Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: | 0425/06.8BEBRG |
Data do Acordão: | 02/29/2024 |
Tribunal: | 1 SECÇÃO |
Relator: | SÃO PEDRO |
Sumário: | |
Nº Convencional: | JSTA000P31982 |
Nº do Documento: | SA1202402290425/06 |
Recorrente: | AA E OUTROS |
Recorrido 1: | BB E OUTROS |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: | |
Texto Integral: | ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO 1. Relatório 1.1. AA e mulher CC, por si e na qualidade de legais representantes DD, vêm, nos termos do art. 150º do CPTA, recorrer, do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 13 de Maio de 2022, que concedeu provimento ao recurso interposto da sentença do TAF de Braga, o qual julgou parcialmente procedente a ACÇÃO ADMINISTRATIVA DE EFECTIVAÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL por si intentada contra BB, médico, e CENTRO DE SAÚDE ... (extensão de ...), entretanto substituído pela ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DE SAÚDE DO NORTE (ARSN). 1.2. Na referida acção os Autores pediram a condenação solidária dos Réus: (i) a pagar à sua representada DD, a quantia de 180.000,00€ pelos danos patrimoniais sofridos, presentes e futuros, decorrente da sua incapacidade total de 100% para toda a vida e para qualquer trabalho, em resultado do seu nascimento com síndrome de Down, e a quantia de 50.000,00€, a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora, a contar desde a data da citação dos Réus para os termos da presente ação; (ii) a pagar a cada um dos coautores marido e mulher, a quantia de 40.000,00€, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, presente e futuros, resultantes do nascimento da filha de ambos com síndrome de Down, acrescidas de juros de mora, a contar desde a data da citação dos Réus para os termos da presente ação; (iii) a pagar aos autores marido e mulher, a quantia de 70.000,00€, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos alegados no artigo 37.º da p.i., presentes e futuros, resultantes do nascimento da filha de ambos com síndrome de Down, acrescidas de juros de mora, a contar desde a data da citação dos Réus para os termos da presente acção; e, (iv) a pagar as custas, procuradoria e o mais legal. 1.3. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga julgou a acção parcialmente procedente, com a consequente condenação da Ré ARS do Norte a pagar aos Autores as seguintes quantias: 1.3. Interposto recurso para o TCA Norte, pela ARS Norte e também pelos Autores subordinadamente este Tribunal concedeu provimento ao recurso jurisdicional e improcedente ao recurso subordinado, e, em consequência: 1.4. Deste aresto foi interposto o presente recurso de revista, tendo os Autores concluído: Da motivação do recurso de revista excepcional (…) Sem prescindir 10- Há violação das "leges artis" por parte do médico BB consubstanciada na ausência de informação aos Autores nos termos sobreditos e com quem estava em contacto directo, por ser o agente de ligação do SNS aos utentes, aqui a grávida, apesar de o mesmo se encontrar âmbito do funcionamento, organização e articulação decorrente do Serviço Nacional de Saúde e ser seu agente, onde se inclui o Centro de Saúde ... extensão de ... e o H.... * 1.5. A recorrida ARSN contra-alegou, concluindo: «Quanto à admissão do recurso de revista (…) 1.6. O co-réu BB também contra-alegou, concluindo do modo seguinte: 1.7. A interveniente A..., S.A, contra-alegou, concluindo que deve o recurso de revista excecional ser rejeitado pelo menos na parte respeitante às questões objeto da impugnação que versam sobre a eventual atuação ilícita e culposa do réu BB e sobre a sua absolvição dos pedidos e, sem prescindir, o recurso deve ser julgado improcedente, por não provado. 1.9. Cumprido o art. 146.º, n.º 1, do CPTA, o Ex.mo Magistrado do Ministério Público não se pronunciou. 1.10. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento do recurso. 2. Fundamentação O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos: "1. No dia 06/11/2003, a Autora Mãe, foi submetida a consulta por gravidez no Centro de Saúde ... e apresentava 23 anos de idade, nada havendo sido registado quanto a antecedentes pessoais - cfr. doc. n.º1 junto com a petição inicial. -cfr. doc. n.º 2, junto com a petição inicial e docs. juntos em 04/02/2016. - cfr. docs. juntos em 26/06/2020. 5. No ano de 2003, na Maternidade ..., encontrava-se estabelecida o seguinte protocolo para rastreio bioquímico materno de anomalias congénitas: -Cfr. Docs. juntos pelo 1º Réu em 04/02/2016. - Cfr. docs. Juntos em 04/02/2016 -Cfr. Doc. nº 5, junto com a petição inicial - cfr. Doc. n.º 6 junto com a petição inicial. 10. Em 10 de março de 2004, a Autora Mãe foi submetida a ecografia obstétrica, da qual resultou o seguinte relatório: [IMAGEM] - cfr. Docs. juntos em 09/03/2016. - cfr. doc. n.º 3, junto com a petição inicial. - cfr. Doc. nº 4, junto com a petição inicial. -cfr. Docs. juntos em 18/04/2016. -cfr. Doc. junto com a contestação do 1º Réu. -cfr. Docs. juntos em 03/04/2012. -cfr. fls. 1115 e ss. (SITAF). -cfr. Doc. de fls. 1215 e ss. (SITAF). 2.2. Matéria de direito 2.2.1. Objecto do recurso - questões a decidir O acórdão recorrido anulou a sentença proferida em primeira instância e, em substituição, julgou a acção improcedente relativamente à ARS Norte, e manteve a absolvição do réu BB do pedido. Neste recurso, os Autores insurgem-se contra o acórdão recorrido e invocam; (i) "duas nulidades de direito do acórdão revidendo, por violação do artigo 615º n. ° 1 alíneas d) segunda parte e al. e) segunda parte e do Art. 5º n.° 1 e o Art. 607º n.º 3, n.º 4 e n.º 5 do CPC." - conclusões 1ª a 15ª; (ii) erros de julgamento relativamente à matéria de facto; (iii) erros de julgamento relativamente à matéria de direito. Para apreciar estes pontos, dada complexidade deste processo e das vicissitudes processuais nele ocorridas, impõe-se antes de mais um breve enquadramento jurídico e factual. 2.2.2. Enquadramento da posição das partes neste processo. (i) Posição dos Autores Os autores fundamentam a sua pretensão indemnizatória nos seguintes factos. No dia ../../2004, nasceu com vida DD, do sexo feminino, filha de ambos, com síndrome de Down e cuja gravidez não foi voluntariamente interrompida, no prazo legal, devido à actuação negligente do 1.º co- réu, médico assistente no Centro de Saúde ..., extensão de ..., .... Sustentam, para tanto, que o médico assistente, perante o resultado da 1.ª ecografia realizada no Hospital ..., em 2003/11/06, em cujo relatório a analista Dra. EE escreveu que «Deve ser efetuado rastreio bioquímico do 1.º trimestre em centro credenciado para o efeito com doseamento de PAPP-A e I. (líquido) fetal proteico no ventre materno», em consequência de se ter verificado que há " translucência da Nuca: 3,1mm”, e pese embora tenha sido indicada a realização do rastreio bioquímico, que o 1.º Réu providenciou, com resultado negativo, mas em cujo relatório se afirmava que «um rastreio negativo não exclui a possibilidade de Síndrome de Down», o referido médico assistente devia ter pedido a realização do teste da amniocentese e/ou colheita de vilosidades da placenta para confirmação diagnóstica, o que não fez, assim violando todas as regras de arte médica em ordem a prevenir efetivamente a doença Síndrome de Down e uma opção dos futuros pais. Como tal, consideram que o direito à interrupção voluntária da gravidez foi-lhes vedado por culpa exclusiva do médico assistente, que violou gravemente os deveres de médico pelo desconhecimento das artes médicas aplicadas ao caso vertente, pois que, sabendo dos graves riscos de a nascitura vir a nascer com a doença de Síndrome de Down, conformou-se com esse resultado, nada fazendo para o contrariar. E tudo, não obstante os AA., na semana de 06 de Novembro de 2003, isto é, com 12 semanas de gravidez, terem exposto ao médico assistente a vontade inequívoca de interrupção voluntária da gravidez, tendo-se o mesmo negado a colaborar com os AA., recusando o internamento da A. mulher para que pudesse interromper voluntariamente a sua gravidez. Em suma, perante o resultado dos exames realizados, o médico - assistente, no imediato, devia pedir a realização do teste da amniocentese e/ou colheita de vilosidades da placenta para confirmação diagnostica, o que não fez, violando todas as regras da arte médica, em ordem a prevenir efectivamente a doença Síndrome de Down e uma opção dos futuros