Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0425/06.8BEBRG
Data do Acordão:11/24/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
NEGLIGÊNCIA MÉDICA
Sumário:Por ter uma importância fundamental e por carecer de melhor apreciação de direito, é de admitir revista sobre a responsabilidade solidária de médico e unidade hospitalar por alegada negligência médica.
Nº Convencional:JSTA000P30258
Nº do Documento:SA1202211240425/06
Data de Entrada:11/10/2022
Recorrente:A…………… (E OUTROS)
Recorrido 1:B………………. (E OUTROS)
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, em «apreciação preliminar», na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A………….., C………………., e a filha D……………… - autores da presente acção administrativa «comum» - vêm, invocando o artigo 150º do CPTA, interpor «recurso de revista» do acórdão proferido pelo TCAN em 13.05.2022 - e complementado por acórdão datado de 28.10.2022 - que, concedendo provimento à «apelação» da ARSN - ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DE SAÚDE DO NORTE [ARSN] - e negando provimento à apelação subordinada interposta por eles próprios, eliminou factos provados, aumentou o acervo dos não provados, declarou nula a sentença do TAF de Braga - de 10.08.2021 - quanto ao conhecimento da causa de pedir faute de service e às condenações que com base nela foram proferidas, e absolveu ambos os réus – B……………… [médico de Medicina Geral e Familiar] e ARSN - de todos os pedidos por eles formulados na acção - intervém na acção, a título acessório, a COMPANHIA DE SEGUROS E……………, SA [actual F…………… -COMPANHIA DE SEGUROS, SA], com a qual o médico demandado celebrou «contrato de seguro de responsabilidade civil inerente ao exercício da sua profissão».

Alegam que o recurso de revista deve ser admitido em nome da «necessidade de uma melhor aplicação do direito» e em nome da «relevância jurídica e social da questão».

A demandada ARSN e a interveniente acessória – F…………… - contra-alegaram, defendendo, além do mais, a não admissão da revista por falta dos necessários pressupostos legais - artigo 150º, nº1, do CPTA.

2. Dispõe o nº1, do artigo 150º, do CPTA, que «[d]as decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

Deste preceito extrai-se, assim, que as decisões proferidas pelos TCA’s, no uso dos poderes conferidos pelo artigo 149º do CPTA - conhecendo em segundo grau de jurisdição - não são, em regra, susceptíveis de recurso ordinário, dado a sua admissibilidade apenas poder ter lugar: i) Quando esteja em causa apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental; ou, ii) Quando o recurso revelar ser claramente necessário para uma melhor aplicação do direito.

3. Os autores da acção então designada de «comum» - A……………., C……………, e a filha D…………., então de 22 meses, e por eles representada - pediram a tribunal a «condenação solidária» dos réus - médico B……………., e ARSN - a indemnizá-los pelos «danos patrimoniais e não patrimoniais» resultantes - para cada um deles - de alegada «negligência médica» no acompanhamento da gravidez da autora, da qual veio a nascer - com síndrome de Down - a filha D……………. Pediam, para a filha, a quantia total de 230.000,00€ [180.000,00€ por danos patrimoniais presentes e futuros e 50.000,00€ por danos não patrimoniais], e para cada um deles, seus pais, a quantia de 40.000,00€ por danos não patrimoniais, e um total de 70.000,00€ por danos patrimoniais, tudo com juros de mora vencidos desde a data da citação até integral pagamento.

O tribunal de 1ª instância - TAF de Braga - julgou a acção «parcialmente procedente», e, assim, condenou «apenas a demandada ARSN» a pagar a cada um dos autores-pais a quantia de 30.000,00€ a título de indemnização por danos não patrimoniais e quantia a liquidar - em incidente próprio - por danos patrimoniais, e a pagar à autora-filha a quantia de 40.000,00€ a título de danos não patrimoniais e a de 180.000,00€ a título de danos patrimoniais, tudo com juros de mora vencidos desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

Fê-lo com base em faute de service verificada - essencialmente - no âmbito dos serviços do Centro de Saúde de …………. [extensão de ……………..], a que subjaz, também, mas consumida por esse mau funcionamento dos serviços, uma conduta ilícita e culposa do réu médico - por não corresponder ao padrão de comportamento que lhe era exigível em face das «leges artis» -, que, por via disto, não foi solidariamente condenado com a ARSN como pretendiam os autores.

O tribunal de 2ª instância - TCAN - concedeu provimento à apelação principal - interposta pela ARSN - e negou provimento à apelação subordinada - interposta pelos autores - e, nessa conformidade, acabou por, relativamente ao julgamento de facto, suprimir factos que foram dados como «provados» - pontos 33 a 35, por entender que consubstanciavam «factos essenciais de causa de pedir - faute de service - não alegados na petição inicial» - e aditar outros ao acervo dos «não provados», e relativamente ao julgamento de direito, declarou a nulidade da sentença recorrida no segmento em que nela se conheceu de causa de pedir - faute de service - que, entendeu, não tinha sido invocada na petição inicial, e bem assim as condenações com base nela proferidas, e terminou «absolvendo ambos os réus de todos os pedidos» que haviam sido formulado pelos autores.

