Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01558/17.0BESNT
Data do Acordão:11/09/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P23837
Nº do Documento:SA12018110901558/17
Data de Entrada:10/12/2018
Recorrente:A............
Recorrido 1:MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA FORMAÇÃO DE APRECIAÇÃO PRELIMINAR DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:



I. RELATÓRIO

A………. intentou, no TAF de Sintra, contra o Ministério da Administração Interna, a presente providência cautelar pedindo suspensão de eficácia do despacho da Ministra da Administração Interna, de 4/08/2017, praticada no âmbito do processo disciplinar que lhe foi instaurado, onde lhe foi aplicada a pena de demissão.

Aquele Tribunal antecipou o juízo sobre o mérito da causa, a coberto do disposto no art.º 121 do CPTA, e, por sentença de 17/05/2018, anulou o mencionado acto punitivo.

Decisão que o Tribunal Central Administrativo Sul revogou.

É desse acórdão que o Autor vem recorrer (artigo 150.º/1 do CPTA).

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO

1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos se, in casu, tais requisitos se verificam.

2. O Autor impugna o acto da Sr.ª Ministra da Administração Interna que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão.
Invocou a prescrição do procedimento disciplinar, já que tinham decorrido mais de 18 meses entre o despacho do Sr. Comandante da Divisão Policial de Sintra da PSP - que determinou a abertura do referido procedimento - e a data em que foi notificado da impugnada decisão. Prazo que era aplicável por, in casu, a questão da prescrição só poder ser correctamente resolvida com recurso ao disposto no artigo 6.º, n.º 6, do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local.
Alegou, ainda, erro nos pressupostos de facto e a violação do princípio da proporcionalidade.

O TAF de Sintra entendeu que a resolução da questão da prescrição passava por saber “se o regime de prescrição do procedimento disciplinar vertido no artigo 6.º, n.º 6, do EDTFP … é subsidiariamente aplicável aos procedimentos disciplinares de funcionários e agentes da PSP, primariamente regulados pelo Regulamento Disciplinar da PSP. Só no caso de se vir a concluir pela resposta afirmativa, importará aferir se o prazo de prescrição do procedimento disciplinar que resulta da mencionada norma do artigo 6.º, n.º 6, do EDTFP se mostrava ou não transcorrido à data da notificação da decisão sancionatória impugnada nos autos” O que exigia a articulação “entre o regime vertido no artigo 55.º do Regulamento Disciplinar da PSP e o sentido da norma remissiva do artigo 66.º do mesmo Estatuto.” E após uma exaustiva análise dessa questão concluiu:
“Quer isto dizer que, após a entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei n.º 66/2014, de 28 de Agosto, o Regulamento de Disciplina da GNR passou a contemplar textualmente a modalidade de prescrição do procedimento disciplinar por decurso do seu prazo máximo, fixando esse prazo limite em uma vez e meia o prazo normal de prescrição, o qual corresponde, por seu turno e por defeito, a três anos a contar da data da infracção …. . Dito de outro modo: salvo nos casos em que o prazo normal de prescrição seja superior a três anos … o prazo máximo de duração do procedimento disciplinar dos militares da GNR contado desde a respectiva instauração corresponde, desde 2014, a 4 anos e meio.
Querer encontrar neste regime jurídico um lugar paralelo do artigo 55.º do Regulamento Disciplinar da PSP para, por essa via, aplicar aos agentes da PSP um regime prescricional idêntico ao vertido no artigo 46.º, n.º 7, do Regulamento de Disciplina da GNR é, por um lado, fazer tábua rasa da norma que o próprio legislador elegeu como supletivamente aplicável ao estatuto disciplinar dos agentes da PSP (por via da remissão contida no artigo 66.º do respectivo Regulamento Disciplinar). E, por outro lado, ignorar que, da mesma exacta forma que alterou o Regulamento de Disciplina da GNR, o legislador podia – nestes quase dez anos decorridos sobre a publicação do EDTFP – ter alterado o Regulamento Disciplinar da PSP e, por essa via, previsto um regime especial de prescrição do procedimento disciplinar por decurso do seu prazo máximo, que necessariamente afastaria a aplicação do regime disciplinar geral, previsto no artigo 6.º, n.º 6, do EDTFP e, a partir de 2014, do artigo 178.º, n.º 5, da LGTFP.
Face ao exposto, cabe então concluir pela aplicação subsidiária do regime do artigo 6.º, n.º 6, do EDTFP e, a partir de 2014, do artigo 178.º, n.º 5, da LGTFP aos procedimentos disciplinares dos agentes com funções policiais da PSP – como aquele que está em causa nos presentes autos.
….
Face a este quadro legal e perante a procedência do vício de violação da norma do artigo 6.º, n.º 6, do EDTFP, o qual afecta directamente a existência do próprio procedimento disciplinar e a admissibilidade legal da prática de um qualquer acto punitivo do Autor no âmbito desse procedimento disciplinar, garantindo uma estável e eficaz tutela dos interesses ofendidos, fica prejudicada a apreciação dos dois vícios remanescentes imputados pelo Autor ao referido acto … ”

