Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0631/10
Data do Acordão:11/10/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:VALENTE TORRÃO
Descritores:ANULAÇÃO DA VENDA
IMÓVEL
ARROMBAMENTO
AUTORIDADE POLICIAL
Sumário:I - O artº 151º do CPPT tem de interpretar-se no sentido de o juiz do tribunal tributário gozar também de competência para determinar o auxílio das autoridades policiais no arrombamento de imóvel urbano penhorado em execução fiscal, mediante requerimento fundamentado do órgão de execução fiscal, ao abrigo do artº 840º, nº 3 do CPC e à semelhança do que sucede na execução comum com o agente de execução.
II - O arrombamento determinado pelo órgão de execução fiscal com auxílio das autoridades policiais, só por si, não constitui fundamento de anulação de venda, uma vez que não estamos em presença de nulidade do processo susceptível de influenciar a venda, não preenchendo, por isso o fundamento previsto no artº 909º, nº 1 alínea c) do CPC.
Nº Convencional:JSTA000P12333
Nº do Documento:SA2201011100631
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I. A Fazenda Pública veio recorrer da decisão do Mmº Juiz do TAF de Loulé que julgou procedente o pedido de anulação de venda deduzido por A…, relativamente ao prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Albufeira sob o artº 8.527, fracção “CG”, sito no Edifício …, Lotes nºs … em Albufeira e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 291/020485, apresentando, para o efeito, alegações nas quais conclui:
a) Na douta sentença ora recorrida foi deferido o requerimento de anulação da venda e ordenada a anulação de todos os actos processuais subsequentes ao despacho do Sr. Chefe do Serviço de Finanças de Albufeira que determinou o arrombamento da fracção penhorada e mudança de fechadura com recurso à força pública.
b) Por considerar que resulta da norma prevista no artigo 840° do CPC que o arrombamento de imóvel penhorado com recurso à força pública deve ser requerido pela Administração Fiscal ao Juiz para que este determine a requisição do auxilio da força pública.
c) Constituindo tal irregularidade uma nulidade processual susceptível de afectar o acto da venda, constitui também uma causa de nulidade desta, nos termos do referido n° l do art° 201° e da alínea c) do n° l do art° 909° do CPC, aplicáveis por força do disposto na alínea c) do n° l do art° 257° do CPPT.
d) Com o devido respeito que é muito, não pode a Fazenda Pública concordar com tal decisão, porquanto,
e) Como resulta da materialidade fáctica dada como provada a venda foi concretizada em 28/07/2009 em que foi aceite a proposta n° 1007.2008.52.1496 por ser a de maior valor (€72.630,00), efectuada pelo Banco Santander Totta, SA, e em 30/07/2009 foi proferido despacho de adjudicação de fls. 101 dos autos.
f) Tal venda foi efectuada no âmbito dos processos de execução fiscal identificados nas alíneas A) a H e I do probatório fixado.
g) Todos os processos de execução foram tramitados segundo as regras dispositivas do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
h) Determina a alínea f) do art° 10° daquele Código que compete aos Serviços da Administração Fiscal instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a estes respeitantes, salvo os previstos no n° l do art° 151° do CPPT, que se refere aos incidentes de natureza jurisdicional suscitados no processo de execução fiscal e só esses serão decididos pelos Tribunais.
i) A questão aqui em apreciação prende-se com um despacho do Chefe de Finanças de Albufeira proferido em sede e no âmbito de processos de execução fiscal instaurados, pelo que neles deveriam ter sido arguidas as alegadas nulidades ou irregularidades proferidas naquele despacho com faculdade de recurso da decisão do órgão de execução fiscal nos termos do art° 276° do CPPT.
j) O que não aconteceu.
k) Com efeito, a arguição de nulidades praticadas no âmbito da execução fiscal deve ser invocada em requerimento de arguição de nulidade, a apresentar no próprio processo de execução fiscal, só existindo possibilidade de intervenção do Tribunal através da reclamação prevista no artº. 276° do CPPT, no caso do mesmo ser indeferido pelo órgão da execução fiscal.
