Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0587/10
Data do Acordão:12/16/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:JUROS COMPENSATÓRIOS
CULPA
Sumário:I – A responsabilidade por juros compensatórios tem a natureza de uma reparação civil e, por isso, depende do nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a actuação do contribuinte, bem como da possibilidade de formular um juízo de censura à sua actuação (a título de dolo ou negligência).
II – Nesse contexto, e em face do preceituado nos artigos 35.° da LGT e 89.° do CIVA, constituem requisitos essenciais para a liquidação de juros compensatórios a existência de uma dívida de IVA, de um atraso na efectivação de uma liquidação desse imposto e da imputabilidade do atraso à actuação culposa do contribuinte.
III – Consistindo a culpa na omissão reprovável de um dever de diligência, que tem de ser apreciada segundo os deveres gerais de diligência, aptidão e conhecimento de um bónus pater famílias, não se pode formular um juízo de censura à actuação do impugnante/empreiteiro, de continuar a liquidar o IVA à taxa reduzida de 5% após a transformação dos serviços municipalizados de água numa empresa municipal, face a uma compreensível falta de imediata percepção, por todas as entidades envolvidas, inclusive pela própria administração fiscal, do exacto alcance jurídico e fiscal da transformação de um órgão municipal numa empresa pública e das respectivas implicações na taxa do IVA a liquidar no contrato de empreitada outorgado com essa entidade.
Nº Convencional:JSTA00066743
Nº do Documento:SA2201012160587
Data de Entrada:07/05/2010
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TT1INST LISBOA PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR FISC - JUROS.
Legislação Nacional:LGT98 ART35.
CIVA84 ART18 N1 A ART31 ART89 VERBA 2.17.
L 58/98 DE 1998/08/18 ART2 ART36.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC12147 DE 1992/07/08.; AC STA PROC19014 DE 1995/06/28.; AC STA PROC20042 DE 1996/03/20.; AC STA PROC20605 DE 1996/10/02.; AC STA PROC325/08 DE 2008/11/19.; AC STA PROC12649 DE 2005/07/12.
Referência a Doutrina:JORGE DE SOUSA JUROS NAS RELAÇÕES TRIBUTÁRIAS IN PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO TRIBUTÁRIO PAG145.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A FAZENDA PÚBLICA interpôs o presente recurso jurisdicional da decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, de procedência da impugnação judicial que a sociedade A…, deduziu com vista à anulação dos actos de liquidação adicional de Juros Compensatórios de IVA dos períodos de 0106T, 0112T, 0203T, 0206T, 0209T, 0303T, 0306T, 0312T, 0403T, 0406T, no montante global de € 13.161,56.
Terminou a sua alegação enunciando as seguintes conclusões:
I. Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença que julgou procedente a impugnação deduzida por A… contra as liquidações de Juros Compensatórios de IVA dos períodos de 0106T, 0112T, 0203T, 0206T, 0209T, 0303T, 0306T, 0312T, 0403T, 0406T, no montante total de € 13.161,56.
II. A fundamentação da sentença recorrida assenta, em síntese, no entendimento segundo o qual “nas circunstâncias concretas do caso se verifica erro desculpável (no incorrecto enquadramento do dono da obra na verba 2.17 do CIVA ex vi do seu art. 18°), causa de exclusão de culpabilidade que afasta a imputabilidade do fado (retardamento da liquidação) ao contribuinte”.
III. Sendo que, no entendimento do Meritíssimo Juiz a quo, o erro em que incorreu a impugnante advém da circunstância da alteração estatutária do dono da obra em Abril de 1999, de Serviços Municipalizados de Gaia para Águas de Gaia - Empresa Municipal, só veio a ficar definida com a orientação administrativa sancionada por despacho do SEAF, de 07.08.2002, no sentido de ser de aplicar a taxa normal de imposto às referidas operações e não a taxa reduzida de 5%, o que “indica que a situação não era até então, mesmo para a AF, clara liquida e fácil de ver”.
IV. A alteração estatutária do dono da obra efectivou-se em Abril de 1999, logo em data anterior à celebração do contrato de empreitada, que ocorreu em Maio de 1999, sendo essa a data relevante para efeitos de enquadramento em sede de IVA.
