Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01826/17.1BEBRG 0140/18
Data do Acordão:05/29/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24610
Nº do Documento:SA22019052901826/17
Data de Entrada:02/14/2018
Recorrente:A... SA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1. A…………., S.A., com os demais sinais dos autos, recorre da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal que indeferiu o recurso judicial que interpôs com vista a impugnar duas decisões administrativas de aplicação de coima, por “cumulação ilegal de recursos”, por não se encontrarem apensados os processos de contraordenação onde essas decisões foram proferidas.

1.1. Formulou alegações que finalizou com o seguinte quadro conclusivo:

1º Entendeu o Tribunal recorrido que a própria Arguida apresentou um único recurso contraordenacional e que nesse recurso requereu e deferiu por sua iniciativa a apensação de processos contraordenacionais.

2º A Recorrente não efetuou qualquer cumulação ilegal.

3º A Recorrente no seu requerimento inicial de interposição de recurso contraordenacional referiu: “Vem nos termos do art.º 8º do Regime Geral das Infrações Tributárias, em relação aos processos supra identificados, individualmente apresentar o respetivo RECURSO CONTRA-ORDENACIONAL”.

4º Não se pode entender, como o Tribunal recorrido entendeu, que a Recorrente apresentou um único recurso contraordenacional.

5º A recorrente apresentou tantos recursos quantos o número de processos, requerendo à Autoridade Sancionatória a impressão em relação a cada um dos processos,

6º Para que cada um dos processos fosse remetido ao Tribunal competente.

7º Por outro lado, não pode a Recorrente deixar de relevar que a apensação deveria ter sido efetuada pelo Tribunal recorrido, tendo em conta a douta jurisprudência superior firmada por este Supremo Tribunal Administrativo, em diversos Acórdãos, entre os quais o citado no despacho recorrido - Acórdão de 4/03/2015.

8º O Tribunal recorrido, em vez de ter procedido ao indeferimento liminar, deveria ter oficiosamente efetuado a apensação (aliás requerida no referido recurso contraordenacional),

9º E não impor à Recorrente a apresentação de dois novos recursos, para que então, em cada processo, se procedesse à apensação e ao respetivo pagamento de taxa de justiça.

10º Tal atuação, além de fazer de tábua-rasa da jurisprudência perfeitamente assente deste Supremo Tribunal Administrativo,

11º Não tem em conta o princípio da celeridade processual que cabe especialmente aos processos contraordenacionais, como se sabe.

12º Nestes termos, devia ser admitido o recurso contraordenacional em relação a cada processo contraordenacional individualmente, apensando o Tribunal recorrido os referidos processos contraordenacionais.

Por outro lado,

13º O Tribunal recorrido não podia ter rejeitado liminarmente o recurso contraordenacional, já que a rejeição pode apenas ocorrer em duas situações –recurso feito fora do prazo (que não foi o caso) e recurso interposto sem respeito pelas exigências de forma (que também não foi o caso), conforme o art.º 63º nº 1 do Regime Geral das Contraordenações.

14º Todas as situações que não estejam neste âmbito, têm de ser decididas por despacho judicial, ao abrigo do artigo 64º do mesmo diploma.

15º O Tribunal recorrido aplicou subsidiariamente o artigo 311º nº 1 do Código de Processo Penal sem suporte legal, já que tal despacho não existe no Regime Geral das Contraordenações.

16º A eventual ineficácia do recurso contraordenacional, a existir, que não se vê como, deveria ter sido aferida na sentença jurisdicional. Ora, por maioria de razão, tal sempre implicaria que o respetivo recurso contraordenacional fosse admitido e, com o seguimento do entendimento deste Supremo Tribunal, fosse ordenada a apensação.

