Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0169/09
Data do Acordão:05/13/2009
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JORGE LINO
Descritores:RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
IRS
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
GARANTIA REAL
Sumário:O artigo 240.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário deve ser interpretado amplamente no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real stricto sensu mas também aqueles a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, nomeadamente, privilégios creditórios.
Nº Convencional:JSTA000P10465
Nº do Documento:SA2200905130169
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: 1.1 A Fazenda Pública vem recorrer da sentença de verificação e graduação de créditos proferida nestes autos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, que julgou não verificado o crédito de IRS por si reclamado.
1.2 Em alegação, a recorrente Fazenda Pública formula as seguintes conclusões.
1. O crédito de IRS de 2002, reclamado pela Fazenda Pública, beneficia de privilégio creditório imobiliário, e encontra-se abrangido pelos três anos anteriores ao da penhora, nos termos do art°. 111°. do CIRS.
2. O privilégio creditório, consiste na faculdade que a lei substantiva concede, em atenção à causa do crédito, de ser pago com preferência em relação a outros credores;
3. O privilégio creditório geral, sendo uma mera preferência de pagamento, não implica o afastamento do crédito que dele beneficia, da reclamação e graduação no lugar que lhe competir;
4. A admissão ao concurso de credores, constitui a razão de ser da atribuição do privilégio creditório;
5. Exigir a esse credor que, para fazer valer o privilégio, obtivesse penhora ou hipoteca, seria deixar sem sentido útil o falado artigo 111° do Código do CIRS, pois, nesse caso, o seu crédito passaria a dispor de garantia real, sendo-lhe inútil o privilégio.
6. O art°. 240º. do CPPT, deve ser interpretado no sentido de conferir dimensão lata à expressão credores que gozem de garantia real, por forma a abranger não apenas os credores que gozem de garantia real stricto senso, mas também aqueles a quem a lei atribui causas legítimas de preferência, como os privilégios creditórios imobiliários, ainda que não especiais;
7. O crédito reclamado de IRS de 2002, e respectivos juros de mora, deve ser graduado logo após os créditos garantidos por hipoteca, e antes dos garantidos apenas por penhora, de harmonia com o previsto nos art°s 747°. n°. 1 e 822 do CC.
8. A douta sentença recorrida violou o disposto no art°. 240°. do CPPT, nos art°s 733°, 747°., 822° do CC., 111º do CIRS., e 8° do DL. nº 73/99.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que admita, reconheça e gradue o crédito garantido por privilégio imobiliário do art°. 111°. do CIRS, com o que se fará Justiça.
1.3 Não houve contra-alegação.
1.4 O Ministério Público neste Tribunal emitiu o seguinte parecer.
Alega a recorrente que o crédito de IRS de 2002, por si reclamado beneficia de privilégio creditório imobiliário, e encontra-se abrangido pelos três anos anteriores ao da penhora, nos termos do artº. 111°. do CIRS.
Mais argumenta que exigir ao credor, para fazer valer o privilégio, que obtivesse penhora ou hipoteca, seria deixar sem sentido útil o artigo 111º do Código do CIRS, pois, nesse caso, o seu crédito passaria a dispor de garantia real, sendo-lhe inútil o privilégio.
Fundamentação:
A nosso ver o recurso merece provimento.
Com efeito a argumentação da entidade recorrente vem de encontro à jurisprudência largamente maioritária deste Supremo Tribunal Administrativo no sentido de que o artigo 240 nº do CPPT deve ser interpretado amplamente no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real stricto sensu mas também aqueles a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, nomeadamente, privilégios creditórios - cf. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 18.05.2005, recurso 612/04, de 13.04.2005, recurso 442/04 (ambos do pleno) e de 04.02.2004, recurso 2078/03, todos in www.dgsi.pt.
Como impressivamente se escreveu naquele primeiro aresto «não faria sentido que a lei substantiva estabelecesse uma prioridade no pagamento do crédito ... e a lei adjectiva obstasse à concretização da preferência, impedindo o credor de acorrer ao concurso.”.
