunitária:DIRECTIVA 2004/18/CE; DIRECTIVA 2014/24/EU
Jurisprudência Estrangeira:ACÓRDÃO MECA DO TJUE DE 19.06.2019, IN PROC. Nº C-41/18
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO

1. RELATÓRIO
A..., S.A./B..., S.A.C..., S.L., devidamente identificadas nos autos, intentaram junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa – Juízo de Contratos Públicos (TAC) a presente providência cautelar de suspensão de eficácia contra a INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A., doravante IP, pedindo a suspensão de eficácia da deliberação, de 24/01/2023, do Conselho de Administração Executivo da IP, que resolveu o contrato de prestação de serviços nº ...16 para a elaboração do “Estudo de Viabilidade, Estudo Prévio, Estudo de Impacte Ambiental, Projeto de Execução e RECAPE para a Modernização da Linha da Beira Alta, no troço Pampilhosa - Mangualde” e decidiu exercer o direito indemnizatório decorrente do incumprimento deste contrato.
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O TAC por decisão datada de 16 de Agosto de 2023, julgou a pretensão cautelar procedente e, em consequência, suspendeu a eficácia da deliberação de 24.01.2023, do Conselho de Administração Executivo da requerida, mas improcedente o pedido de condenação da requerida como litigante de má-fé.
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Inconformada a entidade requerida, ora recorrente, interpôs recurso jurisdicional para o TCA Sul, tendo este, por acórdão proferido a 12.12.2023, concedido provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e julgando improcedente o processo cautelar.
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É desta decisão que as requerentes, ora recorrentes, vêm interpor o presente recurso de revista, apresentando para o efeito as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
«I. (…) EFEITO DO RECURSO
XXII. Vem o presente Recurso interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, notificado às aqui Recorrentes em 12.12.2023, o qual concedeu provimento ao Recurso de Apelação desencadeado pela aqui Recorrida, com a consequente revogação da Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, assim julgando o presente processo cautelar como improcedente.
XXIII. Manifestou o Tribunal a quo o seu entendimento de falecer “a premissa do Tribunal a quo para o deferimento da providência baseada nos efeitos derivados (automaticamente) do art. 55º, nº 1 al. l) do CCP”, de que “as Requerentes “ficariam impedidas de concorrer a futuros concursos públicos”, isto na medida “em que a eventual suspensão de efeitos da presente decisão cautelar, como se expôs, não pode obstar a que em futuros procedimentos a que as Requerentes possam vir a concorrer as entidades adjudicantes fiquem impedidas de aferir das condições impeditivas ou não de participação no respectivo procedimento”.
XXIV. Nesses termos, e assim conclui o Tribunal a quo, “não se pode manter o decidido pelo Tribunal a quo, pelo que será de conceder provimento ao recurso e julgar inverificado o requisito do periculum in mora”, pelo que, “faltando este requisito, cumulativo e essencial ao deferimento da providência, atento o disposto no nº 1 do art. 120º do CPTA, então será de conduzir à improcedência do pedido cautelar, como se decidirá a final”.
XXV. No caso em apreço, existe um notório erro de julgamento da matéria de Direito, em concreto quanto à decisão do Tribunal a quo que concluiu não se dar por verificado o pressuposto das providências cautelares relativo ao periculum in mora,
XXVI. Assim como errado é o argumento de que os efeitos do impedimento da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP se não suspendem com o decretamento da providência cautelar de suspensão provisória da eficácia do ato administrativo de resolução sancionatória que permita a aplicação de tal impedimento.
XXVII. O Acórdão recorrido veicula uma interpretação frontalmente contrária à Lei e aos mais elementares princípios gerais de Direito, recaindo mesmo sobre a norma em causa, assim interpretada, um real juízo de inconstitucionalidade.
XXVIII. No caso presente, há que concluir pelo preenchimento do requisito do periculum in mora, devendo, como tal, o presente processo ser alvo de uma (re)apreciação material por parte do Ilustríssimo Tribunal ad quem.
XXIX. A decisão recorrida suscita questões que, pela sua relevância jurídica e social, se revestem de importância fundamental, e que a sua apreciação pacificadora por parte do Supremo Tribunal Administrativo, dada também a oposição dos arestos proferidos pela 1ª e 2ª instâncias, é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito.
XXX. Em 16.08.2023, foi proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa uma Sentença através da qual decidiu aquele no seguinte sentido favorável ao pedido cautelar das Recorrentes: “(…) julgo a presente pretensão cautelar procedente e, em consequência, suspendo a eficácia da deliberação de 24 de janeiro de 2022, do Conselho de Administração Executivo, da Requerida, (…)”.
XXXI. Considerou aquela douta instância estarem preenchidos todos os requisitos das providências cautelares, a saber: o (i) fumus boni iuris, o (ii) periculum in mora e o (iii) juízo de ponderação entre o interesse público e os interesses privados.
XXXII. Sem prejuízo, por entender (erradamente, adiante-se) a aqui Recorrida que aquela Sentença padecia de uma incorreta aplicação do direito à matéria de facto, apresentou ela (Recorrida), em 05.09.2023, as suas Alegações de Recurso de Apelação a fls. 494 quanto à decisão proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, em sede de 1ª Instância.
XXXIII. Por inexistir um único ponto, raciocínio ou argumento de entre os apresentados pela Recorrida com um arrimo factual ou jurídico mínimo que merecesse a atenção do Tribunal a quo no sentido de alterar a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, apresentaram as Recorrentes, em 25.09.2023, as suas Contra-alegações de Recurso a fls. 526.
XXXIV. Em 13.12.2023, foram as Recorrentes notificadas do Acórdão a fls. 622, no qual decidiu o Tribunal a quo (Tribunal Central Administrativo Sul) revogar a Sentença proferida em 1ª Instância, e negar provimento à pretensão cautelar das Recorrentes, assim julgando improcedente a presente ação cautelar.
XXXV. No entender daquele Tribunal, não se poder dar por verificado, no caso presente, o requisito do periculum in mora, pelo que, sendo os requisitos das providências cautelares cumulativos, apesar de os restantes 2 (dois) requisitos se encontrarem preenchidos, entendeu o Tribunal a quo não se poder manter a decisão de 1.ª Instância de decretamento da providência cautelar requerida.
XXXVI. Por discordar do conteúdo do referido Acórdão, e não se conformando, quer com a sua fundamentação, em virtude de um erro de julgamento de Direito, bem assim com a Jurisprudência consolidada que o mesmo poderia espoletar, de outra hipótese não dispunham então as Recorrentes se não lançar mão do presente Recurso de Revista, a fim de obter uma melhor e mais conforme aplicação do Direito face às regras e princípios atualmente vigentes no Ordenamento Jurídico vigente.
XXXVII. A intervenção do Supremo Tribunal Administrativo só se justifica em matérias de maior importância, sendo a mesma excecional, porquanto tal intervenção é apenas admissível quando necessária para garantir, in casu, uma “melhor aplicação do Direito” no âmbito de uma questão que revista importância fundamental pela sua relevância jurídica e social.
XXXVIII. Dissecando o caso em apreço, o presente Recurso de Revista deverá ser admitido.
XXXIX. De acordo com o entendimento jurisprudencial e doutrinal vigente nesta matéria, deve entender-se que se verifica a necessidade de uma “melhor aplicação do direito” nos seguintes casos: (i) errada aplicação de uma norma legal, (ii) prolação de uma decisão em sentido contrário ao Direito, (iii) existência de 2 (duas) decisões em sentido contrário, (iv) a solução legal não é clara e inequívoca e (v) existência de um desvio à correta aplicação do Direito.
XL. A interpretação veiculada no Acórdão recorrido incorre em todas as situações a que se acabou de fazer referência.
XLI. O Acórdão recorrido revela-se contrário à lei por ter considerado (erradamente) que a providência cautelar de suspensão provisória da eficácia de um ato administrativo de resolução sancionatória não pode funcionar para impedir os efeitos do impedimento decorrente da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP.
XLII. A decisão consagrada no Acórdão recorrido é um desvio à correta aplicação do Direito vigente, e que (mais!) desprotege a todos os níveis a posição jurídica das Recorrentes e de qualquer particular que se veja na sua posição (ou seja, de Cocontratante a quem foram injustamente imputados incumprimentos no seio de um contrato público), com brutal desrespeito pelo princípio da tutela jurisdicional efetiva.
XLIII. Considerou o Tribunal a quo que, mesmo com uma resolução sancionatória de um contrato público, como ocorreu in casu quanto ao contrato celebrado entre as Recorrentes e a Recorrida, o impedimento consagrado na alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP não se produz de imediato, havendo uma espécie de «zona cinzenta», de margem de decisão da Administração, uma vez que caberá às entidades adjudicantes dos procedimentos futuros em que as aqui Recorrentes participem averiguar da existência ou não deste impedimento para o aplicar.
XLIV. E que, ao assim ser, não poderia o Tribunal, ao decretar a providência cautelar de suspensão provisória da eficácia do ato administrativo, entrar na zona de decisão (técnica ou outra) própria da Administração, formulando um juízo que integra, no entender daquele (do Tribunal a quo), a reserva de competência dessa mesma Administração, pois, de contrário, estaríamos perante um desrespeito pelo princípio da separação e interdependência de poderes entre a Administração e o Tribunal.
XLV. Para além disso, entende o Tribunal que os efeitos da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP resultam diretamente da lei e não do ato administrativo que permita a sua aplicação (como sucede com o ato ora suspendendo).
XLVI. O entendimento sufragado no Acórdão recorrido foge àquela que era, in casu, “a melhor aplicação do direito”.
XLVII. O Tribunal a quo incorre num erro básico de interpretação do transcrito normativo, quando retira da leitura do respetivo texto a existência de uma margem de apreciação, e consequentemente de decisão, atribuída pelo legislador às entidades adjudicantes, no preenchimento dos conceitos de “deficiências significativas ou persistentes”.
XLVIII. Na verdade, limita-se a alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP a selecionar e a remeter o aplicador e intérprete para aquela que é reputada pelo legislador como sendo a mais grave das causas possíveis de resolução sancionatória dos contratos administrativos, e que está especificamente prevista e regulada no art.º 325º do CCP: a dos casos em que o Cocontratante não cumpre “de forma exata e pontual as obrigações contratuais ou parte delas por facto que lhe seja imputável (…), “[m]antendo-se a situação de incumprimento” (cfr. nºs 1 e 2), o que legitima o Contraente Público a “resolver o contrato com fundamento em incumprimento definitivo, nos termos do art.º 333º” (cfr. parte final do nº 2).
XLIX. À luz do princípio da proporcionalidade, um dos grandes princípios que presidem a toda a matéria dos contratos públicos e administrativos, e como é de resto consensual na Doutrina e na Jurisprudência, deve-se entender, na leitura do disposto nos nºs 1 e 2 do art.º 325º CCP, que não justificam uma resolução sancionatória pequenas moras e incumprimentos esporádicos e em aspetos insignificantes, de detalhe ou pormenor.
L. Importa, para além de “persistentes”, e como (melhor) se expressa o legislador na al. l) do nº 1 do art.º 55º CCP, que tais incumprimentos ou deficientes cumprimentos sejam “significativos”, sendo que nesta equação com 2 (dois) termos poderá ser decisiva ora a gravidade (maior gravidade do incumprimento, ainda que por menos tempo), ora o prolongamento no tempo (menor gravidade do incumprimento, mas por mais tempo) – e daí o disjuntivo “ou”.
LI. Mas não basta o pressuposto que se acaba de explicitar (incumprimento ou deficiente cumprimento significativo e/ou persistente) para que o impedimento releve: importa ainda que tenha redundado na aplicação pelo Contraente Público de uma sanção grave, o que no caso presente ocorreu com a efetiva prática de um ato de sanção resolutória do contrato.
LII. Bastará à entidade adjudicante, para declarar o impedimento e não (poder) admitir ao procedimento o operador, uma vez que a verificação do segundo pressuposto (aplicação nos 3 (três) anos transatos da resolução sancionatória prevista na al. a) do nº 1 do art.º 333º e regulada nos nºs 1 e 2 do art.º 325º e 333º, todos do CCP), parece já pressupor, por definição, o primeiro (incumprimento significativo e/ou reiterado, nos termos dos ditos nºs 1 e 2 do art.º 325º).
