Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0570A/08
Data do Acordão:12/03/2008
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PIMENTA DO VALE
Descritores:EXECUÇÃO DE SENTENÇA
PRAZO
INCONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA
Sumário:I - O artº 146º, nº 2 do CPPT na medida em que não se compatibiliza com o disposto no artº 100º da LGT é organicamente inconstitucional.
II - De qualquer forma, a obrigação da Administração Tributária de executar os julgados surge imediatamente com o trânsito em julgado da decisão judicial e não com a remessa, a requerimento do contribuinte, do processo para o serviço de finanças competente.
III - A falta de tal requerimento no prazo indicado no nº 2 do artº 146º do CPPT, não faz precludir o direito do contribuinte de a exigir perante a administração tributária e os tribunais a execução de julgado.
Nº Convencional:JSTA00065383
Nº do Documento:SA2200812030570A
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:DESP TAF BRAGA PER SALTUM.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC JULGADO.
Legislação Nacional:LGT98 ART100.
CPPTRIB99 ART146 N1 N2.
L 87-B/98 DE 1998/12/31 ART51 N1 C.
CONST98 ART103 N2 ART112 N2 ART165 N1 I ART198 N1 B.
Referência a Doutrina:JORGE DE SOUSA CPPT ANOTADO VI 5ED PAG1047 PAG1052.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam nesta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1 – A..., SARL, melhor identificada nos autos, não se conformando com o despacho de fls. 63 e segs. que indeferiu liminarmente o requerimento inicial de execução de julgado, dele vem interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
a) A execução de sentença intentada pela ora Recorrente tem como objectivo obter, de parte da Administração fiscal, a restituição de uma quantia pecuniária cuja liquidação foi já julgada ilegal pelo Tribunal, tendo, consequentemente, sido ordenado o reembolso da mencionada quantia acrescido dos juros devidos.
b) O prazo estatuído pelo legislador para a execução espontânea de uma sentença que condene a Administração fiscal à restituição de uma quantia pecuniária não é de três meses mas sim de 30 dias.
c) Com efeito, nos termos do número 3 do artigo 175° do CPTA (aplicável ex vi do artigo 102.° da LGT e número 1 do artigo 146° do CPPT), o dever de executar uma decisão que condene a Administração na restituição de quantia pecuniária deverá ser cumprida no prazo máximo de 30 dias.
d) A decisão proferida pelo Tribunal a quo violou assim o disposto no número 3 do artigo 175.° do CPTA.
e) Nos presentes autos a Recorrente pretende a execução da sentença na parte que foi julgada procedente e que, não tendo sido objecto de qualquer recurso, transitou em julgado no dia 17/05/2007.
f) Com efeito, o facto de se ter recorrido de parte da sentença proferida no âmbito do processo de impugnação não obsta o trânsito em julgado da parte que não foi recorrida.
g) E, aliás, inimaginável pensar-se que o facto de o Contribuinte que viu a sua impugnação, ainda que parcialmente, ser deferida e que, interpôs recurso da parte da sentença que lhe foi indeferida, não possa receber da Administração fiscal a quantia que o Tribunal já ordenou apenas porque exerceu o seu direito de recorrer para um segundo grau de jurisdição.
h) Tal raciocínio violaria não só o princípio constitucional da obrigatoriedade das decisões para todas as entidades públicas e privada, consagrado no número 2 do artigo 205.°, como violaria o princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.° da CRP.
i) Podendo, inclusive, consubstanciar uma violação do princípio da igualdade na medida em que se pensarmos na situação inversa, ou seja, caso a impugnação fosse parcialmente procedente e apenas a Fazenda Pública interpusesse recurso da parte que foi julgada procedente, é certo que a Administração fiscal não ficaria a aguardar pela decisão relativa à parte recorrida para exigir do Contribuinte a parte julgada improcedente e não recorrida.
j) É assim de concluir que, no que respeita às despesas contabilizadas a título de ajudas de custo, no montante de € 100.284,63, o processo já findou.
