Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0768/08.6BELLE
Data do Acordão:01/11/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24059
Nº do Documento:SA1201901110768/08
Recorrente:A... E OUTRO E EMPET - PARQUES EMPRESARIAIS DE TAVIRA, EM
Recorrido 1:OS MESMOS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Formação de Apreciação Preliminar da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A…………., SA e B…………., SA intentaram, no TAF de Loulé, contra EMPET – Parques Empresariais de Tavira, EM, acção administrativa comum pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 5.835.288,51, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos até integral pagamento.

O TAF julgou a acção improcedente.

As Autoras apelaram para o TCA Sul mas este negou provimento ao recurso.
As Autoras arguiram a nulidade desse Acórdão e o TCA, reconhecendo a existência desse vício, declarou-o nulo e, proferindo nova decisão, julgou a acção parcialmente procedente.

É desse Aresto que a Ré vem recorrer (artigo 150.º/1 do CPTA).

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO
1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o STA «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. A EMPET – Parques Empresariais de Tavira, EM pôs a concurso a empreitada para a “Execução de Infra-Estruturas do Loteamento Urbano do Parque Empresarial de Vale Formoso em Tavira” a qual, tendo sido adjudicada às Autoras, conduziu à celebração do respectivo contrato e aos três aditamentos que se lhe seguiram.
Alegando o incumprimento do estipulado as Autoras intentaram a presente acção comum pedindo a condenação da Ré no pagamento de € 5.835.288,51, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos até integral pagamento, por ser esse o valor que aquela lhe ficou a dever.
O TAF de Loulé, onde a acção foi proposta, identificou as questões a resolver como sendo:
“a) A dificuldade de execução da obra por banda das Autoras foi directamente imputável à actuação da Ré?
b) O valor de € 1.070.010,28 reclamado pelas Autoras à Ré invocando os erros de cálculo, erros materiais e outros erros ou omissões detectados na execução da obra é devido?
c) A quantia respeitante a trabalhos a mais é devida às Autoras?
d) É devido às Autoras o pagamento dos valores correspondentes ao 3º aditamento ao contrato de empreitada incluindo os juros de mora?”
Tendo dado à primeira questão a seguinte resposta:
“A reclamação das Autoras dos erros e omissões do projecto teve a ver com a verificação das diferenças entre as condições locais existentes e as previstas pela Ré, e, neste sentido, a resposta à pergunta: A dificuldade de execução da obra por banda das Autoras foi directamente imputável à actuação da Ré, é positiva.
Com efeito, ao Dono da Obra compete definir a estratégia geral a adoptar para o cumprimento do contrato nas condições estipuladas e se posteriormente surgem dificuldades de execução da obra in situ, não tendo as mesmas sido cogitadas no Projecto da obra nem no Caderno de Encargos, essa responsabilidade não pode, ab initio, recair sobre o Empreiteiro que é a entidade responsável pela execução da obra em regime de contrato de empreitada e das respectivas cláusulas do contrato, caderno de encargos e restantes peças do projecto, normas e disposições legais em vigor.”
Relativamente à questão de saber se a Ré deve às Autoras 1.070.010,28 por erros e omissões detectados na execução da obra ponderou:
“A reclamação das Autoras dos erros e omissões do projecto adveio da verificação das diferenças entre as condições locais existentes e as previstas pela Ré, por disparidade entre os dados em que esta baseou o seu projectado e a realidade, relativamente à natureza ou volume dos trabalhos a executar pelas primeiras.
…..
Ora, resulta dos autos que as Autoras cumpriram com os requisitos constantes deste normativo legal. Contudo, traz-se à colação que, em 2010.11.29, a Ré pagou às Autoras o montante de 2.536.578,88 euros – vide documentos juntos na audiência de julgamento de 2010.12.02 - pelo que se entende que não há mais lugar à condenação no pagamento do valor de € 1.070.010,28.”

Quanto a saber se a Ré devia a quantia referente a trabalhos a mais respondeu:
“O valor pretendido pelas Autoras a título de trabalhos a mais de € 1.117.193,73 resultava fundamentalmente, como já aludimos, de uma estimativa respeitante aos trabalhos de movimentação de terras e escavação e extracção de rocha dos terrenos da obra que, contudo, paulatinamente foram pagos, tendo sido a existência de desmonte de rocha superior ao previsto um dos motivos invocados para o primeiro pedido de prorrogação de prazo legal de 121 dias, e que foi aceite.

Ficou demonstrado que a Ré pagou os trabalhos a mais, embora tal pagamento tenha ficado além do peticionado pelas Autoras. …. .
Não obstante, in casu, a indispensabilidade desses trabalhos bem como a quantidade de material – rocha – removido não foram completamente comprovados pelas Autoras, pelo que não podem ser pagos, tomando em consideração ainda que o valor ora peticionado pelas Autoras foi reduzido.

Finalmente, e no tocante dívida respeitante ao 3º aditamento ponderou:
“Não se provou que os atrasos na execução global da empreitada sejam imputáveis ao Dono da Obra no modo como as Autoras querem fazer crer.
….
Todavia, tal com o regime dos trabalhos a mais, estamos perante uma manifestação do princípio do equilíbrio financeiro do contrato, uma vez que não se exige, para existir direito de indemnização, nenhuma conduta ilícita do Dono da Obra. Exige-se tão-só que ele tenha praticado ou dado causa a um facto gerador de maior onerosidade na execução da empreitada, o que não aconteceu apenas por banda deste mas, também, por via da actuação das Autoras, pelo que não aproveita a nenhum qualquer pretensão indemnizatória.
Inexiste, assim, fundamento para condenar a Ré no pagamento do valor peticionado às Autoras, assente no critério de justiça material no âmbito dos contratos administrativos que encontra consagração legal expressa no nº 1 do art.º 196º do RJEOP.
Aqui chegados, tudo visto e ponderado, dúvidas não restam que não merece acolhimento o pedido das Autoras.