LIII. Verificando-se este uno pressuposto, terá a entidade adjudicante que declarar o impedimento, nos termos da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP, não lhe assistindo qualquer poder de o complementar através do preenchimento de uma margem de livre apreciação que, como demonstrado à saciedade, inexiste no caso, assim falecendo o argumento forjado pelo Tribunal a quo para fundamentar a decisão ínsita no seu Acórdão.
LIV. No que contende com o contrato público celebrado entre as Recorrentes e a Recorrida, acresce que a existência ou não de deficiências significativas e/ou persistentes, leia-se, incumprimento, se encontra a ser discutida em Tribunal, mais precisamente, no processo nº 1467/23.4BELSB, que corre termos no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, e por apenso ao presente processo cautelar.
LV. Assim sendo, a não aceitação ou não conformação das ora Requerentes/Recorrentes com a dita resolução sancionatória, entre outras consequências, parece excluir a possibilidade de tomada de medidas de possível relevação dos impedimentos, hoje previstas no art.º 55º-A do CCP, uma vez que tal se traduziria inevitavelmente numa aceitação ou reconhecimento do legal fundamento da resolução sancionatória incompatível com a sua impugnação judicial.
LVI. Ainda, precisamente em razão do princípio da separação de poderes, nunca poderiam, de todo o modo, as ditas entidades adjudicantes, em casos como o sub judicio, interferir na apreciação da questão controvertida, e antecipar o futuro juízo do Tribunal a quem ela esteja (estivesse) confiada.
LVII. Inexistindo uma decisão por parte do Tribunal que suspenda provisoriamente os efeitos da referida decisão de resolução sancionatória, a verdade é que ficarão as Recorrentes vinculadas a uma errada, injusta, desproporcionada e ilegal decisão com fundamentado num incumprimento que, no seu entender, não era suscetível de ter gerado e justificado tal situação, pelo que é mais que justo, legal e constitucionalmente devido, ao abrigo do direito da tutela jurisdicional efetiva que, fruto dos riscos de prejuízo iminentemente irreparável, como é a insolvência da Recorrente A..., S.A., possa o Tribunal suspender os efeitos da decisão de resolução sancionatória na pendência da ação principal.
LVIII. Se assim não for, e ficar, em especial, a Recorrente A..., S.A. sob tal impedimento, e for a mesma impedida de participar em procedimentos de contratação pública – por o mais provável ser as entidades adjudicantes identificar e confundir o “incumprimento definitivo do contrato por facto imputável ao contratante” com a existência de “deficiências significativas e persistentes na execução” de um contrato público anterior – a mesma não terá outra hipótese, como ficou demonstrado, que não se apresentar à insolvência, ocorrendo que a Sentença a si favorável que venha a ser prolatada na ação principal já não revista qualquer utilidade, pois a Recorrente A..., S.A. já nem existirá.
LIX. Uma “melhor aplicação do Direito” exige que o Tribunal tenha de considerar que, na pendência da ação que determinará e julgará a existência, ou não, de incumprimento com suscetibilidade para desencadear uma decisão tão grave como a resolução sancionatória do contrato, as partes prejudicadas com essa decisão não sofrem, antecipadamente, os efeitos nefastos dessa mesma decisão, e que, no caso concreto, correspondem às consequências que decorrem para as Recorrentes do impedimento de participação em procedimentos de contratação pública pelo período de 3 (três) anos, resultante da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP.
LX. Além disso, tais efeitos nefastos não decorrem diretamente da lei, mas sim do ato administrativo suspendendo, porquanto, sem este, o impedimento legal ora em apreço não produzirá efeitos, pelo que, atacando-se o ato e requerendo-se a suspensão dos seus efeitos, os efeitos da lei não se produzem e terão de ser removidos do ordenamento jurídico, sendo justo e intensamente devido que, na pendência da discussão sobre a validade do ato, todo e qualquer efeito do mesmo não se produza, atendendo, in casu, a que alguns dos efeitos do mesmo gerarão e darão origem, note-se, a situações de facto consumado com prejuízos e irreparáveis que convirá acautelar.
LXI. Não se percebe assim como pôde o Tribunal a quo sequer equacionar que, mesmo com a adoção de uma providência cautelar de suspensão provisória da eficácia do ato administrativo de resolução sancionatória, que suspende, note-se, todos os efeitos do mesmo na pendência da ação impugnatória principal, houvesse um efeito que, mesmo assim, e sem habilitação legal para o efeito, sempre se produziria, e que passa pelo referido impedimento da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP.
LXII. E isto até pelo facto de essa interpretação se revelar como uma orientação interpretativa que extravasa a letra da lei e que nunca poderia ser admitida atendendo à tutela garantística que os particulares devem sempre ter quanto a normas de caráter sancionatório como acaba por ser a alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP.
LXIII. Para o efeito, serve-se o Tribunal a quo de uma passagem do Prof. PEDRO COSTA GONÇALVES para alicerçar o seu raciocínio, sem, porém, ter procedido à transcrição de toda a passagem, porquanto aquele Douto Autor não toma, definitivamente, uma posição sobre esta questão, num excerto que por ora se completa e reproduz: “a solução só poderá ser a oposta, quando um tribunal tenha decretado a suspensão dos efeitos da resolução, (…)”.
LXIV. Além disso, no Acórdão Meca Srl/Comune di Napoli do Tribunal de Justiça da União Europeia, datado de 19.06.2019 e prolatado no âmbito do Processo nº C-41/18, a análise jurídica aí em apreço reconduz-se tão somente à ação impugnatória principal e não a uma ação cautelar de suspensão provisória da eficácia do ato impugnado na pendência da prolação de decisão no seio da ação principal.
LXV. Uma “melhor aplicação do Direito” deveria, parece inequívoco, ter-se alicerçado em posições doutrinas e jurisprudenciais absolutamente claras, e que colocam em causa a solução, gerando um problema.
LXVI. Além disso, com a decisão recorrida, o Tribunal a quo desrespeitou, inclusive, aquela que era a sua recente Jurisprudência consolidada.
LXVII. Encontramo-nos, por ora, perante mais uma razão para este Ilustre Tribunal ad quem admitir o presente Recurso de Revista, dada a existência de pelo menos 2 (dois) Acórdãos com sentido interpretativo e de aplicação distintos face à alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP em caso de adoção da providência cautelar de suspensão provisória da eficácia do ato administrativo de resolução sancionatória que dá origem ao referido impedimento.
LXVIII. Para além disso, afirmou o Tribunal a quo no Acórdão aqui recorrido, que caso a providência cautelar requerida fosse decretada e suspendesse provisoriamente os efeitos do ato administrativo de resolução sancionatória, conhecendo os atrasos de decisão em sede de jurisdição administrativa, então a alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP nunca produziria efeitos, pois o prazo de 3 (três) anos decorreria, mas não produzia efeitos, não tendo então uma efetiva aplicação no que às aqui Recorrentes diz respeito.
LXIX. Obviamente que não pode servir como argumento para desproteger a esfera das Recorrentes o facto de os Tribunais da jurisdição administrativa demorarem vários anos a decidir sobre as suas ações, prática que se encontra certamente e em grande escalda, longe da “melhor aplicação do Direito” possível.
LXX. Além disso, não atentou o Tribunal a quo às especificidades de transposição da Diretiva nº 2014/24/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro, relativa aos contratos públicos para o Ordenamento Jurídico português.
LXXI. A referida Diretiva atém-se apenas às razões e aos motivos de exclusão de uma proposta e do consequentemente afastamento do concorrente que a apresentou do procedimento, ao contrário do que ocorre no ordenamento jurídico português com o CCP através da distinção entre os impedimentos (cfr. artigo 55º) e as causas de exclusão da proposta (cfr. artigos 70º e 146º).
LXXII. Quando sob o jugo dos primeiros (de um ou de vários impedimentos), os operadores económicos não podem sequer apresentar uma proposta no seio do procedimento pré-contratual do caso concreto, sob pena de sanções de vária ordem, nomeadamente contraordenacional e de aplicação de coimas, bem como de várias possíveis sanções acessórias.
LXXIII. Um dos maiores erros de que padece o Acórdão recorrido é olhar para a matéria de Direito ora em apreço apenas do ponto de vista teórico e abstrato, sem olhar para as especificidades do caso concreto, bem assim da transposição da referida Diretiva para o ordenamento jurídico português.
LXXIV. Encontrando-se sob o impedimento da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP, produzindo este os seus efeitos, em virtude de não ter sido decretada a providência cautelar de suspensão provisória da eficácia do ato administrativo de resolução do contrato, se as Recorrentes se apresentarem a um procedimento de contratação pública, para além de poderem ser afastadas do mesmo, poderão incorrer numa prática contraordenacional, punível com coisa de € 7.500 (sete mil e quinhentos euros) a € 48.800 (quarenta e oito mil e oitocentos euros), nos termos da alínea a) do artigo 456º do CCP.
LXXV. E a existência ou não desse comportamento contraordenacional dependerá de um juízo concreto da entidade adjudicante do caso concreto quanto à aplicação do impedimento da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP.
LXXVI. O Tribunal a quo não podia, e este Ilustre Tribunal ad quem não poderá analisar a aplicação da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP apenas do ponto de vista da entidade adjudicante e da possibilidade ou não de aplicar tal impedimento, mas também (e principalmente!) do ponto de vista dos operadores económicos, por serem eles os mais afetados por este regime, pelo que deverão ser aqueles que, desde sempre, merecem uma proteção jurídica acrescida.
LXXVII. Nem se diga, como parece também o Tribunal a quo fazer crer, que, ao invés do decretamento da providência cautelar requerida no presente processo cautelar, sempre poderiam as Recorrentes impugnar, no futuro, uma qualquer decisão de afastamento de um procedimento pré-contratual com fundamento na alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP.
LXXVIII. Basta pensar, para o efeito, que a impugnação judicial de todas quanto fossem as decisões de afastamento dos procedimentos de contratação pública das Recorrentes, de forma isolada, daria origem a inúmeros processos, causando não apenas uma maior morosidade da prolação de decisões por parte dos Tribunais (que as Recorrentes não pretendem e que não podem justificar o seu prejuízo e desproteção, como acima demonstrado), mas também uma maior fragilidade da posição das Recorrentes, que se viam a cargos na elaboração de propostas que não teriam sucesso, a cargos em momento subsequente para reclamar e impugnar a decisão de aplicação do impedimento, e ainda, última análise, a cargos com as coimas que eventualmente lhe fossem injustificadamente aplicadas.
LXXIX. Este cenário dantesco pode ser evitado se, na pendência da ação principal de impugnação da decisão de resolução sancionatória, esta mesma decisão não produza os seus efeitos, assim resolvendo logo de início problema um para evitar muitos outros de futuro, sendo esta uma premissa de uma “melhor aplicação do direito”.
LXXX. Afigura-se como fulcral a intervenção, na situação sub judice, do Supremo Tribunal Administrativo para uma “melhor aplicação do direito”, considerando que a presente decisão se encontra em oposição com aquela que deve ser a orientação a seguir em casos como o presente.
LXXXI. Impõe-se que este Douto Tribunal ad quem esclareça se a providência cautelar de suspensão provisória de eficácia do ato de resolução fundamentada pode, efetivamente, suspender também os efeitos da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP.
LXXXII. Sendo certo que a decisão recorrida se sustentou num errado entendimento no que à reserva da Administração diz respeito, em especial, ao nível da sua discricionariedade para aplicar, ou não, a alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP, deverá esta Ilustre Alta Instância impedir a manutenção dos efeitos de tal decisão, substituindo-a por outra que garanta a natural e legalmente devida proteção às aqui Recorrente, em especial, à Recorrente A..., S.A.
LXXXIII. A Jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo apenas tem afastado a admissibilidade de um Recurso de Revista quando a questão não apresenta interesse objetivo para a clarificação do quadro legal ou para a uniformidade da aplicação do Direito.