I) Caso não tenha sido arguida qualquer nulidade no próprio processo executivo, este tramitará unicamente no Serviço de Finanças, até porque compete ao órgão de execução fiscal a prática de actos conducentes à realização da venda coerciva, designadamente tornar possível a posse efectiva do bem penhorado por parte do depositário.
m) Estamos, assim, perante erro na forma de processo utilizada para arguir a alegada irregularidade do despacho que ordenou o arrombamento e mudança de fechadura com recurso à força pública, o qual não foi considerado pelo Tribunal a quo por entender estarmos perante uma nulidade insanável, arguível a qualquer momento e invocável na anulação da venda, nos termos do artº. 909°, n° l alínea c) do CPC.
n) No entanto, se atentarmos à letra do artº. 909°, n.° l, c) do CPC, verificamos que a venda só fica sem efeito se for anulado o acto da venda, nos termos do art° 201° do CPC.
o) Referindo esta ultima disposição legal que a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
p) Ora, o art° 165° do CPPT regula o regime das nulidades em processo de execução fiscal qualificando como insanáveis a falta de citação (como ficou provado o executado foi citado pessoalmente em 03/07/2008), quando possa prejudicar a defesa do interessado e falta de requisitos essenciais do título executivo, quando não puder ser suprida por prova documental, sendo estas nulidades de conhecimento oficioso e podem ser arguidas até ao trânsito em julgado da decisão final.
q) O que significa que eventuais nulidades ocorridas no processo de execução, para além daquelas, ficam sanadas com o decurso do prazo em que podem ser arguidas e só se podem conhecer na sequência de arguição levada a cabo pelo interessado.
r) Sendo certo que o regime de nulidades do processo executivo é mais restritivo do que o previsto no processo civil por forma a dar satisfação ao interesse público subjacente à cobrança destes créditos, não existente em relação aos créditos de outras entidades.
s) Termos em que a douta sentença incorreu em erro quando aplicou o regime de nulidades previsto no art° 201° do CPC quando deveria ter aplicado o regime especial de nulidades previsto para ao processo de execução fiscal previsto no art° 165° do CPPT.
t) E à luz deste regime, a existir irregularidade no despacho posto em crise, esta tinha de arguida no próprio processo executivo, não o tendo feito e decorrido o prazo para a sua arguição esta ficou sanada, o que significa que não pode influir no exame e decisão da causa.
u) Mas mesmo que se entenda que é aplicável o regime previsto no n° l do art° 201° do CPC, do probatório fixado não é conclusivo que a intervenção da força pública para o arrombamento da porta e mudança de fechadura do bem objecto de venda tenha afectado o acto da venda.
v) No probatório fixado em "AC" é referido que "Após a abertura das duas primeiras propostas o Executado volta a comparecer neste Serviço de Finanças com um simples cheque normalizado ao invés de cheque visado bancário ou dinheiro, cfr. fls. 122."
w) Ora tendo na sua posse um cheque normalizado quando era exigido um visado e sendo este um procedimento a obter junto da instituição bancária não se percebe como o arrombamento e a mudança de fechadura o impediu de satisfazer a dívida exequenda antes da venda.
x) Tanto mais que aquela venda como consta da factualidade dada como provada já tinha sido marcada e suspensa por um período de 85 dias na condição de satisfazer aquela dívida através de pagamentos por conta.
y) Bem sabendo que não cumprido o acordo a venda seria efectivada.
z) Face a estes factos, não podia o Tribunal a quo ter decidido pela existência de uma nulidade processual susceptível de afectar o acto da venda.
aa) Pelo que incorreu em erro de julgamento e foram violadas as normas previstas nos art°s 10° alínea f), 151°, 165°, todos do CPPT e 201° do CPC, deve a mesma ser revogada.
Face ao exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente revogada a sentença recorrida, que deverá ser substituída por acórdão que mantenha a venda impugnada, só assim se fazendo JUSTIÇA.
II. Contra-alegando, veio o recorrido concluir:
A) Não assiste qualquer razão à Recorrente.
B) O Douto parecer da Digna Procuradora da República é imaculado e está douta e sabiamente feito e sustentado.
C) A Douta Sentença de se recorre está iluminadamente sustentada e fundamentada, em factos e em termos de direito.
