Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0590/04
Data do Acordão:05/19/2005
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:ANGELINA DOMINGUES
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL.
ACIDENTE DE VIAÇÃO.
ESTRADA MUNICIPAL.
ILICITUDE.
CULPA.
NEXO DE CAUSALIDADE.
Sumário:I - Competindo às Câmaras o dever de manter as estradas municipais em bom estado, de proteger a plataforma das vias municipais em todos os locais que ofereçam perigo para o trânsito e, de sinalizar todos os perigos e restrições que o trânsito nas mesmas ofereça, pratica um acto ilícito e culposo a Câmara Municipal que mantém aberta ao trânsito (nos dois sentidos) incluindo a veículos pesados, sem qualquer sinalização, uma via municipal, de 3 m 40 de largura, só parcialmente asfaltada e no restante coberta de terra e gravilha, sem as bermas cuidadas e sem qualquer protecção entre a extrema da via e o talude.
II - Existe nexo causal, em termos de causalidade adequada, entre as condutas omissivas da Câmara, referidas em 1, e os danos sofridos por um veículo pesado em acidente provocado pelo resvalamento do pavimento da rua sob os rodados do lado direito do veículo, que, em consequência rolou para fora da estrada e caiu pelo talude ali existente.
Nº Convencional:JSTA00062114
Nº do Documento:SA1200505190590
Data de Entrada:12/25/2004
Recorrente:A...
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE ALCOBAÇA
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC COIMBRA.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
Legislação Nacional:DL 48051 DE 1967/11/21 ART4 ART6.
CCIV66 ART483 ART487 ART493 ART563 ART570 N1.
L 2110 DE 1961/08/19 ART28 ART2 ART32.
CE94 ART5.
DRGU 22-A/98 DE 1998/10/01 ART19.
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENO PROC36463 DE 1998/04/29.; AC STAPLENO PROC45160 DE 2002/10/03.; AC STAPLENO PROC45831 DE 2002/03/20.; AC STA PROC564/03 DE 2003/11/26.; AC STA PROC43756 DE 1998/06/25.; AC STA PROC43136 DE 1998/07/02.; AC STA PROC43138 DE 1998/10/13.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo
1.1. A…. (id. fls.2) interpôs, no Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, acção de responsabilidade civil fundada em acto ilícito contra o Município de Alcobaça.
1.2. Por sentença do T.A.C. de Coimbra, proferida a fls. 66 e segs, foi julgada totalmente improcedente a acção.
1.3. Inconformada com a decisão referida em 1.2, interpôs a Autora recurso jurisdicional para este S.T.A., cujas alegações, de fls. 83 e segs, concluiu do seguinte modo:
“I. Da matéria provada resultam fortes indícios do perigo que o talude da Rua da Associação representava, em abstracto, para a circulação de qualquer tráfego rodoviário, pois as suas bermas não se encontravam cuidadas ou protegidas, nem tão pouco estava sinalizado.
II. Dadas as características da Rua, nomeadamente a sua estreita largura, obrigavam qualquer veículo pesado a circular pela berma junto ao talude.
III. A velocidade a que circulava o veículo acidentado, 10 Km/h, é só por si demonstrativa do cuidado tido pelo condutor do mesmo ao passar na Rua.
IV. A estrada em causa é uma via municipal, como tal a sua conservação e sinalização são da competência do Réu, nos termos do disposto no artigo 8° do DL 2198 de 3 de Janeiro e do artigo 2° da Lei 2 110 de 19 de Agosto de 1961, normas estas que foram por este violadas.
V. Omitiu o Réu o cumprimento de uma obrigação legal no âmbito das suas competências, ao não ter, pelo menos, sinalizado o referido talude, como zona de perigo que era, tanto mais que era do seu conhecimento a passagem pelo local de muitos veículos entre os quais veículos pesados, cometendo assim um facto ilícito nos termos do disposto no n.° 1 do artigo 2° e no artigo 6° do DL 48 051 de 21 de Novembro de 1967, norma esta que foi também violada.
VI. A causa do acidente foi a falta de qualquer tipo de sinalização, ou conservação, na Rua da Associação, dadas as condições de perigo que esta representava para a circulação, existindo assim o nexo de causalidade necessário à verificação da responsabilidade civil, encontrando-se também verificados todos os outros pressupostos.