Termos em que somos de parecer que o recurso deve ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida.
1.5 Tudo visto, cumpre decidir, em conferência.
Em face do teor das conclusões da alegação, bem como da posição do Ministério Público, a questão que aqui se coloca é a de saber se o crédito de IRS reclamado deve ser verificado e graduado nos presentes autos.
2.1 Em matéria de facto, a sentença recorrida assentou o seguinte ipsis verbis [mantemos também a errada sequência das alíneas].
A) O processo de execução foi instaurado para cobrança de dívidas de IVA, no valor total de 3.127,97 € - Fls. 2 a 9 do apenso.
B) Neste processo de execução foi penhorado em 17/08/2006 o prédio urbano constituído por uma casa térrea e colmaça, com a superfície coberta de 70 m2 e quintal junto com 200 m2, sito na freguesia de …, em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob n.° 00427/220999, da freguesia de …, inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo 15, tendo sido registada em 24/08/2001, pela inscrição F-3, Ap. 13/20060818, para garantia da quantia exequenda de 43.127.97 € - Fls. 45 a 54 dos autos e 15 a 25 do apenso.
C) Sobre o prédio referido em B) foi registada em 25/08/2004 a hipoteca legal a favor da Fazenda Nacional, para garantia do pagamento de dívida exequenda de 69 354,41 €; juros de mora de 10.649,99€, com montante máximo de 80.004,40 €, pela inscrição C - 1, Ap. 23/20040825 - Fls. 47;
E) Pela inscrição C - 2, registada pela Ap. 17/20050104, foi constituída hipoteca voluntária sobre o prédio referido em B), a favor de B…, viúva, residente na Avenida Campo …, n.° …, …, para garantia de empréstimo no valor de 89.283,65€, ao juro anual de 4,5%, com o montante máximo de 101 336,94 € - fls. 47.
F) Sobre o prédio referido em B) foi registada pela inscrição F - 2, Ap. 26/20060531, a penhora realizada em 31105/2006, para garantia da quantia exequenda de 13.856,26 €, na execução movida por C… - fls. 47.
G) Sobre o prédio referido em B) foi registada pela inscrição F - 3, Ap. 13/20060818, a penhora realizada em 17/08/2006, para garantia da quantia exequenda de 43.127,97 €, na execução movida pela Fazenda Nacional - fls. 48.
H) Sobre o prédio referido em B) foi registada pela inscrição F - 4, Ap. 22/20060917, a penhora realizada em 09/09/2006, para garantia da quantia exequenda de 13.856,26 €, na execução movida por A… - fls. 48.
I) Pela Ap. 01 - 20070726, foi registada a caducidade da inscrição de penhora F - 4 - fls. 47.
2.2 O legislador fiscal determinou a execução de bens individualizados do património do executado para satisfação do crédito do exequente, permitindo todavia aos credores gozem de garantia real sobre os bens penhorados que reclamassem os seus créditos na execução. É o que resulta do disposto no artigo 240.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em consonância com o artigo 865.º do Código de Processo Civil no respeitante à execução comum. Mas, para alguma doutrina, direitos reais de garantia em sentido próprio serão apenas a penhora, o penhor, a hipoteca, o direito de retenção e a consignação de rendimentos. Já quanto aos privilégios creditórios, que o artigo 733.º do Código Civil define como «a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros», não há unanimidade, entendendo alguns que não serão verdadeiros direitos reais de garantia, mas qualidades do crédito, atribuídas por lei em atenção à sua origem. Praticamente unânime é o entendimento quanto aos privilégios gerais: estes não são qualificáveis como direitos reais de garantia. Em todo o caso, há, na doutrina, como na jurisprudência, concordância quanto a que os privilégios creditórios conferem preferência sobre os credores comuns. Nos termos do artigo 111.º (antes artigo 104.