1.2. Não foram produzidas contra-alegações.

1.3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de que o recurso merece provimento, não só porque a Mmª Juíza não podia, «a coberto do despacho de exame preliminar do recurso, suscitar a questão da exceção dilatória inominada que qualificou como sendo “Cumulação ilegal de Recursos”, para daí concluir pelo “indeferimento liminar da petição inicial», como também porque a decisão se afasta da jurisprudência consolidada no STA, no sentido de que «encontrando-se o juiz, a quem compete o julgamento da impugnação da decisão administrativa que aplicou a sanção, perante uma multiplicidade de processos, em que o infractor é o mesmo, que lhe foram distribuídos a si, ou aos outros juízes do mesmo Tribunal, deve averiguar da possibilidade de ordenar a apensação de todos os processos àquele que for o determinante da competência por conexão» e que «o facto de não se ter ordenado a apensação de todos os processos na fase administrativa, face ao preceituado no artigo 24º nº 2, não impede que seja ordenada essa mesma apensação na fase judicial, cfr. artigo 29º nº 2, no despacho liminar ou em qualquer momento, antes de ser designada data para o julgamento ou antes da prolação da decisão por mero despacho», citando para o efeito os acórdãos de 04/03/2015, no processo nº 01396/14, de 11/03/2015, nos processos nºs 01398/14, 01557/14 e 074/15, e de 09/09/2015, no processo nº 070/15.

1.4. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir em conferência.

2. O presente recurso vem interposto da decisão que indeferiu o recurso de impugnação judicial que a arguida interpôs de duas decisões de aplicação de coimas em dois distintos processos de contraordenação não apensados, numa situação em que esta requerera a prévia apensação desses processos e o Ministério Público formulara idêntica pretensão no acto de apresentação dos autos ao Juiz (cfr. fls. 1 a 55 do processo no sitaf) e em que ambos os processos de contra-ordenação foram, por consequência, remetidos para o tribunal.

A decisão recorrida tem o seguinte teor:

«(...) a Recorrente veio apresentar um único recurso para duas decisões de aplicações de coima, proferidas em dois processos de contra-ordenação: nºs 03612017060000072046 e 03612017060000074375.

Decorre dos elementos que instruem os autos que esses dois processos de contraordenação não foram apensados entre si na fase administrativa, nem foram considerados em conjunto pela entidade administrativa para efeitos de aplicação de uma coima única; tendo, pelo contrário, sido aplicadas coimas distintas, através de decisões administrativas proferidas individualmente em cada um dos processos de contraordenação.

Ora no que concerne à apensação, prevê a lei (artigos 24º e ss do C.P.P.) e também a jurisprudência, que em determinadas circunstâncias a entidade administrativa pode efectuar a apensação dos processos de contra-ordenação (“apensação” na fase administrativa, constituindo um único processo) ou então, já na fase judicial, pode e deve o Juiz efectuar a apensação dos recursos de contra-ordenação (apensação na fase judicial, cfr. nº 2 do artigo 29º do C.P.P.) no despacho liminar ou em qualquer momento, antes de ser designada data para o julgamento ou antes da prolação da decisão por mero despacho.

O que a lei não prevê e nem a jurisprudência refere é a possibilidade de ser a própria arguida (já nas vestes de Autora/Recorrente) a decidir apresentar um único recurso para decisões proferidas em processos de contra-ordenação não apensados, ficcionando que os processos estão apensados entre si ou que se trata de um único processo, como que chamando a si uma competência que a lei pretende que seja exclusiva da entidade administrativa e posteriormente, na fase judicial, do Tribunal. (...)

(...) a promoção apresentada pelo Ministério Público no sentido da apensação dos processos de Recurso não pode ser acolhida pelo Tribunal, pois in casu existe apenas um Recurso. // Também o pedido de apensação de processos, que consta logo do intróito da petição, não pode ser acolhido na fase judicial, uma vez que, tal como referido, o Tribunal apenas pode decidir e determinar a apensação de Recursos e não de processos contra-ordenacionais propriamente ditos.

Nestes termos, entende este Tribunal que, a partir do momento em que a autoridade administrativa não procedeu à apensação dos processos de contra-ordenação (antes tendo proferido decisões de aplicação de coima autónomas em cada um deles), a impugnação de tais decisões de aplicação de coimas não pode ser concretizada através de um único Recurso, não podendo a arguida proceder, por sua iniciativa, a uma cumulação” ou “apensação” dos processos de contra-ordenação. (...).