pais. Em consequência desta omissão dos deveres de cuidado médico, a DD nunca será uma pessoa autónoma, mas a necessitar, durante toda a sua vida, de terceiras pessoas, (pais ou outrem) que a assistam médica, nutritiva, higiene, física, educativa ou socialmente, padecendo de dores incalculáveis que não podem ser contabilizadas, face à sua doença de malformação congénita, com necessidade de ser medicada durante toda a vida. (ii) Posição do réu BB Invocou a excepção dilatória da ineptidão da petição inicial e a sua ilegitimidade. Impugnou parte dos factos alegados pelos Autores, sustentando que a vigilância da parturiente e Autora iniciou-se em 02/10/2003, no Centro de Saúde ..., na extensão de ... e o risco obstétrico foi avaliado às oito semanas de gestação, pela aplicação do critério de Goodwin, sendo o mesmo classificado de baixo risco. Que era médico assistente não só da parturiente, como da família desta, desde 1985, tendo assistido clinicamente as três gravidezes normais de uma irmã e da co- A. mulher e os membros da família da A. continuam a depositar no Réu, confiança e não conhece no seio da família qualquer caso de malformação congénita e que não conhece o Autor. Que nunca lhe foi referido qualquer problema congénito ou outro na família do cônjuge da parturiente e que foram por si solicitados os exames preconizados pela Direcção Geral dos Cuidados de Saúde Primários para o 1º semestre de gravidez, análises e ecografia. Os resultados analíticos foram normais e o exame ecográfico apresentou valores normais nos vários itens em consideração, seja na frequência cardíaca, seja no comprimento de Crânio Caudal da placenta, não tendo sido observados sinais directos de eventuais anomalias fetais. Que, todavia, em resultado da translucência da nuca (espessura da quantidade de líquido acumulado, atrás da nuca do feto), a médica especialista do sector de ecografia do serviço de obstetrícia do Hospital ..., sugeriu o rastreio bioquímico do 1º semestre, mas não sugeriu amniocentese. Que tendo o resultado do Laboratório de Genética e Diagnóstico Pré-Natal, do Prof. Doutor FF, que reviu esse rastreio, sido negativo e não havendo no historial clínico da grávida qualquer outra razão ou risco como a idade gestacional e materna, a etnia e peso da mãe, a presença de diabetes, o consumo de tabaco, entre outros, não se justificaria, na altura e face ao caso, a amniocentese. Quanto à possibilidade de a Autora vir a realizar a interrupção voluntária da gravidez, de tal nunca falaram os Autores nas consultas e nem existiam seguros motivos para prever a existência de malformações congénitas, nem os Autores clarificaram ainda haver sido essa a sua vontade, nem em 06 de Novembro de 2003, os Autores expuseram essa vontade ao 1º Réu, porquanto, nessa altura, ainda não havia elementos para o efeito e mesmo que fosse essa a sua vontade, tal não seria permitido à luz do disposto no artigo 142.º, n.º 1, al. c) do Código Penal. Que em 10/01/2014, a grávida realizou ecografia que não juntou aos autos e na qual o nascituro tinha 22 semanas e não foram encontradas ou apontadas pelo especialista em causa quaisquer problemas nos vários Itens em ponderação. E até às 24 semanas - momento até quando podia, legalmente, ocorrer a IVG, o Réu tinha em seu poder uma avaliação clínica de baixo risco, um rastreio bioquímico (englobando ecografia do 1° semestre) negativo e uma ecografia de 2º trimestre normal. Em 10/03/2004, quando o nascituro tinha a idade ecográfica de 29 semanas e 5 dias, novo exame deste tipo foi realizado no Departamento de Imagiologia do Hospital ..., cujos resultados foram normais - com "Gestação favorável e compatível com as semanas de amenorreia". E no item anatomia fetal (cabeça), há uma chamada de atenção para uma "certa deformidade da região anterior do ovoide", o que não é indicativo ou conclusivo quanto ao Síndrome de Down. E esse Síndrome apenas foi detectado após o nascimento da DD, quando na unidade de Citogenética, onde deu entrada no dia 04/05/2004, foi realizado o exame a que se refere o documento n.º 4 junto com a petição inicial, o que também não foi verificável à nascença, mas sim "a posteriori", no serviço de Neonatologia, onde deu entrada após o parto ocorrido em 01 de maio de 2014 por "Problemas de alimentação no recém-nascido" e foi "internado por dificuldades em mamar." E nesse serviço, as facies com estigmas de síndrome de Down, com fendas palpebrais características, implantação baixa dos pavilhões auriculares, nariz pequeno e pescoço curto foram detectadas, mas não é associada à sintomatologia que define Trissomia 21. Conclui que teve actuação com diligência e zelo a que estava obrigado, agindo segundo as regras da legis artis e os conhecimentos científicos e meios de diagnóstico ao seu alcance e então existentes. Requereu a intervenção da B..., SA, com quem celebrou contrato de seguro de responsabilidade civil, com a apólice de seguro n.º ...00. Conclui pela improcedência da presente ação. (iii) Posição do réu ARS Norte
Sustenta o réu, em suma, que a IVG, a ser realizada no contexto legal do Serviço Nacional de Saúde, teria de observar os requisitos estabelecidos, designadamente na Portaria n.º 189/96, de 21/03, o que no caso não ocorreu, não tendo, assim, omitido o médico assistente e 1.º Réu o "atestado médico" exigível e nem a Autora Mãe, emitiu o necessário consentimento por escrito. O que não obsta a que os Autores tomassem a iniciativa de, por si próprios, munidos dos documentos que agora exibem, pudessem procurar ajuda médica hospitalar, ou clínica, que consumasse o que agora apresentam como dados tão firmes e consistentes quanto à agora diagnosticada malformação congénita da DD. E quando os Autores souberam do teor do resultado da 1ª ecografia e do exame realizado pelo Prof. FF, do Porto, podiam por si próprios e sem dependerem do médico do SNS, procurar realizar o "rastreio bioquímico” ali aconselhado, com a informação que detinham dos antecedentes genéticos da família e a tal deviam ser aconselhados os Autores pela médica Dr.ª EE e se assim o entendessem, mesmo perante outros médicos declarar que desejavam interromper a gravidez. Também a amniocentese teria que ser realizada em hospital de especialidade, mediante os respectivos pressupostos, o que no caso estava comprometido, porque os Autores não revelaram a verdadeira história genética familiar do lado paterno. Os próprios Autores admitem na sua petição, artigo 36.º, que a situação ocorreu, porque um dia, um médico radiologista não fez o seu serviço correctamente. E os Autores insistem no facto de a ecografia de 2004/03/10 realizada pelo Dr. GG ter alcançado o diagnóstico correto, mas tardio, por relação a um outro que não se mostra claro e ecografias são recomendadas pelos médicos do SNS, como foram, mas são realizadas, sob convenção, pelos médicos do sector privado e em face do que conclui não existir qualquer omissão do SNS e em particular o médico 1° Réu. E o 1º Réu pediu todos os exames estabelecidos pela Direcção Geral dos Cuidados de Saúde Primários para o primeiro trimestre de gravidez, incluindo análises e ecografia, que nada indicam que devesse determinar outras indicações ou exames senão os que foram determinados e a amniocentese, como método de diagnóstico pré-natal invasivo, não deve determinar-se senão quando se verifiquem os pressupostos que no caso não ocorriam. Que a Autora às 12 semanas de gestação não requereu a IVG como forma de evitar o nascimento da filha quando só às 30 semanas de gestação se detectou a malformação e não estava ao alcance dos Réus controlar o atingimento do limite legal máximo de realização de uma IVG e que poderia ter sido realizada se os Autores o desejassem, ainda que em violação das regras penais, em interrupção da sequência causal do facto "gravidez" por relação ao dano "nascimento com deficiência". Nenhum nexo causal existe entre a acção e ou omissão do 1º Réu e aquele desfecho danoso e a verificar-se, sempre seria provocado pela deficiente execução dos exames ecográficos e nunca pela deficiente avaliação dos exames pelo médico de clínica geral. (iv) Ocorrências processuais relevantes Em 22/09/2008, realizou-se audiência preliminar, na qual foi determinado que a presente acção passasse a seguir com o primeiro Réu, BB e na posição do Centro de Saúde, passasse a estar a Administração Regional de Saúde do Norte, IP. Admitiu-se a intervenção a título acessório da B..., SA, nos termos requeridos pelo primeiro