k) Pelo que estando a Administração fiscal adstrita ao princípio constitucional da obrigatoriedade das decisões judiciais e ao disposto no artigo 100.° da LGT, nos termos do qual se impõe a imediata e plena reconstituição da legalidade do acto cuja decisão foi favorável ao contribuinte, é então por demais evidente que mal andou o Tribunal a quo ao considerar que “Não obstante haver provimento parcial da impugnação, não ocorre obrigação legal da administração tributária para executar parcialmente a sentença...”.
l) A decisão proferida pelo Tribunal a quo violou assim o citado princípio constitucional consagrado no número 2 do artigo 205.° da CRP, como violou o disposto no número 1 do artigo 100.° da LGT.
m) Andou igualmente mal o Tribunal a quo ao considerar que, por certo em consequência da conclusão anterior, “...ainda nem sequer se iniciou o prazo de execução espontânea”
n) Na verdade o prazo para que a Administração fiscal procedesse à execução espontânea da sentença iniciou-se com o trânsito em julgado da mesma, ou seja, no caso concreto e na parte relativa às ajudas de custo, no dia 17/05/2007.
o) Com efeito, não obstante o número 2 do artigo 146° do CPPT (artigo aplicado pelo Tribunal a quo) prever que o prazo para a execução de sentença espontânea das sentenças só se inicia a partir da data em que o processo tiver sido remetido ao órgão da administração tributária competente, a verdade é que, existe uma manifesta incompatibilidade entre o regime imposto pela citada norma do CPPT (número 2 do artigo 146.°) e os citados preceitos da CRP (número 2 do artigo 205.º) e LGT (número 1 do artigo 100.°).
p) Tal incompatibilidade, quer pela evidente supremacia da CRP em relação ao CPPT quer a supremacia da LGT em relação ao CPPT, tornam o citado número 2 do artigo 146.º do CPPT inconstitucional e ilegal.
q) Ao que acresce a inconstitucionalidade orgânica proveniente de, conforme referido nas presentes alegações, não ter o Governo respeitado o sentido indicado na lei de autorização legislativa (números 1 e 6 do artigo 51.º da Lei 87-B/98, de 31/12 - LOE para 1999), em que o CPPT, e em concreto o número 2 do artigo 146.°, se sustenta.
r) Efectivamente, constando da mencionada lei de autorização uma permissão para o Governo alterar o CPT no sentido de o compatibilizar com as normas constantes da LGT e tendo sido consagrado nesse novo diploma (CPPT) uma norma que estabelece que o prazo para a execução da sentença só se inicia quando o processo for remetido ao órgão tributário competente (dilatando assim o prazo para que a Administração procedesse à execução da sentença), está a contrariar de forma directa o princípio da imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio - em clara violação do disposto no artigo 100.° da LGT.
s) Pelo que extravasando o sentido da lei de autorização (que não concedia poderes para que o Governo legislasse em sentido divergente ao consagrado na LGT) fere o preceito em causa de inconstitucionalidade orgânica.
t) Por força do supra referido e seguindo inclusivamente as normas constantes do CPTA, maxime artigo 160.°, aplicáveis aos processos de execução de julgados dos tribunais fiscais, aplicável nos termos do disposto quer na LGT (número 1 do artigo 102.º) quer do CPPT (número 1 do artigo 146.º), a data a partir da qual se contam os 30 dias para que a Administração fiscal proceda à execução espontânea é a do trânsito em julgado.
u) Tal conclusão parece, aliás, dever-se igualmente retirar tendo em atenção o próprio princípio da segurança e certeza jurídica.
v) Pois na verdade, enquanto que com o trânsito em julgado a marcar o início do prazo para a execução, o Contribuinte, que dispõe de um prazo de seis meses para executar, sabe ao certo quando é que esse prazo termina (pois tendo sido notificado da sentença sabe quando é que a mesma transita em julgado), com a remessa do processo a iniciar esse prazo (facto esse que não é notificado ao Contribuinte), o Contribuinte desconhece quando é que esse seu prazo se inicia.