O TCA revogou essa decisão e conheceu, em substituição, do mérito pela seguinte ordem de razões:
“….
Dado que os factos ilícitos imputados ao Recorrido se reportam aos anos de 2013 e 2014 (08.03.2013 e 24.08.2014), cabe dilucidar se é aplicável, como sustentado em sede de sentença, o regime inovatório do art.° 6°, n° 6, da Lei 58/2008, mais favorável do que o regime decorrente da Lei 7/90, 20.02, sendo que, como já mencionado, a Lei 58/2008 foi revogada pela Lei 35/2014 com efeitos a partir de 01.08.2014.

É precisamente esta lógica própria do art° 6° n.ºs 1, 2 e 6 da Lei 58/2008, lógica de conexão e complementaridade substantivas entre os termos a quo e ad quem dos prazos prescricionais, que não permite enxertar no regime da Lei 7/90 e aplicar ao caso concreto o regime inovatório dos 18 meses de prescrição do procedimento (art° 6° n° 6 Lei 58/2008) em razão da incompatibilidade substantiva de regulação do instituto da prescrição do procedimento disciplinar que resulta do regime estabelecido por cada uma das citadas leis, a Lei 7/90, 20.02 e a Lei 58/2008, 09.09.

De facto, no regime disciplinar da função pública introduzido pela Lei 24/84, 16.01 e do Regulamento Disciplinar da PSP, a prescrição do direito de instaurar o procedimento é de 3 anos em ambos os regimes e, dentro destes 3 anos prescreve ainda, caso se dê a circunstância de que, uma vez conhecida a infracção pela entidade competente em matéria disciplinar, o procedimento não seja instaurado no prazo de 3 meses - vd. art.° 4.° n.ºs 1 e 2 Lei 24/84, 16.01 e art.° 55° n.ºs 1 e 3 Lei 7/90.
No regime da Lei 58/2008 e tomando a lei por ponto absoluto de referência a data da infracção, somado o prazo de 1 ano do art.° 6° n° 1 (instauração do procedimento) ao prazo dos 18 meses do art° 6° n°6 (da data da instauração do procedimento à data da notificação da decisão sancionatória) resulta o prazo máximo de 30 meses.
No regime da Lei 7/90 (e da Lei 28/84) que toma também por ponto absoluto de referência a datada infracção, não pode ser enxertada a inovação do art° 6° n° 6 da Lei 58/2008 da prescrição do próprio procedimento no prazo de 18 meses … .
E não pode, porque o prazo máximo de 30 meses (2 anos e meio) próprio da Lei 58/2008 …. é absorvido pelo prazo de 3 anos (36 meses) para instaurar o procedimento, atento o disposto no art.° 55° n° 1 Lei 7/90,nele também incluída a instauração no prazo de 3 meses (art.° 55° n° 3) contados do conhecimento da infracção pela entidade com competência disciplinar.
….
O mesmo é dizer que não é aplicável ao caso trazido a recurso o regime do art.° 6° n° 6 da Lei 58/2008 da prescrição do procedimento disciplinar no prazo de 18 meses contado da instauração do procedimento à data de notificação da decisão de demissão, pois que, estando em vigor duas leis de natureza sancionatória, sendo uma (Lei 58/2008) o regime subsidiário da outra (Lei 7/90), a lei exige a aplicação em bloco de um único dos regimes normativos e não a aplicação de segmentos de cada um dos regimes em causa.
Tal como nos casos em que se suscita a questão da sucessão de leis penais no tempo e a aplicação do regime mais favorável ao arguido atenta a data dos factos ilícitos, nos termos do art° 2° n° 4 C. Penal, regime para que remete em sede disciplinar o art° 66° Lei 7/90, 20.02.
O que significa que no caso vertente dos ilícitos disciplinares cometidos nos anos de 2012 e 2013, estando em vigor tanto o art° 55° da Lei 7/90, 20.02 (Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública) como o regime subsidiário (art.° 66° Lei 7/90) do art.° 6° da Lei 58/2008 de 09.09 (Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas que cessou com a entrada em vigor da Lei 35/2014 em 01.08.2014, cfr. art° 44° n° 1, Lei 35/2014, 20.06), não é aplicável o regime prescricional inovatório do art° 6° n° 6 Lei 58/2008 no tocante ao procedimento disciplinar por se encontrar em relação de exclusão com o regime do art° 55° n° 1 e n° 3 Lei 7/90.
Donde, em função da matéria de facto levada ao probatório e no tocante à prática dos factos ilícitos reportados a 07.OUT.2012 e JUN/JUL.2013 — vd. alíneas C, D e G do probatório - não se mostra esgotado o prazo de 3 anos de prescrição do direito de instaurar o procedimento disciplinar, cfr. art° 55° n° 1 Lei 7/90.
Pelo exposto, a sentença proferida não logra subsistência, cabendo conhecer em substituição.”
E, fazendo-o, concluiu do seguinte modo:
“…
Em rigor, o Autor pretende a sindicabilidade jurisdicional do juízo administrativo de subsunção dos comportamentos levados ao probatório no catálogo de deveres gerais do Regulamento Disciplinar da PSP, aprovado pela Lei 7/90, de 20.02 (RD/PSP), bem como o juízo de graduação e aplicação da pena concreta aplicada no âmbito do procedimento disciplinar que lhe foi instaurado.
No lhe assiste razão.
…..
No que tange à requerida sindicabilidade jurisdicional, cabe referir que a actividade administrativa de gestão dos recursos humanos na vertente de exercício do poder disciplinar, participa dos espaços de valoração próprios do exercício da função administrativa, sem prejuízo das vinculações legais e limites imanentes da margem de livre decisão administrativa plasmados no art.° 266° n° 1 CRP e art.°s 4°, 6°-A,9° e 11° CPA/91, vigente à data.