LXXXIV. No caso concreto, existem questões que podem suscitar diferentes interpretações e dúvidas de aplicação, pelo que deverá o Supremo Tribunal Administrativo pronunciar-se sobre as mesmas, consolidando Jurisprudência quanto à orientação a seguir em casos como o presente, já que o regime legal aplicável a casos como o objeto de Recurso deixou de ter, face ao entendimento do Tribunal a quo, uma solução clara.
LXXXV. Acresce o facto de, no presente processo, existirem 2 (duas) decisões completamente distintas sobre a questão objeto de Recurso para a 3ª e Mais Alta Instância.
LXXXVI. A aplicação da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP às relações jurídico-administrativas de contratos públicos como a que está por ora em causa no Acórdão recorrido não pode deixar de ter em conta o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 18º (força jurídica dos preceitos relativos a direitos, liberdades e garantias), no artigo 20º (“acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva”) e no nº 4 do artigo 268º (“direitos e garantias dos administrados”), todos da Constituição da CRP.
LXXXVII. De contrário, afigura-se às Recorrentes conduzir a interpretação realizada a uma interpretação como a cega orientação do Tribunal a quo sobre o significado e alcance dos referidos normativos, que leva a resultados injustos, desrazoáveis e desproporcionados, tornando-a (a ela, interpretação seguida no dito Acórdão) inconstitucional por violação do nº 2 do artigo 18º da CRP.
LXXXVIII. Está em causa na situação sub judicio um direito fundamental que é desproporcionalmente e desrazoavelmente afetado por este entendimento: o direito à tutela jurisdicional efetiva.
LXXXIX. No Acórdão recorrido é levada a cabo uma interpretação de tal modo desrespeitadora dos particulares quanto à alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP, que acaba a mesma, desta forma, por se revelar contrária à CRP, devendo por isso o Supremo Tribunal Administrativo revogar o referido Acórdão, não apenas por erro de julgamento na matéria de Direito, mas também com fundamento na constatação de que esse erro parte de uma orientação que merece um juízo de censura e inconstitucionalidade.
XC. No âmbito de um Estado Democrático de Direito, o princípio da tutela jurisdicional efetiva, olhado de uma perspetiva de máxima garantia dos cidadãos, em sentido amplo, deve permitir, sempre que possível, e em respeito pela Lei, o acesso ao Direito e aos Tribunais àqueles, para proteção dos seus direitos e interesses legalmente (e constitucionalmente, diga-se) protegidos, em suma, o acesso dos particulares à Justiça, mesmo que contra a Administração Pública.
XCI. Não podem os cidadãos ser prejudicados pelas dúvidas fundadas criadas na sua esfera jurídica derivadas de normas a partir das quais surjam dúvidas interpretativas, devendo as mesmas ser objeto de um sentido interpretativo que garanta a máxima proteção dos particulares, nomeadamente e para os efeitos que para aqui relevam, no que contende com o efetivo acesso ao Tribunal, e não segundo um sentido de interpretação que coarte os cidadãos do direito de que naturalmente se arrogam.
XCII. Tem de haver por parte do julgador do caso concreto respeito pelo direito fundamental dos cidadãos de acesso aos Tribunais, o qual deverá ser respeitado e garantido dentro dos limites mais abrangentes possíveis.
XCIII. É, pois, flagrante o erro decorrente de uma excessiva abstração e do despreendimento das vicissitudes e das especificidades do Direito Administrativo, que o Tribunal a quo acabou por ignorar, privilegiando com isso uma interpretação restritiva dos direitos dos particulares, nos termos acima vistos, que nenhuma justificação encontra quanto olhamos para a lógica estrutural da garantia do acesso ao Tribunal por parte dos cidadãos para reagir contra atos da Administração Pública portuguesa, afigurando-se inaceitável uma decisão tão acentuadamente restritiva da posição jurídica dos particulares como foi a que sucedeu no presente caso.
XCIV. A figura do impedimento da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP é uma norma de caráter sancionatório dos particulares, pelo que a sua interpretação e aplicação concreta tem sempre de se pautar por um critério de paridade entre os mesmos e as entidades adjudicantes enquanto parte da Administração Pública, bem assim por um critério de certeza e segurança, e não de discricionariedade atribuída com base em meras interpretações que fogem àquele que deve ser o âmbito de aplicação de uma lei que se pretende garantística dos direitos dos cidadãos.
XCV. O recurso aos Tribunais para impedir a sua produção de efeitos, mormente, através de uma tutela cautelar de suspensão provisória da eficácia de um ato administrativo de resolução sancionatória do contrato surge como faculdade (e como um verdadeiro direito!) importantíssima, dado que permite equilibrar a posição entre os particulares e a Administração Pública, em que esta exerce supremacia sobre os primeiros, mas agora perante uma entidade terceira com poder de decisão superior a ambas, o Tribunal.
XCVI. É precisamente por assim ser que os particulares que hajam sido objeto de uma resolução sancionatória no âmbito de um contrato público celebrado com a Administração têm de poder reagir contra todos os efeitos nefastos praticados na sua esfera enquanto a validade e a legalidade do mesmo se encontra a ser discutida no âmbito de uma ação impugnatória, e que, no âmago do sistema judicial atual, apenas será possível através de uma ação cautelar tendo em vista a adoção de uma providência cautelar de suspensão provisória da eficácia da decisão de resolução sancionatória, verificando-se, claro está, a totalidade dos 3 (três) requisitos de que depende essa mesma adoção, e que no caso presente verificam-se.
XCVII. Ao decidir como decidiu, por meio do Acórdão recorrido, a verdade é que o Tribunal Central Administrativo Sul, perante normas que podiam gerar dúvidas interpretativas, que não deixam apreender de forma clara e perentória um sentido unívoco, acabou por seguir a orientação que menos permite garantir aos cidadãos o acesso ao Direito e aos Tribunais – leia-se, por assim ser efetiva verdade e a realidade existente, à Justiça.
XCVIII. Surge como patente, à saciedade, a necessidade de o Supremo Tribunal Administrativo se pronunciar no âmbito do presente processo, no sentido de, pelas razões a que se foi aludindo, pugnar por uma “melhor aplicação do direito”.
XCIX. Qualquer restrição do “direito ao acesso ao Direito” dos cidadãos apenas pode ser efetuada segundo um juízo de proporcionalidade, que permita o respeito integral pela lei e pela CRP, juízo esse ao qual todos os Tribunais se encontram igualmente vinculados.
C. Esse juízo implica, nomeadamente, que a restrição que o Tribunal Central Administrativo Sul acabou por legitimar quanto à impossibilidade de suspensão de efeitos da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP em caso de decretamento da providência cautelar de suspensão provisória da eficácia da decisão de resolução sancionatória passe pelo crivo de cada 1 (um) dos 3 (três) subprincípios do princípio da proporcionalidade, e que são, cumulativamente, e por esta ordem, (i) adequação, (ii) necessidade e (iii) proporcionalidade em sentido estrito.
CI. Pois bem, olhando para aqueles que são os factos do caso concreto, e bem assim para a questão jurídica ora discussão, as Recorrentes encontram-se em crer que nenhum destes subprincípios é observado pelo Acórdão recorrido cuja inconstitucionalidade se revela, quanto a nós, clara e flagrante.
CII. Quanto ao princípio da adequação, a interpretação da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP segundo a qual os seus efeitos se produzem sempre, mesmo com o decretamento da providência cautelar requerida, de suspensão provisória de eficácia do ato, bem assim que o impedimento de participação em procedimentos de contratação pública pelo período de 3 (três) anos não pode fundamentar a verificação do requisito do periculum in mora sacrifica, de forma de todo inadequada aos fins em vista, o direito do particular, sem com isso realizar, minimamente que seja, o objetivo que preside à norma, e que é penalizar os Cocontratantes incumpridores de contratos públicos anteriores, já que a existência, ou não, do referido incumprimento no que às Recorrentes diz respeito se encontra a ser discutido em Tribunal no âmbito de uma ação impugnatória principal.
CIII. Nenhuma razão substancial subsiste, para beneficiar a Administração Pública com um total e completo sacrifício do titular do direito, bem assim para sacrificar um particular que, encontrando-se numa zona de incerteza e insegurança gerada pelo impedimento da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP, deveria merecer da lei uma proteção reforçada enquanto a validade e a legalidade do ato administrativo de resolução sancionatória se encontra a ser debatida pelas partes no Tribunal e será decidida, ou não (espera-se) por essa mesma Instância.
CIV. Também a vertente da necessidade é posta em causa, porquanto, tornando inútil, como torna, para a realização dos fins visados pela lei, o sacrifício implicado para o titular do direito, nenhum raciocínio comparativo poderá ser feito relativamente a outras possíveis alternativas menos onerosas.
CV. E quanto à proporcionalidade em sentido estrito, revela-se como patente e notório que esta decisão comporta, decididamente, mais desvantagens do que vantagens.
CVI. Não se vislumbra as vantagens desta interpretação, mas porventura, e tão só, (mais) uma forma de proteção das entidades adjudicantes face a eventuais Cocontratantes incumpridores de contratos públicos anteriores, argumento que, todavia, nunca poderá ser brandido para restringir direitos fundamentais e garantias constitucionalmente protegidas dos cidadãos quando a adjetivação dos Contratantes como incumpridores ainda dependa do seu reconhecimento como tal por parte do Tribunal no âmbito da ação impugnatória principal.
CVII. A decisão do Tribunal a quo, através do Acórdão recorrido, foi a menos razoável, a menos equitativa, a menos proporcional, a menos justa e a menos conforme com a letra e sentido da norma constitucional do artigo 20º da CRP, relativa à tutela jurisdicional efetiva, e dos artigos 2º e 18º da mesma Lei Fundamental, relativos ao princípio da proporcionalidade e do Estado de Direito.
CVIII. Não é aceitável uma penalização dos particulares em 2 (dois) níveis, isto é, primeiramente, e no plano substancial, com o ato de resolução sancionatória inválido e ilegal, que gera danos na esfera jurídica das Recorrentes; e sucessivamente, no seio das formas processuais de reação aos danos nefastos provocados por tal ato, com o total sacrifício do direito que fundamenta o acesso ao Direito aos particulares, assim «barrando» o seu acesso à Justiça por questões, quando muito, de dúvida interpretativa.
CIX. Deverá este Ilustre Tribunal ad quem admitir o presente Recurso de Revista, porquanto a “melhor aplicação do direito” resulta do facto de dever ser corrigido um manifesto erro de julgamento dos pressupostos de Direito, que, aliás, desemboca numa interpretação inconstitucional, por violação dos artigos 2º, 18º, 20º e 268º da CRP, ou seja, do princípio da proporcionalidade e do direito à tutela jurisdicional efetiva.
CX. Para efeitos do nº 1 do artigo 150º do CPTA, a matéria controvertida em análise se reveste de relevância jurídica e social, assumindo, portanto, uma importância fundamental que justifica a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo.
CXI. A importância jurídica do presente Recurso de Revista decorre da necessidade de o Supremo Tribunal Administrativo clarificar o âmbito de aplicação da providência cautelar de suspensão provisória de eficácia do ato administrativo de resolução sancionatória de um contrato público no que à alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP diz respeito – questão versada no Acórdão recorrido -, esclarecendo também a esse ensejo, se se verifica, com o decretamento dessa providência cautelar em casos como o sub judice, uma qualquer violação da reserva de decisão da Administração Pública.
CXII. A pronúncia deste mais Alto Tribunal afigura-se, em específico quanto a esta matéria, como verdadeiramente imperiosa, considerando que nos encontramos in casu a tratar de questões que se colocarão no âmbito de todos os litígios emergentes de uma decisão de resolução sancionatória no que às relações jurídicas contratuais diz respeito, ou seja, à matéria dos contratos públicos, pelo que logo por aqui se revela a importância acrescida da questão a decidir, dada a influência que terá em todas as relações jurídico-administrativas.
CXIII. E manifesta a relevância jurídica fundamental do presente Recurso de Revista, já que o mesmo incide sobre uma questão muito relevante do Direito, em especial, do Direito da Contratação Pública, com a virtualidade de se vir a repetir no futuro, razão pela qual também deverá aquele ser admitido.