w) Pelo que, também à luz do princípio da certeza e segurança jurídica, é de considerar que o prazo da execução espontânea se inicia com o trânsito em julgado (facto conhecido do Contribuinte) e não com a remessa do processo ao Serviço de Finanças competente (facto desconhecido do Contribuinte).
x) Face ao exposto, a interpretação de que o prazo para a execução de julgados se inicia com o trânsito em julgado da sentença é, na opinião da Recorrente, a única que - em virtude do supra exposto - é compatível com os citados artigos 205.º da CRP e 100.º da LGT, tendo, inclusive, sustentação legal nos termos do artigo 160.º do CPTA.
y) Em conclusão, o prazo a partir do qual se inicia o prazo para que a Administração fiscal dê cumprimento espontâneo às decisões dos tribunais inicia-se com o trânsito em julgado e não com a remessa do processo para o serviço de finanças competente, sendo esta é, na opinião da Recorrente, a única interpretação compatível com os citados artigos 205.º da CRP e 100.º da LGT, tendo, inclusive, sustentação legal nos termos do artigo 160.° do CPTA.
z) Sem prescindir, ainda que se entenda que o disposto no número 2 do artigo 146.° não padece de inconstitucionalidade e que o prazo para a execução espontânea só se inicia com a remessa do processo para o Serviço de Finanças competente - o que não se concede - a verdade é que a sentença, na parte já transitada em julgado, é clara no que cabe à Administração fiscal executar, pelo que, assim sendo, e tendo o Serviço de Finanças já recebido certidão da sentença com a referência ao trânsito em julgado, não há razão (nem fundamento) para que não tenha procedido já à execução da mencionada sentença.
A Fazenda Pública contra-alegou nos termos que constam de fls. 159 e 160, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, para concluir pela improcedência do recurso e manutenção na ordem jurídica da decisão recorrida.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de ser concedido provimento ao presente recurso, que também aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (vide fls. 168 e segs.).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – A questão que constitui objecto do presente recurso consiste em saber se o prazo de execução espontânea de julgado se conta a partir da data em que o processo tiver sido remetido ao órgão da Administração Tributária competente para a execução ou se, pelo contrário, esta deve proceder de imediato à referida execução.
Na sentença recorrida o Mmº Juiz “a quo” decidiu que o requerimento para execução de julgado era extemporâneo, uma vez que a administração tributária não se encontra legalmente obrigada a cumprir parte de uma sentença, já transitada em julgado, que lhe foi desfavorável, antes da remessa do processo.
É contra o assim decidido que reage, agora a recorrente, com os fundamentos invocados nas conclusões da sua motivação do recurso.
Vejamos se lhe assiste razão.
3 – Desde logo, importa referir que não existe divergência entre a sentença recorrida e a recorrente quanto à possibilidade de se requerer execução de julgado na parte da sentença que transitou em julgado, não obstante o recurso entretanto interposto na parte que julgou improcedente a impugnação judicial.
O que aqui está em causa, como vimos, é tão só saber se, transitada em julgado a decisão na parte que julgou procedente a impugnação judicial, a Administração Tributária deve preceder de imediato à sua execução ou se tem que aguardar pelo envio do processo.
No caso em apreço, a sentença transitou em julgado na parte relativa às despesas contabilizadas a título de ajudas de custo, cuja liquidação foi anulada e ao reembolso do imposto pago a ela referente.
Dispõe o artº 100º da LGT que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir de termo do prazo da execução da decisão”.
Estabelece, porém, o artigo 146º, nº 1 do CPPT que é admitido, no processo judicial tributário, além do mais, o meio processual de execução dos julgados, que será regulado “pelo disposto nas normas sobre o processo nos tribunais administrativos”.
Acrescenta, contudo, o nº 2 do mesmo preceito normativo que “o prazo de execução espontânea das sentenças e acórdãos dos Tribunais Tributários conta-se a partir da data em que o processo tiver sido remetido ao órgão da administração tributária competente para a execução, podendo o interessado requerer a remessa no prazo de oito dias após o trânsito em julgado da decisão”.