As Autoras apelaram para o TCA Sul mas este negou provimento ao recurso.
Arguiram a nulidade desse Acórdão, por omissão de pronúnciapor ele não ter conhecido dos efeitos decorrentes da confissão da Ré de factos relevantes que foram levados ao probatório - e requereram a sua reforma e o TCA, reconhecendo o seu erro e a consequente nulidade do Acórdão, apreciou a questão omitida e concedeu parcial provimento a recurso.
Para tanto ponderou o seguinte:
“….
… vê-se que foi pedido ao tribunal que viesse a condenar a EMPET a pagar ao Consórcio um determinado valor, ainda em falta ou em dívida, à data em que a acção foi interposta, e que, no entendimento do Consórcio, era, então, de € 5.835.288,51, em capital, acrescido de € 859.568,82, a título de juros até então vencidos.
Mais flui dos autos que a Ré EMPET contestou estes valores mas não deixou de reconhecer como estando em dívida para com o Consórcio pois …. para além de ter dito que já havia liquidado ao Consórcio valor total de 1.044.309,20 euros, reconheceu como estando "...em dívida sem ponderação de valores de IVA e de revisão de preços, as quantias de 3.565.159,13 euros e 285.009,18 euros".
…..
- Neste enquadramento, resulta que, tanto o TAF de Loulé como o TCAS, tiveram como provado/decidido diferencial de valor em dívida ao Consórcio, sem contabilização de juros, de 3.298.709,63 euros (=5.835.288,51 - 2.536.578,88).

- Tendo presente tudo o que supra se exarou e que consta da factualidade provada, o que consta do articulado inicial deste processo e a respectiva contestação (em que é manifesto conter uma "confissão" da Ré sobre um certo valor em dívida e que na decisão recorrida e no Acórdão ora reclamado foi fixado), bem como a forma como foi estruturada a sentença recorrida e o Acórdão recorrido, com os diversos segmentos decisórios acima identificados pode visualizar-se como uma questão nos termos acima definidos.
- O Tribunal recorrido não se pronunciou sobre as questões jurídicas suscitadas decorrentes do facto de existir confissão, respeitante aos factos alegados no Requerimento inicial, o que tem efeito cominatório pleno, relativamente a estes mesmos factos, nos termos 352.° e 358.° do C. Civil e 366 e n°5, e 574°, nºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis ex vi art.1° e 140° do CPTA.
A essa luz, inexistindo o fundamento de nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão nos termos escalpelizados no Acórdão ora reclamado, não deixa de ser certo que nos autos existem elementos probatórios (mormente a confissão em que se baseou a fixação da matéria de facto atinente) que impunham decisão diversa da tomada.
3.-Termos em que acordam os juízes deste tribunal …. conceder parcial provimento ao recurso, julgando parcialmente procedente a acção e, em consequência, condenar a Ré no pagamento do montante de 3.298.709,63€ às AA., acrescido de juros de mora vencidos desde a data da citação até integral pagamento.”

3. A Ré não se conforma com essa decisão e, por isso, pede a admissão desta revista pelas razões sintetizadas nas seguintes conclusões:
4. … a questão de se saber se é admissível apreciar, em sede de reclamação, confissão reportada à pendência do processo em 1.ª instância, que nunca tinha sido invocada, nomeadamente no recurso interposto da douta decisão proferida pelo TAF de Loulé, … é questão que, pela sua relevância jurídica, se reveste de importância fundamental e o seu esclarecimento é fundamental para a melhor aplicação do direito.
5. Por outro lado, a condenação da ora recorrente, em sede de decisão sobre reclamação contra Acórdão absolutório, a pagar a quantia de € 3.298.709,63, que ela recorrente não deve, com base em confissão que não permite concluir ser devido tal montante, e na esteira de erro grave induzido pelo reclamante, é profundamente injusta e como tal a sua sindicância pelo Supremo Tribunal Administrativo é da maior relevância social, revestindo-se assim de importância fundamental para a realização da justiça, principio que deve nortear as decisões judiciais.
7. …. Note-se que o douto Acórdão proferido pelo TCAS analisou detalhadamente o recurso que havia sido interposto da sentença proferida pelo TAF de Loulé, pronunciando-se sobre todas as questões que lhe foram colocadas pelo que, se tivesse sido invocada nesse recurso nulidade decorrente da não apreciação pela sentença de 1ª instância da mencionada confissão, não deixaria de se ter pronunciado sobre tal.

4. Como se acaba de ver estamos perante uma acção onde se pede a condenação da Ré no pagamento de uma quantia que supera os cinco milhões de euros o que, por si só, é suficiente para que se considere que esta causa tem importante relevância social.
Por outro lado, coloca-se a questão de saber se, efectivamente, existe confissão de dívida e se esta pode ser atendível nas circunstâncias destes autos.
Finalmente, as instâncias interpretaram de forma diferente a factualidade julgada provada do que resultou julgamentos contraditórios, o que também aconselha à admissão deste recurso com vista a uma melhor aplicação do direito.
É, pois, de concluir pela verificação dos pressupostos de admissão do recurso.

DECISÃO
Nestes termos, os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir o recurso de revista.
Sem custas.
Porto, 11 de Janeiro de 2019. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.