VII. Assim, praticou o Réu um facto que se traduziu na omissão de sinalizar ou conservar a Rua; facto esse ilícito na medida em que violou os preceitos legais que a tal a obrigavam; mas também culposo, pois aos órgãos (e agentes) públicos, impondo-se-lhes por lei determinados comportamentos, a simples omissão desse dever tem de considerar-se culposa, tanto quanto sempre deveria praticá-los em conformidade com as normas legais porque preenchem justamente o leque das respectivas atribuições ou competências; com o acidente sofreu a Apelada danos que ascenderam ao montante de € 27 103,06 (vinte e sete mil cento e três Euros e seis cêntimos); foi causa adequada da ocorrência do acidente a não existência de qualquer tipo de sinalização, a par da falta de cuidado com a conservação das suas bermas e de protecção dos taludes existentes na Rua.
VIII. Encontram-se assim reunidos todos os pressupostos para a verificação da responsabilidade civil do Réu.”
1.4. O Município de Alcobaça contra-alegou, pela forma constante de fls.122 e 123, sustentando a confirmação do decidido no T.A.C..
1.5. O Ministério Público junto deste S.T.A. emitiu o seguinte parecer.
“A meu ver o recurso jurisdicional não merece provimento.
Com efeito, da matéria dada como provada ressalta que o acidente se ficou a dever ao facto de o veículo sinistrado se ter aproximado em demasia, sem motivo aparente, do lado direito da via, dado que não circulava qualquer outra viatura em sentido contrário, e a rua tinha uma largura de 3,40 metros, o que permitia ao condutor transitar sem necessidade de encostar tanto o pesado à berma.
E tal como se defende na sentença recorrida, numa rua com as características daquela onde ocorreu o acidente (ser sobretudo usada por proprietários agrícolas para acesso às suas propriedades) não era exigível que as bermas se encontrassem cuidadas e existisse protecção entre elas e o talude. “As características da rua, do piso, bermas, aliado ao facto de se tratar de um veículo que exigia, pelo peso, especiais cuidados, deveriam ter imprimidos no seu condutor cuidados, que, afinal, não teve. Daí o acidente …”” 2. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2.1. Com interesse para a decisão, a sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
“A - FACTOS PROVADOS
Dos factos assentes e das respostas aos artigos, insertos na Base Instrutória, resultam provados os seguintes factos:
1 A A. é dona e legítima possuidora de uma viatura pesada de mercadorias, de marca …, matrícula …, que se destina ao transporte e fabrico de betão — Alínea A) dos factos assentes.
2 . A rua Associação, em Mendalvo, Alcobaça é uma via municipal a cargo da Câmara Municipal de Alcobaça — Alínea B) dos factos assentes.
3 . No dia 21 de Janeiro de 2002, pelas 10 00 horas, o mencionado veículo, ao circular no seu sentido de marcha, na Rua da Associação, em Mendalvo, Alcobaça, em velocidade não superior a 10 Kmfh, sofreu um acidente de viação quando o pavimento da rua resvalou sob os seus rodados do lado direito, deixando-os sem apoio — Alínea C) dos factos assentes.
4 . Em consequência do resvalamento, o veículo rolou para fora da estrada, caindo pelo talude ali existente e imobilizando-se com os rodados voltados para cima — Alínea D) dos factos assentes.
5 . O local do acidente constitui uma rua em linha recta — Alínea E) dos factos assentes.
6 . A Rua da Associação, referida em 1, não apresentava, à data do acidente, qualquer sinalização indicadora de perigo ou limitadora a qualquer tipo de veículos ou circulação — Alínea F) dos factos assentes.
7. A Rua da Associação, na altura do acidente, não se encontrava em obras — Alínea G) dos factos assentes.
8. O veículo ... não se cruzou com qualquer outro veículo no momento do acidente — Alínea H) dos factos assentes.
9. A rua no local do acidente tem a largura de 3, 40 metros — Alínea I) dos factos assentes.
10. A rua da Associação é usada sobretudo por proprietários agrícolas que a usam para acesso às suas propriedades - resposta ao artigo 1°- da base instrutória.