Ora, face a esta falta de harmonia entre os preceitos legais citados, parece que o predito artº 146º, nº 2 é inconstitucional por não se compatibilizar com o teor da LGT.
Escreve, a este propósito, o Ilustre Conselheiro Jorge Sousa, in CPPT anotado, vol. I, 5ª ed., pág. 1.047: “Na verdade, no art. 100.º desta Lei estabelece-se que, em caso de procedência da pretensão do contribuinte, a administração tributária fica obrigada «à imediata e plena reconstituição de legalidade do acto ou situação objecto do litígio».
O regime que resulta deste n.º 2 do art. 146.º, consubstanciando-se, por um lado, em fazer depender de requerimento do interessado a obrigação da administração tributária executar o acto e, por outro, em criar uma dilação para a constituição da obrigação da administração tributária dar execução ao julgado, não se harmoniza com o carácter imediato e incondicional que naquele art. 100.º é atribuído a essa obrigação.
Por isso, em face da supremacia da LGT sobre este Código, reconhecida no art. 1.º deste, e do sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar este Código, que é o da compatibilização das normas do CPT com as da LGT e regulamento das disposições desta dela carecidas [alínea c), do n.º 1 do art. 51.º da Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro], parece não ser admissível que neste Código se estabeleça um regime incompatível.
Por outro lado, as normas relativas ao regime de execução de julgados reportam-se às garantias dos contribuintes, pelo que o Governo não podia legislar nesta matéria em sentido diferente ao da referida autorização legislativa, pois tal matéria integra-se na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
Na verdade, embora no art. 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP, em que se define esta reserva, se faça referência à criação de impostos e sistema fiscal, esta norma deve ser integrada com o conteúdo do n.º 2 do art. 103.º da mesma, em que se refere que a lei determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes, que constitui uma explicitação do âmbito das matérias incluídas naquela reserva, como vem sendo uniformemente entendido pelo Tribunal Constitucional.
Tratando-se, assim, de matéria englobada naquela reserva relativa de competência legislativa, o Governo não podia legislar sobre ela em sentido divergente com o indicado na lei de autorização legislativa em que se baseou [arts. 112.º, n.º 2, e 198.º, n.º 1, alínea b), da CRP], pelo que, não respeitando tal obrigação, o referido n.º 2 do art. 146.º do CPPT, na parte referente em que condiciona o dever de execução de julgados a pedido do interessado e em que difere o momento da contagem do prazo, será organicamente inconstitucional…
De qualquer forma, o que importa é concluir que a obrigação da administração tributária de executar os julgados surge imediatamente com o trânsito em julgado da decisão judicial, que não é necessário requerimento do interessado para existir essa obrigação e que a falta de tal requerimento no prazo indicado no n.º 2 do presente art. 164.º, não faz precludir o direito deste de a exigir perante a administração tributária e os tribunais a execução do julgado”.
Sendo assim e como bem anota o Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, “a interpretação adequada dos referidos preceitos é pois a de que o prazo para que a Administração Fiscal dê cumprimento espontâneo às decisões dos tribunais se inicie com o trânsito em julgado e não com a remessa do processo para o serviço de finanças competente.
É que, citando mais uma vez Jorge Lopes de Sousa, obra referida pag. 1.052 «numa situação em que por deficiência na redacção da lei, não é viável atingir soluções congruentes, a opção adequada, para quem está preocupado com administrar justiça, será a de optar pela solução que melhor se compagine com os princípios constitucionais»”.
4 – Nestes termos, acorda-se em conceder provimento ao presente recurso e revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que não seja de indeferimento pela invocada extemporaneidade.
Custas pela recorrida FP, uma vez que contra-alegou, fixando-se a procuradoria em 1/8.
Lisboa, 3 de Dezembro de 2008. – Pimenta do Vale (relator) – Miranda de Pacheco – Jorge Lino.