CXIV. E é manifesta a utilidade jurídica da questão em crise nos presentes autos, uma vez que a controvérsia subjacente à incidência objetiva dos normativos em apreço é suscetível a interpretações com efeitos muitos distintos, afetando todas as relações jurídicas de contratos públicos celebrados pela Administração com os particulares, num quadro legal que importa esclarecer e clarificar.
CXV. Sendo ainda de notar que existem, por ora, 2 (duas) decisões diferentes nas 2 (duas) Instâncias anteriores, bem assim um Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul recente e consolidado em sentido totalmente contrário ao Tribunal a quo.
CXVI. A isto acresce o facto de existirem sérias dúvidas de inconstitucionalidade de um entendimento como o sufragado pelo Tribunal a quo no âmago do Acórdão recorrido, pelo que a decisão a ser objeto de pronúncia é, de facto, relevante do ponto de vista da matéria jurídica a todos os níveis (administrativo e constitucional).
CXVII. Mas da mesma forma que se conclui quanto à relevância jurídica se deverá concluir no que tange relativamente à importância social fundamental do presente Recurso de Revista, uma que a decisão do Tribunal a quo colocou em alerta todos os operadores económicos que neste momento assumem a posição de Cocontratante em algum ou alguns contratos públicos e que ficam sem compreender como pode existir uma desproteção jurídica tão intensa face ao impedimento da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP caso o Contraente Público com que hajam celebrado um contrato decida, de forma desrazoável, desproporcional, injusta e ilegal pela resolução sancionatória do contrato, como ocorreu in casu.
CXVIII. No seio do presente processo, existe, real e efetivamente, uma questão que, pela sua relevância jurídica e social, se releva de importância fundamental e que por isso justifica a admissibilidade do presente Recurso de Revista, questão essa que facilmente se poderá atestar que se repercutirá em futuras decisões judiciais, dada a evidente complexidade que lhe foi empregue pelo Tribunal a quo ao ter decidido como acabou por decidir.
CXIX. A questão a ser objeto de decisão no âmago do presente processo cautelar preenche todos os critérios de admissibilidade do presente Recurso de Revista fixados no artigo 150º do CPTA, devendo o presente Recurso de Revista ser admitido.
CXX. O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de Direito, o qual acarretará a revogação da decisão recorrida, pela errónea análise que o Tribunal a quo empreendeu sobre a questão sub judice.
CXXI. O Tribunal a quo não colocou em crise o que foi devidamente demonstrado pelas Recorrentes e que foi dado como provado pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que corresponde ao facto de que, se a Recorrente A..., S.A. ficar sob o impedimento de participar em procedimentos de contratação pública pelo período de 3 (três) anos, vendo-se assim coartada de cerca de metade do seu volume de negócios, e na sequência de ter iniciado um PER, outra hipótese não subsistirá à identificada Recorrente que não o encerramento total da sua atividade e a sua apresentação à insolvência.
CXXII. Além disso, não colocou o Tribunal a quo igualmente crise o que foi devidamente demonstrado pelas Recorrentes e que foi dado como verificado pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que corresponde ao preenchimento dos requisitos das providências cautelares relativos ao fumus boni iuris e ao juízo de ponderação de interesses.
CXXIII. O que o Tribunal a quo discorda, porém, é que o impedimento de participação em procedimentos de contratação pública pelo período de 3 (três) anos, que decorre da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP, seja automático, e com isso, dando por não verificado o requisito do periculum in mora.
CXXIV. No que tange ao argumento de que o impedimento da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP não é de aplicação automática, mediando entre a lei e os casos a que esta se aplique um ato da competência da entidade adjudicante, trata-se, como é óbvio, de um pacífico e consensual ponto de partida.
CXXV. Certo é que a referida norma carece de ser interpretada pelas entidades adjudicantes sempre que seja chamada à colação, em função as especificidades e vicissitudes presentes em cada situação concreta.
CXXVI. Incorre o Tribunal a quo num erro de interpretação quando retira da leitura da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP a existência de uma margem de apreciação, e consequentemente de decisão, atribuída pelo legislador às entidades adjudicantes, no preenchimento dos conceitos de “deficiências significativas ou persistentes”.
CXXVII. Terão de se verificar 2 (dois) pressupostos para a entidade adjudicante do caso concreto aplicar o impedimento da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP, a saber: (i) a anterior ocorrência de deficiências significativas e/ou persistentes na execução de um contrato público; (ii) deficiências essas que tenham levado à resolução sancionatória do contrato, por motivo de incumprimento.
CXXVIII. Bastará à entidade adjudicante, para declarar o impedimento e não (poder) admitir ao procedimento o operador a verificação do segundo pressuposto (aplicação nos 3 (três) anos transatos da resolução sancionatória prevista na al. a) do nº 1 do art.º 333.º e regulada nos nºs 1 e 2 do art.º 325º e 333º, todos do CCP), já que o mesmo parece pressupor, por definição, o primeiro (incumprimento significativo e/ou reiterado, nos termos dos ditos nºs 1 e 2 do art.º 325º).
CXXIX. Verificando-se estes pressupostos, terá a entidade adjudicante que declarar o impedimento, nos termos da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP, não lhe assistindo qualquer margem de livre apreciação que inexiste no caso.
CXXX. No que contende com o contrato público celebrado entre as Recorrentes e a Recorrida, a existência ou não de deficiências significativas e/ou persistentes, encontra-se a ser discutida em Tribunal, mais precisamente, no processo nº 1467/23.4BELSB, que corre termos no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, e por apenso ao presente processo cautelar.
CXXXI. Assim sendo, a não aceitação ou não conformação das ora Requerentes/Recorrentes com a dita resolução sancionatória, entre outras consequências, parece excluir a possibilidade de tomada de medidas de possível relevação dos impedimentos, hoje previstas no art.º 55.º-A, uma vez que tal se traduziria inevitavelmente numa aceitação ou reconhecimento do legal fundamento da resolução sancionatória incompatível com a sua impugnação judicial.
CXXXII. Ainda, precisamente em razão do princípio da separação de poderes, nunca poderiam, de todo o modo, as ditas entidades adjudicantes, em casos como o sub judicio, interferir na apreciação da questão controvertida, e antecipar o futuro juízo do Tribunal a quem ela esteja (estivesse) confiada, no caso em apreço na apreciação e decisão da questão subjacente ao processo nº 1467/23.4BELSB, que corre os seus termos no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.
CXXXIII. Inexistindo uma decisão por parte do Tribunal que suspenda provisoriamente os efeitos da referida decisão de resolução sancionatória, a verdade é que ficarão as Recorrentes vinculadas a uma errada, injusta, desproporcionada e ilegal decisão com fundamentado num incumprimento que não era suscetível de ter gerado e justificado tal situação, pelo que é mais que justo, legal e constitucionalmente devido, ao abrigo do direito da tutela jurisdicional efetiva que, fruto dos riscos de prejuízo iminentemente irreparável, como é a insolvência da Recorrente A..., S.A. – facto que sai provado dos presentes autos nas 2 (duas) Instâncias anteriores -, suspenda o Tribunal os efeitos da decisão de resolução sancionatória na pendência da ação principal.
CXXXIV. Se, em especial, a Recorrente A..., S.A. ficar sob tal impedimento, e for a mesma impedida de participar em procedimentos de contratação pública – por o mais provável ser as entidades adjudicantes identificar e confundir o “incumprimento definitivo do contrato por facto imputável ao contratante” com a existência de “deficiências significativas e persistentes na execução” de um contrato público anterior – a mesma não terá outra hipótese, como ficou demonstrado, que não se apresentar à insolvência, ocorrendo que a Sentença a si favorável que venha a ser prolatada na ação principal já não revista qualquer utilidade.
CXXXV. Nenhum sentido faz que as Recorrentes, na pendência da discussão efetuada em Tribunal quanto à existência, ou não, de incumprimento significativo e justificativo de uma decisão de resolução sancionatória, fiquem adstritas a um impedimento a ser aplicado pelas entidades adjudicantes às Recorrentes alicerçado precisamente em tal incumprimento significativo cuja existência e relevância se encontra a ser sindicado.
CXXXVI. Os efeitos nefastos que se produzem na esfera das Recorrentes não decorrem diretamente da lei, mas sim do ato administrativo suspendendo, porquanto, sem este, o impedimento legal ora em apreço não produzirá efeitos, pelo que, atacando-se o ato, e requerendo-se a suspensão provisória da sua eficácia, os efeitos da lei não se produzem e terão de ser removidos do Ordenamento jurídico, sendo assim justo e intensamente devido que, na pendência da discussão sobre a validade do ato, todo e qualquer efeito do mesmo não se produza, atendendo, in casu, a que alguns dos efeitos do mesmo correspondem, note-se, a situações de facto consumado com prejuízos irreparáveis que convirá acautelar.
CXXXVII. Não se percebe como pôde o Tribunal a quo equacionar que, mesmo com a adoção de uma providência cautelar de suspensão provisória da eficácia do ato administrativo de resolução sancionatória, que suspende, note-se, todos os efeitos do mesmo na pendência da ação impugnatória principal, houvesse um efeito que, mesmo assim, sempre se produziria e que passa pelo impedimento da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP, com essa decisão tendo, inclusive, desrespeitado aquela que era a sua recente Jurisprudência consolidada.
CXXXVIII. Destarte, afirmou o Tribunal a quo que caso a providência cautelar requerida fosse decretada e suspendesse provisoriamente os efeitos do ato administrativo de resolução sancionatória, conhecendo os atrasos de decisão em sede de jurisdição administrativa, então a alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP nunca teria aplicação efetiva às Recorrentes, pois o prazo de 3 (três) anos decorreria, mas não produziria efeitos, fruto da providência cautelar.
CXXXIX. A utilização de um argumento com este teor viola os mais elementares princípios e as mais básicas regras de Direito que têm em vista proteger os particulares e garantir a sua tutela jurisdicional efetiva.
CXL. Na ação principal de impugnação do ato administrativo ora suspendendo nos presentes autos, encontram-se as partes a discutir a validade e a legalidade de um ato de resolução sancionatória, e tal ato produziria naturalmente os seus efeitos, não fosse a instauração e o decretamento da providência cautelar de suspensão provisória da eficácia desse mesmo ato administrativo, através do presente processo cautelar.
CXLI. Obviamente que não pode servir como argumento para desproteger a esfera das Recorrentes o facto de os Tribunais da jurisdição administrativa demorarem vários anos a decidir sobre as suas ações, assim se desconsiderando totalmente o mais que provado periculum in mora que justifica a procedência do processo cautelar.
CXLII. A proteção das Recorrentes, atendendo aos perigosos iminentes e que saem provados dos presentes autos, quando muito, seria por excesso, nunca por defeito.
CXLIII. Quando sob o jugo de um ou de vários impedimentos consagrados na alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP, os operadores económicos não podem sequer apresentar uma proposta no seio do procedimento pré-contratual em questão, sob pena de sanções de vária ordem, nomeadamente contraordenacional e de aplicação de coimas, bem como de várias sanções acessórias,
CXLIV. Ao passo que quanto a proposta padece de uma ou de várias causas de exclusão, os operadores económicos puderam, ainda assim, participar no procedimento, mas apenas tendo como consequência a exclusão da sua proposta do procedimento, por não se encontrar a mesma em condições de ser admitida.
CXLV. São estes 2 (dois) tipos de afastamento de procedimentos diferentes, com finalidades distintas e que por isso têm uma aplicação teleologicamente diferente, merecendo uma aplicação e uma interpretação consentânea com todas estas suas diferenças.
CXLVI. Consagrou o legislador na alínea a) do artigo 456º do CCP que “constitui contraordenação punível com coima de (euro) 2000 a (euro) 3700 ou de (euro) 7500 a (euro) 44 800, consoante seja aplicada a pessoa singular ou a pessoa coletiva: a) a participação de candidato ou de concorrente que se encontre em alguma das situações previstas no artigo 55º, (…) no momento da apresentação da respetiva candidatura ou proposta, da adjudicação ou da celebração do contrato” (realce nosso).