11. Pela mesma passam, diariamente, alguns veículos, nomeadamente, pesados — resposta ao artigo 2°- da base instrutória.
12. A rua da Associação, referida em 1, encontra-se parcialmente asfaltada, sendo que o acidente ocorreu na parte da via não asfaltada, composta de terra e gravilha — resposta aos artigos 30 e 4°- da base instrutória.
13. O piso estava amolecido — resposta ao artigo 5°- da base instrutória.
14. As bermas, no local do acidente, não estavam cuidadas e a extrema da rua com o talude não se encontra protegida - resposta ao artigo 6°- da base instrutória.
15. O acidente dos autos deveu-se ao facto do veículo … se ter deixado chegar excessivamente à direita, galgando a berma e desmoronando sob o seu peso — resposta ao artigo 7°-. da base instrutória.
16. Em resultado do acidente, o veículo da A. ficou gravemente danificado, ao nível do chassis e diversos componentes do mesmo, cabine, motor, tejadilho e tambor de transporte de betão — resposta ao artigo 9°-. da base instrutória.
17. O custo da reparação da viatura, ao nível do arranjo da cabine, chassis e diversos componentes, importou para a A. no valor de € 10.014,53 — resposta ao artigo 10°- da base instrutória.
18. A reparação do tambor do veículo importou um custo de e 9 450,34 — resposta ao artigo 11º- da base instrutória.
19. O valor da reparação do motor totalizou a quantia de € 7 638,19 — resposta ao artigo 12°- da base instrutória.
20. O veículo em causa esteve paralisado desde a data do acidente até ao dia 28/6/2002, num total de 115 dias — resposta ao artigo 13°- da base instrutória.
21. Em cada dia de trabalho, o veículo … transporta cerca de 70 m3 de betão — resposta ao artigo 14°-. da base instrutória.
22. O mês de Janeiro de 2002 foi um período chuvoso — resposta ao artigo 15°-. da base instrutória.”
2.2. O Direito
2.2.1. Perante a factualidade enunciada em 2.1, a sentença do T. A. C. julgou improcedente a acção de responsabilidade civil fundada em acto ilícito intentada contra o Município Réu pela Autora, ora recorrente.
Desenvolveu, para tal, a seguinte argumentação:
“De acordo com aquele preceito - 483°-.n°-. 1 - podemos isolar como pressupostos da responsabilidade civil subjectiva extracontratual ou aquiliana:
1. - o facto -- acto de conteúdo positivo ou negativo -- traduzido numa conduta voluntária de um orgão ou seu agente, no exercício das suas funções e por causa delas;
2. - a ilicitude - que advém da ofensa, por esse facto, de direitos de terceiros ou de disposições legais que se destinam a proteger interesses alheios;
3 - a culpa -, a qual exprime um juízo de reprovabilidade da conduta do agente que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade deste, quer ele tenha representado ou prefigurado no seu espírito determinado efeito da sua conduta e querido esse efeito como fim da sua actuação (dolo), quer apenas tenha previsto o efeito como possível, acreditando na sua não verificação por leviandade ou incúria (negligência consciente), ou nem sequer tenha concebido a possibilidade de o facto se verificar, por imprevidência, descuido imperícia ou inaptidão, quando podia e devia prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse a diligência devida (negligência inconsciente).
A culpa, como nexo de imputação ético-jurídica que liga o facto à vontade do agente, e que na forma de mera culpa traduz a censura dirigida ao autor do facto por não ter usado da diligência de um homem normal perante as circunstâncias do caso, ou, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual do Estado por facto ilícito, daquela que teria um funcionário ou agente típico; sendo a culpa dos órgãos e agentes da administração apreciada abstractamente, tendo em consideração a actuação de um homem médio e normal em face das circunstâncias do caso concreto - art°-. 4°-. do Dec. Lei nº-. 48.051, de 21/11/67 que remete para o art°-. 487°-. do C. Civil – cfr. Ac. do STA, de 10/1/87, in AD - 310 -1243.
4. - o dano - lesão ou prejuízo de ordem patrimonial ou não patrimonial, produzido na esfera jurídica de terceiros; e,
5. - o nexo de causalidade entre o facto (acto ou omissão) e o dano - a apurar segundo a teoria da causalidade adequada.