D) O Senhor Chefe de Serviços de Finanças não tinha poderes para ordenar o Arrombamento.
E) Violou gravemente o artigo 840º do CPC e a Constituição da República Portuguesa.
F) Bem como violou o nº l do artigo 201º, alínea c) do nº 1 do artº. 909º CPC, ex vi da alínea c) do nº l do artº. 257º do CPPT.
G) São nulos (e gravemente ilegais) todos os actos processuais subsequentes ao despacho de determinou o arrombamento da fracção penhorada.
H) Com o seu comportamento impediu o Recorrido de pagar a divida à fazenda pública, privando-o dos seus bens e meios necessários para o fazer.
Termos em que deverá ser improcedente o presente recurso, mantendo-se a douta sentença recorrida.
III. O Mº Pº não emitiu parecer (v. fls. 258).
IV. Com interesse para a decisão foram dados como provados em 1ª instância os seguintes factos:
A) — Em 07/01/2004, foi instaurado o processo de execução fiscal n° 1007200401001728 contra o Executado ora Requerente, para cobrança coerciva de dívidas de IRS do ano de 2002, cfr. fls. 4 e 5.
B) — Em 17/11/2004, foi instaurado o processo de execução fiscal n° 1007200401036050 contra o Executado ora Requerente, para cobrança coerciva de dívidas de IRS do ano de 2003, cfr. fls. 124 e 125.
C) — Em 23/10/2005, foi instaurado o processo de execução fiscal n° 1007200501098152 contra o Executado ora Requerente, para cobrança coerciva de dívidas de IMI do ano de 2004, cfr. fls. 126 e 127.
D) — Em 23/10/2005, foi instaurado o processo de execução fiscal n° 1007200501105655 contra o Executado ora Requerente, para cobrança coerciva de dívidas de IRS do ano de 2004, cfr. fls. 130 e 131.
E) — Em 20/05/2006, foi instaurado o processo de execução fiscal n° 1007200601019848 contra o Executado ora Requerente, para cobrança coerciva de dívidas de IMI do ano de 2005, cfr. fls. 133 e 134.
F) — Em 22/10/2006, foi instaurado o processo de execução fiscal n° 1007200601077309 contra o Executado ora Requerente, para cobrança coerciva de dívidas de IMI do ano de 2005, cfr. fls. 138 e 139.
G) — Em 26/05/2007, foi instaurado o processo de execução fiscal n° 1007200701037889 contra o Executado ora Requerente, para cobrança coerciva de dívidas de IMI do ano de 2006, cfr. fls. 140 e 141
H) — Em 28/10/2007, foi instaurado o processo de execução fiscal n° 1007200701097040 contra o Executado ora Requerente, para cobrança coerciva de dívidas de IMI do ano de 2006, cfr. fls. 142 e 143.
I) — Em 18/03/2008, foi efectuada a penhora do prédio inscrito na matriz predial urbana da Freguesia de Albufeira sob o artigo n° 8.527 fracção "CG", sito no Edifício … lotes n° 128, 129 e 130 em Albufeira, descrito na Conservatória do registo Predial sob o n° 291/020485, cfr. fls. 17.
J) — Em 21/03/2008, foi apensado processo a que se refere a alínea anterior o processo de execução fiscal 1007200401036050, cfr. fls. 7.
K) — Em 12/05/2008 foi enviada ao Executado, para a …, …., uma notificação para citação após penhora, registada com aviso de recepção, que veio devolvida pelos CTT com a anotação de "objecto não reclamado", cfr. fls. 8.
L) — Na sequência de mandado para "NOTIFICAÇÃO/CITAÇÃO PESSOAL DE PENHORA DE IMÓVEL", em 19/05/2008, foi elaborada a certidão de diligências de fls. 7, donde resulta com interesse para a decisão:
«Após diligências efectuadas na …, …, …, freguesia e concelho de Albufeira, cumpre-me informar que não foi possível estabelecer o contacto com o contribuinte A…, NIF-…, dado que o mesmo não se encontra a residir na morada indicada, desconhecendo-se o seu actual e verdadeiro paradeiro.»