Réu na sua contestação. Citada, a B..., SA, apresentou contestação, alegando, em suma, que celebrou com o primeiro Réu um contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...00, pelo qual garantiu a responsabilidade civil do tomador do seguro inerente à profissão de médico de medicina geral e familiar até ao montante de € 150,000,00, com franquia de 10%. Adere ao alegado pelo 1- Réu, e alegou que através da ação ordinária que corre termos pelo Tribunal Judicial de Vila Verde sob o nº 1044/05.1TBVVD, os autores imputam ao Hospital ... e ao médico Radiologista Dr. GG, a culpa pela ocorrência dos mesmos factos alegados na petição inicial dos presentes autos. Pugna pela improcedência da presente acção. Em 17/06/2015, foi junta aos autos certidão da sentença proferida no processo que correu termos no Tribunal Judicial de Vila Verde e em 18/09/2015, certidão do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que decidiu o recurso interposto daquela sentença. Por Despacho de 16/11/2015, foi ordenada a cessação da suspensão dos presentes autos. Em 28/01/2016, realizou-se audiência prévia, proferiu-se despacho saneador, julgaram-se improcedentes as excepções invocadas, e fixou-se o objecto do litígio e os temas da prova. Na respectiva acta ficou a constar, além do mais: "(...) Os Ilustres Mandatários das partes aceitam relativamente ao art.º 9º da P.l. que "a DD está e estava afeta de uma má formação congénita para toda a vida". Os Réus e a Interveniente aceitam o alegado pelos Autores no art.º 17º da P.l. quando é dito "que os Autores na semana de 6 de novembro tinham uma vontade inequívoca de realizar a interrupção voluntária da gravidez.". Por acordo, os Ilustres Mandatários aceitam que o Réu BB à data dos factos prestava serviço no Centro de Saúde ..., Extensão de .... (...) Objeto do litígio: Discutida a causa com os Ilustres Mandatários das partes, a Mm.ª Juiz, nos termos do art.º 596º do CPC, fixou o seguinte objecto da acção: De seguida, a Mm.ª Juiz fixou os seguintes temas de prova: 1 - Cumprimento pela Autora de todas as informações médico-legais que lhe foram solicitadas durante a gravidez 2 - Tempo da avaliação dos riscos de Síndrome de Down de acordo com os conhecimentos médicos, técnicos e científicos. 3 - Situação de translucência na nuca superior a 3,0ml enquanto real perigo de formação congénita e afectação de Síndrome de Down (art.º 15º da PI). 4 - Existência na família do co-autor marido de um caso de Síndrome de Down. 5 - Comunicação pelos Autores ao 1º Réu, na semana de 6 de novembro de 2003, da existência de tal caso. 6 - Exposição por parte dos Autores da vontade inequívoca em realizar a interrupção voluntária da gravidez (art.º 17º da P.I.). 7 - Negação de colaboração pelo 1º Réu relativamente ao internamento da Autora e relativamente à interrupção voluntária da gravidez. 8 - Dever/obrigatoriedade por parte do 1ºRéu em pedir a realização do teste de amniocentese (art.º 20º e 21º da P.l. e 6°, 7º e 8º da réplica). 9 - Danos sofridos pela DD em virtude da omissão dos deveres de cuidado médico (art.º 24º ao art.º 31º da P.I.). 10 - Danos sofridos pelos Autores marido e mulher em virtude do nascimento da filha com Síndrome de Down. 11 - Pedido pelo 1 º Réu de todos os exames estabelecidos pela Direção Geral de Cuidados de Saúde Primários." Cfr. - fls. 699/708. Os AA requereram a realização de exame médico-legal colegial na pessoa da autora DD - a realizar pelo IML Gabinete Médico Legal de Braga. A Ré ARS requereu a realização de perícia colegial e indicou o seu perito. Por Despacho de 11/10/2016, determinou-se a realização de perícia pelo Gabinete Médico Legal e Forense do Cávado do Instituto Nacional de Medicina Legal, cujo relatório foi junto aos autos em 09/12/2016. Em 29/05/2017, foi junto aos autos o Parecer pericial do Gabinete Médico Legal de obstetrícia e ginecologia, no qual, para além do mais são solicitados elementos adicionais. 1.14. Por Despacho de 28/05/2018, foi ordenada a remessa dos elementos adicionais ao Gabinete Médico Legal e em 20/02/2019, foi junto o parecer final. Em 10/08/2021, foi proferida sentença, contendo essa sentença o julgamento de facto e de direito, onde se julgou parcialmente procedente a presente acção, a qual consta da seguinte parte dispositiva: «Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, em consequência: 1. Condeno a Ré ARS do Norte a pagar aos Autores as seguintes quantias: Da sentença da primeira instância foi interposto recurso pela ARS, Norte e recurso subordinado pelos autores. O TCA Norte proferiu o acórdão, ora recorrido, decidindo o seguinte: "Nesta conformidade, acordam os Juízes Desembargadores deste Tribunal Central Administrativo do Norte em julgar a apelação procedente, no que tange ao recurso principal e improcedente no que respeita ao recurso subordinado e, em consequência: Custas do recurso principal e subordinado pelos autores (art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC)."
2.2.3. Enquadramento da presente acção no âmbito das acções de responsabilidade civil. A presente acção inclui-se no âmbito de uma problemática, que tem sido muito discutida, ligada à concepção, nascimento e vida indesejados. A doutrina e a jurisprudência têm distinguido, neste âmbito, três tipos de acções, com a seguinte terminologia dominante: wrongful Conception; wrongful birth e wrongful life. No presente processo estão em causa as duas últimas, ou seja, as relativas ao nascimento indevido e vida indevida. O Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 12 de Março de 2015, proferido no processo 1212/08.4TBBCL.S1 concedeu indemnização aos pais que, em caso de nascimento de uma criança com deficiência, reagiram contra o médico e hospital, por não terem sido feitos os exames pertinentes e desse modo terem sido impedidos de interromper voluntariamente a gravidez. PAULO MOTA PINTO (Ainda a Indemnização o "nascimento indevido" e "vida indevida") refuta os principais argumentos contra a indemnização devida nestes casos, no quadro da responsabilidade civil. Afasta, em primeiro lugar, o entendimento de que a interrupção voluntária de gravidez, apesar de não punida no Direito Penal, continua a ser um ilícito para o direito civil, por entender que a perda da possibilidade de interromper a gravidez releva como "lesão à liberdade reprodutiva da mãe, nos casos e nos limites em que esta podia ser exercida" (pág. 554). Em segundo lugar afasta as objecções "no plano ético-jurídico", aderindo aos fundamentos do acórdão do Tribunal Constitucional 55/2016. O que se impõe, diz o autor citado, em nome da dignidade humana é "aproveitar, também aqui, todas as potencialidades da ideia clássica de que "nasciturus pro jam nato haetur quotiens de commodis ejus agitur" (tenha-se o nascituro por nascido, na medida em que se trate dos seus interesses" (...) não no sentido de uma personalidade jurídica parcial, no que favoreça os interesses do nascituro, mas no sentido de que a "personalidade jurídica que lhes advirá pelo nascimento é à medida da respectiva personalidade humana". Em terceiro lugar o autor afasta o argumento de que afinal “os pais poderiam ter optado por não interromper a gravidez". A pretensão indemnizatória assenta na remoção ilícita dessa possibilidade pelo comportamento dos médicos e, portanto, os pais teriam pelo menos tido essa opção. Afasta ainda, em quarto lugar, o argumento de que afinal poderia "existir o direito à não vida", pela razão de que "ninguém pede para que uma vida concreta seja eliminada". 