Ora, no caso dos autos, tendo em conta a matéria dada como provada, em contraponto com a não provada — artigo 8°- da base instrutória ou sela e, em especial, o facto do resvalamento do ... se ter devido, não a qualquer falta de conservação ou manutenção da via onde circulava (não se podendo olvidar que se tratava de uma rua sobretudo usada por proprietários agrícolas, para acesso às suas propriedades, embora aberta a todos os veículos, mesmo pesados, que aí passariam diariamente — pontos 10 e 11 da matéria provada), mas antes ao facto de. sem razão para tanto (atenta a largura da rua — 3,40 m — bem como o facto de não transitar qualquer outro veículo em sentido contrário — cfr. pontos 8 e 9 dos factos provados) o ..., se ter chegado demasiado ao lado direito da via, ocasionando o resvalamento da berma (esta estava menos consistente e amolecida pela chuva - cfr. pontos 12, 13, 14 e 22 dos factos provados) e consequente queda do ..., concluímos, deste modo, pela inverificaçio, “in casu”, dos três primeiros requisitos, acima elencados, ou seja, a verificação de qualquer acto ilícito e culposo e também o nexo de causalidade.
Não tinha a via em causa qualquer sinalização, mas também é certo que nada obrigava a que a tivesse, sendo certo que por ali circulavam outros veículos, nomeadamente, pesados!
Não estavam as bermas cuidadas, nem a extrema da rua com o talude se encontrava protegida - cfr. ponto 14 dos factos provados — mas tais cuidados, além de não ter resultado que tivesse contribuído para a verificação do acidente - çfr., com especial acutilância, o ponto 15 dos factos provados, em cotejo com o facto de não se ter dado como provada a matéria quesitada no artigo 8º- da base instrutória -, também não eram exigíveis numa rua com as características daquela onde se verificou o acidente!
As características da rua, do piso, bermas aliado ao facto de se tratar de um veículo que exigia, pelo peso, especiais cuidados, deveriam ter imprimido no seu condutor cuidados, que, afinal, não teve. Daí o acidente! ...
Tendo nós concluído pela falta dos referidos requisitos, carece de relevância a análise dos restantes pressupostos referidos supra, antes importando apenas absolver o Réu do pedido, pese embora a A., tenha logrado, como era seu ónus probandi, como facto constitutivo do direito que reclamava, demonstrar a verificação dos danos.”
A Recorrente discorda do assim decidido, sustentando, em síntese:
– O talude da Rua da Associação, via onde ocorreu o acidente, representava, em abstracto, um perigo para a circulação de qualquer tráfego rodoviário, pois as bermas não se encontravam cuidadas ou protegidas, nem o talude sinalizado.
– O Réu omitiu os seus deveres de conservação da referida via e de sinalização dos respectivos perigos, senão mesmo de interdição daquela ao tráfego de veículos pesados.
– A causa do acidente foi a falta de qualquer tipo de sinalização, ou conservação, na Rua da Associação, dadas as condições de perigo que esta representava para a circulação.
– Encontram-se, assim, preenchidos todos os pressupostos de que a lei faz depender, no caso, a obrigação de indemnização por parte do Réu: facto ilícito, culpa, nexo de causalidade entre o acto/s ilícito/s e culposo/s e os danos.
Vejamos se lhe assiste razão
2.2.2. Como resulta da transcrição efectuada em 2.2.1, a sentença recorrida, embora adite algumas considerações sobre a falta de obrigação do Réu colocar qualquer sinalização, bem como de cuidar e proteger as bermas, extrai, desde logo, das respostas aos quesitos 7.º e 8.º da base instrutória a conclusão sobre a inverificação, no caso, dos pressupostos da responsabilidade civil respeitantes à ilicitude, à culpa e ao nexo de causalidade.
Tendo sido, pois, absolutamente decisiva para o julgamento da improcedência da acção a resposta aos aludidos quesitos, comecemos pela sua análise.
Indaga-se no quesito 7.º:
“O acidente dos autos deveu-se ao facto de o veículo N.M se ter deixado chegar excessivamente à direita, galgando a berma e desmoronando sob o seu peso?”