V. Ora a impugnante praticou operações tributáveis, aplicando a taxa de IVA reduzida, num lapso de tempo que decorreu desde o ano 2001 ao ano de 2004.
VI. A liquidação dos juros compensatórios foi efectuada nos termos dos artigos 89.° do CIVA e 35.° da LGT, por ter sido retardada a liquidação do imposto por facto imputável ao sujeito passivo.
VII. A sentença recorrida considera verificada "in casu" uma causa de exclusão de culpabilidade, qualificando como desculpável o erro no incorrecto enquadramento das operações pelo facto de só em 07.08.2002 ter sido definida orientação administrativa no sentido de ser de aplicar a taxa normal de imposto às referidas operações, e não a taxa reduzida de 5%, o que “indica que a situação não era até então/ mesmo para a AF, clara liquida e fácil de ver”.
VIII. A culpa consiste na omissão reprovável de um dever de diligência que se afere em abstracto, segundo o critério do bom pai de família;
IX. A culpa traduz-se na omissão da diligência exigível no caso concreto, sendo que ao julgador cabe aferir se a conduta do agente foi a que seria esperar segundo as regras de experiência, ou se, pelo contrário devia e podia ter agido de outro modo.
X. Ora, “in casu”, e em face das circunstâncias concretas, não se pode afirmar que a impugnante tenha agido de forma diligente.
XI. Com efeito, não demonstra diligência de um bom pai de família desconhecer a situação jurídica da contraparte num contrato que foi executado durante vários anos.
XII. Por outro lado, aduz a sentença recorrida como fundamentação o facto da situação estatutária do dono da obra só ficar definida pela Administração Fiscal em 07-08-2002, não obstante, anula todas as liquidações, inclusivamente as referentes aos vários períodos dos anos de 2003 e 2004.
XIII. Conclui-se, pois, que não existe fundamento para afastar a imputabilidade do retardamento da liquidação à impugnante, pelo que, deviam ter sido considerados como verificados os pressupostos de aplicação de juros compensatórios consagrados no artigo 35° da LGT.
XIV. Assim, deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão judicial recorrida, por padecer a mesma de um erro de julgamento de direito e por violação dos artigos 35.º da LGT e 89.º do CIVA.
1.2. A Recorrida apresentou contra-alegações para pugnar pela manutenção do julgado.
1.3. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto junto deste Tribunal não emitiu parecer, deixando esgotar o prazo que a lei concede para o efeito.
1.4. Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir em conferência.
2. A sentença recorrida considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. A impugnante dedica-se à actividade de empreitadas de obras públicas.
2. No desenvolvimento dessa actividade, celebrou contratos de empreitada com a “Águas de Gaia, Empresa Municipal”, em que liquidou pelos trabalhos facturados IVA à taxa reduzida de 5% (informação de fls. 100 do apenso administrativo).
3. Na sequência de notificação para o efeito, apresentou em 6 e 7 de Abril de 2005 declarações de substituição, alterando de 5% para 19% a taxa do IVA liquidado nas facturas emitidas à “Águas de Gaia. Empresa Municipal” (informação de fls. 100 do apenso administrativo).
4. Em 12/04/2005 procedeu ao pagamento do adicional de imposto liquidado à taxa normal de 19% (informação de fls. 100 do apenso administrativo).
5. Por virtude da regularização do imposto em falta fora do prazo legal de entrega foram efectuadas liquidações autónomas de Juros Compensatórios com os números 05129941, 05137269, 05136866, 05136867, 05129950, 05137276, 05137281, 05129948, 05137287, 05129949, 05137291, relativas aos períodos de tributação 0106T, 0112T, 0203T, 0206T, 0209T, 0303T, 0306T, 0309T, 0312T, 0403T, 0406T, no montante total de € 13.161.56 (documentos de cobrança, fls. 25 a 35).
