Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0422/17
Data do Acordão:10/25/2017
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:PRESCRIÇÃO
SUSPENSÃO
INSOLVÊNCIA
Sumário:O art. 100° do CIRE aprovado pelo Decreto-Lei n° 53/2004, de 18 de Março é inconstitucional, por violação do art° 165° n° 1 alínea i) da Constituição, por o governo não ter legislado ao abrigo e autorização legislativa e ser inovadora a causa de suspensão ali prevista quando interpretado tal preceito no sentido de que a declaração de insolvência suspende o prazo prescricional das dívidas tributárias imputáveis ao responsável subsidiário no âmbito do processo tributário.
Nº Convencional:JSTA000P22424
Nº do Documento:SA2201710250422
Data de Entrada:04/03/2017
Recorrente:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

A FAZENDA PÚBLICA, inconformada, interpôs recurso da decisão do Tribunal Tributário de Lisboa (TTL) datada de 13 de Dezembro de 2016, que, julgou procedente a oposição deduzida por A……………. à execução fiscal contra si revertida, originariamente instaurada contra a sociedade B………….., SA, por dívidas de IRS dos anos de 2001, 2002 e 2003.

Alegou, tendo apresentado conclusões, como se segue:
A. Entendeu o Tribunal, na douta sentença, declarar prescritas as dívidas tributárias em causa relativamente ao Oponente.
B. Não pode a Fazenda Pública conformar-se com o doutamente decidido pelas razões que se seguem:
C. Estando em causa nos autos dívida de IRS dos anos de 2001 a 2003, equacionando a dívida mais antiga, o prazo de prescrição teve início em 2002-01-01.
D. A devedora originária foi declarada insolvente em 2006-06-23, sentença que transitou em julgado em 2006-09-14, sendo que ainda não se encontra encerrado e concluído o processo de insolvência.
E. Em 2013-04-10, foi o Oponente citado para os termos da execução, na qualidade de responsável subsidiário.
F. Pelo que, de 2002-01-01 a 2013-08-2011, transcorreram mais de oito anos.
G. Contudo, há a considerar que, a partir da declaração de insolvência, verifica-se a avocação de todos os processos de execução já instaurados ao processo de insolvência, facto que determina a suspensão do prazo de prescrição.
H. Dispõe o art. 100º do CIRE estabelece que “A sentença de declaração da insolvência determina a suspensão de todos os prazos de prescrição e de caducidade oponíveis pelo devedor, durante o decurso do processo”.
I. Assim, considerando que até à data da declaração de insolvência haviam decorrido apenas 3 anos, 6 meses e 23 dias e, considerando que ainda não se encontra encerrado o processo de insolvência, é manifesto que ainda não ocorreu a prescrição das dívidas em causa nos autos de execução.
J. No que respeita à inconstitucionalidade orgânica do art. 100° do CIRE, por violação do art. 165°, n° 1 al. i) da CRP, ainda sem força obrigatória geral, cumpre referir o seguinte:
K. Constitui jurisprudência deste Supremo Tribunal fixada, entre outros, no Acórdão de 14 de Outubro de 2009, proc n° 528/09, que “As normas que regulam o regime da prescrição da obrigação tributária, inclusivamente as relativas ao regime da sua suspensão, inserem-se nas «garantias dos contribuintes», pelo que se inclui na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República legislar sobre essa matéria”.
L. No mesmo sentido vai a jurisprudência do Tribunal Constitucional consignada, entre outros, no Acórdão de 5 de Julho de 2010, proc n° 133/10.
M. Tem sido entendimento do STA que “a solução recebida no art. 100° do CIRE encontra justificação num princípio geral, sem pretender introduzir uma nova causa de suspensão da prescrição das dívidas tributárias e, dessa forma, contender com o regime da prescrição consagrado nos arts. 48° e 49° da LGT”.
N. Assim como ficou consignado no Acórdão do Tribunal Constitucional n° 280/10, “Se a função garantística da reserva de lei fiscal, (...) visa assegurar a previsibilidade dos elementos essenciais do imposto (e da situação fiscal) e a tutela de confiança do contribuinte, torna-se claro que nenhum motivo existe também aqui para uma intervenção parlamentar, quando o que está em causa é igualmente a definição de uma solução jurídica exigida pela própria lógica do regime de insolvência e que se encontra justificada à luz de um princípio geral de direito (art. 321°, n° 1, do Código Civil)”.
O. Por tudo o que vai exposto, não contendendo o art. 100° do CIRE com o regime de suspensão da prescrição das dívidas tributárias, consagrado nos arts. 48° a 49° da LGT, não enferma de inconstitucionalidade orgânica, por violação dos arts. 103°, n°2, e 165°, n° 1, alínea i), da CRP.