M) — O Executado foi pessoalmente citado em 03/07/2008, cfr. fls. 6 e 134
N) — Por despacho de 23/06/2008, foi determinado se procedesse oficiosamente à avaliação da fracção penhorada, cfr. fls. 19
O) — A 03/07/2008, apresentou-se o executado neste Serviço de Finanças e é recebido pelo Sr. Chefe do Serviço de Finanças onde faz um acordo de pagamentos por conta nos termos do artº. 264° do CPPT, da divida e é citado pessoalmente da mesma, cfr. fls. 121.
P) — Em 21/07/2008, faz um pagamento de € 1000,00, em 21/08/2008 outro de € 999,70 e em 29/09/2008 de €500,00, cfr. fls. 121.
Q) — Em 19/01/2009, foi designado o dia 04/05/2009 para a venda do bem penhorado e determinado se procedesse à citação edital, cfr. fls. 29.
R) — A venda a que se refere a alínea anterior foi publicitada tendo um dos editais sido afixado à porta do bem a vender, cfr. depoimento da segunda testemunha.
S) — Em 30/04/2009, o executado apresentou-se no Serviço de Finanças e depois de se reunir com o Chefe deste Serviço de Finanças, acordou efectuar pagamentos por conta, cfr. fls. 121.
T) — O primeiro pagamento foi efectuado nesse mesmo dia na importância de € 3.906,00, após o qual o Chefe do Serviço de Finanças emitiu um despacho a suspender a venda por um período de 85 dias, marcando nova data para a abertura das propostas, o dia 28/07/2009, cfr. fls. 59.
U) — No dia 26/06/2009 é efectuado um pagamento na importância de € 171,96 no processo de execução fiscal n° 1007200801130498, que não fazia parte desta venda, cfr. fls. 57.
V) — No dia 27/07/2008, a fiel depositária da fracção penhorado nos autos requereu no Serviço de Finanças de Albufeira as providências necessárias à obtenção da chave, cfr. fls. 78.
X) — Por despacho, de 27/07/2009, do Chefe do Serviço de Finanças foi determinado (cfr. fls. 79):
«Em face do teor da informação e requerimento que antecede, proceda-se ao arrombamento, requisitando-se para tal o auxílio da força pública com jurisdição naquela zona, ao abrigo do disposto no art° 840° do Código do Processo Civil, aplicável por força do artigo 2° alínea e) do Código de Procedimento e de Processo Tributário, lavrando-se o respectivo auto da ocorrência.»
Z) — No dia 27/07/2009, com recurso à força pública a Administração Fiscal procedeu ao arrombamento e mudança da fechadura, cfr. fls. 82.
AA) — Em 28/07/2009, por volta das 9:30h o Executado apresentou-se ao balcão a solicitar o valor total em divida para efectuar o pagamento, informação que lhe foi prestada e que teria que efectuar o mesmo até às 10:00h em cheque visado ou dinheiro, cfr. Informação de fls. 122.
AB) — Em 28/07/2009, foi realizada a venda do bem penhorado, cfr. fls. 83 e 84.
AC) — Após a abertura das duas primeiras propostas o Executado volta a comparecer neste Serviço de Finanças com um simples cheque normalizado ao invés de um cheque visado bancário ou dinheiro, cfr. fls. 122.
AD) — Foi aceite a proposta n° 1007.2008.52.1496 por ser a de maior valor (€ 72.630,00), efectuada pelo BANCO SANTANDER TOTTA SA, NC: 500844321, cfr. fls. 93.
AE) — Em 30/07/2009, foi proferido o despacho de adjudicação de fls. 101.
AF) — Em 12/08/2009 foi apresentado o presente pedido de anulação da venda, cfr. fls. 122.
V. Colhidos os vistos legais cabe agora decidir.
VI. De acordo com as conclusões das alegações, são duas as questões a decidir no presente recurso:
a) A de saber se o órgão da execução fiscal tem competência para determinar o arrombamento de imóvel penhorado, para efeitos de entrega ao depositário, ou se carece de solicitar autorização ao juiz do tribunal tributário competente, ao abrigo do disposto no artº 840º do CPC;
b) A de saber se, não possuindo essa competência, e tendo determinado tal arrombamento, esse acto só por si, determina nulidade processual prevista no artº 201º do CPC conducente a anulação da venda ao abrigo do artº 909º, nº 1, alínea c) do mesmo diploma.