6. As liquidações de Juros Compensatórios não se encontram pagas (informação de fls. 70 do apenso).
7. A impugnante deduziu reclamação graciosa das liquidações de Juros Compensatórios (informação de fls. 70 do apenso).
8. A reclamação foi indeferida por despacho de 21/06/2006 do Sr. Chefe de Divisão de Justiça Administrativa da Direcção de Finanças de Lisboa, exarado sobre informação dos serviços a fls. 47, para que expressamente remete quanto à fundamentação e de que consta, textual, expressa e, designadamente, o seguinte:
«13 - A Reclamante entregou declarações de substituição de IVA dos períodos atrás referenciados, para voluntariamente regularizar o IVA liquidado a menos nas facturas dos serviços prestados a Águas de Gaia. Empresa Municipal;

14 - Se aceitou pacificamente as correcções propostas, é estranho requerer de seguida a anulação dos juros compensatórios originados por tais correcções;

15 Compete à Direcção dos Serviços de Cobrança do IVA liquidar juros compensatórios nos termos dos arts. 89° do CIVA e 35° da LGT devidos na apresentação de declaração periódica, com meio de pagamento suficiente, em substituição de uma outra anteriormente apresentada, nos casos em que a diferença entre a de substituição e a substituída seja devedora (imposto a entregar maior ou crédito menor do que o revelado na substituição). E, ainda, sobre os valores dos créditos disponíveis nas sub-contas de "Regularizações a Crédito" - RC ou de "Pagamentos Disponíveis" - DP, quando utilizados automaticamente nas operações de "pré-fecho de período ";

16 - Os juros calculados sobre as referidas diferenças, pelo período que medeia o prazo limite previsto no nº 2 do art. 40º do CIVA para entrega da DP e a entrega da DP de substituição para regularizar a situação descrita, à taxa legal em vigor no período;

17 - A culpa que se encontra subjacente ao retardamento da prestação tributária no que concerne às correcções aceites e voluntariamente regularizadas, não é consubstanciada no facto de haver qualquer divergência de critérios ou entendimento díspar de cariz contabilístico/tributária entre a Reclamante e os Serviços da Administração Tributária:

18 - A Reclamante alega que a transformação do seu cliente, de uma empresa pública municipal sem personalidade jurídica, para uma empresa pública personalizada, não era particularmente visível, pelo que actuou segundo as regas de experiência, liquidando IVA a 5% em vez de 19% enquadrando as empreitadas por si executadas na verba 2, 17 da Lista anexa ao CIVA;

19 - No entanto, segundo a escritura de contrato de empreitada, celebrada em Maio de 1999, é evidente a alteração jurídica dos ex-S.M.G. para Águas de Gaia. E.M, nomeadamente a fls. 72 do referido contrato (...) onde se refere ao enquadramento fiscal da nova empresa, ainda que em sede de IRC;

20 - Não obstante a Informação nº 80 de 7/08/2002 do SIVA, o alegado desconhecimento do enquadramento em sede de IVA no presente processo de reclamação graciosa não procede, porquanto, “a ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento, nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas”, segundo o artigo 6º do Código Civil.

21 - Quanto à alegada violação do direito de audição, também não procede, pois a obrigação da participação dos contribuintes está prevista quando existe decisão desfavorável na esfera contributiva do sujeito passivo resultante de procedimento administrativo. Os juros compensatórios ora reclamados, liquidados autonomamente, decorreram da apresentação de declarações de substituição fora de prazo, com base tributável superior às anteriores, voluntariamente apresentadas – art. 60º n °2 da LGT. (…)».

9. A impugnante foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa por ofício de 28/06/2006, a fls. 46 do apenso;
10. A impugnação foi apresentada em 14/07/2006, conforme carimbo aposto a fls. 4;
11. Consta a fls. 56 informação da Sra. Subdirectora-Geral do Imposto sobre o Valor Acrescentado, sancionada por despacho de 7/08/2002, do Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, cujo teor damos por integralmente reproduzido face à sua extensão e na qual é preconizado o entendimento de que não é possível aplicar a taxa reduzida de IVA (5%) às empreitadas adjudicadas pelas empresas municipais e intermunicipais, em virtude de se estar a incorrer numa violação do direito comunitário, susceptível de originar um processo de contencioso entre a U.E. e Portugal, pelo que é de aplicar a essas empresas a taxa normal (de 19%).