E no 8.º:
“Ou o acidente deveu-se à falta de conservação e manutenção da rua, bem como ausência de asfalto ?”
O quesito 7.º recebeu, do T. colectivo, a resposta de Provado e o quesito 8.º de “Não provado” (fls.59).
Ora, parece claro que o que se interroga em tais quesitos não são factos materiais, mas sim factos jurídicos, conclusões, que não cabem nos poderes do Tribunal Colectivo.
Conforme ensina Alberto dos Reis, “Os quesitos não devem pôr factos jurídicos; devem pôr unicamente factos materiais.
…………………………………………………………………………...
Se o quesito contivesse a conclusão em vez de conter os silogismos primários de que ela deriva, as testemunhas viriam a ser interrogadas não a respeito de factos susceptíveis de ser captados pelos sentidos, mas a respeito de juízos de valor formados sobre aqueles factos.
Isto implicaria a deturpação ou desnaturação da prova testemunhal.
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O Tribunal colectivo há-de ser perguntado sobre factos simples, e não sobre factos complexos, sobre meras ocorrências concretas e não sobre juízos de valor, induções ou conclusões a extrair dessas ocorrências (C. P. Civil anotado, Vol III, pág. 208, 209 e 215)”.
Esta doutrina é inteiramente aplicável à situação dos autos pelo que, as respostas a tais quesitos devem ter-se por não escritas, nos termos do preceituado no art.º 646.º, n.º 1 do C.P. Civil.
Isto mesmo o mostra ter entendido o Recorrente, embora não tenha invocado expressamente a aplicação do citado n.º 1 do art.º 646.º do C.P. Civil.
De facto, se os quesitos 7.º e 8.º contivessem matéria factual e as respectivas respostas tivessem de considerar-se assentes, a sua alegação no sentido de responsabilizar o Município pela ocorrência do acidente ficaria votada ao insucesso.
2.2.3. Recordemos o que ficou provado, em termos puramente fácticos, com relevo para a decisão:
No dia e hora em que o acidente ocorreu, o veículo pertencente à Autora, ao circular, em velocidade não superior a 10 Km/hora, sofreu um acidente de viação quando o pavimento da rua resvalou sob os seus rodados do lado direito deixando-os sem apoio.
Em consequência do resvalamento o veículo rolou para fora da estrada caindo pelo talude ali existente e imobilizando-se com os rodados voltados para cima. (alínea C) e D) dos factos assentes)
O acidente deu-se numa parte da rua que não estava asfaltada, composta de terra e gravilha. (resposta ao quesito 4º)
A rua, no local do acidente, tem a largura de 3,40 metros; as bermas não estavam cuidadas e a extrema da rua com o talude não se encontrava protegida. (alínea I dos factos assentes; resposta ao quesito 6º)
Pela via em causa, passam, diariamente, alguns veículos, nomeadamente pesados, “não apresentando, à data do acidente, qualquer sinalização indicadora de perigo ou limitadora a qualquer tipo de veículos ou circulação”.(resposta ao quesito 2º e alínea F dos factos assentes)
Ficou ainda provado que o local do acidente constitui uma rua em linha recta e que o veículo … não se cruzou com qualquer outro veículo no momento do acidente.
Cabe, pois, apreciar se, em face desta matéria, a sentença recorrida decidiu com acerto ao considerar inexistirem os pressupostos da obrigação de indemnização fundada em acto ilícito, absolvendo o Município Réu do pedido.
Conforme a sentença recorrida também reconhece, a responsabilidade civil extra-contratual do Estado e demais entes públicos por actos ilícitos de gestão pública, prevista no D. Lei 48051, de 21.11.67 (aplicável ao caso dos autos) assenta em pressupostos idênticos aos da responsabilidade civil por facto ilícito, enunciados no art.º 483.º do Código Civil, ou seja: o facto ilícito, a culpa, o dano indemnizável e o nexo de causalidade (em termos de causalidade adequada) entre o facto e o resultado danoso.
No que respeita à ilicitude, o art.º 6.º do citado Dec. Lei prescreve especificamente que, para efeitos do mesmo diploma, se deverão considerar ilícitos “os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de experiência comum que devam ser tidas em consideração”.