Não houve contra-alegações.

O Ministério Público notificado, pronunciou-se pela improcedência do recurso. No essencial o Ministério Público apoiando-se no acórdão do Tribunal Constitucional nº 362/2015, de 9 de Julho de 2015, entendeu que o artº 100º do CIRE, que foi julgado inconstitucional quando interpretado no sentido de que a declaração de insolvência ali prevista suspende o prazo prescricional das dívidas tributárias imputáveis ao responsável subsidiário, no âmbito do processo tributário, não era de aplicar ao caso dos autos.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
1) Em 09/10/2005, foi instaurada execução fiscal n.° 3492200501057600 contra “B………….., S.A.”, por dívida de IRS, dos anos de 2001, 2002 e 2003, montante total de € 229.866,79, a correr termos no Serviço de Finanças de Loures-4;
2) A sociedade executada “B……………., S.A.” foi declarada insolvente por sentença proferida em 23/06/2006, já transitada em julgado, no processo n.° 205/05.8TYLSB do 1.º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa;
3) Por despacho do Chefe Finanças Adjunto de Loures-2, datado de 14/03/2013, foi determinada a reversão da execução fiscal identificada no ponto 1), no montante total de € 229.866,79, contra o aqui oponente e respectiva citação como executado por reversão;
4) O oponente foi citado para os termos da execução fiscal na qualidade de responsável subsidiário em 10/04/2013;
5) Em 13/05/2013, deu entrada no Serviço de Finanças de Loures-4, a petição inicial de oposição.
Nada mais se deu como provado.

