Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0518/18
Data do Acordão:05/30/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P23377
Nº do Documento:SA1201805300518
Data de Entrada:05/21/2018
Recorrente:A.....
Recorrido 1:MINISTÉRIO DA DEFESA NACIONAL
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Formação de Apreciação Preliminar da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

RELATÓRIO.

A……. intentou, no TAF de Aveiro, contra Ministério da Defesa Nacional, acção administrativa comum pedindo que o Réu fosse condenado a reconhecer o seu direito à bolsa de estudos e ao subsídio para pagamento de propinas que havia solicitado e que, em consequência, fosse condenado a pagar-lhos.

Aquele Tribunal julgou a acção improcedente.
E o TCA Norte, para onde o Autor apelou, negou provimento ao recurso.
É desse acórdão que vem a presente revista (art.º 150.º do CPTA).

II.MATÉRIA DE FACTO
Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III.O DIREITO

1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. O Recorrente, em Abril de 2009, candidatou-se à Bolsa de Estudos Superiores, prevista no DL 320-A/2000, de 15/12, tendo, em 30-07-2009, recebido resposta da instituição militar informando-o que o deferimento do seu pedido estava condicionado à disponibilidade de verba. Verba que no ano lectivo 2009/2010 não foi disponibilizada o que privou o Recorrente do recebimento das ajudas requeridas, o que não o impediu de ir informando aquela instituição do seu aproveitamento escolar e das sucessivas matrículas que ia fazendo.
Em 4/11/2011, o sr. Secretário de Estado Adjunto e da Defesa Nacional proferiu despacho fixando as verbas para os mencionados apoios ao ano lectivo de 2010/2011, cabendo ao Recorrente a quantia de 986,88 euros, que lhe foi paga em Dezembro de 2011. E em Julho de 2012 o Réu pagou ao Recorrente a quantia de 999,71 euros referente ao ano lectivo de 2011/2012 e, em 26/12/2012, pagou-lhe mais 1.037,20 euros.
Considerando insuficiente o valor dos subsídios que lhe foram prestados e crendo-se credor dos montantes peticionados intentou, em 24/09/2012, acção administrativa comum pedindo a condenação do Réu:
(a) o reconhecer o direito à bolsa de estudos e ao subsídio para propinas previstos nos art.ºs 23.º e 24.º do DL nº 320-A/2000, de 15/12;
(b) a pagar-lhe € 59.471,52, correspondente às prestações mensais referentes aos anos lectivos de 2009/2010, 2010/2011, 2011/2012 e 2012/2013 a que tinha direito;
(c) a pagar-lhe € 29.735,76, comprovados que sejam os requisitos estabelecidos no n.º 9 do art.º 23.º do citado DL, correspondente às prestações mensais referentes aos anos lectivos 2013/2014 e 2014/2015 a que tem direito;
(d) a pagar-lhe o subsídio para pagamento de propinas referente aos anos lectivos 2009/2010 e 2012/2013, no montante de € 1.999,42, assim como referente ao ano de 2013/2014, este último cumprido que sejam os requisitos legais para o efeito, na quantia a determinar; e ainda
(e) a pagar-lhe a título de regulação provisória a quantia mensal de € 1.238,99, indispensável para evitar a sua situação de grave carência.