VI.1. A decisão recorrida anulou a venda louvando-se nos seguintes argumentos:
De acordo com o artº 840º do CPC o arrombamento de imóvel penhorado com recurso à força pública deve ser requerido pela Administração Fiscal ao juiz para que este determine a requisição do auxílio da força pública.
No caso concreto, como foi requisitada a intervenção da força pública sem que previamente tenha sido requerida ao juiz, o acto é ilegal.
A prática de acto que a lei não admita, nos termos do artº 201º do CPC, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir na decisão da causa.
Ora, em consequência do arrombamento alegou o executado que ficou impedido de aceder ao interior da sua casa e de realizar todas as diligências tendentes ao pagamento da dívida exequenda, pelo que a irregularidade cometida influiu no exame e decisão da causa.
Deste modo e por aplicação do disposto nos artºs 201º, nº 1, 909º, nº 1, alínea c) do CPC e 257º do CPPT, a venda tem de ser anulada.
VI. 2. A recorrente Fazenda Pública entende, resumidamente, que:
A venda foi efectuada no âmbito dos processos de execução fiscal identificados nas alíneas A) a H e I do probatório fixado.
Todos os processos de execução foram tramitados segundo as regras dispositivas do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
De acordo com a alínea f) do art° 10° do CPPT compete aos Serviços da Administração Fiscal instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a estes respeitantes, salvo os previstos no n° l do art° 151° do CPPT, que se refere aos incidentes de natureza jurisdicional suscitados no processo de execução fiscal e só esses serão decididos pelos Tribunais.
No caso concreto dos autos, estando em causa um despacho do órgão da execução fiscal e não qualquer dos incidentes previstos naquela norma, deveria ter sido arguida nulidade, a apresentar no próprio processo de execução fiscal, só existindo possibilidade de intervenção do Tribunal através da reclamação prevista no artº. 276° do CPPT, no caso do mesmo ser indeferido pelo órgão da execução fiscal.
Não tendo sido arguida qualquer nulidade no próprio processo executivo, este tramitará unicamente no Serviço de Finanças, até porque compete ao órgão de execução fiscal a prática de actos conducentes à realização da venda coerciva, designadamente tornar possível a posse efectiva do bem penhorado por parte do depositário.
Estamos, assim, perante erro na forma de processo utilizada para arguir a alegada irregularidade do despacho que ordenou o arrombamento e mudança de fechadura com recurso à força pública.
Por outro lado, se atentarmos na letra do artº. 909°, n.° l c) do CPC, verificamos que a venda só fica sem efeito se for anulado o acto da venda, nos termos do art° 201° do CPC.
No caso dos autos estamos perante um processo de execução fiscal ao qual é aplicável o regime de nulidades previsto no artº 165º do CPPT.
Assim, em face deste preceito, mesmo a entender-se que existiu irregularidade - arrombamento determinado por entidade incompetente - este acto não influiu na venda, já que esta até havia sido anteriormente suspensa para dar ao executado possibilidade de pagamento da dívida exequenda e este não o efectuou antes da abertura das propostas.
VI.3. O recorrido, por sua vez, entende que a sentença recorrida merece ser confirmada, já que existiu violação do disposto no artº 840º do CPC e, subsequentemente, dos artºs 201º, nº 1, alínea c) e 909º nº 1, alínea c) do CPC.
E termina, concluindo que o arrombamento impediu o recorrido de pagar a dívida executada, privando-o dos seus bens e meios necessários para o fazer.
Vejamos qual destes entendimentos merece o apoio legal.
VII. O processo de execução fiscal tem natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional, sendo garantido aos interessados o direito de reclamação para o juiz da execução fiscal dos actos materialmente administrativos praticados por órgãos da administração tributária (artº 103º da LGT).
Do mesmo modo, o artº 10º, nº 1, alínea f) do CPPT determina que aos serviços da administração tributária cabe instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a estes respeitantes, salvo os previstos no nº 1 do artº. 151º do mesmo Código.