2.2.4. Os fundamentos da decisão da primeira instância. Vejamos, então, com mais detalhe, como a pretensão dos Atores foi apreciada na primeira instância. A sentença disse o seguinte: "(...) Resulta da matéria de facto que a Autora Mãe foi seguida na sua gravidez no Centro de Saúde ..., perante o também Réu, Dr. BB, e no âmbito das consultas ali realizadas, foi avaliada a foram-lhe prescritos diversos exames, como ecografias e rastreio bioquímico que visava a despistagem de síndrome de Down do feto. E que para a realização da segunda ecografia, das 20 semanas, realizada às 22 semanas, não foi comunicado o resultado daqueles exames, por forma a criar alerta na procura de outros elementos atinentes à eventual deteção de anomalias com o feto. Que perante tais circunstâncias o Réu BB não informou os Autores Pai e Mãe da dúvida gerada pelos resultados contraditórios dos primeiros exames e assim, colocar à consideração a possibilidade de realização de exame designado por amniocentese, exame este que seria o adequado à determinação da existência de deformações do feto e, acima de tudo de síndrome de Down, criando, assim, a possibilidade de os Autores decidirem, depois de devidamente informados sobre os riscos que tal exame comportava para o feto, pela sua realização ou não. Não competia, pois, ao Réu BB, seguindo a convicção gerada pelo rastreio bioquímico negativo, mas que não afasta de todo a possibilidade de síndrome de Down no feto, e que não estava avaliado o respetivo risco com a introdução dos valores da translucência da nuca detetada na primeira ecografia, decidir pela não realização da amniocentese com base no fator da idade da Autora Mãe. E os receios que se foram instalando na Autora Mãe, apesar de amenizados com o resultado da segunda ecografia, mas como vimos, alheada do contexto dos resultados dos exames anteriores, acabaram por se justificar com o nascimento da sua filha padecendo de síndrome de Down. Na verdade, o Réu BB ao omitir um dever de informar os Autores da possibilidade de existência de síndrome de Down e de esclarecer, acima de tudo, a possibilidade de realização de amniocentese, com os riscos a tal exame inerentes, coartou aos Autores o direito de decidirem deforma esclarecida e inequívoca o destino da gravidez em causa. E entenda-se que tal omissão do Réu BB poderá dever-se à falta de especialização de conhecimentos científicos, exigíveis a profissionais de saúde especificamente preparados para o efeito e que a atuação do Réu BB se conformou com as orientações plasmadas no que ao tipo e momento de realização de exames a uma grávida, contudo, era exigível que o sistema de saúde estive devidamente organizado de modo a permitir que em caso de dúvida como nos presentes, um profissional de saúde de medicina geral, em funções de planeamento familiar e acompanhamento de grávidas se pudesse socorrer de um serviço integrado de rastreio combinado e complementar de fácil e rápido acesso de modo a esbater as dúvidas que surgissem. Só que no centro de saúde onde o Réu BB exercia as suas funções, tal serviço não estava disponibilizado, à semelhança de outros existentes no distrito de Braga. Dúvidas parecem não existir que, no caso dos autos seria recomendável que aos Autores fosse exposta e informada a possibilidade de realização da amniocentese de modo a que fossem dissipadas as dúvidas geradas pelos resultados contraditórios dos exames realizados e cujo pior cenário foi confirmado com o nascimento. E a partir daí fosse os Autores a decidir, depois de devidamente esclarecidos de todos os riscos a decidir os termos que pretendiam ou não prosseguir com a gravidez. E tal não aconteceu. Julgamos, assim, que houve violação das leges artis com a ausência de informação aos Autores nos termos sobreditos. Ou seja, os Autores viram-se privados da informação necessária à eventual realização de exame recomendado para o esclarecimento de dúvidas sobre a existência de síndrome de Down no feto, por forma a que, mediante circunstâncias o ponderar clinicamente, pudessem decidir pelo prosseguimento ou não da gravidez, sendo esta omissão, portanto, o facto ilícito - cfr. em sentido idêntico, em casos semelhantes, os acórdãos do Colendo Supremo Tribunal Administrativo de 16/3/2005, proferido no recurso 01609/02 e de 10/09/2014, Processo 0812/13. Com efeito, como resulta do Acórdão do Colendo Supremo Tribunal de Justiça de 12/0372015, Processo n.º 1212/08.4TBBCL.G2.S1, "As wrongful birth actions surgem quando uma criança nasce mal-formada e os pais, em seu próprio nome, pretendem reagir contra o médico e/ou instituições hospitalares ou afins, por não terem efetuado os exames pertinentes, ou porque os interpretaram, erroneamente, ou porque não comunicaram os resultados verificados, sendo considerada ilícita a omissão do consentimento informado sobre essa deficiência que, eventualmente, os impediu de terem optado pela interrupção da gravidez, proveniente de um erro no diagnóstico pré- natal. Trata-se de um cenário que ocorre ou porque o médico não efectuou os exames pertinentes, ou porque os interpretou, erroneamente, ou porque não comunicou os resultados obtidos, não se mostrando, porém, responsável pela verificação da deficiência, propriamente dita, que surge, normalmente, desde o início da vida pré-natal. Contudo, a omissão do esclarecimento sobre essa deficiência é considerada ilícita, enquanto que o comportamento alternativo lícito do médico teria evitado, na perspectiva dos autores, o nascimento e, deste modo, a vida, gravemente, deficiente, porquanto os mesmos alegam que se tivessem sido informados das malformações que o embrião/feto desenvolveu durante a gestação, teriam optado por interromper a gravidez, imputando, assim, aos réus um erro no diagnóstico pré-natal. Pelo exposto, e à luz do critério previsto no n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil, temos que o direito reprova a conduta médica adotada no caso concreto, por violadora da leges artis, por se ter desviado do comportamento devido, cauteloso e exigível. E traduz uma conduta culposa, atendendo às concretas circunstâncias do caso e aos conhecimentos médicos de que era suposto ao Réu BB, enquanto funcionário do Centro de Saúde ... e consequentemente da Ré ARS Norte, possuir, porquanto, podia e devia, face à dúvida gerada pelos resultados contraditórios dos dois primeiros exames a que a Autora se submeteu, prever e antecipar a eventual ocorrência de síndrome de Down no feto, como veio a ocorrer, portanto, fazer melhor, designadamente, optar - em tempo - pela realização de exames complementares de diagnóstico. Entendendo-se que a realização de tais exames não evitariam a manifestação do síndrome de Down, mas, por certo, poderiam contribuir para que os Autores, de forma esclarecida, pudessem decidir o futuro da gravidez. E o esclarecimento dos Autores quanto a tal possibilidade, quer da ocorrência do síndrome de Down, quer da realização da amniocentese e seus potenciais riscos, apresentava-se como comportamento diligente, responsável, ponderado, exigível aos médicos decisores. E sopesando as limitações de um médico de clínica geral no exercido de funções de planeamento familiar e acompanhamento de grávidas e ausência de um serviço estruturado como o que existia em outros centros de saúde do distrito de Braga, é, por certo limitador da ação e decisão do Réu BB. Que o Réu BB não equacionou tal possibilidade, nem informou os Autores para esse efeito (…)" 2.2.4. Análise da fundamentação da sentença A sentença na parte decisória não absolveu, nem condenou o médico BB. Não afastou, pelo menos expressamente, o dolo ou negligência grave da sua actuação. A existência do dolo é relevante pois, nestes só havendo dolo a responsabilidade é solidária (art. 3º, 2, do Dec. Lei 48.051, de 21 de Novembro de 1867) e, a existência de culpa grave é relevante para efeitos do direito de regresso (art. 2º, 2 do Dec. Lei 48.051), Há ainda um outro aspecto da sentença - quanto aos factos - que deve ser referido e que, de certo modo, foi suscitado nas conclusões do recurso dos Autores para este Supremo Tribunal (conclusão 11): "Assim, mostra-se que houve acordo, entre todas as partes relativamente à fixação da matéria de facto materialmente controvertida, tal como configurada pelos autores/co recorrentes e admitida tal matéria de facto por acordo, não pode o tribunal ad quem suscitar a questão em termos de nulidade oficiosa". "a) Que em face da primeira ecografia a que a Autora Mãe se submeteu durante a gravidez, bem assim do resultado negativo do rastreio bioquímico, estivesse, desde logo, na disposição de se submeter a interrupção voluntária da gravidez. b) Que os Autores Pai e Mãe houvessem manifestado ao Réu BB vontade expressa e inequívoca de procederem à interrupção voluntária da gravidez, bem assim, a vontade expressa e inequívoca de a Autora Mãe se submeter a exame de amniocentese." Contudo, como decorre da Acta de Audiência Prévia: "Os Réus e a Interveniente aceitam o alegado pelos Autores no art.º 17º da P.l. quando é dito "que os Autores na semana de 6 de Novembro tinham uma vontade inequívoca de realizar a interrupção voluntária da gravidez.". É evidente a contradição entre a alínea a) dos factos não provados, e o acordo das partes, no que respeita à vontade inequívoca de interrupção voluntária da gravidez na semana de 6 de Novembro de 2003. A referida contradição não é todavia insanável, uma vez que, por força do disposto no art. 607º, n.