Estes não se conformam, e pedem revista do assim decidido, apontando ao acórdão do tribunal de apelação nulidades e erros de julgamento de direito, pois que, e a seu ver, nele se fez uma errada aplicação de uma miríade de normas jurídicas: - artigos 5º; 186º nº1, nº2 alínea a), e nº3; 195º, nº1 última parte; 552º, nº1 alínea d); 581º, nº1; 607º, nº3 e nº5; 614º; 615º, nº1 alíneas d) e e), todos do CPC; 22º e 271º da CRP; 2º, nº1 e nº2; 3º, nº1 e nº2; 8º; todos do DL nº48 051, de 21.11.1967; 483º, nº1; 487º, nº1 segunda parte; 493º, nº2; 499º; 500º, nº1; 483º; 496º, nº1 e nº3; 497º, nº1; 562º; 799º, nº2, todos do CC; o Despacho nº5411/97, de 08.07; a Lei nº90/97, de 30.07, a qual introduziu nova redacção às alíneas c) e d) do artigo 142º; os princípios da gestão processual, do dispositivo, e da máxima celeridade dos actos.

Em síntese - e em essência - os ora recorrentes alegam que o acórdão recorrido «errou», ou até se excedeu na sua pronúncia, com violação de princípios e normas adjectivas, ao eliminar factos dados como provados com fundamento em que não foram por eles invocados, e ao aditar factos não provados ao respectivo rol, de modo que por erro de julgamento ou por nulidade - artigo 615º, nº1 alínea d), do CPC - deve o respectivo acórdão ser alterado. Para além disso, errou no seu julgamento - dizem - ao declarar, oficiosamente, a nulidade do corpo fundamental da sentença recorrida e ao julgar improcedente tanto a responsabilidade civil extracontratual - DL 48 051, de 21.11.1967 - do «médico» que assistiu a autora-esposa durante a sua gravidez como da ARSN, entidade de que dependia o Centro de Saúde de …………… [extensão de ……………],onde o mesmo trabalhava. Sublinha que a faute de service foi alegada, e integra a causa de pedir da acção, e que a conduta do médico demandado violou as leges artis desnecessariamente, pois podia e devia ter tido outra conduta profissional perante as «dúvidas» geradas pelos exames realizados pela autora-esposa, com os «riscos» daí advenientes, e com o cerceamento, aos autores, do direito de decidirem sobre o prosseguimento da gravidez.

Compulsados os autos, importa apreciar «preliminar e sumariamente», como compete a esta Formação, se estão verificados os «pressupostos» de admissibilidade do recurso de revista - referidos no citado artigo 150º do CPTA - ou seja, se está em causa uma questão que «pela sua relevância jurídica ou social» assume «importância fundamental», ou se a sua apreciação por este Supremo Tribunal é «claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

E, feita essa apreciação, tudo aponta para que o presente recurso de revista deva ser admitido. Na verdade é completamente diferente a solução jurídica a que chegaram os tribunais de instância, tendo um condenado apenas a ARSN, embora com admissão de conduta ilícita e culposa do médico, e o outro absolvido ambos os demandados, tendo, para o efeito, alterado a matéria de facto provada e não provada e declarado «nula» a sentença no seu corpo decisório fundamental. No que tange à apreciação da violação das leges artis e à controversa faute de service nas suas várias dimensões, a questão mostra-se complexa, a exigir manuseio sagaz de princípios e de normas adjectivas, e, ainda, de lúcida subsunção dos factos provados às pertinentes normas substantivas. O tratamento que das mesmas foi feito no «acórdão recorrido» mostra-se susceptível de gerar dúvidas legítimas e que impõem a sua dilucidação pelo tribunal de revista.

Acresce que estas questões de responsabilidade médica, por invocada conduta ilícita e culposa - consubstanciada em violação de leges artis e faute de service -, porque contendem com direitos fundamentais, estão eivadas, por regra, de importância fundamental, quer pela sua relevância jurídica quer pela sua relevância social.

Deste modo, temos por preenchidos os «requisitos necessários à admissão da revista», pelo que, neste caso, será de quebrar a «regra da excepcionalidade da sua admissão».

Nestes termos, e de harmonia com o disposto no artigo 150º do CPTA, acordam os juízes desta formação em admitir o recurso de revista interposto.

Sem custas.

Lisboa, 24 de Novembro de 2022. – José Veloso (relator) – Teresa de Sousa – Carlos Carvalho.