CXLVII. Bastará a este Douto Tribunal ad quem apenas considerar a situação em que a Recorrente A..., S.A. se encontra neste momento para concluir que a interpretação realizada pelo Tribunal a quo não tem razão alguma ou sequer sentido atendendo à desproteção em que deixa entidades na situação da mencionada Recorrente.
CXLVIII. A mesma encontra-se agora numa zona e numa situação de completa incerteza e insegurança, na estrita medida em que, ou não participa em procedimentos de contratação pública e isso resultará na sua falência definitiva, ou participa esperando que as entidades adjudicante não afastem a sua participação em virtude do impedimento da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP, no juízo a que o Tribunal a quo faz referência quanto fala da possibilidade de as entidades adjudicantes aplicarem ou não o impedimento ora em apreço.
CXLIX. Mas, com isso, correndo o risco de incorrer em algum comportamento contraordenacional e de lhe serem aplicadas coimas que, atendendo à situação financeira daquela Recorrente, apenas agravariam ainda mais as dificuldades de manutenção da sua atividade.
CL. E nem se diga, como parece também o Tribunal a quo fazer crer, que, ao invés do decretamento da providência cautelar requerida no presente processo cautelar, sempre poderiam as Recorrentes impugnar, no futuro, uma qualquer decisão de afastamento de um procedimento pré-contratual com fundamento na alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP.
CLI. Basta pensar, para o efeito, que a impugnação judicial de todas quanto fossem as decisões de afastamento dos procedimentos de contratação pública das Recorrentes, de forma isolada, daria origem a inúmeros processos, causando não apenas uma maior morosidade da prolação de decisões por parte dos Tribunais (que as Recorrentes não pretendem e que não podem justificar o seu prejuízo e desproteção, como acima demonstrado), mas também uma maior fragilidade da posição das Recorrentes, que se viam a cargos na elaboração de propostas que não teriam sucesso, a cargos em momento subsequente para reclamar e impugnar a decisão de aplicação do impedimento, e ainda, em última análise, a cargos com as coimas que eventualmente lhe fossem injustificadamente aplicadas.
CLII. Não merece acolhimento o argumentário aduzido pelo Tribunal a quo, estando por isso o presente o Acórdão recorrido vetado ao fracasso, devendo o mesmo ser revogado e substituído por outro que julgue a presente ação cautelar procedente.
CLIII. Deverá teste Ilustre Tribunal ad quem dar como preenchidos todos os pressupostos de decretamento das providências cautelares, em especial, o periculum in mora, nos termos e com os fundamentos acima aduzidos.
CLIV. À luz preceitos constitucionais – com os quais o Tribunal a quo deveria e o Tribunal ad quem deverá conformar a interpretação da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP, em casos de decretamento da providência cautelar de suspensão provisória da eficácia do ato administrativo de resolução sancionatória, com os referidos normativos da Lei Fundamental.
CLV. De contrário, conduzirá a uma interpretação como a realizada pelo Tribunal a quo sobre o significado e alcance dos referidos normativos, que leva a resultados injustos, desrazoáveis e desproporcionados, tornando-a (a ela, interpretação seguida no dito Acórdão) inconstitucional por violação do nº 2 do artigo 18º da CRP.
CLVI. Está em causa na situação sub judicio um direito fundamental que é são desproporcionalmente e desrazoavelmente afetado por este entendimento: o direito à tutela jurisdicional efetiva.
CLVII. No caso, sai seriamente lesada por força dessa deletéria interpretação da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP, sobretudo (e decisivamente) quando aplicado às relações jurídico-administrativas, como as que estão em causa neste litígio que opõe as Recorrentes e a Recorrida.
CLVIII. No âmbito de um Estado Democrático de Direito, o princípio da tutela jurisdicional efetiva, olhado de uma perspetiva de máxima garantia dos cidadãos, em sentido amplo, deve permitir, sempre que possível, e em respeito pela Lei, o acesso ao Direito e aos Tribunais àqueles, para proteção dos seus direitos e interesses legalmente (e constitucionalmente, diga-se) protegidos, em suma, o acesso dos particulares à Justiça, mesmo que contra a Administração Pública.
CLIX. O artigo 20º da CRP é conformado por critérios orientadores de justiça, os quais exigem que o legislador ordinário e os Tribunais tenham uma visão de fundo sobre todo o ordenamento jurídico português, isto é, uma visão sistémica, de modo a evitar qualquer situação de injustiça, causada, mormente, por interpretações desproporcionados e artificiais que resultam na limitação e sonegação do direito de acesso aos Tribunais e à Justiça consagrado no artigo 20º da CRP aos cidadãos titulares do direito em causa.
CLX. E que, em última análise, correspondem para aqueles (os cidadãos) a interpretações incompreensíveis, que se movem unicamente no mundo do Direito e que não têm qualquer adesão à realidade prática, não podendo os cidadãos contar com as mesmas, pois qualquer interpretação demasiado restritiva dos seus direitos não é naturalmente antecipada pelos mesmos, e vai contra a lógica e o espírito de máxima proteção possível dos particulares face a atuações ilícitas da Administração Pública resultante da CRP e da mais autorizada doutrina jurídico-constitucionalista.
CLXI. É flagrante o erro decorrente de uma excessiva abstração e do despreendimento das vicissitudes e das especificidades do Direito Administrativo, que o Tribunal a quo acabou por ignorar, privilegiando com isso uma interpretação restritiva dos direitos dos particulares, nos termos acima vistos, interpretação essa que não encontra justificação quanto olhamos para a lógica sistemática e estrutural da garantia do acesso ao Tribunal por parte dos cidadãos para reagir contra atos da Administração Pública portuguesa, afigurando-se inaceitável uma decisão tão acentuadamente restritiva da posição jurídica dos particulares como foi a que sucedeu no presente caso.
CLXII. O recurso aos Tribunais para impedir a produção de efeitos do impedimento da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP, mormente, através de uma tutela cautelar de suspensão provisória da eficácia de um ato administrativo de resolução sancionatória do contrato surge como faculdade (e como um verdadeiro direito!) importantíssima, dado que permite equilibrar a posição entre os particulares e a Administração Pública, em que esta exerce supremacia sobre os primeiros, mas agora perante uma entidade terceira com poder de decisão superior a ambas, o Tribunal.
CLXIII. O recurso aos Tribunais para impedir efeitos nefastos na esfera dos particulares, mesmo que provenientes da Administração Pública é uma manifestação importante, senão a mais importante, da tutela jurisdicional efetiva dos cidadãos.
CLXIV. É precisamente por assim ser que os particulares que hajam sido objeto de uma resolução sancionatória no âmbito de um contrato público celebrado com a Administração têm de poder reagir contra todos os efeitos nefastos praticados na sua esfera enquanto a validade e legalidade do mesmo se encontra a ser discutida no âmbito de uma ação impugnatória, e que, no âmago do sistema judicial atual, apenas será possível através de uma ação cautelar tendo em vista a adoção de uma providência cautelar de suspensão provisória da eficácia da decisão de resolução sancionatória, verificando-se, claro está, a totalidade dos 3 (três) requisitos de que depende essa mesma adoção, e que no caso presente verificam-se.
CLXV. A Recorrente A..., S.A. acabará, vendo-se impedida de participar em procedimentos de contratação pública pelo período de 3 (três) anos – como sai demonstrado dos presentes autos e foi dado por provado nas instâncias anteriores -, por se ter de apresentar à insolvência.
CLXVI. Ao decidir como decidiu, por meio do Acórdão recorrido, a verdade é que o Tribunal Central Administrativo Sul, perante normas que podiam gerar dúvidas interpretativas, que não deixam apreender de forma clara e perentória um sentido unívoco, acabou por seguir a orientação que menos permite garantir aos cidadãos o acesso ao Direito e aos Tribunais – leia-se, por assim ser efetiva verdade e a realidade existente, à Justiça.
CLXVII. Qualquer restrição do “direito ao acesso ao Direito” dos cidadãos apenas pode ser efetuada segundo um juízo de proporcionalidade, que permita o respeito integral da lei e da CRP, juízo esse ao qual todos os Tribunais se encontram igualmente vinculados.
CLXVIII. Esse juízo implica, nomeadamente, que a restrição que o Tribunal Central Administrativo Sul acabou por legitimar quanto à impossibilidade de suspensão de efeitos da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP em caso de decretamento da providência cautelar de suspensão provisória da eficácia da decisão de resolução sancionatória, passe pelo crivo de cada 1 (um) dos 3 (três) subprincípios do princípio da proporcionalidade, e que são, cumulativamente, e por esta ordem, (i) adequação, (ii) necessidade e (iii) proporcionalidade em sentido estrito.
CLXIX. Pois bem, olhando para aqueles que são os factos do caso concreto, e bem assim para a questão jurídica ora discussão, as Recorrentes encontram-se em crer que nenhum destes subprincípios é observado pelo Acórdão recorrido cuja inconstitucionalidade se revela, quanto a nós, clara e flagrante.
CLXX. A decisão do Tribunal a quo, através do Acórdão recorrido, foi a menos razoável, a menos equitativa, a menos proporcional, a menos justa e a menos conforme com a letra e sentido da norma constitucional do artigo 20º da CRP, relativa à tutela jurisdicional efetiva, e dos artigos 2º e 18º da mesma Lei Fundamental, relativos ao princípio da proporcionalidade e do Estado de Direito.
CLXXI. E nem se diga que tal decisão foi tomada por questões de segurança e certeza jurídicas, porquanto tal questão não foi sequer levantada na fundamentação em que o Tribunal a quo alicerçou a decisão.
CLXXII. Mais a mais, não se compreende em que termos de certeza e segurança ficaram os particulares com uma decisão que limita e restringe o seu acesso à Justiça, nos termos acabados de descrever e fundamentar, e que conclui de forma inaceitável que de nenhuma forma podem aqueles reagir contra os efeitos da alínea l) do nº 1 do artigo 55º do CCP quando a mesma resulte de um ato de resolução sancionatória inválido e ilegal!
CLXXIII. Isto posto, deverá este Douto e Ilustre Tribunal ad quem revogar tal decisão do Tribunal a quo, por se encontrar o mesmo em desconformidade com o Direito, concluindo pela existência de um erro a essa tão fulcral matéria (do Direito), consubstanciando uma decisão incorreta, por fazer um erróneo enquadramento jurídico no que tange com os factos alegados e provados.»
*
A recorrida IP, apresentou contra-alegações, onde formulou as seguintes conclusões:
«1. Ao contrário do que pretendem fazer crer as Recorrentes no Ponto XXI das conclusões das suas alegações de recurso, existe prejuízo para a Recorrida que obste à atribuição de efeito suspensivo ao presente Recurso.
2. Os prejuízos para a IP com a manutenção do vínculo contratual de um contrato que, na prática, já não existe, são maiores - nomeadamente a exigência do cumprimento das obrigações contratuais decorrentes da vigência do contrato - do que os prejuízos alegados pelas Recorrentes que, como se encontra claramente exposto no acórdão de 12 de dezembro de 2023 do Tribunal Central Administrativo Sul, não existem, dado que não existe periculum in mora.
3. De facto, como menciona o Tribunal Central Administrativo Sul, na página 20 do seu acórdão de 12 de dezembro de 2024, “falece a premissa do Tribunal a quo para o deferimento da providência baseada nos efeitos derivados (automaticamente) do art. 55º, nº1 al. l) do CCP, para as Requerentes que ficariam impedidas de concorrer a futuros concursos públicos”.
4. Quanto ao motivo alegado pelas Recorrentes para a revista, a presente questão não possui relevância jurídica de importância fundamental, pois esta apenas se verifica quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou quando o tratamento da matéria suscita dúvidas quer quanto à jurisprudência quer quanto à doutrina.
5. A questão em apreço também não tem relevância social fundamental, que apenas se verifica quando a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos ou, ainda, quando esteja em causa uma questão em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto.
6. A presente questão também não se inclui na situação em que haja necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito, que resulta da possibilidade de repetição em casos futuros e a consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes.