º 5, do CPC a livre apreciação da prova não abrange os factos que estejam "plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes". Não poderia assim o julgador, com apelo à livre apreciação da prova, dar como não provado o facto acordado pelas partes. Desse modo, ao não respeitar a prova plena resultante do acordo das partes, a sentença violou o disposto no artigo 607º, n.º 5 do CPC. Por outro lado, o Supremo Tribunal Administrativo, nos recursos de revista, pode apreciar o erro na apreciação da prova, quando o mesmo resulte de ofensa a uma disposição expressa de lei que "fixe a força de determinado meio de prova" - art. 150º, 4º, do CPTA. Consequentemente, por violação de lei expressa que fixa a força probatória da existência de um facto (art. 607º, 5 do CPC) deve alterar-se a matéria de facto no sentido de dar como provado por acordo das partes, o seguinte facto: Para além das referidas "fragilidades" a sentença perdeu coerência quando introduziu no seu discurso fundamentador o "anormal funcionamento do serviço" da ARS Norte. “(…) E mostrando se provado que, pela via da impossibilidade de o Réu BB poder dispor, como outros centros de saúde do distrito de Braga, de serviço complementar de avaliação e rastreio e, assim, decidir deforma esclarecida e inequívoca pelo melhor caminho, quanto à necessidade ou utilidade de realização de outros exames complementares de diagnóstico, é patente o anormal funcionamento de um serviço de acompanhamento de grávidas no Centro de Saúde ... a que a Autora recorreu, ao não disponibilizar o conjunto de meios absolutamente imprescindíveis ao seu funcionamento. (...)" Este segmento da fundamentação da sentença não apresenta um recorte preciso da localização da ilicitude (violação das leges artis) manifestando clara ambiguidade, quanto ao facto ilícito, ou seja, não deixando claro se o facto ilícito gerador do dano decorre (i) da falta de informação dos riscos da gravidez ou (ii) dever de ordenar exames complementares dada a ausência de disponibilização dos meios de diagnóstico que pudessem confirmar a amplitude desse risco. Com efeito, a ilicitude por violação do dever de informação é diferente da ilicitude por violação do dever de ordenar os exames complementares adequados. São deveres distintos, com finalidades diversas: (í) o dever de informar os pais sobre o risco de uma criança nascer com graves problemas de saúde destina-se a permitir aos pais uma decisão tempestiva e fundada sobre a interrupção voluntária da gravidez; (ii) o dever de determinar um exame complementar tem por finalidade dissipar as dúvidas sobre a maior ou menor probabilidade de um nascimento indesejado. São em boa verdade dois deveres objectivos de cuidado, com alguma conexão entre si, mas ainda assim, autónomos, sendo que pode existir o primeiro (dever de informar sobre o risco) e não o segundo (dever de ordenar exames complementares), desde logo porque, por exemplo, por não estarem disponibilizados os meios de realização dos exames complementares. "(…) Julgamos, assim, que houve violação das leges artis com a ausência de informação aos Autores nos termos sobreditos. Ou seja, os Autores viram-se privados da informação necessária à eventual realização de exame recomendado para o esclarecimento de dúvidas sobre a existência de síndrome de Down no feto, por forma a que, mediante circunstâncias a ponderar clinicamente, pudessem decidir pelo prosseguimento ou não da gravidez, sendo esta omissão, portanto, o facto ilícito. (...)" Todavia, perdeu, coerência quando introduziu na controvérsia a "falta de serviço" e justificou a condenação da ARS Norte - IP por esta entidade não dispor de serviço complementar de avaliação e rastreiro, naquele local. Ora, o dever de informar os pais do risco da criança poder vir a nascer com síndrome de Down não depende, rigorosamente nada, da organização (má ou boa) dos serviços da ARS Norte, IP, em .... Dependia apenas e só do resultado de uma ecografia, que detectou o valor de 3.1 de translucência da nuca, que indiciaria a existência de síndrome de Dawn no feto. Perante esse resultado, e perante o resultado do rastreio bioquímico, podia não ser exigível ao médico que ordenasse (desde logo) um exame complementar mais concludente, mas era, desde logo, exigível que informasse os pais do perigo e risco que os resultados da translucência da nuca já indicavam. Em suma, apesar da sentença - quanto à localização e violação do dever objectivo de cuidado, traduzido no dever de informar - ter sido clara perdeu consistência quando introduziu na controvérsia a "falta de serviço". Foi precisamente esta falta de consistência da sentença que foi destacada no recurso da ARS Norte, alegando esta entidade (i) que a "falta de serviço" não podia ser conhecida por não ter sido incluída na causa de pedir alegando ainda (ii) que não existia o dever do médico referenciar a grávida para um exame de diagnóstico mais concludente (diagnóstico pré-natal (DPN) de amniocentese". 2.2.5. O acórdão do TCA Norte No recurso para o TCA Norte a ARS Norte dirigiu-se essencialmente contra a sua condenação fundada no anormal funcionamento do serviço alegando que esta circunstância traduzia uma alteração da causa de pedir, inadmissível por não ter sido desde logo alegada na petição inicial. O acórdão do TCA Norte veio a dar razão à ARS Norte e revogou a sentença, porque concluiu o seguinte: i) Não era processualmente possível alterar a causa de pedir e condenar a ARS por "falta de serviço", quando os factos em que assentava tal causa de pedir não foram alegados na petição inicial e, por isso, retirou da matéria de facto os pontos 33, 34 e 35 dados como provados na sentença: (ii) Alterou a matéria de facto aditando aos factos não provados os constantes das alíneas c) e d), ou seja: "(c) que se impusesse ao médico de família, de acordo com a legis artis, que na posse dos elementos de que dispunha o 1.º Réu, ou seja, com uma ecografia do 1.º semestre onde se referia a existência de uma "TN de 3,1mm" e onde se recomendava a sujeição da grávido à realização de rastreio bioquímico a realizar por entidade credenciada para o efeito, e perante o resultado negativo desse rastreio, a imediata sujeição da gravida à realização de exame de amniocentese. (iii) Finalmente, entendeu que não havia violação das "leges artis" pelo médico assistente da Autora, por este não ter determinado o exame complementar mais concludente, conclusão a que chegou depois de ter introduzido os factos não provados os pontos c) e d), acima transcritos. (iv) Afastou a responsabilidade civil fundada na violação do dever de informação por entender que não havia nexo de causalidade entre essa omissão e o nascimento da criança, uma vez que não se provou a vontade dos pais em interromper voluntariamente a gravidez. 2.2.6. Análise dos fundamentos do recurso e do acórdão recorrido Os Autores insurgem-se contra o acórdão recorrido, suscitando três grupos de questões: (i) nulidades; (íii) erro de julgamento relativo à matéria de facto; (iii) erro de julgamento relativamente à matéria de direito. Vejamos cada um deles. 2.2.6.1. Nulidade imputadas ao acórdão. Os Autores insurgem-se contra o acórdão imputando-lhe, como já referimos, duas nulidades e erros de julgamento. Tais nulidades decorrem, em seu entender, da inexistência das nulidades que o acórdão recorrido entendeu existirem na sentença, ou seja, excesso de pronúncia relativamente à questão da falta de serviço e insuficiência da matéria de facto, relativamente à violação das "leges artis" pelo médico BB. Consideram, em suma, que o acórdão recorrido violou os artigos 615º, n.º 1, al. a), segunda parte e al. e) segunda parte e art. 607º, n.º3, n.º 4 e n.º 5 do CPC. As nulidades imputadas ao acórdão referem-se à eliminação dos factos dados como provados nos pontos 33, 34 e 35 e ao aditamento dos factos sob as alíneas c) e d). Como é bom de ver os Autores entendem que o acórdão errou ao julgar verificadas as nulidades da sentença da primeira instância e ter julgado por substituição, Podemos, portanto, sem qualquer dúvida, concluir que os Autores não estão a arguir nulidades, mas sim a imputar erros de julgamento ao acórdão recorrido e será com tal configuração que apreciaremos as questões suscitadas. Ou seja, vamos ver, dentro do âmbito de cognição deste Supremo Tribunal Administrativo relativamente ao julgamento da matéria de facto, se o acórdão decidiu bem relativamente à concretização da matéria de facto e aplicação do direito. 