Há agora que apreciar o recurso que nos vem dirigido.
A questão que a recorrente coloca passa por saber se a suspensão dos prazos de prescrição das dívidas tributárias a que alude o artigo 100º do CIRE é aplicável às dívidas tributárias imputáveis ao responsável subsidiário.
Na sentença, como bem se percebe das conclusões do recurso, decidiu-se em sentido contrário, aderindo-se à doutrina do Tribunal Constitucional sufragada no seu acórdão n.º 362/2015, datado de 09.07.2015, pelo que, se concluiu pela verificação efectiva do decurso do prazo de prescrição.
No seu recurso, a Fazenda Pública, numa tentativa de contradizer tal doutrina, esgrime alguns fundamentos de forma insipiente, mas sem força argumentativa sólida que possam abalar a desconformidade interpretativa com a constituição que foi sublinhada em tal acórdão.
Assim, recusaremos o provimento ao presente recurso, por mera adesão aos fundamentos daquele acórdão do TC, que aqui repetimos, porque lhes reconhecemos força argumentativa coerente e lógica, ao contrário dos argumentos expendidos neste recurso.
Escreveu-se em tal acórdão: 13.1. Na sua promoção, o Ministério Público junto do tribunal a quo sustentou que o disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 1.º daquela Lei forneceria a autorização necessária a habilitar o Governo a produzir normação nessa matéria (cfr. fls. 269-270). Com efeito, considerou aquele Magistrado que, nesse preceito, o Governo foi autorizado a legislar quanto às consequências decorrentes do processo de insolvência para o Estado, sendo tal autorização, ainda que concedida «em termos abrangentes» e pese embora a perplexidade de, quanto a essa matéria, nada ser especificado nas disposições seguintes, não obstante a ressalva feita no n.º 5, do mesmo preceito, suficiente para se poder ter por satisfeito o princípio da legalidade na e a reserva da lei.
Não obstante a decisão recorrida não ter subscrito esta orientação, cumpre agora analisá-la uma vez que, caso se conclua que o regime constante da interpretação normativa do artigo 100.º do CIRE aplicada pela decisão recorrida se situa nas fronteiras e limites da autorização legislativa constante da Lei n.º 39/2003, de 22 de agosto, será de afastar qualquer ofensa ao parâmetro constitucional que vem invocado pelo recorrente.
13.2. Vejamos o teor dos preceitos relevantes para a presente análise:
«Artigo 1.º
Objeto
1. [...]
2. [...]
3. No Código da Insolvência e Recuperação de Empresas fica o Governo autorizado a legislar sobre as seguintes matérias:
a) As consequências decorrentes do processo especial de insolvência para o Estado e a capacidade do insolvente ou seus administradores;
b) Os efeitos da declaração de insolvência no prazo de prescrição do procedimento criminal, assim como a obrigatoriedade de notificação ao tribunal da insolvência de determinadas decisões tomadas em processo penal;
c) [...]
d) [...]
e) [...]
f) [...]
g) [...]
h) Os benefícios fiscais no âmbito do processo de insolvência.
4. [...]
5. O sentido a extensão das alterações a introduzir resultam dos artigos subsequentes.»
Contendo o artigo 1.º, n.º 3, alíneas a) a h), o elenco das matérias sobre as quais o Governo se encontrava autorizado a legislar, a definição do sentido e extensão das alterações a introduzir é depois especificado em disposições subsequentes, seguindo a sistematização e ordem que preside à enunciação do referido elenco. Contudo, na disposição correspondente à definição do sentido e extensão das alterações a legislar pelo Governo em matéria de «consequências decorrentes do processo especial de insolvência para o Estado e a capacidade do insolvente ou seus administradores» - artigo 2.º - nada se encontra quanto à matéria relativa às consequências decorrentes do processo especial de insolvência para o Estado. E esta conclusão induz alguma perplexidade, como assinalou o referido Magistrado, uma vez que tal omissão não se replica nas restantes matérias para que o Governo ficou habilitado a legislar.
Uma autorização legislativa não se basta com a utilização de «termos abrangentes» dos quais se possa induzir as matérias sobre as quais o Governo fica habilitado a legislar. Como se salientou no Acórdão n.º 6/2014, «os decretos-lei autorizados que estejam em desconformidade com os termos da autorização, como é o caso em que excedam os limites da autorização e legislem sobre matéria diferente ou em sentido divergente do autorizado, incorrem em direta violação da competência legislativa da Assembleia da República e, logo, em inconstitucionalidade orgânica, total ou parcial». Por outro lado, e como também se assinalou no referido aresto, fazendo alusão à doutrina consagrada no Acórdão n.º 168/2002, «a eventual dissonância do decreto-lei autorizado relativamente à autorização legislativa depende da aplicação das regras de interpretação jurídica, cabendo ao Tribunal Constitucional avaliar o sentido e alcance da credencial legislativa e determinar se as disposições editadas pelo Governo se incluem ainda dentro da competência legislativa que foi especialmente concedida por efeito da autorização».
Uma eventual falta de coerência técnico-legislativa do diploma não seria argumento suficiente para uma censura do ponto de vista constitucional. Mas é um dado relevante na tarefa de interpretar o sentido da autorização legislativa por forma a podermos concluir se a mesma inclui - ou não - a autorização para o Governo legislar em matéria de prescrição tributária. Ainda que se pudesse entender que na expressão «consequências para o Estado da declaração de insolvência» se incluiria autorização para alterar o regime da prescrição tributária, sempre seria a mesma insuficiente para constituir uma credencial legiferante válida.
Com efeito, como decorre do disposto no n.º 2, do artigo 165.º da Constituição, as leis de autorização legislativa devem definir o objeto, o sentido e a extensão da autorização. Torna-se a todos os títulos claro que o sentido e extensão significam a «predefinição parlamentar da orientação política da medida legislativa a adotar» (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 337). Não sendo obrigatório que «a autorização contenha um projeto do futuro decreto-lei [...], [ela] não pode ser, seguramente, um cheque em branco» (v. idem, ibidem).
Ora, do disposto no artigo 1.º, n.º 3, alínea a), da Lei n.º 39/2003, de 22 de agosto, na parte referente às consequências para o Estado da declaração de insolvência, não decorre a concessão de autorização para legislar em matéria relativa à prescrição das dívidas fiscais. Assim, e uma vez que aquela expressão se encontra, na economia do diploma autorizativo, desligada de qualquer especificação quanto ao seu conteúdo, da mesma não é extraível qualquer sentido útil, face às exigências do disposto no artigo 165.º, n.º 2, da Constituição, para efeitos de credencial parlamentar bastante. Do mesmo modo, também no resto do diploma não se encontra nada que pudesse agora conferir uma fonte útil de credencial legiferante para matérias relacionadas com a prescrição de dívidas tributárias, designadamente do responsável subsidiário.
Neste contexto, o artigo 100.º do CIRE, interpretado no sentido de que a declaração de insolvência suspende o prazo prescricional das dívidas tributárias imputáveis ao devedor subsidiário no âmbito do processo tributário, ao ser editado pelo Governo a descoberto de credencial parlamentar e tendo em conta a matéria que regula, enferma do vício de inconstitucionalidade orgânica.”.

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, negar provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente.
D.n.

Lisboa, 25 de Outubro de 2017. – Aragão Seia (relator) – Casimiro Gonçalves – Francisco Rothes.