Significa isto que a margem de livre decisão é sindicável nos tribunais perante situações de erro manifesto, em que os critérios adoptados pela Administração se demonstram manifestamente desacertados, inaceitáveis ou grosseiros, bem como nas de erro de facto, isto é, de inexistência material de pressupostos de facto que remetem já para uma questão de validade do acto, e não de mérito, logo, sindicáveis pelos tribunais. ( )

De modo que, pelas razões de direito supra expostas, o elenco de factos que especificam as circunstâncias de tempo, lugar e modo do comportamento levados à Acusação e ao Relatório Final, cuja realidade o Autor e ora Recorrido não controverte, constituem a fundamentação de facto objecto de valoração e sancionamento jurídico-disciplinar, não merecendo censura o enquadramento jurídico no sentido de lhes atribuir o desvalor nem de acção nem de resultado nos termos da medida da pena disciplinar de demissão, cominada por despacho de 04.08.2017 notificado em 07.09.2017), conforme alíneas KK e LL do probatório.”

3. Como se acaba de ver o presente litígio versa sobre a legalidade da aplicação de uma pena disciplinar de demissão.
Esta pena é a mais grave na escala das sanções disciplinares pelo que se pode afirmar estarmos em presença de caso cuja relevância social é superior ao comum, para mais quando a mesma foi aplicada a um agente de um corpo de polícia.
O que, por si só, poderia justificar a admissão desta revista tanto mais quanto é certo que esta Formação tem considerado que, nos litígios respeitantes à aplicação deste tipo de penas, é aconselhável que possam ser submetidos ao STA pelo particular impacto que têm no arguido, na sua família e no seu círculo profissional. - Vide, nesta linha de orientação, ente outros, os Acórdãos deste STA, de 27-02-08, P. 0145/08; de 15-10-2008, P. 0817/08 e de 01-07-2010, P. 0516/10.
Acresce que, no caso, está em causa uma questão de relevante importância jurídica – a eventual prescrição do procedimento disciplinar – a qual foi resolvida de forma contraditória pelas instâncias, atenta a dificuldade de dificuldade de identificar o regime legal aplicável.
Encontram-se, pois, preenchidos os requisitos de admissão do recurso.

DECISÃO.
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Sem custas.
Porto, 9 de Novembro de 2018. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.