2.2.6.2. Questões sobre a matéria de facto Temos aqui duas questões que o acórdão recorrido apreciou: (i) A eliminação de factos dados como provados sobre a organização dos serviços e a (ii) ausência de factos provados ou não provados, sobre as leges artis que, dada a sua autonomia, devem ser analisados separadamente. i) Eliminação de factos dados provados. Quanto ao primeiro aspecto (factos provados sobre a organização dos serviços) o acórdão entendeu que: Os Autores alegam que não ocorreu qualquer excesso de pronúncia: " 7-, Não se verifica a nulidade oficiosa por excesso de pronúncia do Sr. juiz a quo, consubstanciada nos pontos 33, 34 e 35 da matéria de facto julgada como prova, quando os autores/ co recorrentes não só alegaram devida e adequadamente, todos os factos relativos à causa de pedir na petição inicial e seu artigo 13º e consubstanciados nos factos "logo que primeira ecografia realizada no Hospital ..., em 2003/11/06, a analista Dr. EE escrevia no seu relatório "deve ser efectuado rastreio bioquímico do 1º trimestre em centro credenciado para o efeito de PAPP-A e 1, Líquido fetal proteico no ventre materno" e 8- E quando ainda se alegou que, c. f. r. artigo 19º que o aludido rastreio foi pedido e realizado na Genética Médico e diagnóstico Pré-Natal Prof. Doutor FF, em 2003/11/18, tendo-se escrito, por mero lapso de escrita que aqui se pede para se relevar, c .f .r. Doc 6, conforme determinação e segundo protocolos do Serviço Nacional de Saúde, sendo que os autores apresentaram uma relação material controvertida em que demandaram solidariamente, por terem legitimidade para tanto o réu BB e a ARS NORTE. 9- E quando é certo que no âmbito da audiência prévia em que se lavrou o despacho saneador e se determinou o objecto da acção e os competentes temas de prova, nenhuma das partes presentes suscitou quaisquer irregularidades ou nulidades que influíssem no sentido da decisão final. (…)” A argumentação dos Autores não é muito clara, mas em boa verdade julgamos que têm razão e que o acórdão recorrido não decidiu bem esta questão. Vejamos porquê. O Código de Processo Civil relativamente aos factos que podem servir de fundamento à pretensão do Autor distingue entre factos essenciais, factos instrumentais e factos concretizadores ou complementares. A referência a factos instrumentais e a factos complementares ou concretizadores era referida no Artigo 264.º do CPC antigo, sob a epígrafe "Principio dispositivo". "Princípio dispositivo 1 - Às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções. 2-O juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 514° e 665.3 e da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa. 3 - Serão ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório”. O conteúdo deste passou para o art. 5º do Novo CPC, embora sem a referência ao "princípio dispositivo": "Artigo 5.º (art.º 264.º/664.º CPC 1961) Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal 1- Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. 2- Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; 3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito." Este artigo 5º deve ser articulado com o art. 607º, n.º 4, segundo o qual: “(…) - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência." E ainda o art. 615º, 1, d) e e) que culmina com nulidade a sentença que conheça de questões de que não podia conhecer ou condene em pedido diverso. Da articulação destes preceitos decorre a existência de quatro tipos de factos: (1) os essenciais que são aqueles que constituem a causa de pedir. Só estes factos dependem de alegação do autor para poderem ser conhecidos (art. 5º, 1 do CPC). Existem ainda os (2) factos instrumentais. (3) os factos concretizadores e (4) assim como os notórios, que não carecem de alegação e podem, portanto ser atendidos na sentença. Os factos instrumentais serão atendidos desde que resultem da discussão da causa e os concretizadores para além de resultarem da instrução e discussão da prova devem concretizar factos alegados e ter sido objecto de contraditório. O acórdão recorrido entendeu que os factos dados como provados nos pontos 33. 34 e 35 eram factos essenciais de uma causa de pedir não alegada, mais precisamente, o mau funcionamento do serviço (falta de serviço), como fundamento da responsabilidade civil extracontratual. Sendo factos essenciais, os mesmos careciam de alegação logo na petição inicial e, não o tendo sido, jamais poderiam ser atendidos mesmo que resultassem da discussão da causa. A primeira questão que nos surge é a de saber se o "anormal funcionamento do serviço", enquanto concerto operante no domínio da responsabilidade civil extracontratual, durante a vigência do Dec. Lei 48.051, pode ser qualificado como causa de pedir autónoma, que tenha de ser invocada separadamente da pretensão indemnizatória fundada na actuação de um concreto agente da Administração. No regime do Dec. Lei 48.051, aplicável neste processo, não existia qualquer norma legal que distinguisse os casos em que o dano é causado pelo comportamento ilícito e culposo de um órgão ou agente, daqueles casos em que esse dano ocorria sem ser possível localizar ou provar o concreto comportamento humano que o gerou. Por outro lado, nos presentes autos, os autores imputaram a um médico concreto a violação das "leges artis" (violação do dever de informar e de diagnosticar a tempo o risco de nascimento da criança com síndrome de Down) localizaram o dever violado no âmbito da sua actuação. Para avaliar a violação dos deveres do médico é sem dúvida relevante o meio logístico onde esse serviço é prestado. Portanto, para definir e avaliar o conteúdo e correspondente violação dos deveres do médico (quer de informação, quer de encaminhamento do paciente, quer de requisição de meios de diagnóstico) a organização dos serviços da ARSN, concretamente na extensão de ..., é também um facto instrumental relevante. A culpa ou o dolo imputados ao médico só podem ser aferidos, em boa verdade, perante o modo como os serviços estão organizados e com os meios que lhe são oferecidos. Estamos, assim, perante factos instrumentais relevantes para se poder aferir a ilicitude e culpa do concreto comportamento do médico, ao serviço da ARSN, sendo que foi com este enquadramento que a acção foi intentada. Já acima destacamos que a sentença da primeira instância perdeu coerência e concludência quando apelou à falta de serviço, numa acção fundada na concreta imputação de omissão de deveres funcionais a um concreto médico. A intromissão na sentença da problemática da falta de serviço foi, assim, desnecessária, uma vez que a sentença tinha dado como provada a falta de informação do médico sobre os riscos da gravidez. Uma leitura atenta da sentença já permitia, sem dúvida, concluir que, bem vistas as coisas, fundou (também) o dever de indemnizar na violação do dever de informação dos pais sobre os riscos de nascimento de uma criança com síndrome de Down. De resto o acórdão recorrido ao apreciar a violação das "leges artis" pelo médico atendeu, além do mais, ao modo como "... funcionava a integração entre cuidados de saúde primários e cuidados diferenciados na área da circunscrição do Centro de Saúde onde o réu exercia funções de médico de família com o Hospital ..., como hospital de referência" (fls. 90 do acórdão recorrido). Ou seja, a factualidade dada como assente nos aludidos pontos 33, 34 e 35 era e foi, desde logo, relevante para avaliar a ilicitude do comportamento do médico ao não ter ordenado a realização da amniocentese. Deste modo, e concluindo, os factos dados como provados, sobre a organização dos serviços da ARSN, e que resultaram da discussão da causa, na medida em que são concretizadores da causa de pedir (pressupostos da responsabilidade civil extracontratual) e instrumentais da ilicitude e culpa concretamente imputada ao médico, não podiam ser suprimidos pelo TCA Norte, que consequentemente, nesta parte não pode manter-se. A manutenção de tais factos no elenco dos factos provados não significa que os mesmos pudessem ser atendidos para a condenação da ARS Norte com fundamento na falta de serviço. Contudo, esta é uma questão de direito que será oportunamente apreciada. ii) Ausência de factos provados ou não provados e aditamento de factos O acórdão do TCA Norte, depois de descrever a matéria de facto relacionada com a actividade do médico que