7. Conforme refere o Tribunal Central Administrativo Sul, na página 20 do seu acórdão de 12 de dezembro de 2024, “falece a premissa do Tribunal a quo para o deferimento da providência baseada nos efeitos derivados (automaticamente) do art. 55º, nº 1 al. l) do CCP, para as Requerentes que ficariam impedidas de concorrer a futuros concursos públicos”.
8. E, refere ainda o acórdão de 12 de dezembro de 2024, na página 20, na medida em que ”a eventual suspensão de efeitos da presente decisão cautelar, como se expôs, não pode obstar a que em futuros procedimentos a que as Requerentes possam vir a concorrer as entidades adjudicantes fiquem impedidas de aferir das condições impeditivas ou não de participação no respectivo procedimento”.
9. Assim, conforme refere o acórdão de 12 de dezembro de 2024, na página 20, “não se pode manter o decidido pelo Tribunal a quo, pelo que será de conceder provimento ao recurso e julgar inverificado o requisito do periculum in mora”.
10. E, continua o acórdão de 12 de dezembro de 2024, na página 20, “faltando este requisito, cumulativo e essencial ao deferimento da providência, atento o disposto no nº 1 do art. 120º do CPTA, então será de conduzir à improcedência do pedido cautelar, como se decidirá a final”.
11. Deste modo, deverá concluir-se que não se verifica no caso dos autos, o requisito do periculum in mora.
12. A situação invocada para a resolução sancionatória do contrato é muito clara e enquadra-se nas “situações de grave violação das obrigações assumidas pelo cocontratante” (artigo 333º, nº 1, do CCP), como é possível verificar nos documentos contantes do Processo Administrativo, pois trata-se do total incumprimento da obrigação de prestar Assistência Técnica pelas Recorrentes, que deveriam responder aos problemas suscitados pelos empreiteiros quanto aos erros e omissões de projetos, não o tendo feito.
13. Deste modo, é importante afirmar que face ao total incumprimento da obrigação de prestar Assistência Técnica pelas Recorrentes e porque, como facilmente se constata pela análise dos documentos constantes do Processo Administrativo, a gravidade da situação era “de tal ordem que não se compadece com a adoção de vias intermédias”, a resolução sancionatória foi aplicada como último recurso.
14. É importante, ainda, afirmar que na decisão de resolução sancionatória do contrato, a IP expõe as causas para tal decisão, remetendo a fundamentação para os documentos a que faz expressamente referência e que constam do Processo Administrativo e não indica os prejuízos daí resultantes, que não estão, nem podem estar, completamente apurados.
15. Assim, é improvável que a pretensão formulada no processo principal venha a ser julgada procedente.
16. De acordo com o nº 2 do artigo 120º do CPTA, a adoção da providência é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências.
17. Relativamente à “ponderação de interesses”, importa esclarecer que a suspensão da eficácia da deliberação impediria a imediata resolução do contrato que, na prática, por responsabilidade exclusiva do Consórcio D..., já não se encontra em curso, o que prejudicaria o interesse público.
18. A “solução alternativa”, adotada pela IP face às circunstâncias conhecidas, de forma a mitigar o impacto da falta de resposta do Consórcio D... e que implica a mobilização de meios humanos da IP para este contrato, é apenas uma “solução de recurso”, sendo necessária uma “solução estruturada” para a prestação da Assistência Técnica.
19. A manutenção da vigência do contrato, que urge evitar, além de obrigar à manutenção das obrigações contratuais decorrentes do referido contrato, iria impedir a eventual adoção de novo procedimento de formação de contrato e significaria novos atrasos resultantes da espera pelas respostas do Consórcio D..., que continuaria a não responder ao que lhe é questionado, resultando em atrasos nas empreitadas, que iriam certamente resultar em mais pedidos de reequilíbrios financeiros e colocariam em risco o financiamento comunitário, que se encontra dependente do prazo de execução das empreitadas.
20.I - Quando está em causa a adopção de uma providência conservatória, o critério legal de decisão, relativamente ao requisito da aparência do bom direito, é um critério largo, bastando, para o efeito, que não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão a formular no processo principal [art. 120º/1/b) CPTA]. II - O Tribunal não deve decretar a providência quando, feita a ponderação prevista no artigo 120º/2 CPTA, entender que os danos que resultariam para o interesse público da concessão da medida cautelar, se mostram superiores aos danos que podem resultar para a Requerente da recusa da suspensão de eficácia do acto” (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 08.01.2014, no Proc. nº 01836/13, disponível em www.dgsi.pt).
21. Face ao exposto, o douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 12 de dezembro de 2024 deverá ser totalmente confirmado, devendo ser mantida a eficácia da deliberação do Conselho de Administração Executivo da IP, tomada na Reunião nº 410/IP/2023, de 24.01.2023.»
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O “recurso de revista” foi admitido por acórdão deste STA [formação a que alude o nº 6 do artº 150º do CPTA], proferido em 08 de Fevereiro de 2024.
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O Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artº 146º do CPTA, não emitiu pronúncia.
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Por despacho proferido no TCA Sul em 23.01.2024 foi indeferido o pedido de atribuição de efeito suspensivo ao presente recurso de revista.
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Sem vistos, por não serem devidos.
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2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. MATÉRIA DE FACTO
Na decisão recorrida foi considerada indiciariamente provada a factualidade, para a qual se remete nos termos do artº 663º, nº 6 do CPC, ex vi, do artº 140º do CPTA, destacando-se:
«A) Em 8 de julho de 2016, foi celebrado entre as Requerentes e a Requerida, o contrato de prestação de serviços para a elaboração do “Estudo de Viabilidade, Estudo Prévio, Estudo de Impacte Ambiental, Projeto de Execução e RECAPE para a Modernização da Linha da Beira Alta no troço Pampilhosa-Mangualde”, com o preço contratual de 3.598.000,00€ e prazo de execução de 420 dias (cf. pasta 01 Contratação/01 Contrato Inicial/05 Contrato, do Processo Administrativo apenso aos autos, adiante PA);
(…)
G) Em 8 de fevereiro de 2023, a Requerente A…recebeu uma comunicação da Requerida com o seguinte teor:
“(…)
[Imagem]

[Imagem]
(….).”
(cf. fls. 136 ss., no SITAF, e documento 41, pasta 03 - Assist Técnica, do PA);
H) Em 2022, a faturação da Requerente A…, relativa a clientes públicos representou 56,4% da faturação desse ano (cf. fls. 1049 ss., no processo principal, no SITAF).»
Factos não provados:
1) A Requerente B... tem um volume de negócios em Portugal entre 7% e 10% da sua faturação anual global;
2) A Requerente C... tem um volume de negócios em Portugal, com origem em procedimentos de contratação pública, de 17% da sua faturação anual;
3) A Requerente C... emprega, na sua filial em Portugal, onze trabalhadores.
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2.2. O DIREITO
Como supra se deixou enunciado, está em causa nos pressentes autos, a suspensão de eficácia da deliberação de 24.01.2023 do Conselho de Administração Executivo da I.P. que resolveu o contrato de prestação de serviços nº ...16 para a elaboração do “Estudo de Viabilidade, Estudo Prévio, Estudo de Impacte Ambiental, projecto de Execução e RECAPE para a modernização da Linha da Beira Alta, no troço Pampilhosa-Mangualde e decidiu exercer o direito indemnizatório decorrente do incumprimento deste contrato.
O TAC de Lisboa – Juízo de Contratos Públicos, em sede de primeira instância, por sentença proferida em 16.08.2023, julgou o processo cautelar procedente, designadamente, verificados os requisitos do periculum in mora, fumus boni iuris, e em sede de ponderação de interesses, julgou, entre o mais, que os danos que resultariam da recusa da providência seriam superiores aos que decorrem da sua concessão, na medida em que a prestação dos esclarecimentos que sejam devidos pelas requerentes permitirá a continuação da execução e conclusão das obras em causa, sendo que a sua recusa redundaria no afastamento (ou a colocação numa situação de grande fragilidade por dependerem de decisões individuais de revelação do impedimento) das requerentes no mercado dos contratos públicos, e nesta consonância, determinou a suspensão de eficácia da deliberação de 24 de Janeiro de 2022, do Conselho de Administração Executivo, da IP.
Refira-se, porque relevante que quanto ao requisito do periculum in mora, deixou-se ali consignado:
«“(…)
No que respeita à aplicabilidade da sanção prevista no artigo 464º-A, nº 1, alínea b), do CCP, não se vislumbra que decorra qualquer prejuízo, tutelável nesta sede, para as Requerentes.
Em primeiro lugar, não está preenchido o requisito da norma, na qual se impõe que tenham ocorrido duas resoluções sancionatórias de contratos, pelo que, como bem assinalam as Requerentes, se trata de uma situação hipotética. Em segundo lugar, a sujeição a tal sanção não se traduz na sua aplicação imediata e automática, a entidade competente terá de observar um procedimento contraditório e em que são asseguradas as garantias de defesa das Requerentes.
Assim, não estando preenchida a previsão legal que faria integrar as Requerentes no âmbito de aplicação da norma em causa, não pode admitir-se que a decisão de resolução sancionatória do contrato, celebrado com a Requerida, seja suscetível de causar os prejuízos que decorreriam da verificação daquela disposição e da sua concreta aplicação a cada uma das Requerentes.
A situação é distinta no que concerne ao impedimento previsto no artigo 55º, nº 1, alínea l), do CCP.
Este preceito tem o seguinte teor:
1 –Não podem ser candidatos, concorrentes ou integrar qualquer agrupamento, as entidades que:
“l) Tenham causado deficiências significativas ou persistentes na execução de, pelo menos, um contrato público anterior nos últimos três anos, tendo tal facto conduzido à resolução desse contrato por incumprimento (…).”
A declaração, de apresentação obrigatória (artigo 57º, nº 1, alínea a), do CCP), que corresponde ao anexo I, do CCP, inclui o seguinte segmento:
“4 –Mais declara, sob compromisso de honra, que não se encontra em nenhuma das situações previstas no nº 1 do artigo 55º do Código dos Contratos Públicos.”
Ou seja, os operadores económicos, que se encontrem na situação das Requerentes, estão impedidos de participar em procedimentos de contratação pública, em face da resolução sancionatória do contrato, sendo que se o fizerem estão obrigados a informar a entidade adjudicante, em concreto, sobre a causa do não preenchimento da previsão da citada alínea l), com o fito de lograrem a relevação de tal impedimento (artigo 55º-A, do CCP).
Está, assim, em causa uma consequência imediata e automática da tomada da decisão de resolução sancionatória do contrato, que se encontra impugnada na ação principal a tramitar neste Tribunal.
Trata-se de uma situação que é suscetível de causar prejuízos às Requerentes, quer por via da (auto)inibição de participação nos procedimentos de contratação pública, quer por via da identificação de um facto negativo a seu respeito, cuja relevação pode não ser alcançada (artigo 55º-A, do CCP) e que será, certamente, objeto de discussão jurídica no âmbito dos procedimentos em que venham a ocorrer.
Nesta medida, o impedimento em apreço é suscetível de produzir prejuízos cuja reparação será difícil e, até, que não serão sequer suscetíveis de reparação integral, a significar que se verifica o requisito do periculum in mora.
Importa, no entanto, determinar qual a dimensão que este efeito é apto a produzir na esfera jurídica das Requerentes, através da ponderação do peso que o mercado dos contratos públicos tem na atividade de cada uma delas.
A Requerente FASE está numa situação de grande dependência deste mercado, na medida em que, no ano de 2022, a sua faturação com origem em contratos públicos se cifra em 56,4% da faturação anual (cf. alínea H), do probatório).
A eliminação desta fatia da faturação da Requerente produz inequivocamente prejuízos de difícil reparação e que podem colocar em causa a sua permanência no mercado.
As Requerentes B... e C... alegam que o mercado dos contratos públicos tem um peso de 7% a 10% e de 17%, respetivamente, na sua faturação anual, mas não lograram fazer prova de tais asserções, nem da contratação de onze trabalhadores, por parte da Requerente C....