3. A questão a decidir no presente recurso é a de saber se a decisão recorrida fez errado julgamento da questão colocada na presente impugnação judicial, traduzida na violação dos artigos 35.º da Lei Geral Tributária e 89.° do Código do IVA, no que diz respeito à liquidação de juros compensatórios que a Administração Tributária efectuou à Impugnante com base no facto de ela ter liquidado IVA à taxa reduzida de 5% nas facturas que emitiu durante os anos de 2001 a 2004 no âmbito de contratos de empreitada celebrados com “Águas de Gaia, Empresa Municipal” (AGEM).
A decisão recorrida julgou procedente a impugnação judicial, anulando o acto de liquidação de juros compensatórios, com fundamento na existência de causa de exclusão da culpabilidade, por ter considerado como desculpável, nas circunstâncias concretas do caso, o erro em que incorreu o dono da obra (AGEM) e a Impugnante ao enquadrarem as operações na verba 2.17 do CIVA, erro que havia determinado a liquidação do IVA à taxa de 5% em vez da taxa normal de 19%.
No se conformando com essa decisão, veio a Fazenda Pública dela recorrer, defendendo, em suma, que não existe fundamento para afastar a imputabilidade do retardamento da liquidação à Impugnante, devendo considerar-se como verificados todos os pressupostos de aplicação de juros compensatórios consagrados no artigo 35.° da Lei Geral Tributária.
Vejamos.
Para uma cabal compreensão e decisão desta questão, convém reter que, conforme resulta da materialidade fáctica vertida no ponto 3.º do probatório e do teor da informação que a suporta (informação de fls. 100 do p.a. apenso), a liquidação destes juros teve origem na comunicação que a Administração Fiscal efectuou à Impugnante, em Abril de 2005, dando-lhe conta de que havia procedido indevidamente à liquidação de IVA à taxa reduzida de 5% nas facturas que emitira para a dona da obra (AGEM) e de que deveria proceder à regularização do imposto em falta mediante a apresentação de declarações periódicas de substituição, alterando a taxa de 5% para 19%. O que foi imediatamente cumprido pela Impugnante, que logo apresentou as declarações periódicas de substituição e efectuou o pagamento do imposto em falta, após o que a Administração efectuou a liquidação de juros compensatórios com fundamento no retardamento da liquidação de parte do imposto devido.
Por outro lado, para compreender a razão pela qual a Impugnante vinha liquidando à dona de obra IVA à taxa de 5%, há que recordar que a AGEM resultou da transformação dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento (SMAS) da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia numa empresa pública municipal ao abrigo da Lei n.º 58/98, de 18 de Agosto, e que nas empreitadas em que havia figurado o SMAS como dona da obra a taxa de IVA aplicável era de 5% face ao disposto no artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do CIVA, conjugado com a verba 2.17 da sua Lista I, que abrangia «As empreitadas de bens imóveis em que são donos da obra autarquias locais, associações de municípios ou associações e corporações de bombeiros, desde que, em qualquer caso, as referidas empreitadas sejam directamente contratadas com o empreiteiro».
Ou seja, quanto aos contratos de empreitada outorgados com os Serviços Municipalizados, os empreiteiros liquidavam o IVA à taxa reduzida de 5%, ao abrigo do artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do CIVA, dado que esses Serviços constituíam um órgão da autarquia, sendo, assim, a autarquia a verdadeira e directa dona da obra. E após a transformação dos Serviços em empresa municipal a Impugnante continuou a liquidar-lhe IVA à mesma taxa, com o natural consentimento desta.
O que significa que nem a sociedade construtora/empreiteira nem a dona da obra terão atentado na natureza jurídica das empresas municipais constituídas ao abrigo da Lei nº 58/98 e na essência dessa nova realidade jurídica, isto é, que tais empresas, sendo embora sociedades de capitais exclusivamente públicos, gozam de personalidade jurídica e são dotadas de autonomia administrativa, financeira e patrimonial (art. 2.º), estando sujeitas a tributação directa e indirecta nos termos gerais (art. 36.º). Ou seja, que tais empresas não constituem um órgão da autarquia (como eram os serviços municipalizados) nem se confundem juridicamente com a autarquia local, já que constituem uma entidade de direito privado, ainda que possua, por atribuição legal, o exercício de poderes públicos.