assistiu a Autora, entendeu que o Tribunal "não julgou como provados, ou não provados alguns factos essenciais que foram alegados pelos Autores na petição inicial e cuja atendibilidade, atendendo ao objecto do recurso principal, é imprescindível". Entendeu, assim e concretamente, que apesar do facto provado no ponto 26 (o médico "não equacionou a possibilidade de realização de amniocentese, nem informou os autores Pai e Mãe de tal possibilidade" impunha-se que o Tribunal tivesse respondido "à questão de saber se nas concretas circunstâncias em que o 1º réu actuou, ou seja perante aquele resultado da ecografia do 1º trimestre e o resultado do rastreio bioquímico, o mesmo estava obrigado a remeter a Autora para a realização de uma amniocentese, perante o que eram então as legis artis, o que não resulta provado, nem sequer não provado da fundamentação de facto da sentença". “(…) (c) que se impusesse ao médico de família, de acordo com a legis artis, que na posse dos elementos de que dispunha o 1º réu, ou seja, com uma ecografia do 1º semestre onde se referia a existência de um TN de 3,1 mm e onde se recomendava sujeição da grávida à realização de rastreio bioquímico a realizar por entidade credenciada para o efeito, e perante o resultado negativo deste rastreio, a imediata sujeição da grávida à realização de exame de amniocentese". (d) que na família do Autor marido existisse um caso de Síndrome de Down - sua sobrinha - e que essa informação tivesse sido dada ao médico" O STA, em recurso de revista, conhece apenas matéria de direito (art. 12º, 4 do ETAF e 150º, 2 e 4, do CPTA). Portanto, relativamente à convicção do TCA Norte sobre a prova, ou melhor, a não prova dos factos acima referidos, nada se dirá por se tratar de questão fora do âmbito de cognição deste STA. 2.2.6.2. Questões sobre matéria de direito - pressupostos da responsabilidade civil O acórdão recorrido afastou a responsabilidade civil da ARS Norte por ter entendido que (i) a sentença era nula por ter condenado a ARS Norte com fundamento no anormal funcionamento do serviço, (ii) porque o co-réu BB não incorreu "na violação de qualquer legis artis" relativamente ao alegado dever de ordenar exames complementares e (iii) porque, relativamente ao alegado dever de informação dos riscos da gravidez da Autora/mãe, não havia nexo de causalidade. (i) - Falta de serviço - nulidade da sentença da 1ª instância Quanto ao fundamento da responsabilidade civil assente no anormal funcionamento do serviço, o acórdão, que nesta parte declarou nula a sentença, deve manter-se. Os Autores imputaram ao réu/médico a prática de concretos actos ilícitos causadores dos danos peticionados na presente acção e, era dentro deste enquadramento, que a responsabilidade civil extracontratual podia ser apreciada. Não foi efectivamente invocado o anormal funcionamento dos serviços com autonomia, isso é, independentemente do dolo ou culpa do médico/réu e, portanto, tal questão não integrava a causa de pedir. O juiz apenas pode conhecer das questões que lhe sejam colocadas, salvo se as mesmas forem de conhecimento oficioso (art. 608º, 2 do CPC, segundo o qual "o juiz (...) não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.". A questão do anormal funcionamento de serviço não é de conhecimento oficioso e, portanto, o juiz não podia ocupar-se dela. O conhecimento de questões de que não podia conhecer torna nula a sentença, por excesso de pronúncia (art. 615º, 1, d) do CPC) como decidiu o TCA Norte. Nesta parte, sem prejuízo de se manterem os factos sob 33, 34 e 35, deve manter-se o acórdão recorrido. Relativamente à responsabilidade fundada na violação das "leges artis", o acórdão recorrido apreciou duas violações: (a) uma quanto ao dever de informação e (b) e outra quanto ao dever de determinar a realização de um exame específico (amniocentese). Vejamos cada um destes aspectos. (a) dever de determinar a realização de um exame específico. Quanto ao dever de determinar a realização da amniocentese o acórdão disse o seguinte: No caso dos autos, os Autores fundam a pretensa ilicitude da atuação do médico assistente BB, nos seguintes factos: (iii) que esse comportamento violou todas as regras da arte médica ( artigo 21° da p.i.). E como vimos, não se provou que impendesse sobre o 1.º Réu, que perante aquelas circunstâncias, determinasse a sujeição da Autora a uma amniocentese. E ao agir como agiu, não se provou que o mesmo tivesse violado a legis artis que ao tempo enquadrava a sua atuação enquanto médico de família em centro de saúde com intervenção na área do planeamento familiar e acompanhamento de grávidas. Não se provou que fosse exigível/imposto/ esperado do Réu que perante a existência de uma 1ª ecografia onde se detetou a existência, no feto, de uma "TN de 3,1mm", em cujo relatório se recomendou a realização de um rastreio bioquímico, e que tendo o mesmo ordenado a realização desse exame, cujo resultado foi negativo, embora nesse mesmo exame se referisse que tal não exclui a existência, em absoluto, de Síndrome de Down, aquele tivesse de requerer a realização de um exame de amniocentese ou de remeter a Autora para uma consulta de diagnóstico prénatal no H.... (…)” Relativamente a este aspecto (violação do dever de ordenar a realização de um exame de amniocentese ou de remeter a Autora para uma consulta de diagnóstico pré natal no H...) tendo em conta a matéria de facto dada como não provada e que se impõe a este STA, em recurso de revista, o acórdão é de manter. Deve sublinhar-se, todavia, que o acórdão, neste segmento, apenas afastou a violação das leges artis relativamente ao dever de ordenar a realização da amniocentese: "(...) As considerações destes elementos de prova documentais, fortalecem a conclusão de que, na data em que o 1º Réu assistiu, como médico de família, a A. Mulher na sua gravidez, perante um rastreio bioquímico negativo e pese embora a existência de uma ecografia do 1º trimestre onde se indicava a existência de um TN de 3,1 mm, não se lhe impunha que sujeitasse a grávida a uma amniocentese e que, ao não determinar a realização desse exame, tivesse agido em desconformidade com a legis artis que ao tempo enquadrava a actuacão dos médicos de medicina geral e familiar naquela circunscrição" (fls. 96 do acórdão). (b) dever de informação Subsiste, portanto, um outro aspecto da ilicitude e da culpa, imputadas ao médico BB, reportada à violação do dever de informação. Questão, de resto essencial, uma vez que a decisão da primeira instância já tinha localizado (também) a violação desse dever. É, portanto, neste ponto, ou seja na responsabilidade civil fundada na falta de informação, que se impõe analisar o entendimento do acórdão recorrido. Vejamos. O acórdão do TCA Norte também entendeu que o dever de informar não foi cumprido. “(…) Nem se mostra devidamente densificado a invocada violação do dever de cuidado, fora do dever de informar: a grávida realizou todos os exames ecográficos Standard previstos pela DGS como sejam as 3 ecografias de seguimento; nos tempos próprios, bem como o rastreio bioquímico indicado pela médica obstetra, que deu resultado negativo, não sendo à época exigível antecipar que pudesse ser um «falso negativo» e agir como se fosse positivo" (fls. 113 do acórdão). (...)". De resto a falta de informação do médico fora dada como provada no ponto 26 da matéria de facto: "O Réu BB, em face do resultado da primeira ecografia a que a Autora Mãe se submeteu, que apresentou translucência da nuca do feto de 3.1 e perante o resultado negativo para síndrome de Down do feto, resultante do rastreio bioquímico, não equacionou a possibilidade de realização de amniocentese, nem informou os Autores Pai e Mãe de tal possibilidade, informando-os dos respetivos riscos" - facto n.