Visto isto, pode concluir-se que a não suspensão dos efeitos da deliberação adotada pela Requerida, de resolução sancionatória do contrato, produz prejuízos de difícil reparação na esfera das Requerentes, pela simples circunstância de lhes impor que, pretendendo participar em procedimentos de contratação pública, identifiquem a referida resolução – que constitui um impedimento – com o fito de alcançarem a sua relevação para o concreto procedimento em que se tenham apresentado, individualmente ou em conjunto.
Este efeito é automático e, portanto, tem aptidão para gerar prejuízos cuja reparação será muito difícil, sendo que a mensuração desses prejuízos, em relação à Requerente F… pode traduzir-se na perda de mais de 50% da faturação anual, tendo por referência o ano de 2022.
Ainda que não tenha sido determinada a dimensão da perda de faturação expectável das demais Requerentes, o certo é que, seja qual for esse impacto no volume de negócios que detenham em Portugal, com origem no mercado dos contratos públicos, se encontram colocadas numa situação em que, por efeito da adoção da decisão de resolução sancionatória do contrato, estão impedidas de participar em procedimentos de contratação pública – o que gera, por si mesma, um prejuízo de difícil reparação.
Ante o exposto é de concluir que se verifica, no caso dos autos, o requisito do periculum in mora.”».
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Interposto recurso de apelação desta decisão para o TCAS, veio este a revogar o assim decidido, conhecendo, para tanto, apenas do requisito do periculum in mora, não o julgando verificado.
E neste segmento, depois de se analisar a matéria de facto dada como não provada, decidiu-se:
«Logo, somente em relação a um dos membros do consórcio externo foi possível aferir os valores da facturação anual (alínea H) do probatório). Mas sem qualquer outro facto designadamente o saldo contabilístico, as perdas, volume de negócios, etc., ficando por perceber qual o impacto efectivo na vida financeira da empresa, nomeadamente as receitas/proveitos provenientes do contrato em causa (alínea A) do probatório). O que entronca no alegado pela Recorrente quanto à já debilitada situação de uma das consorciadas /Requerentes, mesmo antes da decisão suspendenda.
Não foi, pois, demonstrado qual o volume de negócios da presente empreitada para a contabilidade e capacidade financeira de qualquer das empresas que integram o consórcio externo, para se perceber qual o impacto na empresa da presente decisão de rescisão indicada em G) do probatório, de modo a se demonstrar os prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal (nº 1 do art. 120º do CPTA).
Apercebendo-se disso, ainda que não expressamente, o Tribunal a quo para a verificação do aludido requisito relativo ao periculum in mora justificou que independentemente de qual seja “impacto no volume de negócios que [as Requerentes] detenham em Portugal, com origem no mercado dos contratos públicos, se encontram colocadas numa situação em que, por efeito da adoção da decisão de resolução sancionatória do contrato, estão impedidas de participar em procedimentos de contratação pública – o que gera, por si mesma, um prejuízo de difícil reparação.
Acontece que, o impedimento previsto no artigo 55º, nº 1, al. l) do Código dos Contratos Públicos não é de aplicação automática, dependendo da verificação de três condições, como desenvolve Pedro Costa Gonçalves, in Direito dos Contratos Públicos, 5ª edição págs. 698 a 702, para o qual se remete.
O presente litígio reveste contornos de alguma complexidade ao nível dos limites e conteúdo do princípio da separação e interdependência de poderes (art. 3º, nº 1 do CPTA e art. 111º da CRP), assim como sempre estaria o Tribunal a impedir os efeitos derivados directamente da lei e não do acto administrativo.
Explicitando:
O citado artigo 55º, nº 1, al. l) do CCP representa a transposição para o direito nacional de o motivo de exclusão previsto no artigo 57º, nº 4, al. g) da Directiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos, que teve o propósito de autorizar as entidades adjudicantes a afastar dos procedimentos de contratação contratantes incumpridores.
Chamado a pronunciar-se o Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão Meca Srl/Comune di Napoli, do TJUE, Proc. C-41/18, 19.06.2019, declarou que:
“O artigo 57º, nº 4, alíneas c) e g), Diretiva 2014/24/EU (…), deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional ao abrigo da qual a impugnação judicial da decisão de resolver um contrato público tomada por uma autoridade adjudicante devido a deficiências significativas verificadas durante a sua execução impede a autoridade adjudicante que lança um novo concurso de efetuar qualquer apreciação, na fase da seleção dos proponentes, sobre a fiabilidade do operador a que diz respeito essa resolução”.
Esta temática foi também suscitada por Miguel Neiva de Oliveira, “A Exclusão de Concorrentes com Fundamento em Deficiências na Execução de Contratos Passados” in Estudos de Homenagem a Mário Esteves de Oliveira, Tomo II, 2018, pág. 836, onde à pergunta: “E se tiver a ver com uma decisão que ainda se encontre pendente em tribunal?
Expendeu:
“(...)
Conforme temos vindo a defender ao longo do presente estudo, não está em causa se a decisão de exclusão se funda, necessariamente, numa deficiência grave que tenha dado origem à rescisão de contrato anterior (e, eventualmente à condenação por danos) e, sequencialmente, depois de ter resultado nessa decisão por parte da entidade adjudicante e o contraente com a mesma não tenha concordado o mesmo a haja impugnado em sede judicial (e que, nesse último caso, ainda seria necessário aguardar por uma decisão transitada em julgado que pudesse legitimar a actuação da entidade adjudicante).
O que verdadeiramente releva (ou devia relevar) prende-se com conferir a uma entidade adjudicante a possibilidade de, caso se verifiquem todos os pressupostos e, claro, o respeito pelos princípios da contratação pública, afastar um potencial contratante com quem (fundadamente antecipa) sabe que a execução do contrato a celebrar irá revelar-se defeituosa, problemática, tormentosa e, nessa sequência, prejudicial para o interesse público.
Acresce que, fazer depender esta possibilidade de uma anterior decisão judicial transitada em julgado que atestasse as deficiências anteriores, através da legitimação de uma rescisão ou de uma condenação definitiva por danos, seria inócuo e acabaria por abranger um número manifestamente escasso de casos em que se justificaria uma decisão deste calibre.
Claro que, e já supra se mencionou, terá que haver um controlo judicial reforçado nesta matéria, no sentido em que, aí sim, uma decisão tomada com este fundamento possa e deve ser sindicada judicialmente de modo rigoroso, assim se evitando decisões discricionárias, subjectivas e infundamentadas”.
Acresce ainda um outro argumento, pois que prevendo o art. 55º, nº 1, al. l) do CCP que a declaração de impedimento só é possível quando esteja em causa “um contrato público anterior nos últimos três anos”, sendo certo, atento o atraso nesta jurisdição, de todos conhecido, nos processos não urgentes, então, quando transitasse em julgado a acção principal jamais seria possível a “efectiva” aplicação do aludido impedimento, ainda que viesse a improceder.
Não se trata, pois, de afastar os eventuais efeitos derivados da demora da acção principal.
Além disso, estar-se-ia a limitar a uma futura entidade adjudicante o juízo que só a esta cabe no âmbito do aludido possível impedimento.
Considerando (101) da Directiva as Entidades Adjudicantes “Deverão também ter a possibilidade de excluir os candidatos ou proponentes cujo desempenho no âmbito de anteriores contratos públicos tenha acusado deficiências graves no que se refere aos requisitos essenciais, por exemplo, falhas na entrega ou execução, deficiências significativas do produto ou do serviço prestado que os tornem inutilizáveis para o fim a que se destinavam, ou conduta ilícita que levante sérias dúvidas quanto à fiabilidade do operador económico”.
Ideia que perpassa do citado Acórdão Meca, de que cabe às entidades adjudicantes e não aos Tribunais “neutralizar” o efeito em caso de resolução, de aplicação de multa ou de cessão da posição contratual, como se pode extrair de algumas premissas do Acórdão do TJUE no sentido de que “resulta assim da redação da referida disposição [da Diretiva] que foi às autoridades adjudicantes, e não a um órgão jurisdicional nacional, que foi confiada a tarefa de apreciar se um operador económico deve ser excluído de um procedimento de contratação” (par. 28), pois que “ambos os motivos de exclusão [artigo 57.º, n.º 4, alíneas c) e g), da Directiva 2014/24] têm como fundamento um ingrediente essencial da relação do adjudicatário do contrato com a autoridade adjudicante, a saber, a fiabilidade do primeiro, na qual assenta a confiança que a segunda deposita naquele (par. 30).
Ou ainda quando alude que, “se uma autoridade adjudicante devesse estar automaticamente vinculada por uma apreciação efetuada por um terceiro, ser-lhe-ia provavelmente difícil prestar especial atenção ao princípio da proporcionalidade no momento de aplicar as causas facultativas de exclusão (par. 32).
Prosseguindo, “o poder de apreciação dos Estados-Membros não é absoluto e que, uma vez que um Estado-Membro decida incorporar um dos motivos facultativos de exclusão previstos na Diretiva 2014/24, deve respeitar as suas características essenciais, conforme definidas nesta última. Ao esclarecer que os Estados-Membros devem ter «em conta o direito da União» quando especificarem «as condições de aplicação do presente artigo», o artigo 57.º, nº 7, da Diretiva 2014/24 obsta a que os Estados-Membros desvirtuem os motivos facultativos de exclusão estabelecidos nesta disposição ou ignorem os objetivos e os princípios subjacentes a cada um desses motivos” (par. 33). “Ora, como foi salientado no nº 28 do presente acórdão, resulta da redação do artigo 57º, nº 4, da Diretiva 2014/24 que o legislador da União entendeu atribuir à autoridade adjudicante, e só a esta, na fase da seleção dos proponentes, a tarefa de apreciar se um candidato ou um proponente deve ser excluído de um procedimento de contratação” (par. 34).
Como o sobredito Prof. Pedro Costa Gonçalves parece reconhecer, na 6ª edição da citada obra, o Direito dos Contratos Públicos, p. 621, deixando a dúvida em que mesmo quando o Tribunal decrete a suspensão dos efeitos da resolução, da cessão da posição contratual ou de decisões de aplicação de multas, “mesmo neste caso, talvez não seja de dar como definitivamente excluída a possibilidade de invocação do impedimento pela entidade adjudicante”.
Há, ainda, a sopesar que o legislador comunitário previu que deveria ser dada a oportunidade de os operadores económicos demonstrarem que adoptaram as medidas destinadas a prevenir e evitar eficazmente a repetição das faltas conducentes ao impedimento (considerando 102 da Directiva).
Pelas razões aduzidas entendemos que falece a premissa do Tribunal a quo para o deferimento da providência baseada nos efeitos derivados (automaticamente) do art. 55º, nº 1 al. l) do CCP, para as Requerentes que ficariam impedidas de concorrer a futuros concursos públicos. Na medida em que a eventual suspensão de efeitos da presente decisão cautelar, como se expôs, não pode obstar a que em futuros procedimentos a que as Requerentes possam vir a concorrer as entidades adjudicantes fiquem impedidas de aferir das condições impeditivas ou não de participação no respectivo procedimento.
Termos em que não se pode manter o decidido pelo Tribunal a quo, pelo que será de conceder provimento ao recurso e julgar inverificado o requisito do periculum in mora. E, faltando este requisito, cumulativo e essencial ao deferimento da providência, atento o disposto no nº 1 do art. 120º do CPTA, então será de conduzir à improcedência do pedido cautelar, como se decidirá a final.»
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E é do assim decidido que as recorrentes se insurgem, sendo que a interpretação sufragada pelo acórdão recorrido não merece qualquer censura.
Vejamos, então, da discordância quanto ao decidido no tocante ao periculum in mora, designadamente, se o disposto no artº 55º, nº 1, al. l) do CCP, onde se dispõe: «Não podem ser candidatos, concorrentes ou integrar qualquer agrupamento, as entidades que:
l) Tenham acusado deficiências significativas ou persistentes na execução de, pelo menos, um contrato público anterior nos últimos três anos, tendo tal facto conduzido à resolução desse contrato por incumprimento, ao pagamento de indemnização resultante de incumprimento, à aplicação de sanções que tenham atingido os valores máximos aplicáveis nos termos dos nºs 2 e 3 do artigo 329.º, ou a outras sanções equivalentes», [requisitos de verificação cumulativa] é de aplicação automática [uma vez que, quanto ao mais, ou seja, quanto ao volume de negócios da presente empreitada, não foi logrado demonstrar qual o impacto do mesmo na contabilidade e capacidade financeira das empresas requerentes que integram o consórcio externo, pelo que, ficou por apurar qual o verdadeiro impacto da decisão de rescisão indicada na al. G do probatório na vida económica e financeira das referidas empresas, designadamente se os prejuízos sofridos se podem considerar de difícil reparação para os interesses que as mesmas visam assegurar no processo principal].