Todavia, nada indicia que a falta de consideração e ponderação deste aspecto jurídico de relevo para a liquidação do IVA tenha sido propositado ou intencional por parte das empresas envolvidas (empreiteiro e dona da obra) ou, sequer, que tenha havido negligência ou má-fé da sua parte ao abraçarem o pressuposto de que a dona da obra continuava a ser a autarquia local. Pelo contrário, a específica configuração de toda esta situação, que envolve a apreensão de questões estritamente jurídicas, como seja a natureza legal de uma empresa municipal e a compreensão do alcance jurídico e fiscal da transformação de um órgão municipal numa empresa municipal, indica que todas as entidades envolvidas terão agido convencidas da legalidade da sua actuação.
Com efeito, não pode esquecer-se a específica configuração desta situação, para a qual contribui o facto de a transformação dos SMAS na AGEM constituir, à primeira vista, uma mera transformação formal, traduzida na reorganização do serviço público de abastecimento de água e de saneamento básico. Ou seja, a modificação verificada na organização do serviço municipal de águas e saneamento de Vila Nova de Gaia não foi particularmente visível, pois que se traduziu na transformação de um serviço até então organizado como um órgão municipal, isto é, como uma empresa pública municipal sem personalidade jurídica, num serviço organizado como entidade dotada de personalidade jurídica, numa empresa pública personalizada. E, neste contexto, não admira que essas entidades não tenham detectado logo o exacto alcance e sentido dessa modificação e que, por essa razão, tenham (ainda que erradamente) continuado a aplicar a taxa reduzida nas empreitadas contratadas após a transformação dos SMAS na AGEM.
Aliás, repare-se que nem a própria Administração Fiscal terá detectado logo o alcance fiscal da transformação verificada, pois como decorre do teor da “Informação nº 80”, dimanada do gabinete do Subdirector-Geral dos Serviços do IVA em 1/08/2002 e que mereceu despacho de concordância do SEAF em 7/08/2002, só nessa altura a Administração equacionou e resolveu a questão de saber se nas empreitadas em que os donos da obra eram empresas municipais se devia ou não continuar a liquidar o IVA à taxa de 5%. Não obstante, dois anos mais tarde os Serviços do IVA prestaram a informação documentada a fls. 61 a 64, a propósito de um pedido de “reactivação de crédito do IVA” que a AGEM apresentara em 17/03/03 em nome dos Serviços Municipalizados da Câmara de Vila Nova de Gaia, informação que foi sancionada por despacho do Director de Serviços do IVA em 8/07/04 e onde se concluía que «Os Serviços Municipalizados da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia e a empresa Águas de Gaia, EM, são um único e mesmo sujeito passivo, ainda que, com números de identificação diferentes para além da designação social pelo que em vez de ter procedido à entrega duma declaração de cessação de actividade, e simultaneamente, ter entregue a outra declaração de início de actividade, deveria ter procedido à entrega de uma declaração de alterações de acordo com o art.º 31º do CIVA. (...) Tratando-se do mesmo sujeito passivo, não existe qualquer objecção à utilização da Comunicação de Crédito cuja reactivação é solicitada, pelo que, para os devidos efeitos, se deverá dar conhecimento à Direcção de Serviços de Cobrança do IVA».
O que manifestamente denota que em meados de 2004 continuava a não haver, por parte da Administração Fiscal, uma percepção clara e definitiva do exacto alcance e sentido da referida transformação, pois nessa altura ainda afirma que os Serviços Municipalizados e a AGEM são um único e mesmo sujeito passivo, tendo-lhe reconhecido, por essa razão, o direito comunicação de créditos.
Por fim, há ainda a salientar que a Impugnante pagou o IVA logo que é alertada pela Administração Fiscal para o erro que vinha cometendo na liquidação do IVA à taxa reduzida, o que não pode deixar de constituir um elemento evidenciador da boa-fé e da confiança na actuação de um ente público como é a AGEM, na medida em que esta empresa pública continuou a aceitar a liquidação do IVA à taxa de 5% e a pagar apenas esse imposto que lhe é liquidado pelo empreiteiro.