Decorre, pois, do exposto que, tendo sido proferidas duas decisões em diferentes processos de contra-ordenação que não estavam apensados entre si, a arguida tinha de apresentar uma petição de Recurso para cada decisão, sendo instaurados, autuados e distribuídos dois Recursos de contra-ordenação e só depois é que o Juiz, perante uma multiplicidade de processos (em que a infractora era a mesma), que lhe foram distribuídos a si, ou aos outros juízes do mesmo Tribunal, é que iria averiguar e decidir da possibilidade de ordenar a apensação de todos os Recursos àquele que fosse o determinante da competência por conexão.

Nesta conformidade, tendo sido deduzido um único Recurso para vários processos de contra-ordenação que não se encontram apensados, verifica-se a existência de uma Cumulação ilegal de Recursos”, o que consubstancia uma excepção dilatória inominada, que determina o indeferimento liminar da petição inicial.».

Não podemos, contudo, concordar com tal entendimento.

A circunstância de a Recorrente ter interposto um só recurso de impugnação judicial de duas decisões administrativas de aplicação de coima proferidas em distintos processos de contra-ordenação, mas ter, concomitantemente, identificado os dois processos a que dirige o recurso (e que foram remetidos a tribunal), requerendo, a final, de forma expressa e inequívoca, a sua prévia apensação de modo a possibilitar a utilização de uma única petição judicial para impugnar ambas as decisões, aliada à circunstância de o Ministério Público ter formulado idêntica pretensão quando fez a apresentação dos autos ao Juiz, devia ter determinado a análise desse pedido e a prolação de decisão de deferimento caso nada obstasse a essa apensação.

Na verdade, a apensação dos processos administrativos onde foram proferidas as decisões administrativas impugnadas viabiliza a apresentação de uma única peça de judicial de contestação a ambas as decisões, com ganhos de eficiência formais e substanciais, atenta a instrução, a discussão e o julgamento conjunto da legalidade dessas duas decisões, sendo esta a razão legal justificativa da junção por conexão.

Deste modo, impunha-se ao Mmº Juiz analisar e decidir o aludido pedido de apensação, pedido que, como tem sido frisado pela jurisprudência do STA, pode e deve ser acolhido caso se mostrem verificados os respetivos pressupostos legais, e que pode e deve ser ordenada (até oficiosamente) no despacho liminar, em qualquer momento antes de ser designada data para julgamento, ou antes da prolação do despacho a que se refere o artigo 64º do RGCO – cfr. entre outros, os acórdãos do STA de 17/06/2015, no proc. nº 0137/15, de 28/10/2015, no proc. nº 069/15, de 15/11/2017 no proc. nº 01026/17, e de 20/03/2019, no proc. nº 01895/17.

Como se deixou frisado no acórdão proferido no processo nº 0137/15, «o facto de não se ter ordenado a apensação de todos os processos na fase administrativa, não impede que seja ordenada essa mesma apensação na fase judicial, cfr. artigo 29º nº 2, no despacho liminar ou em qualquer momento, antes de ser designada data para o julgamento ou antes da prolação da decisão por mero despacho, cfr. artigo 64º do RGIMOS e 82º do RGIT. // Nesta medida, incumbe ao juiz a quem compete o julgamento das impugnações das decisões administrativas, apreciar da aplicabilidade do disposto naquele artigo 25º do CPP, configurando-se, assim, o reconhecimento da conexão de processos e a determinação da apensação dos mesmos como um dever e não como uma faculdade que é concedida ao juiz, tudo em vista da melhor realização da justiça e da economia de meios.».

Em suma, em vez de indeferir o recurso de impugnação, devia o Julgador ter apreciado e decidido o pedido de apensação dos processos de contra-ordenação que lhe foram remetidos, só depois prosseguindo com os ulteriores termos do processo.

Razão por que, sem necessidade de outras considerações, se impõe conceder provimento ao presente recurso e revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que aprecie e decida o pedido de apensação dos dois processos de contraordenação e, no caso do seu deferimento, que conheça, se a tal nada mais obstar, do mérito do recurso impugnatório das decisões que neles foram proferidas.

3. Termos em que se acorda em conceder provimento ao recurso, revogar o despacho recorrido e determinar a baixa dos autos ao tribunal de 1ª instância para os efeitos supra referidos.

Sem custas.

Lisboa, 29 de Maio de 2019. – Dulce Neto (relatora) – Ascensão Lopes – Ana Paula Lobo.