Relativamente à culpa, o art.º 4.º remete para o critério do art.º 487.º do Código Civil, ou seja, o padrão de diligência exigível “é o de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”
A conduta do agente geradora do dano tanto pode traduzir-se num comportamento positivo como omissivo. Existindo o dever legal de actuar, a omissão dos actos devidos é susceptível de determinar a obrigação de reparar o dano causado.
Por último “é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa” (art.º 487.º do Código Civil).
No que concerne a este último dispositivo, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo encontra-se hoje uniformizada no sentido de que a presunção de culpa estabelecida no art.º 493.º do C. Civil é aplicável ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas (v. entre outros, os acos do Pleno de 29.4.98, pº 36.463, de 3.10.02, pº 45.160, de 20.3.02, pº 45 831).
De harmonia com o aludido regime de presunção de culpa, verifica-se uma inversão do ónus da prova da culpa que, recaindo em geral sobre o lesado (art.º 342.º do C. Civil), passe, por força da aludida presunção, a onerar, em primeira linha, o lesante.
2.2.4 Na situação dos autos e, iniciando a análise pelo pressuposto relativo à ilicitude, entende-se que a sentença recorrida errou ao concluir pela sua inexistência.
Quanto a este pressuposto, a sentença limita-se às seguintes afirmações.“Não tinha a via em causa qualquer sinalização, mas também é certo que nada obrigava a que a tivesse, sendo certo que por ali circulavam outros veículos, nomeadamente pesados!”.
“Não estavam as bermas cuidadas, nem a extrema da rua com o talude se encontra protegida, mas tais cuidados, também não eram exigíveis numa rua com as características daquela onde se verificou o acidente !”
Afigura-se manifesta a improcedência de tais conclusões.
Tratando-se de uma via estreita (3,40 m de largura), com dois sentidos de trânsito, apenas parcialmente asfaltada e, no restante, composta de terra e gravilha, sem protecção entre a extrema da rua e o talude, por onde passavam diariamente alguns veículos pesados, parece evidente que a mesma oferecia perigo para o trânsito.
Ora, de harmonia com o art.º 5.º do C. da Estrada “nos locais que possam oferecer perigo para o trânsito ou em que este deve estar sujeito a restrições especiais e ainda quando seja necessário dar indicações úteis, devem ser utilizados os respectivos sinais”(cf. ainda o art.º1.º e o art.º 19.º do Dec. Regulamentar 22-A/98, de 1 de Outubro).
No mesmo sentido, o prescrito no art.º 28.º da Lei 2110 de 19 de Agosto de 1961.
Sendo a via municipal, a respectiva sinalização incumbia ao Município Réu (art.º 2.º da Lei 2110) que, omitindo-a, infringiu as citadas disposições legais.
Note-se que, a sentença também mostra reconhecer que a utilização da via em causa requeria cuidados especiais, embora sem retirar de tal as consequências jurídicas que se impunham em relação à actuação do Réu.
Por outro lado, sobre o Município Réu recaía o dever de manter a via em bom estado, designadamente as respectivas bermas, e de proteger, de forma a não oferecer perigo para o trânsito, a extrema da rua em relação ao talude (artos 2.º e 32.º da citada Lei 2110).
2.2.5. Vejamos, agora, a culpa.
O padrão de diligência exigível é, como vimos, o apontado no art.º 487.º do Código Civil; ou seja, na situação em causa, deverá ter-se como referência o normal comportamento de um funcionário zeloso e cumpridor.
Por outro lado, para a demonstração da culpa não é necessário comprovar violação dos deveres por órgãos ou agentes determinados, sendo bastante a falta do próprio serviço, globalmente considerado. (ver entre outros, ac. de 26-11-03, rec. 654/03).
Ora, parece inequívoco que, ao omitirem o cumprimento dos deveres de sinalização, conservação e protecção da via em análise, os serviços do Réu actuaram com falta de zelo; sem a diligência que lhes era exigível, logo, com culpa.