º) do Código do IRS, para o pagamento de IRS relativo aos três últimos anos a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou de acto equivalente. Gozando o crédito reclamado de privilégio imobiliário, não preferindo embora aos credores com garantia real, não deixa, por disso, de poder ser reclamado e graduado no lugar que lhe competir. Neste sentido se têm pronunciado quer o Supremo Tribunal Administrativo quer o Supremo Tribunal de Justiça, em inúmeros acórdãos. Aliás, assim o impõe a unidade do sistema jurídico, pois não faria sentido que a lei substantiva estabelecesse uma prioridade no pagamento do crédito e a lei adjectiva obstasse à concretização da preferência, impedindo o credor de acorrer ao concurso. Exigir a esse credor que, para fazer valer o privilégio, obtivesse penhora ou hipoteca, seria deixar sem sentido útil o privilégio, pois nesse caso o crédito passaria a dispor de garantia real, sendo-lhe inútil o privilégio legal. Assim, afigura-se dever o artigo 240.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário ser interpretado no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real, stricto sensu, mas também aqueles a quem a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, designadamente, privilégios creditórios – cf. neste sentido, quase textualmente, o acórdão do Pleno desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 18-5-2005, no recurso n.º 612/04, o qual, por sua vez, seguiu o acórdão do Pleno também desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 13-4-2005, no recurso n.º 442/04, a confirmar os acórdãos fundamento desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 2-7-2003, e de 4-2-2004, proferidos respectivamente nos recursos n.º 882/03, e n.º 2078/03.
2.3 No caso sub judicio, a sentença recorrida julgou do seguinte modo.
A) Não verificados os créditos reclamados por A…, pela Segurança Social e pela Fazenda Pública, no que respeita ao IRS; e
B) Verificados os créditos reclamados C…, B… e Fazenda Pública, por dívidas de IVA e garantidos pela hipoteca, graduando-os, para pagamento pelo produto da venda do imóvel penhorado, pela seguinte ordem:
1.º - Créditos da Fazenda Pública, pelas dívidas de IVA e juros, garantidos pela hipoteca;
2.° - Crédito de B… e juros garantidos pela hipoteca;
3.º - Crédito de C… e juros, garantidos pela penhora mais antiga; e
4.º - Crédito exequendo e juros, garantidos pela penhora mais recente.
Para julgar não verificado o crédito de IRS reclamado pela ora recorrente Fazenda Pública, considerou a sentença recorrida que «os créditos de IRS que gozem apenas do privilégio imobiliário e que não tenham para além dele uma garantia real, não podem ser reclamados nos termos do art. 240.° do CPPT porquanto não goza de garantia real sobre os bens penhorados».
Não é esse, porém, o entendimento que aqui perfilhamos.
E, diferentemente, pelos fundamentos acima expostos, e visto que não foi impugnado, julgamos – em resposta, aliás, à questão decidenda – que o crédito de IRS reclamado deve ser verificado e graduado nos presentes autos.
Estamos deste modo a concluir, em súmula – e dizendo como no sumário do acórdão do Pleno desta Secção primeiramente supra citado – que o artigo 240.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário deve ser interpretado amplamente no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real stricto sensu mas também aqueles a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, nomeadamente, privilégios creditórios.
3. Termos em que se acorda verificar e graduar os créditos pela forma seguinte, saindo as custas da execução precípuas do produto dos bens penhorados: 1.º - Créditos da Fazenda Pública, pelas dívidas de IVA e respectivos juros, garantidos por hipoteca; 2.º - Crédito de B… e juros garantidos por hipoteca; 3.º - Crédito de IRS reclamado pela Fazenda Pública e respectivos juros, que gozam de privilégio imobiliário; 4.º - Crédito de C… e juros, garantidos pela penhora mais antiga; e 5.º - Crédito exequendo e juros, garantidos pela penhora mais recente – deste modo se concedendo provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida na parte impugnada, que no demais se mantém.
Sem custas.
Lisboa, 13 Maio 2009. – Jorge Lino (relator) – Isabel Marques da Silva – Pimenta do Vale.