º 26. “(…) Quando por relação à fixação e estabelecimento das ""legis artis"" ocorra haver diferenças de intervenções de médicos e serviços, incluindo contradições entre «fontes» mostra-se exigível uma fundamentação judicial para a opção tomada. A imputada preterição do dever de informar não constitui causa adequada do dano físico ocorrido, por apenas repercutir sobre a lesão do direito à autonomia do doente, à autodeterminação em cuidados de saúde; a que acresce não ocorrer um facto cuja prova sempre se exigiria, para uma causalidade indireta - entre a omissão da informação e o dano da vida com deficiência - que era a demonstração de uma vontade de interromper a gravidez, o que não ocorre, como o reconhece a douta sentença no passo relativo aos factos não provados (página 66 da sentença). A falta de informação ao doente nunca é causa adequada do dano físico, mas apenas da autodeterminação da doente em cuidados de saúde, mas entre a invocada falta de informação - estabelecida pela sentença entre a 1ª e a 2ª ecografia - e o nascimento da criança com trissomia 21 está a não ocorrência da vontade da grávida de interromper a gravidez, como resulta da prova estabelecida. Sendo que, pelo contrário, ficou a grávida esperançada com o resultado da 2ª ecografia. (...)” A sentença na parte referida, pelo acórdão, disse o seguinte: “(…) Factos não provados: a) Que em face da primeira ecografia a que a Autora Mãe se submeteu durante a gravidez, bem assim do resultado negativo do rastreio bioquímico, estivesse, desde logo, na disposição de se submeter a interrupção voluntária da gravidez. b) Que os Autores Pai e Mãe houvessem manifestado ao Réu BB vontade expressa e inequívoca de procederem à interrupção voluntária da gravidez, bem assim, a vontade expressa e inequívoca de a Autora Mãe se submeter a exame de amniocentese. (...)" Note-se, a este propósito que na Acta de Audiência Preliminar, realizada em 22 de Janeiro de 2016, ficou exarado o seguinte: "Os Réus e a Interveniente aceitam o alegado pelos Autores no art.º 17º da P.I. quando é dito "que os Autores na semana de 6 de Novembro tinham uma vontade inequívoca de realizar a interrupção voluntária da gravidez,". Como já referimos antes, a matéria de facto da sentença e acolhida nesta parte no acórdão recorrido, é contraditória, sendo a contradição sanada com a eliminação da al. a) dos factos não provados e com o aditamento aos factos provados da matéria acordada pelas partes na Audiência Prévia, ou seja: "Os Réus e a Interveniente aceitam o alegado pelos Autores no art.º 17º da P.I. quando é dito "que os Autores na semana de 6 de Novembro tinham uma vontade inequívoca de realizar a interrupção voluntária da gravidez." Sendo sanável a contradição, não se justifica o reenvio do processo ao Tribunal "a quo" (art. 682º, 2 e 3 do CPC). Esta é, sem dúvida, a mais importante questão de mérito colocada a este Supremo Tribunal: há ou não nexo de causalidade entre a omissão do dever de informar os pais da criança e o nascimento desta com síndrome de Down? O entendimento do acórdão recorrido é, como vimos, o de que falta um elo na cadeia causal iniciada com a falta de informação e terminada com o nascimento da criança, qual seja, a falta de prova sobre manifestação de vontade da mãe em interromper voluntariamente a gravidez. Por via da falta desse necessário encadeamento de causas o acórdão concluiu: “A falta de informação ao doente nunca é causa adequada do dano físico, mas apenas da autodeterminação da doente em cuidados de saúde, mas entre a invocada falta de informação - estabelecida pela sentença entre a 1ª e a 2ª ecografia - e o nascimento da criança com trissomia 21 está a não ocorrência da vontade da grávida de interromper a gravidez, como resulta da prova estabelecida." Vejamos se é mesmo assim. A sentença da primeira instância colocara a violação do dever de informação, nos seguintes termos: (…)” A questão é, portanto, a de saber se entre a referida falta de informação e o nascimento da criança existe causalidade adequada, por não ter sido manifestada, ou melhor, por se não provar que tivesse sido manifestada a vontade dos pais em interromper voluntariamente a gravidez - como concluiu o acórdão recorrido. Vejamos. Devemos, antes de mais, explicitar que a autodeterminação do doente em cuidados de saúde (autodeterminação consciente ao planeamento familiar) nada tem a ver com a vontade de interromper uma gravidez, quando ocorram riscos graves da malformação da criança. O Tribunal Constitucional no acórdão 55/2016 referiu-se expressamente a este aspecto: Note-se que a sentença nesta parte tinha localizado a questão na violação do dever de informação: "Na verdade, o Réu BB ao omitir um dever de informar os Autores da possibilidade de existência de síndrome de Down e de esclarecer, acima de tudo, a possibilidade de realização de amniocentese, com os riscos a tal exame inerentes, coartou aos Autores o direito de decidirem de forma esclarecida e inequívoca o destino da gravidez em causa." A violação do dever de informar coarctou aos autores o direito de decidirem de forma esclarecida o destino da gravidez em causa. E foi, de resto, com esta configuração que a sentença entendeu haver uma ligação entre a ilicitude (falta de informação) e o nascimento da criança naquela condição. A falta de informação impediu uma vontade esclarecida sobre o destino da gravidez. Em terceiro lugar, julgamos que, em casos como o presente, também é relevante a vontade dos pais, quanto à interrupção voluntária da gravidez. Os pais poderiam ter aceitado o nascimento da criança com Síndrome de Down, mesmo sabendo desse risco. E se assim fosse, não seria admissível uma pretensão indemnizatória, pedida pelos pais. O que todavia já não é exacto é o relevo atribuído à falta de prova da manifestação de vontade em interromper a gravidez, quando a grávida não estava informada dos riscos dessa gravidez, A vontade em interromper, ou não, a gravidez, sem informação sobre os riscos, é sempre uma vontade conjectural, ou seja, a vontade que existiria se a grávida tivesse sido devidamente informada. Neste caso concreto julgamos ser possível apreender uma vontade conjectural dos pais no sentido de optarem pela interrupção voluntária da gravidez, caso tivessem sido informados dos riscos da gravidez. Com efeito, no relatório pericial dado como provado no ponto 19 é, além do mais, referido que a mãe regressou ao Hospital ..., no dia útil seguinte a 10-3-2004 (ecografia do 3º trimestre) por terem notado que no relatório da mesma fazia referência a "uma deformidade da cabeça". "(...) Tal facto deixou a mãe muito transtornada, dado que se os pais soubessem que iriam ter um filho com síndrome de Down teriam abortado" - pág. 54 do acórdão. A que acresce ainda e mais significativamente a prova por acordo das partes do facto alegado no art. 17º da petição inicial segundo o qual, na semana de 6 de Novembro de 2003, os pais tinham uma vontade inequívoca de interromper a gravidez. A decisão sobre a conduta a adoptar não dispondo de informação, isto é, uma decisão não informada, é um resultado diverso, na sua configuração concreta, da decisão que o interessado teria tomado com a informação, pelo que tem de afirmar-se a causalidade entre a violação do dever de informação e este resultado, consistente na concreta decisão não informada, ligando-se depois esta à lesão sofrida segundo as regras gerais da causalidade. Cabe, assim, ao devedor provar que um tal resultado diverso não teria (decisão não informada) conduzido ao mesmo dano (v, tb, pág. 17-8, para uma justificação alternativa, com fundamento no comportamento alternativo lícito - isto é, o devedor da informação que invoca que o credor se teria comportado de igual modo se ele o tivesse informado, isto é, se se tivesse comportado licitamente - que incumbe a prova das consequências deste). (...)" Em suma, de acordo com este entendimento, mesmo que seja discutível ver aqui uma presunção, julgamos ser de aceitar, pelo menos, uma inversão do ónus da prova, isto é, que cabia ao médico que não prestou as informações devidas, alegar e provar que se tivesse prestado essas informações (ou seja o risco da criança nascer com síndrome de Down) ainda assim os pais teriam optado pela continuação da gravidez; ou seja, cabia àquele que omitiu um dever de informar, a prova de que um seu comportamento alternativo lícito levaria ao mesmo resultado. Consequentemente, a falta de prova da manifestação de vontade de interromper a gravidez, sem que os pais estivessem devidamente informados das reais possibilidades da criança nascer com síndrome de Down, não afasta o nexo de causalidade entre a violação do dever de informação e o nascimento da criança. 3. DECISÃO Face ao exposto, os juízes que compõem este Supremo Tribunal Administrativo acordam em conceder parcial provimento ao recurso e, consequentemente: Custas no Supremo Tribunal Administrativo Norte pela ARS Norte e pelos Autores na proporção de metade, sem prejuízo do apoio judiciário concedido aos Autores. Lisboa, 29 de Fevereiro de 2024. – António Bento São Pedro (relator) - Cláudio Ramos Monteiro – Maria do Céu Dias Rosa das Neves. |