2.2.6. Resta apreciar o nexo de causalidade entre as condutas omissivas do Réu e os danos resultantes do acidente.
Este Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a entender que, em matéria de nexo de causalidade, o art.º 563.º do Código Civil consagra a teoria da causalidade adequada, e que na falta de opção legislativa explícita por qualquer das suas formulações, os tribunais gozam de liberdade interpretativa, no exercício da qual se deve optar pela formulação negativa correspondente aos ensinamentos de Ennecerus–Lehmann (v. entre muitos outros, ac. de 25.6.98, rec. 43.756, de 2.7.98, rec. 43.136, de 13.10.98, rec. 43.138).
Nesta formulação, a condição deixará de ser causa do dano sempre que “segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo portanto inadequada para este dano”
No caso em apreço, a falta de qualquer sinalização do perigo que o trânsito na via em causa oferecia, conjugada com o estado do piso (só parcialmente asfaltado e, no restante, em terra e gravilha, facilmente amolecível pela acção normal das chuvas), das bermas (não cuidadas) e, a falta de protecção do talude, não podem considerar-se, de modo algum, em abstracto, indiferentes ao “resvalamento do pavimento da rua sob os rodados do lado direito do veículo pesado deixando-os sem apoio” e que, “em consequência do resvalamento aquele rolasse para fora da estrada, caindo pelo talude ali existente”.
Antes, todas aquelas circunstâncias, imputáveis à falta de diligência do Réu, concorreram para que o acidente ocorresse e eram, em abstracto, aptas para tal resultado.
2.2.7. Por último, não se provou que haja uma conduta culposa do condutor que tenha contribuído para a produção dos danos. Por um lado, não foi alegado (nem consequentemente provado) que o condutor do veículo conhecia todos os perigos que a via oferecia quando decidiu utilizá-la.
Por outro lado, embora seguisse a uma velocidade moderadíssima (10Km/hora) e o local do acidente fosse uma recta, o condutor não podia invadir a faixa de rodagem contrária, sob pena de desrespeitar o Código da Estrada e as normas de segurança.
Como a rua era estreita e se tratava de um veículo pesado, era-lhe praticamente impossível circular sem invadir a berma do seu lado direito.
Entende-se, pois, que não se justifica, no caso, a aplicação do n.º 1 do art.º 570.º do C. Civil, de harmonia com o qual «quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao Tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída»
2.2.8. Em resultado do acidente, o veículo da Autora ficou gravemente danificado, ao nível do chassis e diversos componentes do mesmo, cabine, motor, tejadilho e tambor de transporte de betão, tendo a reparação total dos danos importado um custo de € 27,106 (10.014,53 + 9.450,34 +7.638,19). – respostas aos quesitos 9º a 12º, inc da base instrutória –.
Provou-se ainda que o veículo em causa esteve paralisado desde a data do acidente até ao dia 28/6/2002, num total de 115 dias e que, em cada dia de trabalho, o mesmo transporta cerca de 70 m3 de betão; mas não se provou, conforme a Autora alegava, que tal correspondesse a uma facturação média de € 174,58 por dia. (respostas aos quesitos 13º e 14º)
2.2.9. Face ao exposto, ao invés do decidido no T.A.C., encontram-se preenchidos todos os pressupostos da obrigação de indemnizar, por parte do Município Réu, devendo o mesmo reconstituir a situação que existiria se não fosse a lesão. Impõe-se, pois, o pagamento à Autora do valor já líquido dos prejuízos sofridos com a reparação da viatura, no montante de € 27,106 e, relegando-se o montante ainda não liquidado – proveniente da imobilização do veículo pesado durante 115 dias – para execução de sentença.
3. Nestes termos acordam:
a) Conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida
b) Julgar procedente a acção e condenar o Município Réu na indemnização à Autora dos prejuízos resultantes do acidente, nos termos e pela forma referida em 2.2.9, ao que acrescem juros de mora, devidos desde a citação até integral pagamento.
Sem custas.
Lisboa, 19 de Maio de 2005. – Maria Angelina Domingues (relatora) – Madeira dos Santos – Costa Reis. (Vencido. Entendo que as circunstâncias concretas da via não foram responsáveis pela produção do acidente e que a Ré não estava obrigada à sinalização que a decisão agora votada exigia. Assim negaria provimento ao recurso).