Neste concreto enquadramento, e sabido que por força do preceituado nos artigos 35.° da LGT e 89.° do CIVA constituem requisitos essenciais para a liquidação de juros compensatórios a existência de um atraso na efectivação da liquidação e a imputabilidade (culposa) desse atraso à actuação do contribuinte, julgamos que não se pode considerar preenchido este último requisito, isto é, a culpa por parte do sujeito passivo de IVA, atenta a natural e compreensível falta de percepção, por todas as entidades envolvidas, nomeadamente por parte da Administração Fiscal, de que o dono da obra deixara de ser a autarquia, com a consequente falta de noção de que cessara a situação que permitia a aplicação da taxa reduzida de IVA ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 18.º conjugado com a verba 2.17 da Lista I, ambos do Código do IVA.
Na verdade, constitui entendimento jurisprudencial pacífico (Neste sentido podem ver-se os seguintes acórdãos do STA: de 8-7-92, proferido no recurso n.º 12147; de 28-6-95, proferido no recurso n.º 19014; de 20-3-96, proferido no recurso n.º 20042; de 2-10-96, proferido no recurso n.º 20605; de 18-2-98, proferido no recurso n.º 22325; de 3-10-2001, proferido no recurso n.º 25034; de 16-02-2005, proferido no recurso n.º 1006/04; de 12-07-2005 proferido no recurso n.º 12649 e de 19-11-2008, proferido no recurso n.º 325/08.) que a responsabilidade por juros compensatórios tem a natureza de uma reparação civil e que, por isso, depende do nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a actuação do contribuinte e da possibilidade de formular um juízo de censura à sua actuação (a título de dolo ou negligência). Ou seja, depende, da existência de culpa, a qual consiste na omissão reprovável de um dever de diligência, que é de aferir em abstracto (face à diligência de um bom pai de família) e que, por isso, tem de ser apreciada segundo os deveres gerais de diligência e aptidão de um bónus pater famílias (Sobre a matéria pode ler-se o Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa in “Juros nas relações tributárias”, Problemas Fundamentais do Direito Tributário, pág. 145, bem como o Professor Casalta Nabais no parecer junto aos presentes autos.).
Deste modo, e apesar de a doutrina e a jurisprudência também sufragarem a tese de que quando uma determinada conduta constitui um facto qualificado por lei como ilícito se deve fazer decorrer dessa conduta – por ilação lógica – a existência de culpa (não porque a culpa se presuma, mas por ser algo que, em regra, se liga ao carácter ilícito-típico do facto praticado) e que, por essa via, se deve partir do pressuposto de que existe culpa sempre que a actuação do contribuinte integra a hipótese de qualquer infracção tributária, o certo é que essa culpa pode e deve ser excluída quando se mostre, à luz das regras de experiência e das provas obtidas, que o contribuinte actuou com a diligência normal no cumprimento das suas obrigações fiscais. E, por essa razão, a jurisprudência firmou-se no entendimento de que não são devidos juros compensatórios quando o retardamento da liquidação se ficou a dever, por exemplo, a compreensível divergência de critérios entre a AF e o contribuinte quanto ao enquadramento e/ou qualificação de determinada situação tributária (como, por exemplo, a nível de custos fiscais) ou a erro desculpável do contribuinte (cfr. os acórdãos referidos em nota de rodapé).
Ora, aplicando a citada doutrina e jurisprudência, julgamos que não se pode formular um juízo de censura à actuação da Impugnante até ao momento em que é avisada pela Administração Fiscal do erro em que estava a incorrer na aplicação da taxa do IVA, pois esse erro é claramente desculpável quando lido à luz de todo o circunstancialismo acima referido.
Neste contexto, e tornando-se inadmissível imputar um juízo de censura à actuação da Impugnante em relação ao retardamento da liquidação de IVA à taxa normal devida, há que considerar como excluída a sua culpa e, consequentemente, afastada a sua responsabilidade pelo pagamento de juros compensatórios por falta de verificação de um dos pressupostos consagrados no artigo 35.º da LGT, para o qual remete o artigo. 89.° do CIVA.
Termos em que improcedem todas as conclusões do recurso.
4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.
Custas pela Fazenda Pública, fixando-se a procuradoria em 1/8.
Lisboa, 16 de Dezembro de 2010. – Dulce Manuel Neto (relatora) – Alfredo Madureira – Valente Torrão.