TAF julgou esses pedidos improcedentes pelas razões que, no essencial, se reproduzem:
“(…) o Autor não impugna qualquer acto administrativo, nem tão pouco pede a condenação à prática de qualquer acto administrativo que se lhe afigure como legalmente devido, conclui-se que, pelo que é peticionado, a forma de processo é a adequada, não se verificando, por isso, erro na forma de processo, podendo ocorrer, no entanto, inidoneidade do meio processual utilizado (o que é diferente do erro na forma de processo) …. .
… resulta da factualidade provada que o Réu praticou aquele acto (Onde se lê:
Relativamente ao assunto em epígrafe, informo V. Ex.ª que deu entrada nesta Direcção-Geral o pedido de concessão de subsídio para estudos superiores nos termos previsto no artigo 23.° do Regulamento de lncentivos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 320-A/2000, de 15/12, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 118/2004, de 21/05, sendo que o seu deferimento fica condicionado, porém, à prévia disponibilização de verba a fixar por Sua Excelência o Ministro da Defesa Nacional.
Mais se informa que, até 30 de Outubro, deverá enviar a esta Direcção-Geral o comprovativo de matrícula em estabelecimento de ensino superior, no ano lectivo 2009/2010, sob pena da perda do direito ao benefício ora requerido.
Alerta-se, ainda, V.ª Ex.cia para as incompatibilidades decorrentes da lei face ao incentivo requerido, pelo que se anexa modelo de declaração que deverá ser remetida a esta Direcção-Geral.”), pelo que o Autor deveria ter lançado mão da acção administrativa especial com vista a anular a decisão que recaiu sobre a candidatura que apresentou (e que fez depender o deferimento do pedido do Autor da fixação de verba para o efeito), peticionando a condenação do Réu à prática do acto que entendia ser devido, o que só por via da acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido seria possível.
….
E é precisamente por ter sido deferida a pretensão do Autor, nos termos em que o foi, que ocorre a impropriedade do meio processual para conhecer dos pedidos formulados na petição inicial, uma vez que o efeito que o Autor pretende retirar da presente acção, é o que retiraria da anulação do acto em questão e da consequente condenação à prática do acto devido.
…..
Assim, não tendo sucedido e tendo sido comunicado ao Autor que a bolsa a que se candidatava ficaria dependente da fixação de verba para o efeito, e não tendo sido fixada qualquer verba nesse ano, sem que o Autor tivesse reagido contra esse acto e esta omissão, a presente acção redundaria precisamente no efeito que decorreria da acção que o Autor, em devido tempo, não interpôs.
E tendo entretanto sido proferido o despacho a que se reporta a alínea g) (Onde se decidiu o seguinte:
“1. Ao abrigo do n.º 5 do artigo 23.° do RI, a verba disponível para atribuição do subsídio para estudos superiores para o ano Iectivo 2010/2011 é de 61.511,50€ … para garantir a continuação dos compromissos assumidos com as candidaturas aprovadas desde o ano lectivo 2008/2009 e que continuam a cumprir os requisitos exigidos;
2. Ao abrigo dos n.ºs 1 e 3 do artigo 39.° da Lei n.º 55 - A/2010, de 31 de Dezembro, e dos n.ºs 2 e 3 do artigo 16.° da Lei n.º 37/2003, de 22 de Agosto, alterada pela lei n.º 49/2005, de 30 de Agosto, a verba disponível para atribuição do subsídio para pagamento de propinas de ensino é de 59.212, 80€, correspondentes às novas candidaturas apresentadas para o ano Iectivo de 2010/2011.” ), da factualidade provada, e pago ao Autor determinados montantes apenas nos anos de 2011 e 2012 … pelas razões expostas, não é também por via da presente acção que o Autor pode obter os efeitos decorrentes da anulação destes actos, pois que sempre lhe cabia instar a Administração a praticar os actos que consideraria devidos, em consequência desse despacho de fixação de verba e, consequentemente, não sendo aqueles praticados, ou sendo-o em violação das normas legais aplicáveis, interpor a competente acção de condenação à prática de acto devido (cfr. artigo 67.º, do CPTA).
Assim, e pelos motivos aduzidos, verifica-se, no caso em apreço, a excepção dilatória inominada decorrente da inadmissibilidade legal do uso da acção administrativa comum, determinante da absolvição da instância, nos termos dos artigos 38.º, n.º 2, do CPTA.”

Decisão que o TCA Norte confirmou pelas seguintes razões:
“… afirma o Recorrente que o ofício de 30-07-2009 contém mera informação e que não se traduz na emissão de um acto administrativo de indeferimento, ou sequer de uma omissão passível de impugnação, à qual o Autor pudesse reagir.
Tem razão apenas na medida em que não se consolidou aí um indeferimento, pelo menos absoluto, pois os pagamentos constantes de H), K) e N) da matéria de facto, que o Recorrente reputa de “pagamento parcial”, comprovam que se verificou o deferimento parcial da pretensão do Autor.
….
Ora, de um deferimento parcial (“pagamento parcial” na expressão do Recorrente) resulta apodicticamente a existência um indeferimento parcial.
E a certeza de que o Autor já não obteria a satisfação total da sua pretensão consolidou-se decisivamente com a comunicação constante em J) (Onde o Réu informa o Autor que “O facto de perante a ausência de despacho de fixação de verba se ter adoptado um procedimento que recuperava os pedidos referentes ao ano lectivo de 2009/10 e 2010/11, acabou por ser mais favorável visto ter permitido o pagamento de um subsídio. Não nos podemos esquecer que se nos cingíssemos ao pedido formulado, “subsídio para estudos superiores” o candidato não receberia nada pois no ano lectivo de 2009/10 não tinha havido lugar à fixação de verba e o pedido consequentemente caducaria e no ano Iectivo 2010/11 tal incentivo já tinha sido revogado.”) da matéria de facto.
…..
O argumento principal que ressuma nestas conclusões é que o direito aos incentivos peticionados resultava directamente da lei, não dependendo da prática de actos administrativos destinados à sua concessão.
Manifestamente não é assim, nem poderia ser, uma vez que a concessão dos subsídios (bolsa de estudos e subsídio para propinas) dependia de requerimento do interessado para o efeito (art.º 24º/1 do DL 320-A/2000, de 15/12) e exigia uma “decisão relativa à concessão do subsídio” (art.º 24º/3 do mesmo diploma), assim como a posse e comprovação de determinados requisitos (art.º 23º/9 do mesmo diploma …..
…. Torna-se, assim, claro que o sentido normativo do art.º 45º do DL 320-A/2000 é apenas marcar o momento a partir do qual o militar pode diligenciar no sentido de concretizar a aquisição desse direito na sua esfera jurídica. Aquilo que a lei designa exercício do direito aos incentivos, “o direito aos incentivos só é exercido depois da incorporação”, remete afinal para o procedimento tendente à aquisição do direito cuja virtualidade genética - e apenas essa - remontava ao momento da assinatura do contrato.
….
Finalmente o Recorrente esgrime o argumento da possibilidade de apreciação incidental da ilegalidade do acto no âmbito da acção administrativa comum, ao abrigo do artigo 38º/2 do CPTA (na versão então vigente).
Mas sem razão, porque essa possibilidade de apreciação incidental se refere apenas a actos administrativos que já não possam ser impugnados e “só pode, portanto, dirigir-se a obter efeitos jurídicos não coincidentes com os que resultariam da propositura de uma acção de impugnação” (na expressão de M. Aroso de Almeida e C. A. Fernandes Cadilha, in Comentário ao CPTA, 2010, p. 225). … .
Posto isto, improcedem na totalidade as conclusões do Recorrente e o recurso não obtém provimento.”