O processo de execução fiscal encontra-se regulado nos artºs 148º e segs. do CPPT, sendo ainda aplicável o CPC em casos omissos ou quando aquele remeter expressamente para este diploma (v., por exemplo, o artº 246º).
Das normas referidas resulta, desde logo, que ao órgão da execução fiscal compete realizar todos os actos respeitantes à execução, salvo os previstos no artº 151º do CPPT (incidentes, os embargos a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, a graduação e verificação de créditos e as reclamações dos actos materialmente administrativos praticados pelos órgãos da execução fiscal). Assim, para todos os restantes actos necessários à execução, goza o órgão de execução fiscal de competência, sem prejuízo de reclamação para o juiz.
Significará isto então, como defende a recorrente Fazenda Pública, que o órgão da execução fiscal pode também determinar o auxílio das autoridades policiais no arrombamento de imóvel urbano penhorado está também atribuída por lei ao órgão da execução fiscal?
A resposta a esta questão deverá ser negativa.
Na verdade, existe hoje bastante semelhança entre a execução comum e a execução fiscal, sendo que em ambas se procura o controle do juiz, cabendo a este a prática de determinados actos.
Ora, no caso da execução comum, o artº 840º do CPC, na redacção dada pelo artº 1º do Decreto- Lei nº 226/2008, de 20 de Novembro, determina o seguinte:
“1— Sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo anterior, o depositário deve tomar posse efectiva do imóvel.
2 — Quando seja oposta alguma resistência, o agente de execução pode solicitar directamente o auxílio das autoridades policiais.
3 — A requerimento fundamentado do agente de execução, o juiz determina o auxílio das autoridades policiais nos casos em que as portas estejam fechadas ou haja receio justificado de oposição de resistência arrombando -se aquelas, se necessário, e lavrando –se auto da ocorrência.
4 — Quando a diligência deva efectuar-se em casa habitada ou numa sua dependência fechada, só pode realizar-se entre as 7 e as 21 horas, devendo o agente de execução entregar cópia do auto de penhora a quem tiver a disponibilidade do lugar em que a diligência se realiza, o qual pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar ou substituir por pessoa da sua confiança que, sem delonga, se apresente no local”.
Ora, o órgão da execução fiscal tem competência muito semelhante à do agente de execução na execução comum e, por isso, não se compreenderia que numa situação tão grave como a do arrombamento de imóvel urbano, como é o caso dos autos e, para mais, uma casa de habitação, aquele tivesse competência para determinar o auxílio das autoridades policiais para efectuar o arrombamento.
Assim, o artº 151º do CPPT tem de interpretar-se de modo a abranger também na competência do juiz do tribunal tributário o poder de determinar o auxílio das autoridades policiais em caso de arrombamento de imóvel urbano penhorado.
E, assim, por aplicação do citado artº 840º do CPC, terá de existir por parte do órgão da execução fiscal um pedido fundamentado ao juiz.
É certo que sempre se poderia alegar que o executado poderia reclamar para o juiz ao abrigo do disposto no artº 276º do CPPT. Porém, nessa altura estaria já violado um direito do executado - nomeadamente o direito à privacidade da habitação - que não poderia ser reposto porque a violação ficou consumada com o arrombamento.
Temos então que, no caso dos autos, ocorreu um vício de incompetência na prática de um acto do processo de execução fiscal.
Isto, porém, não significa que a venda tenha de ser anulada.
Com efeito, foi invocado como fundamento da anulação da venda o do artº. 909°, n.° l, c) do CPC, que determina que a venda fica sem efeito:
c) Se for anulado o acto da venda, nos termos do artigo 201.º;
Por sua vez, o artº 201º do mesmo diploma determina queFora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Ora, o arrombamento só por si, e independentemente de ter sido determinado por entidade incompetente, não constitui nulidade susceptível de influir na venda ao abrigo desta norma.
Sendo assim, não ocorre fundamento para a anulação da venda, pelo que o recurso procede com este fundamento.
VIII. Nestes termos e pelo exposto, concede-se provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e mantendo-se a venda.
Custas pelo recorrido em ambas as instâncias.
Lisboa, 10 de Novembro de 2010. – Valente Torrão (relator) – Isabel Marques da Silva - Brandão de Pinho.