Igualmente se mostra afastada a previsão do disposto no artº 464º-A, nº 1, al. b) do CCP.
O artº 55º, nº 1, alínea l), do CCP, foi aditado pelo DL nº 30 / 40 111-B/2017, de 31 de Agosto, que procedeu à nona alteração ao Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei nº 18/2008, de 29 de Janeiro, e transpõe as Diretivas nºs 2014/23/UE, 2014/24/UE e 2014/25/UE, todas do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Fevereiro de 2014 e a Diretiva nº 2014/55/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Abril de 2014 e teve por objectivo autorizar as entidades adjudicantes a afastar dos procedimentos de contratação, oponentes incumpridores.
E basta atentar na redacção dada pelo legislador a esta alínea l), conjugada com o disposto no artº 57º, nº 1, al. a), do CCP, para se perceber de imediato que não estamos perante uma aplicação automática daquela norma.
Com efeito (e isto também foi consignado na decisão de 1ª instância, pelo que, é contraditória, a decisão que veio a ser proferida), os oponentes que se encontrem na situação das recorrentes, em face da decisão da resolução do contrato, estão obrigados a informarem, em futuros procedimentos concursais, a entidade adjudicante concreta, sobre a causa do não preenchimento da previsão da alínea l), com o objectivo de verem relevado tal impedimento, ou seja, a nova entidade adjudicante pode vir a considerar irrelevante aquela resolução e permitir que ao proponente participe do concurso.
Por outro lado, também não é correcta a afirmação consignada na decisão de 1ª instância, que refere que ainda que não tenha sido determinada a dimensão da facturação expectável das requerentes é certo que seja qual for esse impacto no volume de negócios que detenham em Portugal, com origem no mercado dos contratos públicos, se encontram colocados numa situação em que por efeito da adopção de resolução sancionatória do contrato estão impedidas de participar em procedimentos de contratação pública, o que só por si, gera um prejuízo de difícil reparação; e não é verdade, porque seria necessário ter sido produzida prova, pelo menos, dessas expectativas, sendo que não se mostra provado que no âmbito do consórcio, a B... tenha um volume de negócios em Portugal entre 7% a 10% da sua facturação anual global e a C... tenha um volume de negócios em Portugal com origem em procedimentos de contratação pública de 17% da sua facturação anual e, finalmente que a mesma C... empregue na sua filial em Portugal 11 trabalhadores.
E em relação à A…. apenas se provou o volume de facturação anual (cfr. al. H) do probatório), sem que fosse feita prova do saldo contabilístico, das perdas, do volume de negócio entre outros elementos relevantes e, deste modo, sem que se perceba como ficou (ou não) beliscado o impacto financeiro da empresa em consequência da deliberação suspendenda.
Ou seja, o que na verdade sucede nos presentes autos é a inexistência de prova, que justifique a verificação dos prejuízos de difícil reparação na sequência da deliberação suspendenda, tal como bem enunciado no acórdão recorrido.
Mas também não é a interpretação que o recorrente faz da norma prevista na al. l) do nº 1 do artº 55º do CCP que vai inverter tal situação, pois como bem se explica no acórdão recorrido a mesma não é de aplicação imediata, e mesmo que o fosse, por si só seria insuficiente sem outros elementos considerar verificado o requisito do periculum in mora.
Acresce além de tudo quanto se consignou no acórdão recorrido, com o qual se concorda, no sentido de que o legislador da União entendeu atribuir à autoridade adjudicante e só a esta, na fase da selecção dos proponentes, a tarefa de apreciar se um candidato ou proponente adjudicante deve ser excluído de um procedimento de contratação, ou seja, no sentido de que cabe às entidades adjudicantes “neutralizar” os efeitos em caso de resolução, de aplicação de multa ou de cessão da posição contratual – cfr. Acórdão MECA do TJUE DE 19.06.2019, IN Proc. nº C-41/18 – um outro fundamento neste sentido que se prende com a possibilidade de relevação dos impedimentos prevista no artº 55º-A do CCP.
Dispõe esta norma com a epígrafe “relevação dos impedimentos”:
«2. O candidato ou concorrente que se encontre numa das situações referidas nas alíneas b), c), g), h) ou l) do nº 1 do artigo anterior pode demonstrar que as medidas por si tomadas são suficientes para demonstrar a sua idoneidade para a execução do contrato e a não afectação dos interesses que justificam aqueles impedimentos, não obstante a existência abstrata de causa de exclusão, nomeadamente através de:
a) Demonstração de que ressarciu ou tomou medidas para ressarcir eventuais danos causados pela infração penal ou falta grave;
b) Esclarecimento integral dos factos e circunstâncias por meio de colaboração ativa com as autoridades competentes;
c) Adoção de medidas técnicas, organizativas e de pessoal suficientemente concretas e adequadas para evitar outras infrações penais ou faltas graves.
3. Tendo por base os elementos referidos no número anterior, bem como a gravidade e circunstâncias específicas da infração ou falta cometida, a entidade adjudicante pode tomar a decisão de não relevar o impedimento».
Tal significa que os operadores económicos que pretendam concorrer aos procedimentos de contratação pública podem adoptar medidas de “Self Cleaning” que lhes assegurem, quando abrangidos por casos de impedimento, a possibilidade de “reaquisição” do direito de neles participar; e para tal, apenas têm de demostrar ter adoptado determinadas providências de carácter organizacional de resolução do problema.
Deste modo, compete ao oponente/concorrente que se encontre, entre outras, na situação prevista na al. l) do nº 1 do art.º 55º do CCP comprovar que as medidas por si tomadas são suficientes para demonstrar a sua capacidade para a execução dos contratos posto à concorrência, e a não afectação dos interesses que justificam aqueles impedimentos, não obstante a existência abstracta de causa de exclusão.
José Azevedo Moreira, In CIDP – ICJP, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em “A relevação dos Impedimentos no Código dos Contratos Públicos” (acessível na internet via e-Pública, Vol. 4, nº 2, novembro de 2017), refere que «[i]mporta (…) concretizar o sentido com que o legislador emprega o conceito da idoneidade, cuja imprecisão abre várias possibilidades. Poderá referir-se, por exemplo, a uma exigência de fiabilidade ou competência na realização das prestações contratadas, pressupondo-se, nesta hipótese, que o impedimento serviria o propósito de mitigar o chamado performance risk do contrato. Por outro lado, poderíamos estar também perante uma exigência de honestidade ou aptidão moral colocada a quem procure unir-se contratualmente à Administração.
Neste sentido, apenas seriam elegíveis como parceiros contratuais os denominados good corporate citizens.
A esta luz, afigura-se que o preenchimento do conceito não dispensa a identificação da finalidade subjacente ao próprio impedimento a afastar.
O mesmo se diga relativamente ao segundo critério enunciado no citado n.º 2 do artigo 55.º-A do CCP. Apelando de forma mais nítida à determinação da finalidade da consagração legal do impedimento, exige-se «a não afetação dos interesses que justificam aqueles impedimentos».
Cremos, pois, que o nº 2 do artigo 55º-A obriga, num primeiro momento, à identificação das finalidades subjacentes aos impedimentos passíveis de relevação, para depois, numa segunda fase, se poder proceder à avaliação se, face aos fundamentos e medidas apresentadas e adoptadas pelo interessado, se justifica a sua exclusão do procedimento; de onde se extrai que a presente norma espelha o critério que entronca na origem do instituto self-cleaning: ou seja, o reconhecimento de que, em determinadas circunstâncias, a exclusão do procedimento adjudicatório se pode mostrar desproporcional, para obter os objectivos subjacentes aos impedimentos (ou não).
Noutra perspectiva, o mesmo autor que vimos referindo e na mesma obra [In CIDP – ICJP, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em A relevação dos Impedimentos no Código dos Contratos Públicos (acessível na internet via e-Pública, Vol. 4, n.º 2, novembro de 2017], explicita que «(…) o legislador português tem optado por não atribuir às entidades adjudicantes a flexibilidade consentida neste domínio pelo direito da UE. Como é sabido, desde a Directiva 2004/18/CE, o direito europeu opera a partir de uma dicotomia entre os motivos de exclusão obrigatória e os motivos de exclusão facultativa. Quanto aos primeiros, a actual Directiva 2014/24/UE estabelece que as entidades adjudicantes «devem excluir» qualquer operador económico que se encontre numa das circunstâncias impeditivas. Ou seja, os Estados-Membros devem impor às suas entidades adjudicantes a exclusão dos operadores por eles atingidos. Diferentemente, no que se refere às exclusões de natureza facultativa, «as autoridades adjudicantes podem excluir ou podem ser solicitadas pelos Estados Membros a excluir». Quer dizer, neste segundo caso os Estado-Membros podem incorporar o impedimento no direito interno em termos facultativos ou em termos vinculativos para as suas entidades adjudicantes.
Ora, quanto a este último aspeto, é de assinalar que aos fundamentos de exclusão facultativa acolhidos no CCP o legislador português fez corresponder um dever de afastar o interessado impedido do procedimento. A verificação de qualquer dos impedimentos enumerados no artigo 55.º do CCP – enunciado que integra também as exclusões facultativas na Directiva – impõe à entidade adjudicante a exclusão do operador atingido.
Neste sentido, a introdução do instrumento de self-cleaning produz, desde logo, um efeito atenuador da tradicional rigidez do sistema português. Se, até agora, as entidades adjudicantes não dispunham de qualquer liberdade quanto à decisão de excluir, a reforma do CCP veio prever a possibilidade de os efeitos impeditivos serem afastados».
Ou seja, com a Directiva 2014/24/EU, o art.º 55.º-A do CCP permite a relevação dos impedimentos que deve ser efectuada aquando da avaliação de propostas, em sede de relatório preliminar ou de relatório final.
É, pois, forçoso concluir como no acórdão recorrido de que a eventual suspensão de efeitos da presente decisão cautelar, não pode obstar a que em futuros procedimentos a que as requerentes (consórcio) venham a concorrer as entidades adjudicantes fiquem impedidas de aferir das condições impeditivas ou não de participação no respectivo procedimento.
Aliás, a entender-se como pretendem as recorrentes [entendimento vertido nas suas prolixas alegações/conclusões] operar-se-ía uma situação que seria de todo ilegal; ou seja, bastaria que as oponentes a quem fosse aplicada a medida prevista na al. l) do nº 1 do artº 55º do CCP, intentassem uma providência cautelar de suspensão de eficácia da mesma, para que, o seu “alegado efeito imediato e direto”, conduzisse automaticamente à verificação do periculum in mora, e desta forma, terminasse com a procedência do procedimento cautelar, e eventualmentalmente permitisse que, quando a decisão judicial viesse a ser proferida no processo principal, a mesma já não teria qualquer efeito prático, porque entretanto decorreu o decurso do prazo de 3 anos estabelecido na deliberação suspendenda; e esta medida, não se mostra consagrada no CCP nem em qualquer outra legislação.
Finalmente, alegam as recorrentes uma violação do disposto nos artºs 2º, 18º, 20º, e 268º da Constituição da Republica Portuguesa; também neste segmento, não têm razão uma vez que não é pelo facto de o tribunal não lhes reconhecer razão nos argumentos esgrimidos, que viram vedado qualquer direito de acesso à justiça, ao Direito e aos Tribunais, enquanto tutela jurisdicional efectiva de direitos, liberdades e garantias; nem tal decisão viola seja de que forma for, princípios como o da proporcionalidade, necessidade ou adequação.
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3. DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal em negar provimento ao recurso.
Custas a cargo das recorrentes.
Lisboa, 04 de abril de 2024. – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva – Cláudio Ramos Monteiro.