3. Decisão que o Recorrente não aceita pelas razões resumidas nas conclusões do seu recurso donde se extrai:
“iii) Em causa a interpretação da notificação efectuada pelo Réu ao Recorrente em 30.07.2009, entendida pelas instâncias recorridas como consubstanciadora de um acto administrativo, recorrível judicialmente por intermédio da acção administrativa especial;
iv) O despacho constante de tal notificação não configura um verdadeiro acto administrativo, lesivo e com eficácia externa no sentido de se entender como recorrível autonomamente pois não representa uma decisão expressa do pedido, estando condicionado a condição futura, que se encontrava na dependência de órgão que não o Director Geral de Pessoal e Recrutamento Militar, nomeadamente do Sr. Ministro da Defesa Nacional.
xiii) Perante tal despacho, o Recorrente ficou a aguardar que fosse fixada a verba necessária e deferido o pagamento nos termos peticionados, até por ser admissível o pagamento com efeitos retroactivos desde a formulação do pedido em 2009;
xiv) Só perante o ofício de 18.06.2012 [facto j], em que expressamente se afirmou que “o incentivo a que se refere encontra-se revogado (...) sendo que logicamente a não fixação da mesma conduziria à caducidade do processo” é que pode considerar-se ter havido indeferimento expresso do pedido;

4. Como se acaba de ver a razão essencial que determinou a absolvição do Réu da instância foi o entendimento de que o despacho comunicado ao Recorrente pelo ofício de 30/07/2009 se traduzia num verdadeiro acto administrativo e que, sendo assim, aquele errou ao propor esta acção comum como forma de obter satisfação para as suas pretensões, visto que essa satisfação só poderia ser alcançada através da propositura de uma acção administrativa especial onde se pedisse a anulação daquele acto e a condenação do Réu à prática do acto devido.
A acção administrativa comum que havia sido proposta era, assim, um meio processual inidóneo para o deferimento dos pedidos formulados o que constituía uma excepção inominada e determinava a absolvição do Réu da instância. E que a não impugnação daquele acto determinava a sua consolidação na ordem jurídica que não poderia ser revertida através da propositura desta acção. Reversão que nem sequer podia ser alcançada através da sua apreciação incidental nesta acção uma vez que esta só pode dirigir-se a obter efeitos jurídicos não coincidentes com os que resultariam da propositura de uma acção de impugnação.
Deste modo, como salienta o Recorrente, a questão central desta revista é a de saber se o despacho que lhe foi comunicado em 30/07/2009 consubstancia um verdadeiro acto administrativo imediatamente impugnável. Questão que não é de imediata apreensão uma vez que, verdadeiramente, aquele se limita a informar o Recorrente que o deferimento da sua pretensão “fica condicionado, porém, à prévia disponibilização de verba a fixar por Sua Excelência o Ministro da Defesa Nacional.”
Ou seja, parece resultar de uma primeira leitura daquele acto que o mesmo nada decide uma vez que se limita a informar o Recorrente que, para o ano lectivo de 2008/2009, ainda não tinha sido decidida a concessão de apoios para frequentar o ensino superior e que essa concessão estava dependente da fixação da respectiva verba, o que ainda não havia sido feito. O que suscita dúvidas pertinentes sobre a interpretação daquele acto, desde logo, a de saber se o mesmo pode ser qualificado de administrativo.
O que desde logo aconselha a admissão da revista.
Por outro lado, as instâncias concordam que não vem pedida a anulação de qualquer acto e que o deferimento dos pedidos formulados dependia da impugnação do acto que lhe foi comunicado pelo ofício de 30/07/2009, que elas qualificam como um verdadeiro acto administrativo. Impugnação que não podia ser feita nesta acção, nem a coberto do que se estatui no art.º 38.º/2 do CPTA.
E sendo verdade que não vem impugnado qualquer acto administrativo e que a verdadeira pretensão do Autor/Recorrente é a condenação do Réu a reconhecer que ele tem direito às ajudas requeridas e a sua condenação a pagá-las, importa saber se a acção administrativa especial é o meio processual idóneo para obter o deferimento dessa pretensão.
Deste modo, e muito embora a resolução da questão retratada nos autos seja de natureza processual certo é que a sua resolução envolve dificuldade e importância jurídica suficientes para justificar a sua reapreciação neste Tribunal.

DECISÃO.

Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Sem custas.

Lisboa, 30 de Maio de 2018. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.